Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97A657
Nº Convencional: JSTJ00033987
Relator: TORRES PAULO
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
CONTRADIÇÃO
PEDIDO
CAUSA DE PEDIR
INDEFERIMENTO LIMINAR
Nº do Documento: SJ199711040006571
Data do Acordão: 11/04/1997
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 9730027
Data: 07/01/1997
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
DIR PROC CIV - RECURSOS.
Legislação Nacional: CPC67 ARTIGO 193 N1 C ARTIGO 661 ARTIGO 713 ARTIGO 726.
CCIV66 ARTIGO 616 N1 ARTIGO 818.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC834/96 DE 1997/02/25.
ACÓRDÃO STJ PROC496/97 DE 1997/09/30.
ACÓRDÃO STJ PROC688/96 DE 1997/01/14.
Sumário : I- A impugnação pauliana não é uma acção de anulação, mas sim uma acção onde se faz valer apenas um direito do crédito do Autor.
II- O acto impugnado não pode ser, na acção pauliana, anulado com regresso ao património do alienante.
III- A restituição que resulte da procedência da impugnação pauliana tem o significado de permitir que sejam executados bens existentes, alienados pelo devedor, no património do terceiro adquirente.
IV- O poder do credor de agredir o património do adquirente, quanto ao objecto transmitido, é excepção à regra de que só o património do devedor responde pelas respectivas obrigações.
V- Verifica-se contradição entre o pedido e a causa de pedir, vício gerador de indeferimento liminar da petição, por ineptidão desta, se o Autor pede a anulação do acto de alienação do seu objecto à titularidade do alienante.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1- No Tribunal Judicial da Comarca de Vila Nova de Gaia, o Banco Nacional Ultramarino, SA, como credor de A, por ter avalizado livrança não paga, accionou este e sua mulher B por, anteriormente ao vencimento da livrança, terem doado com o fim de dolosamente subtraírem do seu património bens, prejudicando o Autor, impedindo-o de satisfazer aquele seu crédito e os donatários C e D, menores, representados pelos seus pais, Réus donatários que são netos dos Réus doadores.
Pede a condenação dos Réus a:
a) Verem declarada nula e sem efeito a escritura lavrada a 4 de Fevereiro de 1991 no 2. Cartório Notarial de Vila Nova de Famalicão e anulada a doação da mesma constante.
b) Verem a restituição dos bens identificados nesta escritura na medida do crédito do Autor ao património dos primeiros recorrentes para serem executados nesse património pelo Autor.
c) E para tanto, sendo declarada nula e anulada a transmissão constante da aludida escritura e ordenados os cancelamentos de todos os registos praticados na Cons. Reg. Pred. com base na mesma e após a data dessa escritura com as consequências legais.
Os Réus citados não contestaram.
Por sentença a acção foi julgada parcialmente procedente, tendo sido os Réus condenados a reconhecerem ao Autor o direito de se pagar do seu crédito pelas frações dos prédios objecto da doação em apreço, podendo, para tal, executá-los no património dos segundos Réus e praticar os actos de conservação de garantia patrimonial autorizados por lei - artigo 616 n. 1 CC.
E absolvidos do pedido quanto ao mais.
Em apelação o douto Acórdão da Relação do Porto fls. 176 a 182 declarou nula aquela sentença e em sua substituição - artigo 715 CPC - julgou improcedente a acção, absolvendo os Réus apelantes do pedido.
Daí a presente revista.
2- O Autor recorrente nas sua alegações conclui:
a) A sentença proferida em 1. instância considerada nula não viola os artigos 264 n. 1 e 664 CPC, bem como os artigos 661 n. 1 e 618 CC.
b) Deverão os Réus reconhecer ao Autor o direito de se pagar do seu crédito pela força, dos prédios objecto da doação.
Pelo que a sentença deve ser confirmada "in toto".
Em contra alegação pugnou-se pela bondade do decidido.
3- Colhidos os vistos, cumpre decidir.
4- Nos termos dos citados artigos 713 e 726, ambos do actual CPC, remete-se para o douto Acórdão recorrido a enunciação da matéria de facto nela assente.
5- As instâncias concordam que os factos articulados na petição inicial integram como causa de pedir uma impugnação pauliana, mas os três pedidos formulados integram uma acção de anulação, sem suporte naqueles factos.
Frente a esta incoerência julgaram diferentemente.
6- Os Autores efectivamente instalaram uma acção de impugnação pauliana.
Basta atentar no último artigo -033- da sua petição inicial, antes de formularem os três assinalados pedidos.
"Assiste assim ao Autor o direito de impugnar o acto de transmissão consubstanciado na aludida escritura, obtendo a declaração da respectiva nulidade dos termos do disposto no artigo 616 e segs. do
CCIV ."
Achamos correcta a 1. parte e errada a 2.
7- É sabido que a mera ineficácia se autonomiza por a inviabilidade de produção dos efeitos não ter na sua origem factos que determinem a imperfeita génese do negócio, nos eventos extrínsecos.
Agora, pressupostos, elementos e requisitos de validade existem concretamente, nas circunstâncias externas àqueles opõem-se à praticabilidade do acto.
Como uma das modalidades desta ineficácia, ela poderá ser total ou parcial, quanto aos efeitos abrangidos, e absoluta ou relativa, quanto à pessoa a que respeita.
Ora é precisamente nestes aspectos de parcialidade e de relatividade que surgem, como figuras autónomas, a inoponibilidade e a impugnabilidade.
Inoponibilidade como situação de inobservância jurídica perante certas pessoas, que a correlativa relevância para outros, certos e determinados.
Impugnabilidade que se fundamenta na existência de um facto que faz nascer um outro direito inconciliável com os direitos originados naquele acto jurídico, a impugnar.
Tendo em consideração um prejuízo emergente da prática do acto que se quer impugnar, prejuízo esse que fere interesses tutelados pelo direito.
É o que se passa, de pleno, na impugnação pauliana: verificados os requisitos - que aqui não se discutem - a lei impõe uma restituição que foge à produção normal dos efeitos das doações em apreço, tudo de acordo com o estatuído no n. 1 do artigo 616 CCIV.
E deste resulta:
- O acto sujeito à impugnação pauliana não tem nenhum vício juridico.
- É total válido.
- E eficaz: não há perca de disponibilidade.
- Respondendo os bens transmitidos pelas dívidas do alienante, agora no património do adquirente - terceiro -, na medida do interesse do credor,
após providência da impugnação.
- Mantendo-se o acto - aqui doação - na sua pujança jurídica em tudo quanto exceda a medida daquele interesse.
Este poder - artigo 616 n. 1 e 818 - do credor de agredir o património do adquirente, quanto ao objecto transmitido, é excepção à regra de que só o património do devedor responde pelas respectivas obrigações.
É certo que doutrina e jurisprudência qualificam a situação de "ineficácia".
Nós temos julgado que a figura própria é a "impugnabilidade", que se apresenta como caso específico, frente ao assinalado hibridismo de "ineficácia" - Ac. STJ de 25 de Fevereiro de 1997, Proc 834/96 e 496/97, de 30 de Setembro de 1997.
Sendo as consequências desta "impugnabilidade" precisamente as normas do traçado "ineficácia", face à praticabilidade decisória há que manter, nesta parte, o decidido.
8- É hoje ponto assente - doutrina e jurisprudência - que a impugnação pauliana só é uma acção de anulação (ver fundamentação do Ac. recorrido e ainda Ac. STJ Proc 688/96, por nós relatado) de 14 de Janeiro de 1997.
É uma acção pessoal, onde se faz valer apenas um direito de crédito do
Autor.
Trata-se de "uma acção de responsabilidade de indemnizatória, não podendo os bens ou direitos adquiridos pelo terceiro ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor impugnante" - Prof. H. Mesquita, Rev. Leg. J. ano 128, pág. 223.
Com todos os desvios é, no fundo, uma acção independente, fundada directamente na lei, em face de equidade e boa fé.
9- Ora os pedidos formulados pelo Autor integram os de uma acção de anulação; como ele próprio na 2. parte do invocado artigo 33 da petição inicial.
Pediu mal:
- Quando invocou a anulabilidade da doação para justificar a substituição dos bens, pois, como vimos, a impugnação pauliana pressupõe a validade da alienação.
- Quando, na sequência da pressuposta nulidade, requereu o cancelamento dos registos efectuados a favor dos Réus adquirentes.
Mas pediu muito mal, irremediavelmente mal, quando pretende a restituição dos bens doados ao património dos primeiros Réus doadores, para serem executados nesse património pelo Autor.
Tudo porque, como vimos, o acto impugnado ou é, na impugnação pauliana anulado como regresso à titularidade do devedor alienante.
A restituição que resulta da providência de impugnação pauliana tem o significado de permitir que sejam executados bens alienados pelo devedor no património do terceiro adquirente.
Tal não é simples qualificação jurídica diferente; não estamos perante errada qualificação jurídica atribuída ao Autor.
O que o Autor pretende é efeito que a impugnação pauliana não suporta: destituição do acto de alienação com regresso do seu objecto à titularidade do alienante.
Há contradições entre o pedido e a causa do pedir, apresentando-se a petição viciada de ineptidão - artigo 193 n. 1 alínea c) CPC.
Estamos perante "uma questão de pedido substancial" - Prof. M. Cordeiro, Pareceres, CJ XVII, 1992, Tomo III, pág. 63.
E a sentença só pode condenar em objecto diverso do que se pediu - n. 1 do artigo 661 CPC.
Em projecção do princípio do contraditório.
A acção tem de improceder.
10- Termos em que se nega a revista.
Custas pelo Autor recorrente.
Lisboa, 4 de Abril de 1997.
Torres Paulo,
Ramiro Vidigal,
José Saraiva.