Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3418/18.9T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
CONTRATO DE TRANSPORTE
OBRIGAÇÃO DE MEIOS E DE RESULTADO
DEVER ACESSÓRIO
INCUMPRIMENTO
CULPA
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
CAUSAS DE EXCLUSÃO DA CULPA
CASO DE FORÇA MAIOR
CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Não se discutindo in casu a violação pela decisão recorrida das regras atinentes a prova vinculada ou prova com força legalmente vinculativa, o STJ encontra-se impedido, nos termos do disposto nos arts. 662.º, n.º 4, e 674.º, n.º 3, l.ª parte, do CPC, de sindicar o acerto da decisão tomada por parte do tribunal recorrido a respeito da impugnação da matéria de facto suscitada em sede de apelação.

II - O contrato de transporte pode definir-se como sendo aquele mediante o qual uma das partes (o transportador) se compromete/obriga perante outrem (que poderá ser o passageiro ou o carregador/expedidor) a fazer deslocar ou a transportar (por si ou recorrendo aos serviços de outrem), pessoas ou coisas de um lugar para o outro. Trata-se de um contrato típico, nominado, que se rege por normas específicas de regulamentação - o DL n.º 58/2008, de 26-03 - e pelos princípios gerais do CC, nomeadamente no que concerne ao cumprimento e não cumprimento - arts. 798.º e ss. do citado diploma legal.

III - Esta relação jurídica contratual configura-se como uma relação obrigacional complexa que não se esgota na obrigação de deslocar pessoas e coisas de um local para outro mediante uma determinada contrapartida. Para além dessa obrigação principal e típica, a empresa transportadora está ainda vinculada a outras obrigações de prestação secundárias acessórias e sem autonomia relativamente à prestação principal e a obrigações laterais, de protecção, de consideração e de cuidado com a pessoa e património da contraparte.


IV - A “cláusula de incolumidade”, inerente ao contrato de transporte, visa a segurança dos passageiros e vincula o transportador a prevenir e evitar danos na integridade pessoal e patrimonial destes, quer durante a viagem propriamente dita, quer no período de tempo compreendido entre o momento em que o passageiro se confina à área da estação ou apeadeiro para a viagem e o momento em que, chegado ao destino, deixa essa área.

V - No presente caso, dado que estamos perante uma obrigação de resultado, segundo a qual a empresa transportadora tem o dever de conduzir os passageiros de forma a que cheguem incólumes ao seu destino, não basta a prova da fiscalização do funcionamento das portas e da sua normalidade, tal como consta do facto n.º 51, para que a presunção legal de culpa, que recai sobre a devedora (art. 799.º do CC), se mostre ilidida.

VI - É exigível a demonstração de que ocorreu uma situação de força maior, um facto praticado pela lesada ou por terceiro, o que não se demonstrou.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA, intentou ação declarativa decondenação sob a forma de processo comum contra CP – COMBOIOS DE PORTUGAL E.P.E., pedindo a condenação desta no pagamento de despesas médicas e medicamentosas no total de €742,59, do montante respeitante a perdas de rendimentos que neste momento se cifra em € 1085,00, mas que aumentará todos os meses enquanto não puder voltar a trabalhar, e ainda na quantia de €150 000,00, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, passados, presentes e futuros, acrescida de juros de mora à taxa legal.

2. Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a ação e, consequentemente, condenou a ré a pagar à autora a título de indemnização, a quantia de € 6767,59, acrescendo à quantia de €1767,59,os juros demora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento.

3. Inconformadas, apelaram da sentença a autora AA e a ré, CP – Comboios de Portugal, tendo o acórdão do Tribunal da Relação decidido o seguinte:

«a) Julgar improcedente o recurso interposto pela apelante, CP – Comboios de Portugal, E.P.E.;

b) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela apelante, AA e, consequentemente, altera-se a decisão recorrida, condenando-se a apelada, CP – Comboios de Portugal, E.P.E., a pagar à apelante, AA, a título de indemnização, a quantia total de € 21 767,59 (vinte e um mil, setecentos e sessenta e sete euros e cinquenta e nove cêntimos), acrescendo à quantia de € 1767,59 (mil, setecentos e sessenta e sete euros e cinquenta e nove cêntimos) os juros demora, vencidos e vincendos, à taxa legal, desde a data da citação até integral pagamento».

4. CP – COMBOIOS DE PORTUGAL, EPE., inconformada com o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, que considerou improcedente o recurso de apelação por si interposto, mas alterou a sentença, julgando parcialmente procedente o recurso interposto pela Autora, veio interpor recurso de revista, com subida nos próprios autos e com efeito devolutivo, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:

«A) o Supremo Tribunal de Justiça pode exercer censura sobre o uso que a Relação fez dos poderes conferidos pelo artigo 662º do Cód. Processo Civil; pode ainda ordenar a modificação da matéria de facto se tanto se tornar necessário para uma perfeita decisão de direito;

B) a decisão recorrida assentou, por um lado, numa deficiente fixação da matéria de facto e, por outro, na errada apreciação daqueles que foram dados por assentes;

C) os elementos fornecidos pelo processo impõem a alteração dos factos dados por assentes, designadamente os nºs 2 e 5;

D) o Tribunal de 1ª instância não pode introduzir na matéria de facto juízos de valor ou expressões conclusivas ou opinativas que a Relação tem poder para eliminar e se não o fizer, como no caso em apreço, o Supremo Tribunal de Justiça tem que sindicar esses poderes da Relação para alterar os factos e reconduzi-los à sua essência o que conduzirá à procedência do recurso;

E) está dentro dos poderes cognitivos do Supremo Tribunal considerar como não escritos, ou modificar os factos que excedam o âmbito das questões de facto formuladas e verificar se as instâncias exorbitaram ou não nas respostas dadas;

F) a Recorrente não se conforma com as conclusões a que chegaram as decisões recorridas, pois estas só foram possíveis por uma errada selecção, apreciação e fixação da matéria de facto, na qual não se encontra vertido o que verdadeiramente aconteceu e que interessa à decisão da causa;

G) a matéria de facto apurada e que serviu de base à procedência da acção não teve na devida consideração as provas constantes dos autos, designadamente a peritagem e os documentos juntos pelas partes, para fixação da matéria de facto;

H) o acidente/incidente não se ficou a dever ao mau funcionamento, ou avaria, da porta mas a incúria e inconsideração da A.

I) a R. Recorrente ilidiu a presunção de culpa que impendia sobre os seus agentes ou comitidos, quer esta seja considerada extracontratual ou contratual - art°s. 503º, nº 3, 500º, nº 1, 799º do Código Civil;

J) está afastada a culpabilidade da R. quanto à sua responsabilidade por facto ilícito;

K) a R. também não faltou culposamente ao cumprimento da sua obrigação de transportadora – artº 798º do Código citado;

L) o acidente é imputável à A. – artigo 570º ainda do mesmo diploma;

M) a responsabilidade do transportador ferroviário pelos danos causados a passageiros prevista no Decreto-Lei nº 58/2008, de 26 de março, está também totalmente afastada pelo que nele se dispõe, em particular no respectivo artigo 25º;

N) o Acórdão recorrido violou ainda o disposto nos artigos 8º nº 3, 496º, 562º e 566º, nº 3, também do Código Civil, ao fixar o valor dos danos de forma que não é justa nem equitativa, pois não leva em consideração os casos análogos, como o do recente Acórdão do STJ de 21 de abril de 2022;

O) o caso dos autos é manifestamente menos grave que o deste Acórdão, pelo que a compensação a atribuir tem que ser muito inferior à ali fixada;

P) julgando em contrário as, aliás doutas, decisões recorridas violaram as disposições legais invocadas nas presentes conclusões.

Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso revogando-se a sentença e Acórdão recorridos, absolvendo-se a R. integralmente do pedido.

Só assim se fará JUSTIÇA».

5. A recorrida, AA, apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido e formulando as seguintes conclusões:

«42. Contrariamente ao que é pretendido pela Recorrente, não compete a este Venerando Tribunal exercer censura sobre a forma como o tribunal recorrido decidiu quanto à matéria de facto por força do artigo 682º nº 2 do C.P.C.

43. A ressalva do artigo 674º nº 3 do C.P.C. não é aplicável neste caso.

44. Deve, portanto, entender-se que o recurso será processualmente inadmissível.

45. A aplicação do artigo 682º pressuporia que os fundamentos da revista previstos no artigo 674º nº 1 do C.P.C. já se encontrariam preenchidos, o que, na realidade, não sucede.

46. Relativamente ao quantum indemnizatório, não pode este Venerando Tribunal reapreciar a decisão do Tribunal da Relação de Coimbra.

47. Nesta conformidade, deverá o recurso da Recorrente ser considerado improcedente

Com o que se fará Justiça!»

6. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

I – Controlo sobre o uso que o Tribunal da Relação fez dos seus poderes quanto à matéria de facto ao abrigo do artigo 662.º do CPC;

II – Responsabilidade civil da CP – Comboios de Portugal por danos causados à autora em transporte ferroviário de passageiros;

III – Imputação do acidente à autora (artigo 570.º do Código Civil);

IV – Montantes indemnizatórios.

II – Fundamentação

A – Matéria de facto

FACTOS PROVADOS

1. A A. adquiriu um bilhete de transporte ferroviário com saída do ...) pelas 19h 52 m e destino a ... no dia 9 de junho de 2017.

2. Sucedeu que, ao subir do primeiro degrau da carruagem para o segundo, a A. agarrou-se aos dois puxadores da porta da carruagem, esta cedeu e bateu-lhe fortemente no joelho esquerdo.

3. O acesso à carruagem não pode ser feito de outra forma que não seja a de as pessoas se apoiarem nos puxadores metálicos das portas.

4. A A. é uma pessoa de constituição forte, trazia uma mochila às costas e teve que se apoiar em ambos os puxadores.

5. Não é normal que as portas cedam quando as pessoas se apoiam nos puxadores para subirem os degraus.

6. De imediato, a A. sentiu enormes dores, tendo dificuldade em deslocar-se até ao seu lugar na carruagem.

7. Quando o Revisor passou, a A. queixou-se do sucedido, mas este não deu importância ao que lhe foi dito.

8. Durante a viagem, a A. sentiu imensas dores e a perna esquerda inchou.

9. Quando o comboio estava a chegar perto de ..., a A. ligou para dois amigos, que viviam e vivem em ..., para a irem buscar pois já não podia andar.

10. Chegados a ..., os dois amigos da A. dirigiram-se à carruagem para a ajudar a sair.

11. A A. foi transportada em braços e ficou sentada no banco de espera da plataforma da Estação.

12. Os amigos da A. chamaram o INEM.

13. A A. foi transportada para o Hospital de ... onde foi assistida por gonalgia mais a nível da interlinha articular externa.

14. Do Hospital de ... foi encaminhada para a área da sua residência para aí ser seguida.

15. A A. foi seguida na Clínica do ... em ... até 4 de Setembro de 2017

16. A partir de 21 de Agosto de 2017 recebeu subsídio de doença de €6,78 por dia.

17. Nesta altura, já está a ser seguida pela consulta de ortopedia do Centro Hospitalar ... e já fez os exames que foram pedidos.

18. Na sequência do embate, a A. sofreu uma lesão no menisco.

19. Sofreu de incapacidade temporária absoluta desde a data do acidente até, pelo menos, 04-09-2017.

20. No mês de Outubro de 2017 a Autora ainda se encontrava de baixa médica, não tendo recebido qualquer remuneração da sua entidade patronal

21. Continua a deslocar-se com dificuldade.

22. Neste momento, a A. já se debate com problemas de artrose, continua a sentir dores e a tomar analgésicos para as conseguir suportar, tem dificuldade em encontrar posição para dormir devido às dores.

23. Aguarda que seja marcada uma operação ao menisco e que sejam agendadas mais consultas de ortopedia.

24. Por carta datada de 23/01/2018, a Segurança Social notificou a Autora para apresentar resposta à intenção dos serviços de fazer cessar o subsídio de doença.

25. Tal facto ficou a dever-se à não comparência à junta médica marcada para o dia 19-09-2017.

26. A A. teve de andar de canadianas durante vários meses e continua a não poder ter uma vida normal.

27. O quadro depressivo da A. agravou-se com o acidente que teve ao subir para o comboio.

28. Na Clínica do ... a A. suportou as seguintes despesas:

29. Consulta de Clínica Geral no ... em 10-06-2017, dia seguinte ao do acidente - €39,00 (Vide Doc. 8).

30. Nos dias 12-06-2017 (Vide Doc. 9), 3-07-2017 (Vide Doc. 10) e 7-08-2017 (Vide Doc. 11), consultas de ortopedia no ...com o custo de €70,00 cada.

31. Raio X no ... - €60,00 – 12-06-2017 (Vide Docs. 12 e 13).

32. Exame de ressonância magnética no Hospital da ... em 27/06/2017: €300,00 (Vide Doc. 14).

33. Joelheira adquirida na O..., Lda. em 12/06/2017: €49,00 (Vide Doc. 15).

34. Meloxicam, Algimate e canadianas (Vide Docs. 16 a 18): €24,59.

35. A A. enviou reclamações por email em 12-06-2017 (Vide Doc. 19), 13-06- 2017 (Vide Doc. 20) e 16-06-2017 (Vide Doc. 21).

36. A 23-06-2017 enviou uma carta à R. expondo a ocorrência (Vide Doc. 22 – Cópia da carta, Doc. 23 – talão de registo e Doc. 24 – aviso de receção).

37. Em 29-06-2017 teve uma resposta da CP (Vide Doc. 25).

38. Em resposta a essa missiva enviada por email a A. reagiu com duas mensagens (Vide Docs. 26 e 27).

39. Com data de 3-07-2017 recebeu uma resposta da R. na qual esta afasta qualquer responsabilidade pelo sucedido (Vide Doc. 28):

40. “A situação em apreço não foi motivada por qualquer facto imputável a esta empresa, pelo que não lhe compete proceder ao pagamento de qualquer despesa.”

41. A A. deslocou-se duas vezes a Lisboa, tendo apresentado uma reclamação em 18-07-2017 (Vide Doc. 29) e outra em 27-07-2017 (Vide Doc. 30).

42. Na carta datada de 8 de agosto de 2017 (Vide Doc. 31), a R. reitera a posição anteriormente manifestada.

43. A A. auferia a remuneração ilíquida mensal de 557,00 euros (Vide Doc. 32).

44. A A. sofreu dores no dia do acidente e nos meses seguintes.

45. Tem vivido muito angustiada, com momentos de depressão e desgosto por recear que a sua vida nunca mais volte a ser o que era.

46. A A. trabalhava, conduzia e tinha a sua vida autónoma.

47. As portas de acesso às carruagens do serviço InterCidades são portas de uma folha com articulação assimétrica e com corrimão adicional, normalizadas segundo a ficha nº 560 da UIC (Union International des Chemins de Fer) - “Doors, footboards, windows, steps, handles, and handrails of coaches and luggage vans” precisamente para utilização em carruagens.

48. O manípulo de abertura da porta exterior permite destrancar a porta e, consequentemente, abri-la, e os corrimões têm por função auxiliar o embarque dos passageiros.

49. As carruagens do serviço InterCidades possuem dois corrimões no acesso exterior e interior, sendo que em ambos um deles é o corrimão existente na porta articulada que na posição aberta permite essa função, também normalizados segundo a ficha UIC 560.

50. A Carruagem 2097022 que circulou com o nº 25 na composição do comboio Intercidades – IC 526 - do dia ... de junho de 2017, é exatamente como se descreve e pode ser observada no documento que ora se junta e dá por reproduzido – cfr. doc. nº 1.

51. As carruagens são objeto de manutenção regular, não havendo qualquer registo de anomalias relacionadas com as portas exteriores, ou outro tipo de falhas, o que atesta a conformidade daquela unidade para o serviço comercial – cfr. lista de Intervenções do Plano de Manutenção e Km´s percorridos no período de 09.05.2017 a 20.06.2017 da Carruagem 20097022, assim como a documentação comprovativa do cumprimento do Plano de Manutenção por parte do Prestador de Serviço de Manutenção e registo de avarias/anomalias nas datas próximas do alegado evento – cfr. docs. nºs 2 a 6 que ora se juntam e dão por reproduzidos.

52. No dia ... de junho de 2017, encontravam-se em serviço no comboio IC 526 o Operador de Revisão e Venda, BB e o Maquinista, CC.

53. O Chefe da Estação é trabalhador do gestor da infraestrutura ferroviária, a quem pertencem as estações, a empresa Infraestruturas de Portugal, S.A.

54. O contrato de seguro do ramo responsabilidade civil que vigorava à data de 09/06/2017 entre a Ré CP – Comboios de Portugal, E.P.E. e a Interveniente Zurich Insurance Plc – Sucursal em Portugal é o contrato titulado pela apólice nº ...33;

55. Por força desse contrato a Ré CP transferiu para a Zurich a responsabilidade civil que, nos termos da Lei, lhe seja imputável em consequência de danos causados a terceiros na prestação de serviços de transporte ferroviário de passageiros, tudo como melhor consta da Apólice que se junta como Doc. 1 e cujo teor aqui se dá inteiramente por reproduzido.

56. Tal seguro foi contratado com um capital máximo de indemnização por sinistro e anuidade de € 10 000 000,00 (dez milhões de euros) – Cfr. Doc. 1, ora junto;

57. Tendo sido contratada uma franquia, a cargo da segurada, aplicável em todo e qualquer sinistro, no valor de € 1 000 000,00 (um milhão de euros).

58. A Interveniente Fidelidade – Companhia de Seguros, SA celebrou com a INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. um contrato de seguro de responsabilidade civil titulado pela Apólice n.º RC ...22, cujas Condições Gerais, Particulares e Especiais se juntam como Docs. 1 e 2 e se dão por reproduzidos.

59. Resulta das Condições Gerais do contrato de seguro celebrado com a Ré INFRAESTRUTURAS DE PORTUGAL, S.A. que este tem por fim a cobertura da responsabilidade civil extracontratual que, ao abrigo da lei civil, seja imputável ao segurado, no exercício da atividade ou na qualidade expressamente referida nas Condições Especiais ou Particulares da apólice – Cfr. Artigo 2º.

60. De acordo com a previsão do Ponto 4 das Condições Particulares e Especiais, a actividade segura consiste na “Gestão da infraestrutura rodoferroviária nacional portuguesa, incluindo, nomeadamente, os trabalhos de construção, montagem, remodelação, conservação e financiamento, exploração, manutenção, requalificação e alargamento de rede rodoferroviária; e, bem assim, quaisquer outras atividades conexas ou correlacionadas com as atrás referidas.”

61. Por seu turno, decorre do disposto no Ponto 8.1.6 das Condições Particulares e Especiais, que está coberto pelo contrato de seguro o pagamento de indemnizações decorrentes dos riscos de “…utilização ou propriedade da rede de infraestrutura rodoferroviária, estações de passageiros, seus edifícios e outras instalações, parques de estacionamento, garagens, instalações de abastecimento de combustível, terminais de mercadorias, estações de triagem, instalações de formação das composições, feixes de resguardo, instalações de manutenção e outras instalações técnicas, linhas de telecomunicações, instalações elétricas (incluindo linhas aéreas ou subterrâneas, transformadores, geradores).”

62. O contrato de seguro em apreço prevê como limite máximo de indemnização anual, por todo e qualquer sinistro verificado nessa anuidade, o montante de 100 000 000,00 € (cem milhões de euros) – Cfr. Ponto 11 das Condições Particulares e Especiais.

63. Por seu turno, por sinistro e só num contexto de danos materiais, ficou contratualmente ajustado, quanto à Responsabilidade Civil Geral, que existe uma franquia a cargo dos segurados de €100 000,00 (cem mil euros) - Cfr. Ponto 12 das Condições Particulares e Especiais.

64. Consagra o Ponto 9, alínea a) das Condições Particulares e Especiais que, em caso de sinistro coberto, estão excluídas as responsabilidades “… decorrentes de atos ou omissões dolosos dos Segurados ou de pessoas por quem estes sejam civilmente responsáveis” – e cfr., a contrario, art. 1.º n.º 1, alínea a) do Ponto 222 das Condições Especiais.

FACTOS NÃO PROVADOS

1. Em ..., os amigos da A. foram falar com o Chefe da Estação que lhes respondeu: “Não tenho nada a ver com isso! A Senhora devia ter ficado no ... e queixar-se lá!”

2. E à pergunta se não poderia chamar o INEM, o Chefe da Estação respondeu que não lhe competia visto que a A. estava acompanhada.

3. Foi informada pelo médico que, após os exames feitos, ficaria numa longa lista de espera até ser operada.

4. Entretanto, as poucas economias da A. esvaíram-se com os tratamentos, tendo já pedido ajuda financeira a amigos e familiares.

5. A porta cedeu quando a A. se apoiou para subir os degraus por estar avariada.

6. Tal avaria ficou a dever-se a uma falha na manutenção das portas de acesso às carruagens.

7. Teve que suportar do seu próprio bolso despesas com transporte de táxi pelo facto de não poder conduzir.

8. A sua empregadora não lhe renovou o contrato de trabalho que terminou a 30 de novembro de 2017 pelo facto de estar de baixa já há cinco meses.

9. A A. crê que este problema no menisco e nos ligamentos lhe trará problemas para o resto da sua vida, podendo mesmo ser declarada a sua incapacidade parcial.

10. A A. não tem perspetivas nenhumas de recuperação total da sua atual situação de incapacidade para o trabalho, dores na perna e dificuldades na locomoção.

11. O cenário mais provável será a sua reforma por incapacidade para o trabalho.

12. A A. teve igualmente de suportar os custos de duas viagens de táxi da sua localidade até ... de modo a estar presente nos tratamentos.

13. A A. recorda-se de não poder ter viajado no comboio do horário precedente porque o mesmo estava cheio e lembra-se ainda de notar uma grande afluência de passageiros naquele dia.

14. A Autora faltou à junta médica de 19/09/2017 porque tinha mudado de residência e, devido à sua impossibilidade de se deslocar e conduzir, não chegou a tempo de levantar o aviso dos CTT que foi depositado na caixa de correio da sua anterior morada.

15. O incidente/acidente em causa ficou a dever-se a incúria e inconsideração da A.

B) O Direito

I – Controlo da forma como o Tribunal da Relação usou o seu poder quanto à fixação da matéria de facto provada e não provada (artigo 662.º do CPC)

1. Excecionalmente, violadas regras de direito probatório material pelo Tribunal da Relação, pode este Supremo, nos termos do artigo 674.º, n.º 3, do CPC, intervir na fixação da matéria de facto.

No presente caso, o Tribunal da Relação rejeitou integralmente o pedido de modificação da matéria de facto apresentado pela recorrente, CP – Comboios de Portugal, com base na inobservância do ónus de impugnação previsto no artigo 640.º, n.º 1, e n.º 2, do CPC e no reexame de meios de prova de livre apreciação, como o relatório pericial, declarações de parte e testemunhos.

Quanto à inobservância do ónus de especificação, esta matéria não será conhecida porque, não constando das conclusões do recurso, não integra o thema decidendum da revista.

Na parte do pedido de impugnação da matéria de facto, que a Relação admitiu, não esteve em causa qualquer violação de regra de direito probatório material, como sucederia se o tribunal de 1.ª instância tivesse dado como provados factos contrários ao exarado em documento autêntico ou a confissão de uma das partes e a Relação não tivesse operado as modificações requeridas.

Também não foram aplicadas pelo Tribunal da Relação, na resposta à impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente, presunções de facto ou regras de experiência ilógicas, deduzidas de matéria de facto não provada ou contrárias à lei.

Ora, como é consabido, não se discutindo “in casu” a violação pela decisão recorrida das regras atinentes a prova vinculada ou prova com força legalmente vinculativa, o Supremo Tribunal de Justiça encontra-se impedido, nos termos do disposto nos artigos 662.º, n.º 4 e 674.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, de sindicar o acerto da decisão tomada por parte do tribunal recorrido a respeito da impugnação da matéria de facto suscitada em sede de apelação (cfr., entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 16-06-2020, proc. n.º 6791/18.5T8PRT.P1.S1, de 14-01-2020 (proc. n.º 154/17.7T8VRL.G1.S2, de 14-01-2021, proc. n.º 2342/15.1T8CBR.C1.S1 e de 29-09-2022, proc. n.º 499/17.6T8STB.E1.S1).

A este propósito, afirmou-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-06-2020 (proc. nº 3278/16.4T8GMR.G1.S1) que “(...) o STJ não tem poderes para alterar o valor probatório atribuído pelo tribunal da Relação às declarações dos peritos, pois, em processo civil, estamos no domínio de prova sujeita a livre apreciação, não podendo o Supremo Tribunal substituir-se ao tribunal recorrido, nem para valorar de outra forma este meio de prova, nem para ordenar a repetição de novos exames, que substituíssem aqueles que já foram realizados (...)”.

A mesma orientação vale para as declarações de partes, prova testemunhal e documentos particulares, cuja reapreciação não pode ser realizada por este Supremo por estar fora dos seus poderes cognitivos, que não incluem o controlo dos poderes da Relação quando esta se baseia em meios de prova de livre apreciação para atingir a sua convicção quanto à necessidade de modificar ou não os factos provados e não provados.

2. Pretende a recorrente a alteração dos factos provados n.º 2 e n.º 5, que dizem o seguinte:

«2. Sucedeu que, ao subir do primeiro degrau da carruagem para o segundo, a A. agarrou-se aos dois puxadores da porta da carruagem, esta cedeu e bateu-lhe fortemente no joelho esquerdo.

(...)

5. Não é normal que as portas cedam quando as pessoas se apoiam nos puxadores para subirem os degraus».

Em função do exposto acima, quanto aos poderes cognitivos do Supremo Tribunal, decorre que não é possível proceder à alteração dos factos n.º 2 e 5, respeitantes, respetivamente, quer à forma como decorreu o acidente, quer ao funcionamento das portas do comboio Intercidades, por se ter baseado a sua fixação em prova testemunhal (facto n.º 2) e pericial (facto n.º 5), pois estão em causa provas de livre apreciação.

3. Residualmente o Supremo tem, ainda, poderes para eliminar matéria de facto conclusiva, isto é, que contenha conceitos jurídicos que constituam o objeto central do processo. Esta solução extrai-se do disposto no n.º 3 do artigo 607.º do CPC, de acordo com o qual o juiz deve discriminar na sentença os factos que considera provados, em conjugação com o preceituado no artigo 410.º do CPC. Como se afirmou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-03-2017 (Processo n.º 301/14.0T8STR.E1.S1, não publicado na “dgsi.”) “a falta de previsão no actual CPC de disposição semelhante à do art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC – em que se estabelecia que eram tidas como não escritas as respostas sobre questões de direito – não pode significar que agora essas respostas possam ser consideradas como matéria de facto.”

Segundo o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-09-2014 (proc. n.º 5146/10.4TBCSC.L1.S1), “(…) constituindo a possibilidade de eliminação de factos conclusivos equiparados a questões de direito uma prerrogativa dos tribunais superiores de longa tradição doutrinal e jurisprudencial, esta pode ser exercida mesmo que não esteja prevista expressamente na lei processual.”

No mesmo sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-09-2017 (Proc. n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1) que realça que “a questão de saber se um concreto facto integra um conceito de direito ou assume feição conclusiva ou valorativa constitui questão de direito de que cumpre ao STJ conhecer, porquanto a sua apreciação não envolve um juízo sobre a idoneidade da prova produzida para a demonstração ou não desse facto enquanto realidade da vida ou sobre o acerto ou desacerto da decisão que o teve por provado ou não provado”, fazendo notar que o conceito de questão de direito, que se deve expurgar da matéria de facto, engloba, “como vem sendo pacificamente aceite (…) por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.”

4. Invoca a recorrente que o facto provado n.º 7 e o facto não provado n.º 15, cuja eliminação propugnou no recurso de apelação, contêm matéria conclusiva e incorporam a própria questão a decidir na ação, para além de o facto provado n.º 7 não ser verdadeiro.

Facto provado n.º 7 - Quando o Revisor passou, a autora queixou-se do sucedido, mas este não deu importância ao que lhe foi dito.

Facto provado n.º 15 - O incidente/acidente em causa ficou a dever-se a incúria e inconsideração da Autora

4.1. Relativamente ao facto n.º 7, não decorre dos termos em que está redigido qualquer natureza conclusiva, desde logo porque não contém qualquer conceito de direito na sua formulação. Trata-se tão-só da descrição de uma situação da vida ocorrida no comboio intercidades, usando linguagem corrente, que as instâncias deram como provada através de meios de prova de livre apreciação, designadamente, declarações de parte da autora e de uma testemunha, que, como vimos, não tem este Supremo poderes para reapreciar.

Ademais, entendeu o acórdão recorrido que, em relação à alegação de inveracidade deste facto, a recorrente não observou o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º do CPC, n.º 1, al. b) e n.º 2, al. a), ou seja, não indicou, relativamente ao depoimento cuja reapreciação solicita, as passagens da gravação em que fundou o recurso quanto à matéria de facto, nem a sua transcrição, limitando-se a fazer uma resenha ou uma súmula dos depoimentos, pelo que não conheceu do recurso de apelação nesta parte. A conformidade desta decisão da Relação às leis do processo não será, todavia, sindicada, dado que como já verificado não integrou o objeto do recurso de revista.

4.2. A propósito do facto não provado n.º 15, o tribunal de 1.ª instância fundamentou a sua resposta na circunstância de “não ter ficado demonstrada, por falta de elementos de prova para tal, qualquer atitude negligente da Autora que se limitou a subir como pôde para a carruagem do comboio onde ia viajar”. Por sua vez, entendeu o acórdão recorrido que, «Pese embora o facto não provado nº 15, poder incorporar matéria de direito, o mesmo torna-se irrelevante porquanto ao ser dado como não provado, permite apenas assumir que o mesmo não se comprovou, sem que daí se possa inferir algum valor positivo para a demonstração de outra factualidade».

Cabendo a este Supremo constatar se foram ou não utilizados, no facto não provado n.º 15, conceitos jurídicos coincidentes com a questão fundamental de direito a resolver no presente litígio, deve afirmar-se que as expressões “incúria” e “inconsideração” estão aqui usadas no seu sentido comum, oriundo da linguagem corrente, e não no sentido jurídico. Por outro lado, como salientou o acórdão recorrido, trata-se de uma conclusão negativa acerca de um determinado tema de prova, que significa apenas não ter ficado provado esse ponto dos factos alegados, mas não a prova do facto contrário, ou seja, que a autora teve cuidado e consideração ao utilizar a porta do comboio.

A inclusão de um determinado facto no rol dos não provados apenas permite assumir que o mesmo não ficou demonstrado, sem que daí se possa inferir algum valor positivo para a demonstração de outra factualidade, pelo que não existem motivos para eliminar o mesmo da matéria de facto não provada.

5. Assim sendo, improcedem as conclusões A) a G) da das conclusões do recorrente.

II – Responsabilidade civil da CP – Comboios de Portugal

1. Importa averiguar se estão verificados em relação à CP – Comboios de Portugal os pressupostos da responsabilidade civil contratual pelos danos sofridos pela passageira aquando da subida das escadas que dão acesso às carruagens.

Invoca a ré a sua ausência de culpa e imputa o acidente exclusivamente a descuido da autora.

Ambas as instâncias entenderam verificados os pressupostos da responsabilidade civil contratual da CP - Comboios de Portugal, por incumprimento dos deveres resultantes do contrato de transporte de passageiros, tendo divergido apenas nos montantes indemnizatórios, que foram aumentados pelo Tribunal da Relação, mas apenas no que diz respeito aos danos não patrimoniais.

2. Vejamos:

Ficou provado que a Autora, AA, adquiriu um bilhete de transporte ferroviário com saída do ...) pelas 19h 52 m e destino a ... no dia ... de junho de 2017 (facto provado nº 1). Ao subir do primeiro degrau da carruagem para o segundo, a Autora agarrou-se aos dois puxadores da porta da carruagem, esta cedeu e bateu-lhe fortemente no joelho esquerdo (facto provado nº 2). O acesso à carruagem não pode ser feito de outra forma que não seja a de as pessoas se apoiarem nos puxadores metálicos das portas (facto provado nº 3). Segundo o facto n.º 5, ficou demonstrado que não é normal que as portas cedam quando as pessoas se apoiam nos puxadores para subirem os degraus.

3. No caso dos autos, a Autora adquiriu um bilhete para utilização de comboio que a levasse do ... a ..., pelo que, celebrou com a Ré CP um contrato de transporte, tendo em consequência o direito a ser transportada com a devida segurança.

O contrato de transporte pode definir-se como sendo aquele mediante o qual uma das partes (o transportador) se compromete/obriga perante outrem (que poderá ser o passageiro ou o carregador/expedidor) a fazer deslocar ou a transportar (por si ou recorrendo aos serviços de outrem), pessoas ou coisas de um lugar para o outro (cfr. Pedro Pais de Vasconcelos/Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Volume I, 2ª edição, p. 295). Trata-se de um contrato típico, nominado, que se rege por normas específicas de regulamentação – o DL n.º 58/2008, de 26/03 – e pelos princípios gerais do Código Civil, nomeadamente no que concerne ao cumprimento e não cumprimento – artigos 798º e seguintes do citado diploma legal.

Na jurisprudência deste Supremo (Acórdão de 31-01-2012, proc. n.º 10913/09.9T2SNT.L1.S1), tem-se entendido que a obrigação do transportador não se esgota nem se cumpre apenas com a mera deslocação dos passageiros da estação de origem para a de destino. Esta relação jurídica contratual configura-se «(...)como uma relação obrigacional complexa que não se esgota na obrigação de deslocar pessoas e coisas de um local para outro mediante uma determinada contrapartida. Para além dessa obrigação principal e típica, a empresa transportadora está ainda vinculada a outras obrigações de prestação secundárias, acessórias e sem autonomia relativamente à prestação principal e a obrigações laterais, de protecção, de consideração e de cuidado com a pessoa e património da contraparte. E é nestes deveres que se fundamenta a cláusula de incolumidade, implícita e tácita em qualquer contrato de transporte de pessoas, que obriga a empresa transportadora a deslocar e a fazer chegar o passageiro, são e salvo, ao seu destino». Esta orientação foi também adotada no Acórdão deste Supremo Tribunal, datado de 26-09-2013 (proc. n.º 7798/09.9T2SNT.L1.S1), que entendeu que o contrato de transporte corporiza uma obrigação de resultado e integra «os chamados “deveres de protecção” Schutzpflicht consistentes de um modo geral em medidas laterais destinadas a conseguir que pessoas e bens cheguem incólumes a bom porto».

Com efeito, a obrigação de deslocação de pessoas constitui apenas a prestação principal a que a ré se vinculou.

O contrato de transporte tem por consequência a constituição de uma relação jurídica complexa que inclui, para além de deveres principais de prestação (a deslocação propriamente dita de um local para outro), deveres secundários de prestação, acessórios do dever principal e sem autonomia em relação a este, mas ao serviço do interesse subjacente à prestação principal – o interesse de cumprimento. Estes deveres secundários costumam ser designados como deveres laterais ou de proteção, deveres de consideração, deveres de cuidado (com a pessoa e património da outra parte), deveres de lealdade, deveres de notificação e de informação.

A proteção do passageiro deve ser o ponto de partida para a análise do transporte ferroviário de pessoas.

Como afirma Daniel Morais (in “Notas sobre a proteção do passageiro no transporte ferroviário”, Revista de Direito Comercial, 2021, p. 354, disponível para consulta in https://www.revistadedireitocomercial.com/notas-sobre-a-protecao-do-passageiro-no-transporte-ferroviario, consultado em 26 de janeiro de 2024), o Direito dos transportes é um Direito de pessoas, que devem ser transportadas com segurança, conforto, higiene, tranquilidade e dignidade. Neste sentido, a mais importante caraterística do contrato de transporte, que engloba também o transporte de mercadorias, é a existência de uma “cláusula de incolumidade” (Ibidem, pp. 354-355). Esta cláusula visa a segurança do passageiro e vincula o transportador a prevenir e evitar danos na integridade pessoal e patrimonial deste, quer durante a viagem propriamente dita, quer no período de tempo compreendido entre o momento em que o passageiro se confina à área da estação ou apeadeiro para a viagem e o momento em que, chegado ao destino, deixa essa área, tendo de assumir o dever de reparação dos danos que se verifiquem com a violação dos deveres laterais de conduta e de proteção a que está adstrito.

4. A celebração do contrato de transporte remete-nos para a responsabilidade contratual da Ré CP- Comboios de Portugal prevista nos artigos 798º e 799º do Código Civil.

Nos termos da primeira disposição legal citada o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor, estabelecendo o artigo 799º uma presunção de culpa do devedor: “Incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.”

Assim, estando em causa uma obrigação de facto positiva – efetuar o transporte em segurança, a CP – Comboios de Portugal está onerada com uma presunção de culpa, cabendo-lhe o ónus de demonstrar que não incumpriu qualquer regra de segurança, ou que os danos se ficaram a dever a facto da própria lesada ou de terceiro.

A responsabilidade do transportador ferroviário pelos danos causados aos passageiros vem especificamente prevista no regime jurídico aplicável ao contrato de transporte ferroviário de passageiros e bagagens que decorre do DL n.º 58/2008, de 26 de março.

Nos termos do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 58/2008, de 26 de março, o operador obriga-se a transportar os passageiros munidos de títulos de transporte ou de outro meio de prova. São obrigações do operador, designadamente, prestar o serviço objeto do contrato de transporte com segurança e qualidade, nos termos da legislação aplicável (artigo 4º, n.º 2, al.g), do citado Decreto-Lei).

No artigo 25º do DL n.º 58/2008, de 26/03, pode ler-se o seguinte:

1 - O operador é responsável pelos danos causados ao passageiro e a bens por este transportados durante a viagem, nos termos do presente decreto-lei e do Regulamento (CE) n.º 1371/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007, sem prejuízo do direito de regresso sobre o gestor da infraestrutura ferroviária caso os danos resultem de defeito dessa infraestrutura ou avaria dos respetivos elementos.

2 - Fica excluída a responsabilidade do operador quando o passageiro não tenha observado os deveres e obrigações a que está obrigado, designadamente a aquisição do título de transporte e demais deveres relativos à segurança a respeitar relativa ao transporte, bem como nos casos previstos no n.º 2 do artigo 26.º do anexo I ao Regulamento (CE) n.º 1371/2007, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de outubro de 2007.

Por sua vez, o artigo 26.º (Fundamento da responsabilidade) do anexo I do Regulamento n.º 1371/2007 dispõe o seguinte:

«1. O transportador é responsável pelo prejuízo resultante de morte, de ferimento ou de qualquer outro dano causado à integridade física ou psíquica de um passageiro por motivo de acidente relacionado com a exploração ferroviária ocorrido durante a permanência do passageiro nos veículos ferroviários, à entrada para ou à saída dos mesmos em qualquer infra- -estrutura utilizada.

2. O transportador fica isento dessa responsabilidade:

a) Se o acidente for causado por circunstâncias alheias à exploração ferroviária que, não obstante a diligência requerida segundo as particularidades do caso, o transportador não pudesse evitar e a cujas consequências não pudesse obviar;

b) Na medida em que o acidente se deva a uma falta do passageiro;

c) Se o acidente for devido ao comportamento de um terceiro que, não obstante a diligência requerida segundo as particularidades do caso, o transportador não pudesse evitar e a cujas consequências não pudesse obviar; não se considera terceiro outra empresa que utilize a mesma infra-estrutura ferroviária; o direito de regresso não é afectado».

5. Importa agora, tendo em conta o disposto na lei nacional e comunitária, bem como a orientação jurisprudencial e doutrinária quanto ao contrato de transporte de pessoas, proceder à operação de subsunção dos factos na norma.

5.1. Constata-se, em primeiro lugar, que as portas do comboio utilizadas para a entrada e saída de passageiros não podem deixar de ser um elemento fundamental para a segurança destes.

Assim, as regras mecânicas sobre o acionamento da abertura das portas das carruagens visam a concretização, em termos de procedimentos, do cumprimento dos deveres laterais e acessórios de consideração, cuidado, segurança e proteção da pessoa dos passageiros.

Está subjacente ao cumprimento da obrigação principal do contrato de transporte o dever de o transportador garantir aos passageiros que o acesso ao interior das carruagens seja feito com a devida segurança.

Segundo o facto n.º 47, as portas de acesso às carruagens do serviço Intercidades são portas de uma folha com articulação assimétrica e com corrimão adicional. O manípulo de abertura da porta exterior permite destrancar a porta e, consequentemente, abri-la, e os corrimões têm por função auxiliar o embarque dos passageiros (facto provado n.º 48). As carruagens são objeto de manutenção regular, não havendo qualquer registo de anomalias relacionadas com as portas exteriores, ou outro tipo de falhas, o que atesta a conformidade daquela unidade para o serviço comercial (facto provado n.º 51).

Ficou provado que “a autora ao subir do primeiro degrau da carruagem para o segundo, agarrou-se aos dois puxadores da porta da carruagem, esta cedeu e bateu-lhe fortemente no joelho esquerdo” (facto provado nº 2).

As instâncias, emitindo um juízo de facto, concluíram que “Sobre a conduta da autora, nada foi em concreto alegado que permita concluir que foi um qualquer seu comportamento negligente que deu causa ao embate da porta com o seu joelho. A Autora limitou-se a subir para a carruagem apoiando-se em ambos os manípulos da porta, o que não se afigura ser um comportamento anormal ou imprudente”.

Não constando da matéria de facto provada, qualquer facto que contrarie esta conclusão ou que a torne ilógica, este Supremo subscreve-a, não tendo sequer poderes para a alterar.

Temos, pois, de concluir que, não tendo havido negligência da passageira, estamos perante a violação pela ré de um dever lateral de proteção e de cuidado com a pessoa da contraparte, o que equivale ao cumprimento defeituoso do contrato, que abrange, não só as deficiências da prestação principal ou de qualquer dever secundário de prestação, como também a violação dos deveres acessórios de conduta que, por força da lei (por via de regra, através das normas dispositivas), se integram na relação creditória, em geral, e na relação contratual em especial (cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em geral, vol. II, 7ª ed., p. 130).

Não foi, pois, efetivada a cláusula de incolumidade (ainda que as portas fossem objeto de manutenção regular), dado que a passageira, por força da utilização da porta da carruagem, sofreu lesões físicas e dores no joelho qua a impediram de andar.

Acompanhamos o acórdão recorrido quando afirma que:

«Competia, pois, à ré, diligenciar e prevenir que quando do acesso ao interior das carruagens dos comboios e, apoiando-se o utente nos puxadores da porta para aí aceder, esta cedesse, e desta maneira, atingisse alguma parte do corpo do mesmo.

Para tal, deveriam as portas de acesso ao interior das carruagens dispor de um mecanismo que impedisse a sua movimentação quando sujeitas a esforços e, deste modo, embaterem por essa via no seu utilizador.

Ora, a ré/apelante nunca providenciou nem diligenciou para que as portas de acesso às carruagens dispusessem de um mecanismo que impedisse a sua movimentação quando sujeitas a esforços, pese embora não ter havido qualquer registo de anomalias das mesmas e, estarem licenciadas para o serviço comercial (sem que daqui se possa retirar que não haja uma violação dos deveres acessórios, pois não deveriam estar licenciadas para esta situação, o que só diminuiu a ilicitude).

Assim, a ré/apelante cumpriu defeituosamente o contrato de transporte que com a autora/apelada celebrara, porquanto esta não acedeu com a devida segurança ao interior da carruagem que a iria transportar, pois a porta cedeu quando se agarrou aos puxadores da mesma e, deste modo, embateu no seu joelho esquerdo».

5.2. Está, pois, preenchido o requisito da responsabilidade civil relativo à ilicitude objetiva, o que permite presumir a culpa da ré, nos termos do artigo 799.º do Código Civil.

Nos termos de jurisprudência uniforme e sedimentada, o credor não tem de alegar factos que demonstrem a culpa do devedor, na medida em que “Compete ao devedor ilidir a presunção de culpa que sobre si impende no incumprimento contratual, ficando tal presunção ilidida se conseguir provar que actuou com a diligência devida (numa perspectiva de actuação diligente que a boa fé sempre supõe " - (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-09-2012, proc. n.º 4339/07.6TVLSB.L1.S2 e de 06-12-2022, proc. n.º327/14.4T8CSC.L1.S3).

Demonstrou-se no facto provado n.º 51 que as carruagens são objeto de manutenção regular, não havendo qualquer registo de anomalias relacionadas com as portas exteriores, ou outro tipo de falhas, o que atesta a conformidade daquela unidade para o serviço comercial.

No presente caso, dado que estamos perante uma obrigação de resultado, segundo a qual a empresa tem o dever de conduzir os passageiros ao seu destino de forma a que cheguem incólumes, não basta a prova da fiscalização do funcionamento das portas e das carruagens, tal como consta do facto n.º 51, para que a presunção legal de culpa se mostre ilidida. É exigível, para que a empresa transportadora afaste a presunção de culpa, a demonstração de que ocorreu uma situação de força maior, um facto praticado pela lesada ou por terceiro que tivesse desencadeado o dano, como decorre do artigo 26.º, n.º 2, do Regulamento Comunitário supra-citado, que exige o seguinte para afastar a responsabilidade do transportador:

«a) Se o acidente for causado por circunstâncias alheias à exploração ferroviária que, não obstante a diligência requerida segundo as particularidades do caso, o transportador não pudesse evitar e a cujas consequências não pudesse obviar;

b) Na medida em que o acidente se deva a uma falta do passageiro;

c) Se o acidente for devido ao comportamento de um terceiro que, não obstante a diligência requerida segundo as particularidades do caso, o transportador não pudesse evitar e a cujas consequências não pudesse obviar; não se considera terceiro outra empresa que utilize a mesma infra-estrutura ferroviária; o direito de regresso não é afectado».

Ora, nada se provou a este propósito.

Assim, recaindo o ónus da prova sobre o devedor e não se tendo provado elementos factuais que permitam inferir o afastamento desta presunção, é sobre a ré CP – Comboios de Portugal que recai o risco da insuficiência da prova.

5.3. Quanto ao nexo causal entre o facto e o dano, nada foi alegado no recurso de revista que possa infirmar a sua verificação.

De acordo com a teoria da causalidade adequada, o facto que atua como condição do dano só não deverá ser considerado causa adequada do mesmo se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostrar indiferente para a verificação do dano. Esta tese permite demonstrar a existência de nexo de causalidade entre o facto e os danos, através do recurso à ideia de probabilidade ou de curso normal das coisas.

A tese do âmbito de proteção da norma que serve de base à imputação dos danos, in casu, o regime jurídico do contrato de transporte, também demonstra a existência do nexo de causalidade, na medida em que o fim da norma consiste na proteção do passageiro e dos seus direitos subjetivos (vida, integridade física e psíquica, saúde), daqui decorrendo que os danos devem ser imputados a quem detém o controlo material da fonte de perigo e o poder para os evitar.

De acordo com a teoria da imputação objetiva, o que é relevante não é o facto, mas o juízo normativo acerca da questão de saber a que esfera de risco há-se ser imputada a lesão, através de uma ideia de possibilidade e não estatístico-probabilística. Neste quadro, tendo sido a Ré a criar a fonte do perigo, ela dá origem a uma esfera de risco/responsabilidade a seu cargo. Não tendo a passageira contribuído para o dano nem pertencendo este aos riscos comuns ou correntes da vida, verifica-se, assim, necessariamente, uma conexão funcional entre o dano e a esfera de risco posta em marcha pelo lesante.

Da factualidade provada decorre o nexo naturalístico entre o facto (factos n.º 2 a 5) e os danos (cfr. factos n.º 6 , 8, 9, 11 a 23, 26 a 34 e 44, 45): a porta cedeu e bateu no joelho da passageira, causando-lhe dores de imediato e incapacidade de andar, sintomas que se agravaram, exigindo tratamentos médicos prolongados e impedindo a autora de trabalhar e de auferir os seus rendimentos, consoante descrito na matéria de facto.

Assim, cabendo a este Supremo conhecer do conceito normativo de nexo de adequação, cumpre concluir que os danos sofridos pela autora, com altíssima probabilidade, resultaram da violação do dever lateral de conduta a cargo da CP-Portugal, pois que, inequivocamente, se situam no círculo de riscos criados pelo funcionamento da porta, não se tendo provado qualquer intervenção da própria ou de terceiro suscetível de quebrar este nexo causal.

Estão, pois, verificados os pressupostos da responsabilidade civil contratual do transportador.

III – Imputação do acidente à autora para o efeito de aplicação do artigo 570.º do Código Civil

6. Entende a recorrente que, ao abrigo do artigo 570.º do Código Civil, existe culpa do lesado a justificar uma exclusão ou redução da indemnização.

Mas não tem razão.

Conforme se afirmou na resposta à questão anterior, não ficou demonstrada qualquer conduta negligente da lesada enquanto subia os degraus de acesso à carruagem e se agarrava aos puxadores da porta do comboio intercidades, nem qualquer contributo causal desta para o dano, na medida em que a autora mais não fez do que aquilo que é habitual e expectável que qualquer passageiro do comboio faça. A circunstância de ter um peso acima da média e de carregar uma mochila não podem ser considerados factos causais na medida em que os comboios têm de estar preparados para passageiros de configuração física variada, sendo uma situação previsível que os passageiros levem bagagem e a carreguem enquanto sobem as escadas para o comboio.

É importante frisar que não existe, na responsabilidade contratual, um dever de autoproteção, e que, pelo contrário, o dever de proteção dos passageiros está adjudicado pela lei ao transportador. Por outro lado, quando a responsabilidade se baseia numa simples presunção de culpa, a exclusão do dever de indemnizar (artigo 570.º, n.º 2, do CC), apenas opera em situações particularmente graves, aqui não presentes.

Também não é possível, no caso vertente, atenuar a indemnização de forma a refletir uma eventual culpa leve da passageira (de resto não demonstrados na matéria de facto), pois, na responsabilidade civil contratual, a norma do artigo 570.º do Código Civil só opera como causa de exclusão da indemnização em situações de culpa grave do lesado, mas não se admite a graduação do montante da indemnização em função do grau de culpa do lesante e do lesado como sucede na responsabilidade civil extracontratual (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-12-2009, proc. n.º 494/06.0TBAVR.L1.S1).

IV – Montantes indemnizatórios

7. O tribunal recorrido, em face da factualidade do caso, decidiu atribuir à autora uma indemnização total de €21.767,59 (vinte e um mil, setecentos e sessenta e sete euros e, cinquenta e nove cêntimos), sendo o valor de 20.000,00 euros, arbitrado a título de danos não patrimoniais (aumentando-se o valor de 5.000,00 atribuído pelo tribunal de 1.ª instância), e o valor de 1767,59 euros o correspondente às perdas salariais durante os quatro meses em que a autora esteve incapacitada para trabalhar e a receber apenas o valor diário de 6,78 euros, a título de subsídio de doença.

Nas conclusões de recurso, a recorrente questiona apenas o valor da compensação por danos não patrimoniais, até porque em relação ao valor da indemnização por danos patrimoniais formou-se uma situação de dupla conformidade, excludente do recurso de revista (artigo 671.º, n.º 3, do CPC).

A recorrente entende não ser o valor de 20.000 euros justo e equitativo, para compensação de danos não patrimoniais, em comparação com o que é habitual na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, invocando a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de abril de 2022.

Imputa, em consequência, ao acórdão recorrido violação dos artigos 8º nº 3, 496º, 562º e 566º, nº 3, todos do Código Civil.

8. O tribunal recorrido fundamentou assim a decisão:

« Conforme entendimento do tribunal a quo, “a Autora, à data do acidente era uma mulher autónoma para todas as atividades da vida diária, suportou limitações na sua mobilidade durante, pelo menos, quatro meses, que a impediram de trabalhar, encontrando-se, à data da entrada da ação em juízo, a aguardar operação ao joelho e desconhecendo se vai voltar a ter a mobilidade anterior ao acidente, tendo tais circunstâncias agravado a sua depressão”.

Ora, perante a matéria de facto provada, atendendo, v.g., à experiência traumática e perturbadora que sofreu, a natureza, a gravidade e a extensão das lesões, os períodos de convalescença e os tratamentos a que teve de se submeter, afigura-se-nos equitativamente adequada, equilibrada e justa uma compensação no valor de 20 000,00€ (vinte mil euros), para a reparação dos danos não patrimoniais por ela sofridos (aumentando-se assim a compensação fixada pelo tribunal a quo no montante de 5000,00€).

Tendo em vista uma aplicação uniforme do direito, ponderando a jurisprudência análoga dos últimos anos (cf. artigo 8º/3, do Código Civil), o valor alcançado não se mostra irrazoável face ao dano verificado».

9. Vejamos os factos do caso:

A A. sentiu enormes dores, tendo dificuldade em deslocar-se até ao seu lugar na carruagem (facto provado nº 6). Durante a viagem, a A. sentiu imensas dores e a perna esquerda inchou (facto provado nº 8). Na sequência do embate, a A. sofreu uma lesão no menisco (facto provado nº 18). Sofreu de incapacidade temporária absoluta desde a data do acidente até, pelo menos, 04-09-2017 (facto provado nº 19). Continua a deslocar-se com dificuldade –(facto provado nº 21). Neste momento, a A. já se debate com problemas de artrose, continua a sentir dores e a tomar analgésicos para as conseguir suportar, tem dificuldade em encontrar posição para dormir devido às dores (facto provado nº 22). Aguarda que seja marcada uma operação ao menisco e que sejam agendadas mais consultas de ortopedia (facto provado nº 23). A A. teve de andar de canadianas durante vários meses e continua a não poder ter uma vida normal (facto provado nº 26). O quadro depressivo da A. agravou-se com o acidente que teve ao subir para o comboio (facto provado nº 27). A A. sofreu dores no dia do acidente e nos meses seguintes (facto provado nº 44). Tem vivido muito angustiada, com momentos de depressão e desgosto por recear que a sua vida nunca mais volte a ser o que era (facto provado nº 45). A A. trabalhava, conduzia e tinha a sua vida autónoma –(facto provado nº 46).

9. O direito aplicável é a norma do artigo 496.º do Código Civil (cujo n.º 4 remete para a norma do artigo 494.º), que fixa como critérios, para a determinação da compensação por danos não patrimoniais, a gravidade dos danos para as várias dimensões da vida/existência das pessoas lesadas, a equidade, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica do lesante e do lesado e demais circunstâncias do caso.

Os danos não patrimoniais não se reconduzem a uma única figura ou categoria, assumindo variados modos de expressão: o dano estético, o quantum doloris, o dano da perda de autonomia, o dano psíquico da perda de alegria de viver, o dano da perda dos anos de juventude e da diminuição da longevidade, o dano na vida sexual, social, de lazer e de desporto, o impacto da lesão na vida familiar e nas relações sociais, a diminuição da liberdade pessoal, a perda da capacidade de trabalho, a dificuldade em dormir e em andar, etc.

O artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil atribui ao julgador a tarefa de determinar o que é equitativo e justo em cada caso, não em função da adição de custos ou despesas, mas, no intuito de contrabalançar, através dos bens espirituais que o dinheiro permite adquirir, o sofrimento psicológico e corporal causado por um facto ilícito. Daí que, como se afirmou no acórdão recorrido, «os danos não patrimoniais não possam sujeitar-se a uma estrita e precisa medição quantitativa, mas sim a uma valoração compensatória».

Na fixação da indemnização por dano não patrimoniais, o Supremo Tribunal de Justiça apenas pode sindicar os critérios de equidade que orientaram a decisão do tribunal recorrido (cfr. Acórdão de 08-03-2016, Revista n.º 103/13.1TBARC.P1.S1). Os montantes indemnizatórios fixados pelo Tribunal da Relação com recurso à equidade só devem ser alterados em revista se forem distintos dos fixados em casos semelhantes pelo Supremo Tribunal de Justiça ou se desconsiderarem algum facto excecionalmente grave ou importante (cfr. Acórdão de 10-12-2019, Revista n.º 1886/16.2T8VCT.G1.S1). O juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adotados numa jurisprudência evolutiva e atualista, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade (arts. 566.º, n.º 3, do CC, e 674.º, e 682.º, do CPC) – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de Revista n.º 313/12.9TBMAI.P1.S1).

Cabe a este Supremo averiguar se os critérios aplicados pelo Tribunal da Relação se afiguram desajustados ou se refletem uma ponderação prudente baseada na factualidade do caso, à luz dos critérios legais e das orientações jurisprudenciais para casos semelhantes. Nesta hipótese, é de manter o quantitativo indemnizatório fixado pela Relação.

A determinação do montante da compensação por danos não patrimoniais tem uma dimensão necessariamente casuística e dependente das caraterísticas particulares do caso concreto, assumindo a comparação entre indemnizações arbitradas em processos diferentes apenas um sentido meramente indicativo, sem olvidar a tendência natural para a subida das indemnizações, tendo em conta a crescente valorização dos bens jurídicos vida, saúde, e integridade física/psíquica. Neste sentido, se pronunciou também o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 14-03-2023 (proc. n.º 309/20.7T8PDL.L1.S1) «Tal diferenciação justifica-se pela mudança da conjuntura económico-social, marcada atualmente por altas taxas de inflação e pela menor rentabilidade do dinheiro, bem como por uma tendência natural para as indemnizações subirem progressivamente ao longo dos anos, por força da crescente valorização da dignidade humana e dos bens jurídicos pessoais na consciência social».

9.1. Analisando os fundamentos do acórdão recorrido, concluímos que foi ponderada cuidadosamente a factualidade provada e cumpridas as regras jurídicas aplicáveis, alicerçando o Tribunal da Relação a sua decisão em critérios razoáveis, considerando ainda elementos de referência coligidos na jurisprudência.

O acórdão recorrido aplicou corretamente o critério da equidade, quer tendo em conta os seus pressupostos, quer recorrendo a uma ideia de igualdade e de proporcionalidade dentro do sistema. Foi também ponderada a gravidade dos danos (artigo 496.º, n.º 1, do Código Civil), bem como as circunstâncias para que remete o artigo 496.º, n.º 4, do Código Civil.

Em face da fundamentação elaborada pelo acórdão recorrido, seria artificial apurar novamente o quantum compensatório, devendo reconhecer-se ao tribunal recorrido margem para valorar a situação fáctica. É visível que o Tribunal da Relação não omitiu nenhum elemento fáctico e que da sua argumentação de direito não resulta qualquer discricionariedade, tendo julgado «(…) com base nos critérios e orientações seguidas pela jurisprudência, não fazendo um qualquer juízo discricionário ou arbitrário, conseguindo alcançar uma solução que respeita os princípios da igualdade e proporcionalidade, verificados pelo STJ enquanto tribunal de revista e no julgamento de direito” (Acórdão de 23-02-2021, proc. n.º 91/13.4TBSCD.C1.S1).

Como se afirmou no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 21-01-2016 (Revista n.º 1021/11.3TBABT.E1.S1), «O juízo de equidade das instâncias, essencial à determinação do montante indemnizatório por danos não patrimoniais, assente numa ponderação, prudencial e casuística, das circunstâncias do caso – e não na aplicação de critérios normativos – deve ser mantido sempre que – situando-se o julgador dentro da margem de discricionariedade que lhe é consentida – se não revele colidente com os critérios jurisprudenciais que, numa perspectiva actualística, generalizadamente vêm sendo adoptados, em termos de poder pôr em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade».

Verificada a ponderação que o Tribunal da Relação fez de todos os elementos disponíveis (as circunstâncias relevantes do caso, o disposto na lei e as orientações da jurisprudência), conclui-se que o valor encontrado para a indemnização não é desadequado e, por conseguinte, não existem razões para o alterar.

Esta conclusão não é infirmada pela comparação entre a solução do acórdão recorrido e a do acórdão invocado pela recorrente (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21-04-2022). Neste, a lesada, enfermeira de profissão, recebeu uma indemnização por danos não patrimoniais de 15.000 euros, por danos sofridos na cervical, que lhe causaram dores intensas e possibilidade de cirurgia, limitações na sua autonomia, necessidade de tratamentos, tendo ficado com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 3 pontos, compatível com o exercício da atividade profissional habitual.

Ora, atendendo a que no presente caso a autora sofreu de incapacidade temporária absoluta durante cerca de três meses e deixou de trabalhar durante quatro, tendo andado de canadianas durante vários meses e teve dores intensas no momento do acidente que se prolongaram no tempo, impedindo-a de dormir e gerando depressão e angústia por não conseguir trabalhar e ser autónoma, não se afigura que a indemnização de 20.000 euros seja suscetível de violar os princípios da igualdade e da proporcionalidade, tendo em conta também a taxa de inflação verificada entre 2022 e 2024 e a subida do custo de vida.

A autora terá de ser operada ao menisco, cirurgia cuja marcação aguarda, deixou de trabalhar, teve de suportar tratamentos e perdeu autonomia e alegria de viver, padecendo de depressão e de angústia em virtude do acidente. A autora sofreu uma lesão no menisco e ficou afetada de incapacidade temporária absoluta desde a data do acidente até 04/09/2017. Teve dores intensas no momento e continuou a ter dores, suportou o dano psíquico da perda de alegria de viver e o dano da perda de autonomia e de auto-suficiência, o que, numa pessoa habituada a trabalhar e a ser autónoma, representou grande sofrimento, tendo inclusive dificuldade em encontrar posição para dormir e dificuldade em se deslocar, limitações que se repercutem em todas as áreas da vida, social, profissional e familiar, integrando o chamado dano existencial.

Neste quadro fáctico, sendo um dos critérios fixados na lei, a situação económica do lesante e a do lesado (artigo 494.º do Código Civil, por remissão do n.º 4 do artigo 496.º), não se afigura haver qualquer motivo atendível, por exemplo, a circunstância de a culpa da ré ter sido presumida, para baixar a indemnização, dado estar em causa o poder económico de uma grande empresa versus uma cidadã que auferia à data do acidente um rendimento mensal inferior ao salário mínimo (facto provado n.º 43).

Em conclusão, mantém-se o valor da indemnização por danos não patrimoniais de 20.000 euros tal como determinado pelo acórdão recorrido.

10. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do Código de Processo Civil:

I - Não se discutindo “in casu” a violação pela decisão recorrida das regras atinentes a prova vinculada ou prova com força legalmente vinculativa, o Supremo Tribunal de Justiça encontra-se impedido, nos termos do disposto nos artigos 662.º, n.º 4 e 674.º, n.º 3, 1.ª parte, do CPC, de sindicar o acerto da decisão tomada por parte do tribunal recorrido a respeito da impugnação da matéria de facto suscitada em sede de apelação.

II - O contrato de transporte pode definir-se como sendo aquele mediante o qual uma das partes (o transportador) se compromete/obriga perante outrem (que poderá ser o passageiro ou o carregador/expedidor) a fazer deslocar ou a transportar (por si ou recorrendo aos serviços de outrem), pessoas ou coisas de um lugar para o outro. Trata-se de um contrato típico, nominado, que se rege por normas específicas de regulamentação – o DL n.º 58/2008, de 26 de março – e pelos princípios gerais do Código Civil, nomeadamente no que concerne ao cumprimento e não cumprimento – artigos 798º e seguintes do citado diploma legal.

III - Esta relação jurídica contratual configura-se como uma relação obrigacional complexa que não se esgota na obrigação de deslocar pessoas e coisas de um local para outro mediante uma determinada contrapartida. Para além dessa obrigação principal e típica, a empresa transportadora está ainda vinculada a outras obrigações de prestação secundárias, acessórias e sem autonomia relativamente à prestação principal e a obrigações laterais, de protecção, de consideração e de cuidado com a pessoa e património da contraparte.

IV– A “cláusula de incolumidade”, inerente ao contrato de transporte, visa a segurança dos passageiros e vincula o transportador a prevenir e evitar danos na integridade pessoal e patrimonial destes, quer durante a viagem propriamente dita, quer no período de tempo compreendido entre o momento em que o passageiro se confina à área da estação ou apeadeiro para a viagem e o momento em que, chegado ao destino, deixa essa área.

V - No presente caso, dado que estamos perante uma obrigação de resultado, segundo a qual a empresa transportadora tem o dever de conduzir os passageiros de forma a que cheguem incólumes ao seu destino, não basta a prova da fiscalização do funcionamento das portas e da sua normalidade, tal como consta do facto n.º 51, para que a presunção legal de culpa, que recai sobre a devedora (artigo 799.º do Código Civil), se mostre ilidida.

VI - É exigível a demonstração de que ocorreu uma situação de força maior, um facto praticado pela lesada ou por terceiro que tivesse desencadeado o dano, o que não se demonstrou.

III – Decisão

Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 6 de fevereiro de 2024

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto)