Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
886/07.8PSLSB.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: PROIBIÇÃO DE PROVA
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
DIREITOS DE DEFESA
DIREITOS DE PERSONALIDADE
VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA
PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE
PROVA
RECONHECIMENTO
TESTEMUNHA
PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DEPOIMENTO INDIRECTO
DEPOIMENTO
DECLARAÇÕES
PENA
DISCRICIONARIEDADE
CULPA
PREVENÇÃO GERAL
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/03/2010
Nº Único do Processo:
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I - Os princípios constitucionais da busca da verdade material e da realização da justiça, mesmo em matéria de funcionalidade da justiça, penas e da tutela de valores, têm limites, impostos pela dignidade e pelos direitos fundamentais das pessoas, que se traduzem processualmente nas proibições de prova.
II - A proibição de obtenção de meios de prova mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações pode ser afastada, quer pelo acordo do titular dos direitos em causa, quer pelas restrições à inviolabilidade desses direitos expressamente autorizadas pela CRP.
III - O legislador constitucional, atento à necessidade de compaginar interesses e valores igualmente merecedores de tutela e, ainda, da circunstância de uma leitura fundamentalista do catálogo dos direitos da personalidade deixar desarmada a comunidade perante as exigências de perseguição de uma criminalidade cada vez mais organizada e eficiente na prossecução dos seus propósitos, veio admitir, na área menos densa dos mesmos direitos, restrições à intangibilidade da vida privada, domicilio, correspondência ou telecomunicações.
IV - A regra neste domínio é a da proibição de produção e de valoração das gravações; a excepção será a existência de uma lei ordinária relativa ao processo criminal que estabeleça uma autorização de produção e consequente valoração probatória.
V - O sigilo das telecomunicações, protegido legalmente e com inscrição no texto constitucional – art. 34.º, n.º 1 - tem uma perspectiva dual em que está subjacente a possibilidade de cada cidadão poder emitir, ou receber informação produzida para ou por terceiro, desenvolvendo ideias e valorações que não são mais do que emanações da sua personalidade. Relativamente às mesmas assiste-lhe o direito de preservar tal informação, impedindo o seu acesso por outrem, o que postula a ideia de que o que está em causa é a transmissão à distância e tal informação e todo o conteúdo que esta comporte ou seja o conteúdo das comunicações e, também, os dados de tráfego.
VI - Num Estado de Direito democrático, assiste a qualquer cidadão o direito de telefonar quando, e para quem quiser, com a mesma privacidade que se confere ao conteúdo da sua conversa. Porém, diferentemente se alinham os elementos, ou dados de base, pois que aqui, e nomeadamente no que toca ao catálogo de número de telemóveis, estamos perante algo exógeno a qualquer comunicação, ou ao conjunto das comunicações, e antes se perfila uma situação em tudo semelhante à informação constante de um documento, de uma agenda ou eventualmente de uma base de dados.
VII - A mera identificação do titular de um número de telefone fixo ou móvel, mesmo quando confidencial, surge com uma autonomia e uma instrumentalidade relativamente às eventuais comunicações e, por isso mesmo, não pertence ao sigilo das telecomunicações, nem beneficia das garantias concedidas ao conteúdo das comunicações e aos elementos de tráfego gerados pelas comunicações propriamente ditas.
VIII - A consulta da agenda contida num telemóvel não representa uma intromissão nas telecomunicações nem representa a violação da reserva da vida privada. Outrossim, a ponderação investigatória e probatória, da agenda do telemóvel como factor de determinação da sua propriedade, e da relação sequente com o crime praticado, não colide com nenhum núcleo fundamental da dignidade do investigado e está perfeitamente justificada pela ponderação do interesse em perseguir criminalmente quem comete um crime de homicídio voluntário, sob a forma tentada, face à mera determinação dos contactos telefónicos existente na agenda do telemóvel que foi abandonado. Estamos em face de uma situação análoga à da mera agenda, ou do documento, que por mero descuido o agente criminoso esqueceu no local do crime, não existindo qualquer utilização de meio proibido de prova.
IX - A recente alteração introduzida pela Lei 48/2007 pretendeu esclarecer as divergências pré-existentes na jurisprudência, afirmando que as regras inscritas para o reconhecimento em sede de inquérito igualmente têm aplicação na fase de audiência, ou seja, a sua inobservância implica a proibição da sua valoração como prova.
X - Pressuposto básico da resolução de tal questão é o de que estamos perante a prova por reconhecimento quando não esteja identificado o agente do crime, sendo necessária a sua determinação. Constitui algo de absolutamente distinto a situação de confirmação como agente do crime em relação a alguém previamente identificado, investigado e assumido como sujeito processual com todo o catálogo de direitos inscritos como tal, que se traduz numa íntima comunicabilidade e interacção entre os diversos intervenientes processuais envolvidos no julgamento.
XI - Em sede de audiência de julgamento rege o princípio da publicidade. A partir do momento em que é pública a identidade do arguido, não se vê como se possa evitar o eventual contacto ou uma possível identificação num espaço público, ou privado, ou até a própria interpelação na abertura da audiência.
XII - Um reconhecimento realizado, pela primeira vez, em audiência de julgamento mostra-se substancialmente injusto, pois que já exposto o arguido aos olhares das testemunhas que o irão reconhecer. E aqui basta a mera possibilidade de tal já ter ocorrido. Desaconselhável, também, por ser já um dado adquirido por estudos em psicologia da memória que o “reconhecimento” deve ser realizado o mais próximo possível da data do evento.
XIII - Admitir um reconhecimento realizado pela primeira vez em audiência de julgamento é, além do exposto, uma clara violação do due process of law, na medida em que, na audiência, o arguido está exposto publicamente.
XIV - Na situação em que a testemunha, ou a vítima, é solicitada a confirmar o arguido presente como agente da infracção, a confirmação da identidade de alguém que se encontra presente, e perfeitamente determinado, apenas poderá ser encarado como integrante do respectivo depoimento testemunhal.
XV - Assumida a relevância das exigências da contraditoriedade e da imediação num processo penal de sistema acusatório compreende-se a irrelevância que, em princípio, é conferida ao depoimento indirecto. A essência da prova testemunhal encontra-se nas declarações que efectua uma pessoa sobre aquilo que percebeu pessoal e directamente. A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente.
XVI - O depoimento indirecto refere-se a um meio de prova, e não aos factos objecto de prova, pois que o que está em causa não é o que a testemunha percepcionou mas sim o que lhe foi transmitido por quem percepcionou os factos. Assim, o depoimento indirecto não incide sobre os factos que constituem objecto de prova mas sim sobre algo de diferente, ou seja, sobre um depoimento.
XVII - Uma vez que a prova testemunhal tem como referência o princípio da imediação e do contraditório não admiram as reservas suscitadas pelo depoimento indirecto em que está ausente a relação de imediação entre a testemunha e o objecto por ele percebido.
XVIII - Não integram a proibição do art. 129 do CPP, os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP. Na verdade, nesta a autoridade policial procede a diligências investigatórias, no âmbito do inquérito, em relação a infracção de que teve noticia. Sobre a mesma incumbe o dever de, nos termos do art. 249.º do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial deva praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249.º, n.º 1). Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos.
XIX - É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto.
XX - As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.
XXI - Se o agente policial inquirido apenas se refere às diligências a que procedeu em termos cautelares e de inquérito fazendo perante o tribunal uma súmula dos factos que entendeu estarem apurados e da sua razão de ciência, não se vislumbra a afirmação de estarmos perante um depoimento indirecto, sendo certo que a remissão feita para as pessoas que confirmaram ter sido o arguido quem praticou determinados factos pode, e deve, ser entendida em relação a audição que se produziu em fase prévia ao inquérito e, posteriormente, concretizada na prova testemunhal produzida em audiência.
XXII - A fixação da pena dento dos limites do marco punitivo é uma acto de discricionariedade judicial. Sem embargo, esta discricionariedade não é livre, mas sim vinculada aos princípios individualizadores que, em parte, não estão escritos, mas que radicam na própria finalidade da pena.
XXIII - A culpa e a prevenção residem em planos distintos. A culpa responde à pergunta de saber de se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção. Aqui há que decidir qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social pedagógico.
XXIV - A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente a finalidade da mesma.
XXV - Em sede de violação do princípio da proporcionalidade, torna-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena. Ao cometer um crime, o agente incorre na sanção do Estado, no exercício do seu direito de punir e esta sanção poderá importar uma limitação da sua liberdade.
XXVI - Uma das principais ideias presentes no princípio da proporcionalidade é justamente, invadir o menos possível a esfera de liberdade do indivíduo, isto é, invadir na medida do estritamente necessário a finalidade da pena que se aplica, porquanto se trata de um direito fundamental que será atingido. As penas têm de ser proporcionadas à transcendência social - mais que ao dano social - que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. O critério principal para valorar a proporção da intervenção penal é o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão do Tribunal da Relação de Lisboa que confirmou a decisão de primeira instância que o condenou nas seguintes penas:
1 - um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. nos arts. 144°, als. a) e b) e 146º, por referência ao art. 132° n° 2, als. d), g) e i), todos do Cód. Penal (versão anterior à Lei n.º 59/2007, de 04.09), na pena de cinco anos de prisão;
2 - um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. nos arts. 22°, 23°, 131° e 132° n° 1 e 2, als. d), g) e i), todos do Cód. Penal (versão anterior à Lei nº59/2007, de 04.09), na pena de dez anos de prisão;
3 - um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86°, n° 1, al. c) com referência ao art. 3°, n° 3 da Lei n°5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de dois anos de prisão;
4 - em cúmulo jurídico das três supra referidas penas, vai condenado na pena única de doze anos e seis meses de prisão.

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:
1.Não se pode afirmar, em sede de exame crítico da prova (a que faz jus o artº 374.° nº 2 do CPP), "que o arguido deixou cair o telemóvel (que o ofendido CC recolheu e foi entregue à PJ) - a fls. 29 do acórdão - "com o nº de cartão referido em 5 dos factos provados (que bloqueou às 5h 22 daquela madrugada" já que essa entregue não se processou assim: tendo sido seu irmão Leonel que o foi entregar à Polícia quatro dias depois - e já que nada nos autos aponta para que tenha sido o arguido a bloquear esse telemóvel (informações da TMN não são concludentes, como os autos evidenciam).
Por essa razão, ao manter o decidido, o acórdão recorrido do TRL viola, por erro de interpretação, o disposto no artº 374.° nº2 do CPP quanto à exigência de um verdadeiro exame crítico da prova.
2.A asserção da culpabilidade do arguido (explanada em termos negativos e quase meramente circunstanciais - a fls. 29/30 do primitivo acórdão condenatório: "Feita essa prova, e estando demonstrado que o arguido naquela noite não estava na Holanda, como tentou fazer crer, estava aberto o caminho para se dar como provado, como deu, que arguido e comparsa cumpriram a ameaça da noite anterior de que iam voltar, como voltaram" parece ­com o devido e merecido respeito, ser fruto de um raciocínio confuso, desarmónico, evasivo, (em nossa opinião, e com o muito respeito devido pelos ilustres subscritores do acórdão proferido pela 5.a Vara Criminal de Lisboa) quanto ao que se deve entender por nexo de causalidade entre o facto e o sujeito activo e, no Direito Penal Adjectivo aos dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão"
Pelo que, ao manter o decidido, o recorrido acórdão desta VRL (Veneranda Relação de Lisboa) violou, por erro de interpretação o disposto (artº 374.° nº 2 do CPP)
3.Havendo a necessidade de declarar pontos de facto incorrectamente julgados (artº 412.° n.o 3 alínea a) do CPP, como sejam os já apontados no recurso para a Veneranda Relação de Lisboa, a saber: "Matéria de facto dada como provada sob os itens 1,2,3,4,5,6,7,8,10,11,12,15,17,18,25,26,27 de fls. 3,4. 5 e 7 do recorrido acórdão e não o tendo feito a recorrida decisão violou, por erro de interpretação o disposto no art. o 127º do CPP.
4.E mostrando-se também a necessidade de examinar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (art 412. o n.03 alínea b) do CPP) consistindo estas nos depoimentos na audiência dos ofendidos e demandante cível BB e CC, depoimento da testemunha de acusação U… F… e depoimento da testemunha de defesa N… P… (dando-se aqui por reproduzida a transcrição as passagens desses depoimentos já feitas nesta motivação, em cumprimento da exigência contida no art. 412. o n. o 4 do CPP) e não o tendo feito, o recorrido acórdão violou, por erro de interpretação, o disposto no mencionado art.127. do CPP:
5.Mais: ao não decidir pela renovação da prova assim requerida, o recorrido acórdão violou o disposto no art. 127.° e 410.° do CPP
6.Ao não declarar a nulidade cominada no art. o 126º nº 3 do CPP dada a falta de autorização judicial para a leitura da agenda do telemóvel, assim se cometendo eventual devassa da vida privada, a recorrida decisão violou o disposto no art. o 126nº3 do CP P por manifesto erro interpretativo, uma vez que a agenda de um telemóvel não pode ser equiparada a documento, já que não está acessível a qualquer pessoa como a prova documental.
7.Por outro lado, sempre se trataria (o conhecimento da "agenda" dos telemóveis do recorrente), de prova proibida (a incluir na previsão do art. o 126 n.03 do CPP uma vez que a "inspecção" da agenda dos telemóveis do arguido não foi efectuada na presença deste (contrariamente à busca domiciliária que o foi).
8.0 art. 126.nº 3 do CPP encontra-se ferido de verdadeira e própria inconstitucionalidade material (por violação do art. o 34. o n. o 4 da Constituição da República e dos princípios nele consignados) se interpretado no sentido de que o OPC pode a seu bel-prazer intrometer-se na agenda de um telemóvel apreendido ao arguido, antes ainda de este presente ao MO JIC ou sequer ser-lhe dada voz de detenção, não lhe facultando a possibilidade (à semelhança do que sucede nas buscas domiciliárias) de o arguido visado com tal inspecção poder assistir à mesma "inspecção ".
9.Deste modo, os inspectores em causa da Polícia Judiciária, ao invadirem a esfera da privacidade do arguido, copiando a seu bel-prazer o eventual conteúdo da agenda do telemóvel, obtiveram prova através de um método proibido por lei (artº 126.° nº 3 do CPP), já que tal prova foi obtida mediante a intromissão na vida privada e na correspondência.
10. O artº 126.° nº 3 do CPP revela-se materialmente inconstitucional (por violação, clara e grosseira, do disposto no artº 34.° nº 4 da Lei Fundamental e do princípio de reserva da vida privada nele consignado) se interpretado, - como o foi no caso dos autos - no sentido de ser legal a intercepção/ cópia de agenda de um telemóvel encontrado em casa do arguido, por agentes policiais, sem a respectiva autorização judicial e sem que o arguido assista à "inspecção/conferência" da sua agenda telefónica memorizada no mesmo telemóvel.
11-Ao não declarar a existência de erro notório na apreciação da prova bem como a nulidade da prova produzida em audiência consistindo no conhecimento dos factos por "ouvir dizer" a pessoas determinadas (que não foram ouvidas) ou a pessoas indeterminadas (que também não o foram), - como resulta do depoimento do Inspector da polícia Judiciária L… P…) a recorrida decisão violou o disposto na Lei Penal Adjectiva acerca da proibição de prova, "maxime" o disposto no art.º 356. nº 7 do CPP.
12. Ao não declarar a renovação da prova, o acórdão do TRL violou, por erro interpretativo, o disposto no art.º 427.° e 428.° do CPP ao não conhecer da matéria de facto e ao não retirar as consequências lógicas desse conhecimento, que o caso impunha, dado o mandamento constante do art.° 340.° nº 1 do CPP: aquando do depoimento do Inspector da Polícia Judiciária L… P…, (CD 1 - sessão de 3/03/2009 depoimento entre as 10.44.26 e as 12.01.00) conclui-se - como já constava dos autos "maxime" fis. 824 (Relatório Pericial a arma apreendida) que os cartuchos utilizados no tiroteio dos autos foram disparados por uma arma caçadeira apreendida, à ordem de outros autos ao cidadão I… G… D….(depoimento aos 17m.03s e, pela sua relevância, aos 46.m32s, 47m28s e ainda 48m44s. Incompreensivelmente - e embora fosse fundamental para a boa decisão da causa esse esclarecimento - a recorrida decisão declara que tal não é necessário.
13. 0 recorrido acórdão do TRL não se pronunciou sobre matéria que o recorrente condensara nas conclusões 2.8 3.8 4.8 e 5.8 do seu recurso na parte ora transcrita:
"2.A segunda, considerando prova válida, acima de qualquer dúvida, a mera coincidência de existência de alguns nomes numa agenda de um telemóvel encontrado em casa do recorrente (telemóvel LG aprendido a fls. 72) e de um cartão de telemóvel UZO (cuja proveniência se desconhece), o que revela que o douto Tribunal Colectivo ficou refém de uma "visão impressionista" dos factos - ínsita no relatório da PJ e no libelo acusatório, bastando-se, na determinação de culpa do recorrente, numa aparência de culpa, que nada tem a ver (com o devido respeito, que é muito e bem devido), com a mais rigorosa aplicação do Direito, com isso se violando o disposto no art. o 127. o do CPP.
3.Na verdade, o Mundo é feito de coincidências. E sem se ter apurado quer a propriedade dos vários cartões encontrados e que foram, paulatinamente, sendo entregues à Polícia, (a TMN desconhece a sua titularidade) quer a titularidade do telemóvel também encontrado na rua (mas só entregue à Polícia dia 6 de Setembro 2007 como os autos dão conta - v. fls.64), não existe prova suficiente e necessária para a condenação do recorrente, encontrando-se o Tribunal impedido de extrair ligação lógica, plausível e verosímil entre o facto criminoso que os autos revelam e a sua autoria por banda do recorrente. Ao proceder doutro modo - como o acórdão recorrido dá conta - a decisão ora em crise viola, grosseiramente - com o devido respeito, há que dizê-lo, o princípio "in dúbio pro reo bem como o disposto nos art. Os 127. ° e 355. do CPP.
4.Impressionado pelo conteúdo das tais "agendas" - com nomes e telefones coincidentes - a M… F…, o P… H…, O P…, a advogada L… .... e por aí fora, logo o acórdão conclui que esse facto aponta para que o dono, o proprietário, o titular ou o usuário principal desse telemóvel seja iniludivelmente o arguido!
5.E isso, note-se bem, sem que a mínima prova haja sido produzida nesse sentido: nem uma dessas pessoas (alguns apontados como familiares do arguido pela investigação) foi ouvida em inquérito ou indicada pelo Digno Ministério Público para depor em julgamento! Nem a TMN ou qualquer outra operadora confirmou a exactidão desses números ou nomes coincidentes! nem uma impressão digital do arguido foi encontrada no disto telemóvel LG!" não lhe fazendo (o recorrido acórdão) qualquer referência. E porque assim é, cometeu a nulidade de OMISSÃO DE PRONÚNCIA cominada no artº 379.° n.o 1 alínea c) do CPP., a qual deve ser declarada por este Alto Tribunal.
14.Ao não decretar a insuficiência do exame crítico da prova feita pela instância (s.a Vara Criminal de Lisboa), afirmando que o recorrente confunde falta de exame crítico com "deficiente avaliação da prova" ( a fls. 24 da decisão recorrida) o acórdão ora em crise não faz a melhor aplicação do art.º374.° nº 2 do CPP ao caso dos autos, pelo que viola tal preceito legal, por manifesto erro interpretativo.
15. Ao não indicar em que elementos concretos o Tribunal se estribou para alcançar a convicção de que o telemóvel em causa pertenceria ao recorrente e não a outra pessoa o douto Tribunal violou o princípio consignado no artº 374.° nº 2 do CPP precisamente pela insuficiência de fundamentação.
Pelo que cometeu a nulidade cominada no artº 379.° nº 1 alínea c) do CPP
16.Ao não declarar a inexistência de causalidade entre o facto e o sujeito activo - ou dos motivos de facto e de Direito que fundamentam decisão - ou o conteúdo da conclusão nº 9 do interposto recurso - a recorrida decisão viola, por manifesto erro interpretativo, o disposto no art.º 374.° n.o 2 do CPP
17.Um reconhecimento implica por maioria de razão, uma opção entre vários intervenientes e deve respeitar a legalidade. Para os reconhecimentos em audiência rege o art.º 147.° do CPP, que se mostra ter sido violado grosseiramente pela instância: só havendo, sentado no banco dos réus, aquele cidadão negro para reconhecer, não havia qualquer opção de escolha ...
Ao afirmar que o tribunal valorizou "os depoimentos das testemunhas apreciados nos termos do art. 127. e não a "prova por reconhecimento" a que alude o artº 147.° CPP (a fls.28/29 do recorrido acórdão), embora algumas das testemunhas tenham afirmado nesse acto reconhecer o arguido, o recorrido acórdão violou, também aqui e neste caso particular por nítido erro interpretativo o disposto no art.º 147.° do CPP.
Mas sem conceder,
18. Da medida da pena - Violação dos artigos 41.° e 71.° do Código Penal
A pena encontrada é elevada para o caso, (levando em linha de conta o disposto no art.º 14.° do CP e o art.º 71.° do mesmo Código), mostrando-se muito elevadas as penas parcelares como a pena única, em caso algum devendo ter sido aplicada - uma vez operado o respectivo cúmulo - pena superior a seis anos de prisão.
Na verdade,
As penas mais acertadas a atribuir ao recorrente deveriam ter sido:
3 anos pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
5 anos pelo crime de homicídio na forma tentada.
1 ano pelo crime de detenção de arma proibida.
Termos em que a decisão ora sob censura deverá ser revogada e substituída por outra que, por mais douta e acertada, reconheça as apontadas nulidades e absolva o recorrente da prática dos crimes em que foi condenado. E ainda sem conceder - e o que só por mera hipótese académica e de raciocínio se pode equacionar - que em caso de se entender pela necessidade de condenação, se opte por penas menos severas, condenando-se o recorrente nas pedidas penas parcelares e, uma vez efectuado o respectivo cúmulo jurídico, na pena única de seis anos de prisão.
Respondeu o Ministério Público referindo que:
L O exame crítico das provas foi efectuado em conformidade com o disposto no artigo 374º nº 2 do CPP estando expostas com clareza as razões que motivaram a condenação do arguido.
11. O tribunal da 1 ª instancia ao não acolher a versão dos factos do recorrente quanto à forma como o telemóvel foi apreendido não está a errar no exame crítico da prova, a haver deficiência teria ligação com a matéria de facto que o recorrente não impugnou.
111. A utilização do conteúdo da agenda do telemóvel não constitui interferência nas comunicações, por isso tais elementos não foram obtidos contra o disposto no artigo 126º nº 3 do CPP não fazendo sentido a invocada violação do artigo 34º nº 4 da CRP por não existir intromissão na nas telecomunicações do arguido.
IV. O conhecimento que os investigadores têm sobre os factos não se pode confundir com a situação de prova por reconhecimento prevista no artigo 147º do CPP.
V. Resulta da simples leitura da douta sentença recorrida que esta se mostra devidamente fundamentada, com referência dos factos provados e não provados, com exposição tanto quanto possível completa ainda que concisa dos motivos de facto e de direito que fundamentaram a decisão e com indicação e exame crítico da prova que serviu para formar a convicção do Tribunal.
VI. Da simples leitura do douto Acórdão recorrido não resultam manifestos no texto do douto Acórdão nenhuns dos vícios referidos no citado artigo 4100 nº 2 nem em concreto do referido erro notório da apreciação da prova e sem essa condição não é possível corporizar a existência dos referidos vícios.
VII. Considerando-se as fortes necessidades de prevenção geral decorrentes da frequência com que estes crimes ocorrem, sendo também relevante o modo como o crime foi executado e as suas graves consequências afigura-se que a pena imposta se mostra adequada e proporcional não merecendo censura.
Nesta instância o ExºMº Sr. Procurador geral Adjunto emitiu proficiente parecer no sentido da improcedência do recurso.
Os autos tiveram os vistos legais
Cumpre decidir
Encontra-se demonstrada a seguinte factualidade na decisão recorrida:
1 - Na madrugada do dia 01/09/2007, o arguido dirigiu-se à Discoteca «Nell’s», sita no Campo Grande, em Lisboa, acompanhado de um outro indivíduo que não foi possível identificar.
2 - Contudo, foram impedidos de entrar no estabelecimento, pelo funcionário A… R… de O… P…, uma vez que se encontravam alcoolizados e vestidos de forma inadequada.
3 - Inconformados com a situação, o arguido e o outro indivíduo travaram-se de razões com o CC e com um outro funcionário da discoteca, R… D… da C… .
4 - Não conseguindo levar a melhor na contenda, o arguido e o seu acompanhante abandonaram o local, numa viatura de marca Audi, modelo A3, de matrícula estrangeira, referindo que voltariam ali para se vingarem.
5 - Nessa ocasião, o arguido deixou cair o telemóvel com o cartão nº 96 … que trazia consigo, o qual veio a ser apreendido à ordem destes autos (fls. 72, 75 e 84).
a) - esse telemóvel funcionou de 26.08.07 a 01.09.07, às 05H22, momento em que o cartão foi bloqueado a pedido do cliente (cf. informação da TMN de fls. 84).
b) - no dia 01.09.2007 o referido telemóvel foi utilizado na zona do Campo Grande (cf. fls. 335 e 336);
c) - no mesmo telemóvel constam, entre outros, os seguintes contactos:
“A… 96….; M… F… 0033….; P… H… 96…; P… M… 0033…; S… L… 96…; S… P… 96….; T… I… 0033… e A…. L…. 96….” (cf. exame de fls. 110 a 114);
d) - estes mesmos números constam, além de outros, também de um dos telemóveis que foi apreendido ao arguido aquando da busca realizada em 02.05.08, relatada no Auto de fls. 512 (cf. resulta do respectivo exame de fls. 526 a 568).
6 - Então, o arguido e o outro indivíduo traçaram um plano com o objectivo de se vingarem do CC e do BB.
7 - Na execução desse plano, pelas 02h40 do dia 02/09/2007, os dois dirigiram-se ao dito estabelecimento, encapuzados.
8 - O arguido levava consigo um revólver de calibre .38 Smith & Wesson, (de demais características não concretamente apuradas), em condições de efectuar disparos, contendo no tambor, pelo menos cinco munições de calibre 9mm por deflagrar em estado funcional; sendo certo que o arguido não possui licença de uso e porte de tal arma.
9 - Por seu turno, o outro indivíduo transportava uma espingarda do tipo caçadeira, de calibre 12.
10 - Chegados junto à porta do estabelecimento, o arguido efectuou dois disparos com o revólver, um deles em direcção ao solo e outro à ombreira da porta.
11 - Acto contínuo, o arguido entrou no estabelecimento empunhando o dito revólver.
12 - O outro indivíduo, por seu turno, abeirou-se do CC (que se encontrava à porta do discoteca) e desferiu-lhe dois tiros com a espingarda, um em cada coxa.
13 - Acto contínuo, o CC caiu no chão, indefeso.
14 - Nessa altura o dito indivíduo desferiu-lhe, ainda, com a dita espingarda, duas coronhadas nas costas.
15 - Entretanto, no interior do estabelecimento, o arguido procurou o BB, tendo-o detectado junto à designada porta intermédia.
16 - Então, encontrando-se a menos de um metro do BB, o arguido disparou dois tiros na direcção daquele, atingindo-o com
um dos projécteis na zona abdominal e com outro na coxa esquerda.
17 - Após, o arguido saiu do estabelecimento e, deparando com o CC caído no solo, efectuou um disparo na sua direcção, atingindo-o numa perna.
18 - De imediato, o arguido e o outro indivíduo abandonaram o local fazendo-se transportar na viatura de marca Audi supra referida.
19 - Como consequência directa e necessária do conduta dos arguidos, o CC sofreu dores nas regiões do corpo atingidas, bem como esfacelos na face postero-externa da coxa direita e da face externo da coxa esquerda, que obrigaram a internamento hospitalar e a intervenções cirúrgicas.
20 - Tais lesões determinaram para o ofendido um período de 60 dias de doença, com igual período de afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
21 - Em resultado da ofensa resultou para o ofendido, grave lesão traumática do nervo grande ciático direito que afecta de maneira grave e permanente a sua capacidade de trabalho e o priva da utilização do membro inferior direito.
22 - Por seu turno, como consequência directa e necessária da conduta dos arguidos, o BB sofreu dores nas regiões do corpo atingidas, bem como:
a) - secção traumática da artéria femural superficial e da veia femural superficial esquerdas, tendo sido submetido a cirurgia para reconstrução das mesmas;
b) - ferida contuso-perfurante da parede abdominal posterior, tendo sido submetido a cirurgia, para extracção do projéctil de arma de fogo.
23 - Tais lesões determinaram para o BB um período de 60 dias de doença, com igual período de afectação da capacidade para o trabalho geral e profissional.
24 - Em resultado da ofensa resultaram para o ofendido, as seguintes consequências de carácter permanente:
a) - cicatrizes de feridas contuso referidas à parede abdominal e à coxa esquerda;
b) - cicatrizes de feridas operatórias na parede abdominal anterior e na face interna da coxa esquerda;
c) - status pós reconstrução cirúrgica da artéria femural superficial e veia femural superficial ambas à esquerda.
25 - O arguido e o outro indivíduo agiram deliberada, livre e conscientemente na execução de um plano traçado, no propósito concretizado de molestar corporalmente o CC. Ao atingirem-no com três disparos agiram cientes de que os instrumentos por si utilizados, atentas as suas características, e os locais do corpo visados, eram portadores de uma perigosidade muito superior à dos meios comummente utilizados para agredir alguém; bem como de que a sua utilização dificultava significativamente as possibilidades de defesa do CC e era apta a causar neste graves lesões.
26 - Agiram, de igual modo, no intuito de atingirem, com os seus disparos, o BB em zonas vitais do corpo nomeadamente no abdómen, e provocarem-lhe, desse modo, a morte. Não obstante, não atingiram esse resultado, por motivos alheios à sua vontade, em virtude de o ofendido ter sido prontamente socorrido.
27 - Actuaram ainda cientes de que não lhes era permitida a posse daquelas armas de fogo e da reprovabilidade penal das suas condutas.
28 - O arguido foi julgado e condenado por decisões transitadas em julgado, nas seguintes penas, que se apresentam pela ordem cronológica da prática dos crimes (CRC de fls. 846 e ss.):

N.º processo e Tribunal
    Data(s) dos factos
Data:
sent. e trânsito
Crime(s) Pena(s)
        1
2324/97.3TBLSB, 6º JC de Lx, 3ª Sec.26.12.9727.02.02
04.02.02
Um de furto simples (art.203, nº1, CP60 dias de multa,
declarada extinta pelo
pagamento em 21.01.04
        2
21/00.3PILSB
da 1º VM de
Loures
17.02.0016.10.00
01.08.01
um de furto
qualificado e um de roubo agravado
6 anos e 3 meses de
prisão
        3
407/06.0TALRS, da 2ª VM de Loures14.11.0414.03.07
11.04.07
Um de tráfico de estupefacientes
de menor gravidade e um de detenção de arma proibida
2 anos de prisão
suspensa por 4 anos
        4
50/05.0SRLSB
do 2º J do TPICL, 2ª Sec.
03.04.0504.04.05
20.04.05
um de condução de veículo em estado de embriaguez4 meses de prisão
suspensa por 3 anos e 4
meses de inibição de
conduzir
29 - Não lhe são conhecidos processos pendentes.
30 - O arguido antes de preso trabalhava como recepcionista, numa empresa de rent-a-car.
31- Vivia coma mãe, a companheira e duas filhas que actualmente têm 10 e 4 anos.
32 - Tem o 8º ano.

Do pedido cível de CC:
33 - O demandante, em consequência das lesões supra descritas foi, posteriormente, submetido a outros tratamentos, que o levou a pagar o valor de € 73,50 (setenta e três euros e cinquenta cêntimos) e € 38,00
(trinta e oito euros), € 106,00 (cento e seis euros), € 50,00 (cinquenta euros), € 25,00 (vinte e cinco euros), respectivamente, para além de €2,90 e 2,85 respectivamente, de taxas moderadoras (cf. docs. de fls. 908 a 913).
34 - E foi ainda submetido a cirurgias.
35 - O demandante, antes da ocorrência dos factos, era uma pessoa alegre, destemida, dinâmica, determinada, alegre, cheia de vida, de grande simpatia pessoal.
36 - Presentemente, o demandante é uma pessoa bastante diferente, nutrindo os sofrimentos de dor, medo, revolta e apatia.

Do pedido cível de BB:
37 - O ofendido esteve internado durante oito dias (doc. de fls. 886).
38 - Fez despesas com medicamentos e consultas no valor de €135,26 (docs. de fls. 887 a 890).
39 - Sente-se limitado fisicamente e profissionalmente.

Não se provou que:
Da acusação:
1NP - o veículo referido em 4 dos factos provados tinha matrícula alemã;
2NP - o arguido e comparsa no dia 02/09/2007, tinham luvas colocadas nas mãos;
3NP - o arguido detectou o BB, junto à porta de uma das casas de banho;

Do pedido cível de CC:
4NP - o ofendido tenha pago em tratamentos € 38,00 (trinta e oito euros), em cirurgias € 4.000 (quatro mil euros) e em transportes de casa para o hospital e vice-versa € 450 (quatrocentos e cinquenta euros);
5NP - o ofendido era a principal fonte de subsistência familiar;
6NP- presentemente o ofendido sofre de depressão;
Do pedido cível de BB:
7NP - o ofendido passou a usar diariamente por indicação médica ligas elásticas, para evitar dores na perna;
8NP - na sua actividade de segurança auferia mensalmente cerca de €1.000,00, tendo até à data da dedução do pedido sofrido uma diminuição patrimonial de € 14.000,00;
9NP - desde Setembro de 2007 tem enfrentado problemas financeiros, nomeadamente dificuldades em assegurar as despesas do seu agregado familiar e pagar prontamente os seus créditos;
10NP - o ordenado que possui de momento ronda os € 900,00 mensais;
11NP - trabalha como auxiliar técnico na empresa O… V…-Gestão de Equipamentos Sócio-Culturais e Desportivos, tendo deixado de auferir a respectiva remuneração durante os dois meses de incapacidade, no montante de €1.800,00;
12NP - não tem sensibilidade na perna esquerda, ao sentar não consegue flectir totalmente a perna.


Importa especificar os segmentos da impugnação produzida pelo recorrente para uma melhor compreensão da presente decisão:
-Assim, nos pontos 1 a 3 das suas conclusões o recorrente denomina de ausência de exame crítico da prova e manifesta a sua discordância em relação aos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente provados. Em seguida vem o recorrente invocar questões de natureza adjectiva como estruturantes do seu recurso, e legitimadoras da afirmação da violação do seu direito a um processo justo, ou seja, a leitura da agenda do telemóvel; o eventual testemunho de ouvir dizer e, ainda, a indevida prova por reconhecimento.
Lateralmente alude á violação do princípio “in dubio pro reo”
Impreca ainda pela existência de uma omissão de pronúncia relativa ao facto de o Tribunal da Relação não se ter pronunciado sobre a matéria constante dos pontos 2 a 5 das conclusões apresentadas no tribunal da Relação
Pronunciando-se sobre a impugnação da matéria de facto referiu a decisão recorrida que
Assim, o que o recorrente manifesta é discordância em relação à avaliação da prova, fazendo desse elemento de prova concreto um exame crítico diferente do do tribunal recorrido. Contudo, não existe falta de exame crítico por parte do tribunal recorrido, sendo certo que só essa falta poderia conduzir à apontada nulidade.
Se o exame crítica não foi o correcto, conduzindo a deficiente avaliação da prova, não é caso de nulidade do acórdão, mas de incorrecta apreciação da prova, motivo para impugnação da matéria de facto.
Do mesmo modo, o alegado na conclusão 7ª, de existência de confusão entre suspeitas e certezas, indícios e provas irrefutáveis, meras impressões com constatações, não constitui qualquer nulidade, mas errónea apreciação da prova, susceptível de conduzir à alteração da matéria de facto fixada em 1ª instância.
Na conclusão 6ª, considera o recorrente que o tribunal recorrido cometeu a nulidade cominada na alínea c, daquele art.379 (excesso de pronúncia), ao concluir que o cartão apanhado na rua na véspera do tiroteio era usado pelo recorrente “…pois que nenhuma prova — digna desse nome em processo penal — foi produzida quanto a essa questão!”.
Ao concluir daquele modo, porém, o tribunal limitou-se a fazer a sua avaliação sobre a prova, em relação a factos que integram o objecto do processo, razão por que não existe qualquer excesso de pronúncia, susceptível de integrar a apontada nulidade, quando muito incorrecta avaliação da prova, a apreciar no momento próprio.
Por outro lado, a afirmação constante da fundamentação "Feita essa prova, e estando demonstrado que o arguido naquela noite não estava na Holanda, como tentou fazer crer, estava aberto o caminho para se dar como provado, como deu, que arguido e comparsa cumpriram a ameaça da noite anterior de que iam voltar, como voltaram", não revela raciocínio confuso, desarmónico, evasivo, estranho, como pretende o recorrente na conclusão 9ª, já que, lida no contexto de toda a fundamentação, mais não significa que o tribunal não aceitou o alibi apresentado pelo recorrente. O tribunal recorrido, porém, não fundamenta a culpa, ou o nexo de causalidade entre a acção e o resultado, nesse facto negativo (o arguido não estava na Holanda), mas em elementos objectivos de prova que enumera e com base nos quais formou convicção segura que o recorrente praticou os factos considerados provados.
Por outro lado, em termos de impugnação de matéria de facto mais refere a decisão em causa que:
Como provas que impõem decisão diversa, indica os depoimentos dos depoimentos dos ofendidos e demandantes cível, BB e CC, o depoimento da testemunha U… F… e da testemunha de defesa N… P…
Analisados aqueles elementos de prova, documentados nos autos, constata-se que, em relação aos nºs1 a 4, as declarações de BB e CC, assim como o depoimento da testemunha U… são coincidentes entre si, no sentido em que os factos foram considerados provados. Os três referiram encontrar-se na exterior da Discoteca “Nell’s”, quando dois indivíduos se dirigiram ao local no veículo de marca Audi, sendo impedidos de entrar nesse estabelecimento pelo ofendido CC, funcionário de serviço à entrada dessa discoteca.
Confirmaram, ainda, de forma coincidente, que esses dois indivíduos se tratavaram de razões com os ofendidos CC e BB, abandonando o local após referirem que ali voltariam para se vingarem, nos termos considerados provados.
BB, CC e U…, foram peremptórios a afirmar que o arguido AA, presente na audiência, era um daqueles dois indivíduos, o que é corroborado pelos autos de reconhecimento de fls.522,629 e 630.
Em relação a estes factos, a testemunha N…, referiu ter-se encontrado com o arguido na Holanda, em Agosto de 2007, onde o visitou em Amesterdão, durante o periodo em que esteve de férias nesse país, na cidade de Roterdão. Afirmou ter regressado a Portugal em 5 de Setembro desse ano, ficando o arguido na Holanda até data que desconhece, mas não afirmando ter estado com ele nos dias 1 e 2 de Setembro, nem concretizando como podia ter conhecimento seguro que o arguido nessa altura ainda se encontrava nesse país e só voltou a Portugal depois de 5 de Setembro, já que não refere qualquer contacto entre ambos incompatíveis com a presença do arguido em Portugal nos primeiros dias de Setembro (fala num encontro entre ambos a 6 ou 8 de Agosto e mais três vezes em fins-de-semana que não concretiza). Diz que o arguido estava a trabalhar na Holanda, numa fábrica de carnes, mas não concretiza essa afirmação.
Este depoimento da testemunha N…, aliado ao facto de se ter vindo a apurar que os documentos juntos aos autos para prova de vínculo laboral do arguido a uma empresa da Holanda, no período em causa, não eram verdadeiros (fls.1227), manifestamente, não belisca a convicção formada pelo tribunal em relação aos factos 1 a 4, com base nas declarações de BB, CC e U… .
Em relação ao nº5 dos factos provados, as testemunhas U… e N… nada adiantaram, não tendo conhecimento pessoal desse facto.
O R… não revelou conhecimento pessoal sobre o considerado provado sobre o nº5.
Contudo, o depoente CC confirmou esse facto, esclarecendo como o telemóvel chegou à posse da PJ, o que aliado à sua apreensão e aos documentos de fls.84,110,114,335,336,512,526 a 526, permite compreender que esse facto tenha sido considerado como provado.
Quanto aos outros factos impugnados (6,7,8,10,11,12,15,17,18,25,26 e 27, dos provados), as testemunhas U… e N… não tinham conhecimento pessoal da participação do arguido nos mesmos.
O ofendido BB, declarou não ter dúvida da participação do arguido nesses factos. Na contenda do dia 2Set. ainda o agarrou, reconheceu-lhe a voz e, apesar de encapuçado, conseguiu ver-lhe os olhos e o nariz, sendo peremptório ao afirmar que era o arguido.
O ofendido CC, afirmou não ter dúvidas que os intervenientes do dia 2Set. foram os mesmos dois do incidente ocorrido no dia anterior e considerado provado, tendo-os reconhecido pela voz, tendo o acompanhante do arguido afirmado “… nós não tínhamos dito que voltávamos?”, o que para ele não podia ter outro significado que não a resposta ao incidente do dia anterior pelos mesmos dois indivíduos que nele participaram.
Quanto às armas usadas, disparos efectuados e lesões sofridas, BB e CC foram coincidentes, tendo prestado as suas declarações no sentido em que os factos foram considerados como provados.
O tribunal recorrido, que beneficiou da imediação e oralidade, qualificou os depoimentos dos ofendidos BB e CC como serenos, sem contradições, não suscitando dúvidas quanto à sua isenção e veracidade.
Analisados os mesmos, não tem este tribunal quaisquer razões para divergir da conclusão a que chegou o tribunal recorrido, permitindo a análise conjunta de toda a prova formar uma convicção segura que o arguido participou nos factos de 2Set. nos termos considerados provados.
Os elementos de prova indicados pelo recorrente, manifestamente, não justificam decisão diversa, sendo certo que os depoimentos dos ofendidos BB e CC são corroborados por outros elementos de prova, nomeadamente o depoimento da testemunha U… e os reconhecimentos efectuados em inquérito, que não deixam dúvidas sobre a intervenção do arguido no incidente de 1Set. Quanto aos factos do dia 2Set., os depoimentos dos ofendidos, BB e CC, não deixam dúvidas sobre a intervenção do arguido, tendo-o reconhecido pela voz, o que se apresenta razoável já que dialogaram com o mesmo no dia anterior e o BB, ainda, pelos olhos e nariz, apesar do mesmo estar encapuçado, já que chegou a agarrá-lo. Estes depoimentos são corroborados pelo da testemunha A… S…, funcionário da discoteca que, encontrando-se presente no dia 2Set., ouviu um dos indivíduos dizer “eu avisei que ia voltar”, o que confirma a versão dos ofendidos de serem os mesmos indivíduos os intervenientes nos factos ocorridos nos dois dias.
Deste modo, analisados todos estes elementos de prova, as regras da experiência comum não permitem retirar outra conclusão, que não aquela a que chegou o tribunal recorrido, não existindo o mínimo indício de valoração caprichosa ou arbitrária da prova, razão por que não merece qualquer censura o decisão do tribunal recorrido em relação aos factos impugnados (1).
A apreciação da prova pelo tribunal recorrido apoia-se em critérios objectivos, está devidamente motivada e foi norteada pelo cumprimento rigoroso do dever de perseguir a verdade material, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127, do CPP., não existindo qualquer dúvida em relação aos factos provados, que justifique apelo ao princípio in dubio pro reo.
Não existindo dúvidas sobre a prática dos factos pelo recorrente, nos termos em que foram considerados provados, a referência pela testemunha L… P… ao facto da arma usada ter vindo a ser apreendida posteriormente a outra pessoa, à ordem de outro processo, não justificava a realização oficiosa de outras diligências de prova.
Na verdade, pouco interessa o percurso da arma desde o dia dos factos até que foi apreendida noutro processo, já que esse percurso não faz parte do objecto deste processo


I
Como questão prévia na análise do presente recurso importa precisar que o recurso para o Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame das questões de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP.
Relativamente á impugnação da matéria de facto impõe-se a reafirmação do principio de que o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista por excelência - art. 434.º do Código de Processo Penal – saindo fora do âmbito dos seus poderes de cognição a apreciação da matéria de facto. Na verdade, se é certo que os vícios da matéria de facto - artigo 410.º, n.º 2, do mesmo Código - são de conhecimento oficioso, e podem sempre constituir objecto de recurso, tal só pode acontecer relativamente ao acórdão recorrido, ou seja o Acórdão do Tribunal da Relação.
A decisão deste Tribunal sobre a alegação da existência de vícios da matéria de facto ocorridos na decisão da primeira instância tem, no caso vertente, de tomar-se por definitivamente assente como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal. Saliente-se, ainda, que o reexame pelo Supremo Tribunal de Justiça exige a prévia definição (pela Relação) dos factos provados.
Nesta última hipótese, o recurso - agora, puramente, de revista - terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida (a da Relação) em matéria de direito (com exclusão, por isso, dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento de 1.ª instância), embora se admita que, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do Supremo para além do que tenha de aceitar-se já decidido definitivamente pela Relação, em último recurso, aquele se abstenha de conhecer do fundo da causa e ordene o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
É unicamente com este âmbito que o Supremo Tribunal de Justiça pode ter de avaliar da subsistência dos aludidos vícios da matéria de facto. Tal significa que está fora do âmbito legal do recurso a reedição dos vícios apontados à decisão de facto da 1.ª instância, em tudo o que foi objecto de conhecimento pela Relação

Aplicando o exposto ao caso vertente verifica-se que parte das conclusões formuladas pelo recorrente se referem a uma discordância em relação á materialidade considerada provada e, nomeadamente, ao facto de se ter considerado provada a responsabilidade criminal do arguido perante a sua negativa em relação á prática dos factos. Encontramo-nos, pois, no domínio da matéria de facto que se encontra excluída do conhecimento deste Supremo Tribunal.
O exposto em nada é afectado pelas referências genéricas e abstractas que o recorrente faz em relação aos vícios do artigo 410 do Código de Processo Penal, e alusões ao catálogo das patologias processuais, mas que, em termos concretos, se consubstanciam na divergência em relação á factualidade provada sem qualquer concretização.

No que concerne ainda á impugnação elaborada importa, ainda, precisar conceitos e, nomeadamente, especificar a obrigação de fundamentação que incide sobre o julgador, ou seja, na obrigação de exposição dos motivos de facto e de direito que hão de fundamentar a decisão.
A exigência expressa do exame crítico da prova situa-se exactamente nos limites propostos, ente outros, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98, e que já tinha adquirido foros de autonomia, também a nível do Supremo Tribunal-Acordão de 13/2/1992- com a consagração de um dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal colectivo se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobe as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido
Por essa forma acabaram por obter consagração legal as opções daqueles que consideravam a fundamentação uma verdadeira válvula de escape do sistema, permitindo o reexame do processo lógico, ou racional, que subjaz á decisão. Também por aí se concretiza a legitimação do poder judicial, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto.
Igualmente é certo que tal dever de motivação emerge directamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional-artigo 208-em relação ao qual, ponderam Gomes Canotilho e Vital Moreira, que é parte integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático, ao menos quanto ás decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Constituição Anotada pag 799).
É pressuposto adquirido o de que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com razões que hão-se impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. O entendimento que a lei se basta com a mera indicação dos elementos de prova frustra a “mens legis”, impedindo de se comprovar se na sentença se seguiu um processo lógico, e racional, na apreciação da prova, não sendo portanto uma decisão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova. Tal entendimento assume assim uma concreta conformação violadora do direito ao recurso consagrado constitucionalmente.
Como refere Gianformaggio motivar significa justificar. E justificar significa dar a razão do trabalho produzido, admitindo como linha de princípio a legitimidade das críticas formuladas, ou seja, a legitimidade de um controle (2).
Efectivamente, a exigência de motivação responde a uma finalidade do controle do discurso, neste caso probatório, do juiz com o objectivo de garantir até ao limite de possível o racionalidade da sua decisão, dentro dos limites da racionalidade legal. Um controle que não só visa uma procedência externa, como também pode determinar o próprio juiz, implicando-o, e comprometendo-o, na decisão, evitando uma aceitação acrítica como convicção de algumas das perigosas sugestões assentes unicamente numa certeza subjectiva
A sensibilidade da Comissão de Reforma do Código de Processo Penal á afirmação da necessidade de tal exame ressalta do próprio relatório que, em sede de grandes princípios orientadores, se refere a necessidade de fundamentação das respostas que não se limite indicar os meios de prova que as justifica mas constitua uma súmula das razões decisivas da convicção formada.
A concretização de tal obrigação de fundamentação em sede de motivação da sentença é formulada em termos lapidares pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/1992 quando refere que : "A sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência ''Ou seja, "trata-se ( .. .) de referir os elementos objectivos de prova que permitam constatar se a decisão respeitou ou não a exigência de prova, por uma parte; e de indicar o íter formativo da convicção, isto é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir, em especial na prova indiciária, comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi irracional absurdo, por outra".
Também refere Paulo Saragoça da Mata (3) a fundamentação das sentenças consistirá: (a) num elenco das provas carreadas para o processo que se consubstanciará;
(b) numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;
(c) numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e,
(d) numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente.
Adianta o mesmo Autor que apenas desse modo se garante uma tutela judicial efectiva. Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente levante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).
A motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor.

Considerando por tal forma temos que, em primeira análise, a tarefa do Tribunal da Relação ao apreciar a impugnação produzida em termos de matéria de facto incidiu, também, sobre a forma como o Tribunal de primeira instância exprimiu a lógica dedutiva que permitiu a aceitação de determinados factos em detrimento de outros. A questão será, então, a de saber se a decisão recorrida cumpriu o seu dever de investigar de indagar de uma forma precisa e detalhada a validade da impugnação produzida em relação a concretos pontos de facto.
A análise da mesma decisão imprime, de forma inexorável, a conclusão de que tal obrigação foi efectivamente cumprida. O Tribunal da Relação represtinou a prova produzida, justificando o motivo pelo qual logrou convencer aquela que conduziu á convicção sobre a responsabilidade criminal do arguido.
Analisados foram os depoimentos de testemunhas de acusação que se conjugaram entre si. Em última análise o que está em causa é a circunstância de o recorrente omitir uma visão global e compreensiva da prova.
Pelo contrário a compreensão unitária e superior efectuada pela decisão recorrida sobre a mesma prova conduziu a um convencimento que se mostra sustentado/fundamentado em termos de motivação, e sem mácula, em termos de qualquer um dos vícios do catálogo do artigo 41º do Código de Processo Penal.
Não foram violados quaisquer dos ónus que impediam sobre a decisão recorrida em termos de fundamentação ou pronúncia.
Aliás, e contrariamente á pretensão do recorrente, importa salientar a forma minuciosa como as instâncias analisaram a matéria de facto e concluíram pela sua responsabilidade.

Relativamente á imputada omissão de pronuncia-ponto 13 das conclusões- verifica-se que a decisão recorrida tomou posição expressa sobre a dinâmica factual apontada pelo recorrente sendo certo que o que está em causa é o exame crítica das provas e os factos que o mesmo exame fundamenta e não as visões pessoais, pretensamente holísticas.
Aliás a impetração efectuada pelo recorrente tem subjacente a sua discordância em relação á forma como foi abordada a questão da aplicação do princípio “in dubio pro reo”.
Estamos em crer que a questão foi indevidamente colocada. Na verdade, o princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo 32º, nº 2, da Constituição), vale só, evidentemente, em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto.
Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores, e agravantes, da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa, às condições objectivas de punibilidade, bem como às circunstâncias modificativas atenuantes e, em geral, a todas as circunstâncias relevantes em matéria de determinação da medida da pena que tenham por efeito a não aplicação da pena ao arguido, ou a diminuição da pena concreta. Em todos estes casos, a prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido
Conforme refere Figueiredo Dias a sindicância do respeito pelo principio em causa configura uma questão de direito pois que se trata de um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão de direito que cabe, como tal, na cognição do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações ainda que estas conheçam apenas de direito. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova:- mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma "questão de direito" para efeito do recurso de revista.
Pronunciando-se sobre questão em apreço refere o este Supremo Tribunal tem assumido, genericamente, o entendimento de que tal principio se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (artº 127º, do C.P.Penal) do qual constitui faceta e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal ou tarifada ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.
De tal pressuposto emerge a conclusão de que o aludido princípio "in dubio pro reo” se situa em sede estranha ao domínio cognitivo do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista (ainda que alargada) por a sua eventual violação não envolver questão de direito (antes sendo um princípio de prova que rege em geral ou seja quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário), o que conduz a esta outra asserção de que o Supremo Tribunal de Justiça tão só está dotado do poder de censurar o não uso do falado princípio se, da decisão recorrida, resultar que o tribunal "a quo" chegou a um estado de dúvida patentemente insuperável e que perante ele, e mesmo assim, optou por entendimento decisório desfavorável ao arguido. Este Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.
Não se verificando a hipótese referida resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (Ac. de 23/01/2003, proc. n. 4627/02-5).
Como se viu, a primeira instância não ficou em estado de dúvida quanto à ocorrência de qualquer facto, afastando decididamente a invocação do arguido em relação a uma detenção para consumo pessoal. E não tendo ficado em estado de dúvida, não cabe a invocação do princípio in dubio pro reo.


II
A
a)
Importa agora analisar as incidências de três questões processuais suscitadas pelo recorrente:
-A primeira dessas questões prende-se com a leitura da agenda constante do telemóvel sua propriedade o que permitiu comprovar a sua pertença pelas conexões no mesmo existentes. Entende o recorrente que a intimidade da sua vida privada está afectada de forma grave pelo facto de se ter acedido aos números de telefone ali referenciados o que, na sua perspectiva, constitui uma afronta ao artigo 126 nº3 do Código de Processo Penal.
Importa esclarecer que, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, “A Constituição consagra, no seu artigo 32º, “os mais importantes princípios materiais do processo criminal – a constituição processual criminal” O seu seu n.º 8 proclama uma referência essencial aos limites da admissibilidade da prova em processo penal claramente elucidativa de que o nosso legislador constituinte ponderou e valorou os interesses subjacentes ao processo penal, impondo à sua consideração determinados limites, imediatamente decorrentes da tutela da dignidade humana. Um Estado de Direito democrático o interesse a eficiência do funcionamento da justiça criminal não pode ser obtido através da ofensa de direitos fundamentais básicos. Daí a nulidade das provas obtidas sob tortura ou coação obtidas com ofensa da integridade pessoal, da reserva , da intimidade da vida privada , da inviolabilidade de domicilio e da correspondência ou das telecomunicação não podendo tais elementos ser valorados no processo”(4)
Esta dialética existente entre de dois princípios ético-jurídicos fundamentais: o princípio da reafirmação, defesa e reintegração da comunidade ético-jurídica – ou seja, do sistema de valores ético-jurídicos que informam a ordem jurídica, e que encontra a sua tutela normativa no direito material criminal –, e o princípio do respeito e garantia da liberdade e dignidade dos cidadãos, ou seja, os direitos irredutíveis da pessoa humana” está presente, e atravessa o processo penal, criando uma tensão tanto mais evidente quanto as exigências impostas por novas formas de criminalidade acentuam a importância de novas formas de intervenção (5)
Como refere Figueiredo Dias “O processo penal constitui um dos lugares por excelência em que tem de encontrar-se a solução do conflito entre as exigências comunitárias e a liberdade de realização da personalidade individual. Aquelas podem postular, em verdade, uma «agressão» na esfera desta; agressão a que não falta a utilização de meios coercivos (prisão preventiva, exames, buscas, apreensões) e que mais difícil se torna de justificar e suportar por se dirigir a meros «suspeitos» – tantas vezes inocentes – ou mesmo a «terceiros» (...).
Daí que ao interesse comunitário na prevenção e repressão da criminalidade tenha de pôr-se limites – inultrapassáveis quando aquele interesse ponha em jogo a dignitas humana que pertence mesmo ao mais brutal delinquente; ultrapassáveis, mas só depois de cuidadosa ponderação da situação, quando conflitue com o legítimo interesse das pessoas em não serem afectadas na esfera das suas liberdades pessoais para além do que seja absolutamente indispensável à consecução do interesse comunitário. É através desta ponderação e justa decisão do conflito que se exclui a possibilidade de abuso do poder (...) e se põe a força da sociedade ao serviço e sob controlo do Direito; o que traduz só, afinal, aquela limitação do poder do Estado pela possibilidade de livre realização da personalidade ética do homem que constitui o mais autêntico critério de um verdadeiro Estado de direito(...).
Daqui resultam, entre outras, as exigências correntes: de uma estrita e minuciosa regulamentação legal de qualquer indispensável intromissão, no decurso do processo, na esfera dos direitos do cidadão constitucionalmente garantidos; de que a lei ordinária nunca elimine o núcleo essencial de tais direitos, mesmo quando a Constituição concede àquela liberdade para os regulamentar; de estrito controlo judicial da actividade de todos os órgãos do Estado (...); de proibição de provas obtidas com violação da autonomia ética da pessoa, mesmo quando esta consinta naquela (...)”.(6)
A ideia da dignidade da pessoa humana como limite inultrapassável por qualquer outra consideração, mesmo inscrita na prossecução de tarefas essenciais do Estado, como é o caso da administração da justiça, é um principio nuclear na afirmação da existência de valores absolutos insusceptíveis de qualquer compromisso e muito menos com a transigência perante uma determinação de relatividade. Como refere o Tribunal Constitucional no Acórdão 578/98 . “(...) no processo penal, vigora o princípio da liberdade de prova, no sentido de que, em regra, todos os meios de prova são igualmente aptos e admissíveis para o apuramento da verdade material, pois nenhum facto tem a sua prova ligada à utilização de um certo meio de prova pré-estabelecido pela lei. E recorda-se que também a busca da verdade material é, no processo penal, um dever ético e jurídico.
É que o Estado, como titular que é do ius puniendi, está interessado em que os culpados de actos criminosos sejam punidos; só tem, porém, interesse em punir os verdadeiros culpados: satius esse absolvi innocentem damnari – sentenciavam os latinos.
O Estado está, por isso, igualmente interessado em garantir aos indivíduos a sua liberdade contra o perigo de injustiças. Está interessado, desde logo, em defendê-los «contra agressões excessivas da actividade encarregada de realizar a justiça penal» (7)
Existe um dever ético, e jurídico, de procurar a verdade material. Mas também existe um outro dever ético, e jurídico, que leva a excluir a possibilidade de empregar certos meios na investigação criminal.
A verdade material não pode conseguir-se a qualquer preço. Existem limites decorrentes do respeito pela integridade moral e física das pessoas; há limites impostos pela inviolabilidade da vida privada, do domicílio, da correspondência e das telecomunicações, que só nas condições previstas na lei podem ser transpostos. E existem também regras de lealdade que têm de ser observadas.
Como afirmava Eduardo Correia determinada prova é inadmissível “quando a violação das formas da sua obtenção ou da sua produção entra em conflito com os princípios cuja importância ultrapassa o valor da prova livre” ou seja, quando aqueles valores e princípios são lesados “a um tal ponto que as razões éticas que impõem precisamente a verdade material não podem deixar de a proibir

b)
Prescreve o nº8 do referido artigo 32 da Constituição da República que são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações. Por tal forma se fulmina com a nulidade qualquer prova que tenha sido obtida em contravenção com aqueles direitos com assento constitucional e se comina a impossibilidade de tais elementos serem valorados no processo. Estamos, assim, perante o núcleo essencial das proibições de prova que veio a conformar e determinar o legislador ordinário ao consagrar no artigo 126 do Código de Processo Penal, os denominados métodos proibidos de prova.
Todavia, é nítido o diferente recorte que assumem, no preceito citado, e em termos de tonalidade ético normativa, a proibição de provas obtidas mediante tortura, coação ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas em relação àquelas que têm por fundamento a intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações. Se, na primeira hipótese, estamos perante uma proibição absoluta, insusceptível de qualquer concessão, pois que está em causa o próprio cerne dos direitos de personalidade, já no segundo caso é a própria norma -ao admitir os casos ressalvados na lei- que admite a compressão de direitos constitucionais, porquanto tal é razoável, e admissível, numa lógica de proporcionalidade e exigido pelo próprio interesse do Estado no funcionamento da justiça penal.
As proibições de prova dão lugar a provas nulas (artigo 32, nº 8, da Constituição da República). Porém, em nosso entender, a nulidade das provas proibidas obedece a um regime próprio, distinto da nulidade insanável e da nulidade sanável. Trata-se de um regime complexo, que distingue dois tipos de proibições de provas consoante atinjam a integridade física e moral da pessoa humana ou a sua privacidade. Como refere Paulo Pinto Albuquerque a nulidade da prova proibida que atinge o direito à integridade física e moral, previsto no artigo 126, nº 1 e 2 do CPP, é insanável; a nulidade da prova proibida que atinge os direitos à privacidade previstos no artigo 126, nº 3 é sanável pelo consentimento do titular do direito. A legitimidade para o consentimento depende da titularidade do direito em relação ao qual se verificou a intromissão ilegal. O consentimento pode ser dado ex ante ou ex post facto. Se o titular do direito pode consentir na intromissão na esfera jurídica do seu direito, ele também pode renunciar expressamente à arguição da nulidade, ou aceitar expressamente os efeitos do acto, tudo com a consequência da sanação da nulidade da prova proibida. Em síntese, o artigo 126, nº 1 e 2, prevê nulidades absolutas de prova e o nº 3 prevê nulidades relativas de prova.(8)
Poderíamos, assim, sintetizar, dizendo que a interdição de prova é absoluta no caso do direito à integridade da pessoa e relativa nos restantes casos, devendo ter-se por abusiva a intromissão quando efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34°-2 e 4); quando desnecessária, ou desproporcionada, ou quando aniquiladora dos próprios direitos ( art. 18°-2 e 3).

c)
Circunscrita a decisão sobre a questão suscitada á violação do normativo do número 3 do artigo 126 confrontamo-nos com uma questão prévia de definição de caracterização do meio de prova cuja legalidade importa discutir, ou seja, a abertura e visualização da agenda de um telemóvel constitui uma questão de violação da intimidade da vida privada “tout court” ou é, para além disso, uma violação das regras inerentes ás comunicações.
Naturalmente, atenta a especialidade da matéria em causa, o parâmetro constitucional à luz do qual há-de avaliar-se a constitucionalidade da interpretação normativa questionada é o artigo 34.º, n.º 4, da C.R.P., com a redacção vigente desde a Revisão Constitucional de 1997, cujo teor é o seguinte na parte que ora releva:
É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência e nas telecomunicações, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.”
Para prevenir a violação deste preceito constitucional no âmbito do pro­cesso criminal, o artigo 32.º, n.º 8, da C.R.P., dispõe ainda que:
“São nulas todas as provas obtidas mediante (...) abusiva intromissão (...) nas telecomunicações”.
Como se referiu, os princípios constitucionais da busca da verdade material e da realização da justiça, mesmo em matéria de funcionalidade da justiça penas e da tutela de valores, têm limites, impostos pela dignidade e pelos direitos fundamentais das pessoas, que se traduzem processual­mente nas proibições de prova, das quais beneficiam todos os cidadãos, nomeadamente o arguido. Porém, nem todas as proibições de obtenção de meios de prova são abso­lutas, como sucede no caso das provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa.
A proibição de obtenção de meios de prova mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações pode ser afastada, quer pelo acordo do titular dos direitos em causa, quer pelas restrições à inviolabili­dade desses direitos expressamente autorizadas pela Constituição.
O legislador constitucional, atento á necessidade compaginar interesses e valores igualmente merecedores de tutela e, ainda, da circunstância de uma leitura fundamentalista do catálogo dos direitos da personalidade deixar desarmada a comunidade perante as exigências de perseguição de uma criminalidade cada vez mais organizada e eficiente na prossecução dos seus propósitos, veio admitir, na área menos densa dos mesmos direitos, restrições á intangibilidade da vida privada, domicilio, correspondência ou nas telecomunicações domínio da lei processual penal.
Na verdade, se a regra neste domínio é a da proibição de produção e de valoração das gravações, a excepção será a da existência de uma lei ordinária relativa ao processo cri­minal que estabeleça uma autorização de produção e consequente valoração proba­tória.
Para que tenham existência legal e raiz constitucional e, para além da referida previsão legal expressa, as restrições em causa devem observar os demais requisitos proclamados no artigo 18.º, n.º 2 e 3 da C.R.P., em sede de princípio da proporcionalidade, nomeadamente: a) que a restrição vise salvaguardar outro direito ou interesse constitucionalmente protegido (n.º 2, 1.ª parte); b) que a restrição seja exigida por essa salvaguarda, seja apta para o efeito e se limite à medida necessária para alcançar esse objectivo (n.º 2, in fine); c) que a restrição não aniquile o direito em causa atin­gindo o conteúdo essencial do respectivo preceito (n.º 3, in fine).
A validade das leis restritivas de direitos, liberdades e garantias depende ainda de três requisitos quanto ao carácter da própria lei: a) a lei deve revestir carác­ter geral e abstracto (n.º 3, 1.ª parte), b) a lei não pode ter efeito retroactivo (n.º 3, 2.ª parte); c) a lei deve ser uma lei da Assembleia da República ou um decreto-lei autori­zado (artigo 165.º, n.º 1, al. b)).(9)
Sobre o significado da reserva da lei restritiva de direitos fundamentais, refere Jorge Novais que “Sendo a determinabilidade normativa um elemento essencial das garantias de Estado de Direito proporcionadas pela reserva de lei, nela há uma clara dimensão compe­tencial que se traduz, no fundo, por saber, em função da densidade da regulação a quem é atribuída a última decisão sobre a afectação do direito fundamental: ou ao legislador, quando a lei restritiva está suficientemente determinada – o que, no caso, equivale grosso modo a dizer que ela cabe aos órgãos nacionais democraticamente legitimados ou se ela cabe à Administração ou ao poder judicial, quando a densidade exigível escasseia.
Mas é sobretudo nos argumentos democráticos que a dimensão competencial cobra pleno desenvolvimento, assumindo, aí, a reserva de lei parlamentar o papel de prota­gonista. Basicamente, a ideia é que há decisões tão essenciais para a vida da comunidade que devem ser tomadas pela instituição representativa de todos os cidadãos. Entre essas decisões contam-se imediatamente, qualquer que seja a fundamentação apresentada, as decisões que afectam os direitos fundamentais, mormente as suas restrições, entendendo-se que a excepcionalidade da sua ocorrência e a gravidade dos seus efeitos exige a participação decisiva dos representantes dos próprios interessados (10)

Então, e reconduzindo-nos ao caso concreto, a questão é, numa primeira linha, a de saber se a intromissão no elenco da agenda de um telemóvel de um arguido pelas entidades judiciais, e no âmbito do inquérito, constitui, também, uma interferência na transmissão de dados por via telemática e, como tal, reconduzível, ás exigências do artigo 187 e seguintes do Código de Processo Penal por força do artigo 189 do mesmo diploma. Colocada, assim, a questão, e respondida de forma afirmativa, estaríamos a criar uma paridade da situação concreta com as exigências de intercepção de comunicação telefónica, a começar com a prévia autorização judicial.
Estamos em crer que essa linha argumentativa, seguida pelo recorrente, não tem fundamento legal. Na verdade, transcrevendo o itinerário seguido no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 468/09, na análise da eventual violação da reserva de lei restritiva da garantia constitucional do sigilo das telecomunicações, importa delimitar o âmbito constitucionalmente protegido dessa garantia, para que se possa verificar em que medida a facturação detalhada e a localização celular podem conflituar com os direitos fundamentais protegidos com tal sigilo.
A Constituição de 1976, desde a sua redacção originária, proíbe qualquer ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal. No plano da lei ordinária, o revogado artigo 210.º, do Código de Processo Penal de 1929, na redacção do Decreto-lei n.º 377/77, de 6 de Setembro, já previa a intercepção e gravação de telecomunicações por ordem excepcional do juiz quando fosse indispensável à instrução da causa.
Porém, o texto constitucional não contém, compreensivelmente, por razões de ordem técnica, ligadas à permanente evolução tecnológica, nenhuma definição do âmbito das telecomunicações para aquele efeito, restando o recurso à legislação ordinária para integrar e actualizar esse conceito.
O Decreto-Lei n.º 188/81, de 2 de Julho – diploma que veio estabelecer os princípios gerais das comunicações –, entendia por comunicações o serviço por meio do qual se efectua o transporte ou a transmissão de mensagens ou informações através dos meios técnicos adequados (artigo 1.º, n.º 1), e dentro das modalidades de comunicações distinguia as telecomunicações como aquelas que consistem na trans­missão, emissão ou recepção de símbolos, sinais, escrita, imagens, sons ou informa­ções de qualquer outra natureza por fios, meios radioeléctricos, ópticos ou outros sistemas electromagnéticos (artigo 2.º, n.º 1, al. b).
Assim, para o referido efeito, as telecomunicações abrangiam várias modalidades, nomeadamente o serviço telegráfico, o serviço telefónico, o serviço de telex, o serviço de comunicação de dados, a videofonia, a telecópia, o teletexto e o videotexto (artigo 2.º, n.º 2).
O Código de Processo Penal de 1987, na sua redacção originária, veio permitir a intercepção e a gravação de conversações ou comunicações telefóni­cas mediante prévia autorização judicial e estendeu essa permissão às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone (artigos 187.º, n.º 1, e 190.º).
O conceito legal de telecomunicações adoptado pelo aludido Decreto-Lei n.º 188/81 não sofreu alterações com a entrada em vigor das ulteriores Leis de Bases das Redes e Prestação de Serviços de Telecomunicações (Vide artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 88/89, de 11 de Setembro, e artigo 2.º, n.º 1, da Lei n.º 91/97, de 1 de Agosto).
A Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto alterou a redacção do artigo 190.º do C.P.P./87, o qual passou a dispor que “o disposto nos artigos 187.º, 188.º e 189.º é corres­pondentemente aplicável às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de trans­missão de dados por via telemática, bem como à intercepção das comunicações entre pre­sentes”.
Paralelamente, aumentaram as preocupações com o tratamento dos dados pessoais gerados pelas telecomunicações.
Assim, pouco tempo depois da entrada em vigor desta alteração legisla­tiva, a Lei n.º 69/98, de 28 de Outubro – que transpôs a Directiva n.º 97/66/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho –, veio regular o tratamento de dados pessoais e a protecção da privacidade no sector das telecomunicações, especificando e comple­mentando as disposições da Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro (Lei da Protecção de Dados Pessoais).
Todavia, a introdução de novas tecnologias digitais nas redes de comuni­cações públicas da Comunidade trouxe consigo uma grande capacidade e possibili­dade de tratamentos de dados pessoais e determinou a necessidade de acautelar novos requisitos específicos de protecção de dados pessoais e da privacidade dos utilizadores, o que se traduziu na adaptação e revogação da Directiva n.º 97/66/CE pela Directiva n.º 2002/58/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho.
E, assim, mercê do dever de transposição desta nova directiva europeia, a referida Lei n.º 69/98 foi revogada pela Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, a qual veio aprovar o regime jurídico do tratamento de dados pessoais e da protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas.
Em conformidade com a directiva europeia transposta, a Lei n.º 41/2004 não prejudica a possibilidade de existência de legislação especial que restrinja a sua aplicação no que respeita à inviolabilidade das comunicações, nomeadamente para efeito de investigação e repressão de infracções penais (artigo 1.º, n.º 4).

Sendo certo que evolução tecnológica e as situações inerentes criaram uma intensa necessidade de adequação do tecido legal a tal desenvolvimento igualmente é exacto que permanece válido o entendimento sufragado pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República, que distin­gue entre dados de base, dados de tráfego e dados de conteúdo relativamente ao tipo de dados envolvidos no serviço de telecomunicações (11). Assim, de harmonia com esses pareceres, no serviço de telecomunicações podem distinguir-se as seguintes espécies de dados:
“Nos serviços de telecomunicações podem distinguir-se, fundamentalmente, três espécies ou tipologias de dados ou elementos: os dados relativos à conexão à rede, ditos dados de base; os dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação ou comunicação e os dados gerados pela utilização da rede (por exemplo, localização do utilizador, localização do destinatário, duração da utilização, data e hora, frequência), dados de tráfego; e os dados relativos ao conteúdo da comunicação ou da mensagem, dados de conteúdo.
Sendo os vários serviços de telecomunicações utilizados para a transmissão de comunicações verbais ou de outro tipo (mensagens escritas, dados por pacotes), os elementos inerentes à comunicação podem, por outro lado, estruturar-se numa composição sequencial em quatro tempos: a fase prévia à comunicação, o estabelecimento da comunicação, a fase da comunicação propriamente dita e a fase posterior à comunicação.
No primeiro tempo relevam essencialmente os dados de base, enquanto que nos restantes importa essencialmente a consideração dos dados de tráfego e de conteúdo.
Os dados de base constituem, na perspectiva dos utilizadores, os elementos necessários ao acesso à rede, designadamente através da ligação individual e para utilização própria do respectivo serviço: interessa aqui essencialmente o número e os dados através dos quais o utilizador tem acesso ao serviço.

Diversamente dos elementos de base (elementos necessários ao estabelecimento de uma base para comunicação), que estão aquém, antes, são prévios e instrumentos de qualquer comunicação, os chamados elementos de tráfego (elementos funcionais da comuni­cação), como os elementos ditos de conteúdo, têm já a ver directamente com a comunicação, quer sobre a respectiva identificabilidade, quer relativamente ao conteúdo propriamente dito da mensagem ou da comunicação.
Os elementos ou dados funcionais (de tráfego), necessários ou produzidos pelo estabelecimento da ligação da qual uma comunicação concreta, com determinado conteúdo, é operada ou transmitida, são a direcção, o destino (adressage) e a via, o trajecto (routage).

Estes elementos funcionalmente necessários ao estabelecimento e à direcção da comunicação identificam, ou permitem identificar a comunicação: quando conservados, possibilitam a identificação das comunicações entre o eminente e o destinatário, a data, o tempo, e a frequência das ligações efectuadas.
Constituem, pois, elementos já inerentes à própria comunicação, na medida em que permitem identificar, em tempo real ou a posteriori, os utilizadores, o relacionamento directo entre uns e outros através da rede, a localização, a frequência, a data, hora e a duração da comunicação, devem participar das garantias a que está submetida a utilização do serviço, especialmente tudo quanto respeite ao sigilo das comunicações.
Finalmente, os elementos de conteúdo — dados relativos ao próprio conteúdo da mensagem, da correspondência enviada através da utilização da rede.”

Pode-se concluir que o sigilo das telecomunicações, protegido legalmente e com inscrição no texto constitucional- 34.º, n.º 1- tem uma perspectiva dual em que está subjacente a possibilidade de cada cidadão poder emitir, ou receber informação produzida para ou por terceiro, desenvolvendo ideias e valorações que não são mais do que emanações da sua personalidade. Relativamente ás mesmas assiste-lhe o direito de preservar tal informação, impedindo o seu acesso por outrem, o que implica ideia de que está em causa é a transmissão á distância e tal informação e todo o conteúdo que esta comporte ou seja o conteúdo das comunicações e, também, os dados de tráfego
Como refere Nicolas Serrano, citado no referido Acórdão, o carácter formal do direito ao sigilo das comunicações converte a integridade do procedimento de comunicação no núcleo da questão. A privacidade da comunicação, como corolário da reserva da intimidade da vida privada, abrange não apenas a proibição de interferência, em tempo real, de uma chamada telefónica, como também a impossibilidade do ulterior acesso de terceiros a elementos que revelem as condições factuais em que decorreu uma comu­nicação. Porém, adianta o mesmo autor, que o que está em causa é o conhecimento por pessoa distinta do seu destinatário de qualquer mensagem, independentemente do seu conteúdo, que um emissor envie a um receptor através de um canal fechado o que exclui a informação que se encontra armazenada e que não conforme uma mensagem de comunicação
Perfilha-se assim a conclusão de que num Estado de Direito democrático, assiste a qualquer cidadão o direito de telefonar quando, e para quem quiser, com a mesma privacidade que se confere ao conteúdo da sua conversa. Porém, diferentemente se alinham os elementos, ou dados de base, pois que aqui, e nomeadamente no que toca ao catálogo de número de telemóveis, estamos perante algo exógeno a qualquer comunicação, ou ao conjunto das comunicações, e antes se perfila uma situação em tudo semelhante á informação constante de um documento, de uma agenda ou eventualmente de uma base de dados.
São ajustadas ao caso vertente as palavras de Costa Andrade “a pertinência dos dados à categoria e ao regime das telecomunicações pressupõe, em qualquer caso, a sua vinculação a uma concreta e efectiva comunicação – ao menos tentada/falhada – entre pessoas” (12). Na verdade, por exemplo, a mera identificação do titular de um número de telefone fixo ou móvel, mesmo quando confidencial, surge com uma autonomia e uma instrumentalidade relativamente às eventuais comunicações e, por isso mesmo, não pertence ao sigilo das telecomunicações, nem beneficia das garantias concedidas ao conteúdo das comunicações e aos elementos de tráfego gerados pelas comunicações propriamente ditas (13)
Decorre do exposto que se tomam como inadequadas quaisquer derivas argumentativas que visem colocar a consulta da agenda contida num telemóvel no plano das exigências contidas na reserva de acesso a informação protegida pelo segredo das comunicações


d)
Ultrapassado este primeiro ponto, e assumido que não estamos perante uma intromissão nas telecomunicações, importa agora equacionar uma segunda ordem de ideias que se estrutura sobre o significado da denominada intromissão na vida privada concretizada na referida visualização da agenda do telemóvel.
A concretização do conceito em causa como direito fundamental surge a partir da publicação em1890 de um artigo na Harvard Law review, intitulado Right of privacy, afirmando o direito à intimidade e à vida privada. Os autores do artigo Samuel Dennis Warren e Louis Dembitz Brandeis apresentaram o novo direito através da evolução do Common Law resultante da evolução dos tempos e da necessidade de protecção dos cidadãos.
Trata-se de um direito que, desde o seu nascimento, se encontra vinculado ao fluxo de tecnologia e ás mudanças dos usos sociais por forma a que a sua enunciação experimentou diversas transformações como consequência dos avanços tecnológicos e das mudanças sociais.
O conceito de intimidade assume diferentes perfis que traduzem a sua dependência em relação ao meio social por tal forma complexo que se torna impossível afirmar um conceito definitivo imutável e universalmente aceite. A sua aparição coincide com a desagregação da sociedade feudal, e o nascimento de uma sociedade urbana, com um complexo de elações sociais e uma transformação nas relações de produção. Por um lado desaparece a confusão entre o local de trabalho e a residência –os operários já não residem na fábrica- e por outro lado o acesso á propriedade de uma morada deixa de ser um privilégio da nobreza. A burguesia proprietária pode agora desfrutar de um ambiente próprio, reservado, ou seja, livre dos olhares alheios. Em síntese o seu lar.
É neste âmbito que uma classe social emergente vem reivindicar o seu direito a ser deixada em paz; a não ser incomodada; o seu “right to be alone” conforme a denominação do juiz Cooley ou o paradigma anglo saxão “my home is my castle

Neste sentido, surgem os problemas das definições, em que as dificuldades se concentram na definição do direito da intimidade e o seu conteúdo. Inicialmente, várias expressões são utilizadas para identificar este direito, onde nos Estados Unidos é conhecido pelo nome right of privacy ou right to be alone ; na França é conhecido como droit a la vie privée ou droit a l’intimité ; por sua vez na Itália este direito se distingue em três categorias: diritto alla riservatezza e diritto alla segretezza ou al rispetto della vita privata. Na Espanha, fala-se em derecho a la intimidad e derecho a la vida privada, enquanto que em Portugal denomina-se “direito à proteção da intimidade da vida privada”.

Na Alemanha, sobre a tutela da intimidade, foi concebida a doutrina das esferas onde são utilizadas as expressões privatsphäre, intimsphäre gehermsphäre, ou seja, no âmbito da esfera de privacidade, haveria que considerar a esfera privada; a esfera da intimidade e a esfera do segredo. Em tal distinção ecoa a doutrina de Hubmann que utiliza um esquema de esferas concêntricas para representar os diferentes graus de manifestação do sentimento de privacidade: a esfera da intimidade ou do segredo (Intimsphäre); a esfera privada (Privatsphäre) e, em torno delas, a esfera pessoal, que abrangeria a vida pública (Öffentlichkeit).
A mesma teoria, que hoje chega a ser referida pela própria doutrina alemã como a teoria da "pessoa como uma cebola passiva” foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional Alemão
Sintetizando a evolução produzida refere Costa Andrade que (14) :
- É conhecido o entendimento professado pelo Tribunal Constitucional Federal relativo ás esferas da vida privada devem distinguir-se três áreas ou esferas na vida privada, segundo a proximidade em relação ao círculo extremado da intimidade e, por isso, ao carácter mais ou menos contínuo e absoluto da respectiva tutela jurídica.
a) Em primeiro lugar, está a esfera da intimidade, área nuclear, inviolável e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares e, por isso, subtraída a todo o juízo de ponderação de bens ou interesses. O que significa a proibição radical e sem excepções de todas as provas que contendam com este círculo: «O imperativo constitucional de respeitar esta área, a esfera íntima do indivíduo, tem o seu fundamento no direito ao livre desenvolvimento da personalidade, garantido pelo artigo 2.°, n.o 1, da Lei Fundamental. Na determinação do conteúdo e extensão do direito fundamental previsto no artigo 2.°, nº 1, da Lei Fundamental há-de ter-se presente que, de acordo com a norma fundamental do artigo 1.°, nº 1, da Lei Fundamental, a dignidade do homem é inviolável e reclama respeito por parte de todo o poder estadual. Acresce que, de acordo com o artigo 19.°, nº 2, da Lei Fundamental, também o direito fundamental do artigo 2.°, nº 1, não pode ser atingido no seu conteúdo essencial. Nem sequer os interesses superiores da comunidade podem justificar uma agressão à área nuclear da conformação privada da vida, que goza duma protecção absoluta. Uma ponderação segundo o critério do princípio de proporcionalidade está aqui fora de causa».
Para além deste núcleo central da intimidade, estende-se a área normal da vida privada, também ela projecção, expressão e condição do livre desenvolvimento da personalidade ética da pessoa. E, nessa medida, erigida em autónomo bem jurídico pessoal e como tal protegido tanto pela Constituição como pelo direito ordinário. Trata-se, porém - e aqui reside a sua diferença - de um bem jurídico que não pode perspectivar-se absolutamente isolado dos compromissos e vinculações comunitárias e, nessa medida, inteiramente a coberto da colisão e ponderação de interesses. O seu sacrifício em sede de prova em processo penal estará, por isso, legitimado sempre que necessário e adequado à salvaguarda de valores ou interesses superiores, respeitadas as exigências do princípio de proporcionalidade.
Foi esta perspectiva das coisas que ofereceu ao Tribunal Constitucional Federal o fundamento material e normativo da sua interpretação extensiva e generalizadora do regime específico e expressamente consagrado para as escutas telefónicas. E lhe permitiu concretamente sustentar a tese da admissibilidade da utilização e valoração como meio de prova das gravações obtidas sem consentimento sempre que, não contendendo directamente com o núcleo da intimidade, sejam necessárias à perseguição e repressão da criminalidade mais grave.

Todavia, importa acentuar que na jurisprudência alemã acaba por prevalecer o entendimento assente na ponderação entre os bens jurídicos tutelados pelas proibições de prova e os valores encabeçados na perseguição penal. Ainda no escrito de Costa Andrade tal sucede numa recondução à ideia de Funktionstüchtigkeit der Strafrechtspflege para que vem apelando o Tribunal Constitucional Federal e a que o BGH se vem sistematicamente acolhendo, sobretudo no tratamento da criminalidade grave. A perseguição destes crimes legitimirá, segundo o Tribunal Federal, a valoração de gravações ilícitas (feitas sem consentimento e às ocultas) ou dos diários pessoais, mesmo atinentes à esfera mais inequívoca da intimidade. Um entendimento que, se não tem permitido ultrapassar todos os obstáculos representados pelas proibições de prova à perseguição da criminalidade grave, tem seguramente posto em causa aquele núcleo de «indisponibilidade» (Hassemer) essencial à doutrinadas proibições de prova, aumentando os coeficientes de contingência e insegurança e reduzindo o respectivo potencial de tutela. Como tem contrariado as tentativas de enunciado de princípios gerais e universalmente válidos, encaminhando a resposta para a ponderação casuística das singularidades dos interesses em concreto pertinentes.
Em recente e já recenseada proclamação, recorda o Tribunal Constitucional Alemão tem repetidamente assinalado as exigências inarredáveis de uma eficaz perseguição penal e luta contra a criminalidade, enfatizado o interesse público pela investigação da verdade e apontado o esclarecimento efectivo dos crimes mais graves como tarefa essencial de uma comunidade organizada em Estado de Direito. «Não é, por seu turno, - prossegue o aresto em referência - menor o significado do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade. Só é possível alcançar a superação acertada destas tensões erigindo o imperativo de tutela do artigo 2.°, n.o I, em conexão com o artigo 1.°, n. ° I, da Lei Fundamental, em correctivo permanente a contrapor às agressões consideradas necessárias do ponto de vista de uma eficaz realização da justiça. Isto significa que haverá sempre que determinar a qual destes dois princípios constitucionalmente relevantes há-de reconhecer-se maior peso. Não estando em geral excluída a valoração dos registos, terá, assim, de indagar-se, face ao caso concreto, se a valoração em processo penal é id6nea e necessária para a descoberta do crime e se a correspondente agressão à esfera da privacidade para efeitos de esclarecimento do crime é ou não desproporcionada»

Na verdade, o interprete do direito alemão, bem como do direito português, é colocado perante as perplexidade a que conduzem, por um lado, considerações formais e redundantes de afirmação de uma espaço inviolável de intimidade mas, simultaneamente, com as exigências práticas inerente a uma funcionalidade da justiça criminal no combate á criminalidade mais grave.
A leitura garantistica não pode fazer esquecer a protecção do Estado, e dos cidadãos, e a sua exigência de um processo penal eficiente, o que nos leva á antinomia de uma afirmação de conformidade com a teoria dos três graus aceitando a sua sedução teórica, mas, na prática, assumindo a tendência para dissolver a respectiva área de protecção. Na verdade, ainda repescando Costa Andrade, trata-se de Uma invocação formal que não chega para disfarçar o comprometimento efectivo - se não mesmo o abandono - do programa de tutela que dava sentido à teoria. Não é outro o alcance da posição aqui assumida pelo Tribunal Constitucional Federal a propósito da compreensão e extensão do conteúdo material da área nuclear inviolável e que resulta no inescapável esbatimento das suas fronteiras. Segundo o Tribunal Constitucional Federal cairão fora deste conceito, ficando expostos à devassa processual, os factos, registos ou provas que mantenham uma qualquer conexão com o crime em questão, por mais unívoca que se afigure a sua pertinência ao círculo mais estreito da privacidade. Para além disso, a devassa será mesmo legítima em nome da necessidade de acesso à conduta anterior e à personalidade do arguido, para efeito de juízo de culpa. O que deixa como desafio ao engenho mais especulativo a identificação dos dados ou factos susceptíveis de serem cobertos pelo manto da tutela inviolável da personalidade.


Face á realidade normativa do direito português, e como refere o mesmo Mestre, é outra e divergente a impostação de fundo a que, nesta matéria, sacrifica a lei portuguesa. Que dita as proibições de prova e determina as suas consequências em termos que não apelam para uma ponderação com os valores subjectivados sub nomine e no interesse da realização da justiça penal. A ordem jurídica portuguesa parece assentar, assim, no desfasamento e distanciação qualitativa entre duas ordens de valores: os valores material-substantivos tutelados pelo direito penal substantivo e, também e em primeira linha, pelas proibições de prova; e os valores adjectivos de relevo endoprocessual e recondutíveis à ideia da eficácia funcional (Funktionstüchtigkeit) da justiça penal. E sem deixar subsistir entre as duas ordens de valores os momentos de comunicabilidade indispensáveis à plena operatividade do princípio de ponderação. Brevitatis causa, a gravidade do crime a perseguir não será, só por si e enquanto tal, razão bastante para legitimar a danosidade social da violação das proibições de prova. Menos o será ainda nos casos em que a violação da proibição de prova releva também do ilícito jurídico-penal.
Não parece ser outro, recorda-se mais uma vez, o significado do disposto no artigo 167.° do CPP. Por opção do legislador, a perseguição do criminoso e a descoberta do crime - por mais grave que ele seja - não bastam para abrir as portas do processo às gravações feitas ou utilizadas à custa de atentado ao direito à palavra ou à imagem. Considerações idênticas valerão, com as devidas adaptações, para a violação do segredo profissional. Como valerão outrossim e a fortiori para as proibições de prova enunciadas sob a rubrica dos métodos proibidos de prova.
O que fica dito não deve ser levado à conta de proposta duma leitura do direito português das proibições de prova como um ordenamento asséptico de conflitualidade. Isto dada, de resto, a estrutura intrinsecamente antinómica deste específico espaço da ordem jurídica, em termos que já ensaiámos pôr em evidência. Só que não pode desatender-se a circunstância decisiva de o regime positivamente, plasmado ser, já ele próprio, a expressão codificada dos juízos de ponderação assumidos e sancionados pelo legislador. Um programa a ti que presta claramente homenagem o regime de «privilégio» reservado à perseguição da chamada criminalidade violenta ou altamente organizada (cfr., v. g., arts. 143.°, nº 4, 174.°, nº 4, al. c), 177.°, nº 2, e 187.°, n.°2; al. a). E que o intérprete e aplicador do direito não estão legitimados a comprometer ou ultrapassar, a coberto de programas próprios de ponderação de interesses.

Em última análise, sublinhando o exposto, o artigo 26 da Constituição consagra um conjunto de direitos fundamentais que, como refere Paulo Mota Pinto, protegem “um círculo nuclear da pessoa, correspondendo, genericamente, a direitos de personalidade”. Entre esses, encontra-se o direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada – direito este que tem de ser equacionado em directa conexão com a garantia de inviolabilidade do domicílio e da correspondência constante do artigo 34º da Constituição, cuja tutela não deixa de projectar-se em sede processual penal, impondo limites à valoração de provas que representem uma abusiva intromissão em tal esfera – designadamente quando seja “efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34º - 2 e 4), quando desnecessária ou desproporcionada, ou quando aniquiladora dos próprios direitos ou quando o titular do direito não consinta na intromissão.(15)
Como se acentua no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 278/95 (publicado no Diário da República II Série, de 28 de Julho de 1995), o texto constitucional “não estabelece o conteúdo e alcance do direito à reserva da intimidade, nem define o que deva entender-se por intimidade como bem jurídico constitucionalmente protegido”, importa concretizar o que se tem entendido por intimidade da vida privada, sendo forçoso reconhecer, nesse âmbito, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição..., op. cit., p. 181), que “não é fácil demarcar a linha divisória entre o campo da vida privada e familiar que goza de reserva de intimidade e o domínio mais ou menos aberto à publicidade”.
Perante essa necessidade de uma clarificação da abrangência conceptual da intimidade como direito fundamental, ligado directamente com a dignidade, os Autores supra citados (Joaquim Canotilho e Vital Moreira) enunciam o entendimento de que o direito à intimidade da vida privada e familiar “analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (cfr. Cód. Civil, art. 80º)”.
Trata-se, também, do interesse na autodeterminação informativa, entendida como controlo sobre informação relativa à pessoa. Paralelamente a este interesse, podemos também sublinhar a subtracção à atenção dos outros (anonimato lato sensu) ou interesse na “solidão” (“solitude”), isto é, na exclusão do acesso físico dos outros à pessoa do titular. (...) A protecção da reserva sobre a vida privada origina, assim, um núcleo de intimidade, de solidão ou anonimato que desempenha importantes funções, sociais, psicológicas, etc., para a pessoa” (16).
Nesse mesmo sentido afirma Capelo de Sousa que o direito à reserva “abrange não só o respeito da intimidade da vida privada, em particular a intimidade da vida pessoal, familiar, doméstica, sentimental e sexual e inclusivamente os respectivos acontecimentos e trajectórias, mas ainda o respeito de outras camadas intermédias e periféricas da vida privada (...) bem como também, last but not the least, a própria reserva sobre a individualidade do homem no seu ser para si mesmo, v.g., sobre o seu direito a estar só e sobre os caracteres de acesso privado do seu corpo, da sua saúde, da sua sensibilidade e da sua estrutura intelectiva e volitiva”.(17)

Igualmente a jurisprudência do Tribunal Constitucional teve ocasião de enunciar o seu entendimento sobre a noção de reserva sobre a intimidade da vida privada, nomeadamente no Acórdão n.º 128/92 (18) onde se afirma estar em causa “o direito de cada um ver protegido o espaço interior ou familiar da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias. É a privacy do direito anglo-saxónico. (...) Neste âmbito privado ou de intimidade está englobada a vida pessoal, a vida familiar, a relação com outras esferas de privacidade (v.g. a amizade), o lugar próprio da vida pessoal e familiar (o lar ou o domicílio), e bem assim os meios de expressão e comunicação privados (a correspondência, o telefone, as conversas orais, etc.). Este direito à intimidade ou à vida privada – este direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular – compreende: a) a autonomia, ou seja, o direito a ser o próprio a regular, livre de ingerências estatais e sociais, essa esfera de intimidade; b) o direito a não ver difundido o que é próprio dessa esfera de intimidade, a não ser mediante autorização do interessado [...]”. E no Acórdão n.º 319/95 (19) afirmou-se que “o direito à reserva da intimidade da vida privada (...) é o direito de cada um a ver protegido o espaço interior da pessoa ou do seu lar contra intromissões alheias; o direito a uma esfera própria inviolável, onde ninguém deve poder penetrar sem autorização do respectivo titular
Assim, na proficiente síntese elaborada pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 594/03, pode afirmar-se que tanto a doutrina como a jurisprudência têm entendido que o direito à reserva da intimidade da vida privada não deixa de redundar na tutela jusfundamental de uma “esfera pessoal íntima” (cf. os Acórdãos n.os 456/93 e 355/97, publicados, respectivamente, no Diário da República I-A Série, de 9 de Setembro de 1993 e de 7 de Maio de 1997) e “inviolável” (cf. o Acórdão n.º 319/95, publicado no Diário da República II Série, de 2 de Novembro de 1995), de “um núcleo mínimo onde ninguém penetre salvo autorização do próprio titular” (cf. Acórdão n.º 264/97), que abrange, “no âmbito desse espaço próprio inviolável” (cf. Acórdão n.º 355/97), inter alia, os aspectos relativos à vida pessoal e familiar da pessoa, designadamente, “os elementos respeitantes à vida (...) conjugal, amorosa e afectiva da pessoa (tais como, por exemplo, os projectos de casamento e separação, as aventuras amorosas, as amizades, afeições e ódios)” (20)
Apela-se, assim, a um conceito de convivialidade consigo próprio de que cada cidadão é portador pelo simples facto de o ser.

e)
Assumida a relevância do direito á intimidade como fronteira de campo onde se polarizam interesses distintos e conflituantes, mas que devem sempre ser condicionados pelo étimo da relevância constitucional é agora importante reavivar mais uma vez que aquele direito pode, e deve ceder, quando estejam em causa outros bens, ou valores, de igual, ou superior densidade, o que permitirá desde logo afirmar-se que tal ultrapassagem não peca por desproporcionada.
Como refere Vieira de Andrade a autonomia dos direitos fundamentais como instituto jurídico-constitucional é, afinal, o reflexo da autonomia ética da pessoa, enquanto ser simultaneamente livre e responsável. E, como esta, é ao mesmo tempo irrecusável e limitada. Irrecusável, porque a liberdade dos homens não pode confundir-se com a justiça social ou com a democracia política, nem ser-lhes sacrificada (...). Limitada, porque o homem individual, destinado ou condenado a viver em comunidade, tem também deveres fundamentais de solidariedade para com os outros e para com a sociedade, obrigando-se a respeitar as restrições e as compressões indispensáveis à acomodação dos direitos dos outros e à realização dos valores comunitários, ordenados à felicidade de todos (...).(21)
Na verdade, assumido que a tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada tem uma intensa compreensão em sede processual penal, impondo limites à valoração de provas que representem uma abusiva intromissão em tal esfera – designadamente quando seja “efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34º - 2 e 4), quando desnecessária ou desproporcionada, ou quando aniquiladora dos próprios direitos (cfr. art. 18º - 2 e 3)-também deve considerar-se que o problema da (i)licitude de uma ingerência pública no âmbito da intimidade pessoal ou familiar não pode, sem mais, subtrair-se a uma ponderação que atenda às especificidades do caso concreto, relevando os direitos e interesses aí nuclearmente envolvidos (sobre a necessidade de realizar um juízo de ponderação relativo ao direito à reserva da intimidade da vida privada, cfr. Acórdão n.º 263/97, publicado no Diário da República II Série, de 19 de Março de 1997). (22)

Fundamentalmente o que está em causa é saber até que ponto a protecção da intimidade da vida privada prevalece quando, em contraposição, estão interesses igualmente relevantes na prossecução dos valores do Estado os quais, eventualmente, podem incorporar a realização de objectivos e propósitos sem os quais se torna utópica a vida em sociedade. E nem sequer é necessário invocar exemplos extremos como a necessidade de combate á criminalidade mais grave ou organizada mas bastando-nos com a afirmação bem mais prosaica da necessidade de inocentar um eventual acusado.(23)
Tal antinomia está bem patente na contraposição que a doutrina e jurisprudência alemã consumam quando, ara além da reserva inviolável de intimidade como valor absoluto, admitem uma ponderação sequencial em que o único critério é o dos valores em jogo e que, por si, é susceptível de afirmar uma aplicação do principio da proporcionalidade.
Como nos noticia Costa Andrade esta impostação, e compreensão das coisas, são, no essencial, partilhadas pela doutrina dominante. Também entre os autores é desde logo, e em geral, consensual o postulado de um tratamento específico da criminalidade mais grave. Isto na base de uma representação que presta homenagem ao enunciado de Carpzov in delictis atrocissimis propter criminis enormitatem jura transgredi licet. Citando Schafer: «O primado da esfera íntima, face às necessidades da justiça penal na procura da verdade, recua quando, à luz do princípio de proporcionalidade, a ponderação com o significado do direito fundamental de respeito pela dignidade humana e o livre desenvolvimento da personalidade faz emergir prevalecentes necessidades da justiça criminal, que exigem a admissibilidade de produção e valoração do meio de prova. Quando, por exemplo, a valoração de gravações ou de dados constantes de um diário constituem o único meio processual de libertar outra pessoa de uma acusação particularmente séria ou sobre o arguido impende a suspeita fundada de um atentado grave à ordenação jurídica» . ….Isto, enquanto em sede de construção dogmática se procuram igualmente ancorar as soluções no princípio da ponderação de interesses com o sentido e a estrutura que deixámos referenciada. Isto é, uma ponderação que coloca num dos pratos da balança o valor inerente a uma justiça criminal eficaz. Na fórmula de KleinKnecht «Como bens jurídicos em confronto e interesses a ponderar entre si aparecem: de um lado, o interesse da perseguição criminal encabeçado pela comunidade jurídica ofendida e tendo na devida conta o significado da matéria criminal; e, do outro lado, a ideia de justiça e o imperativo de um processo conforme às exigências da justiça».
Ainda citando por Costa Andrade Na fundamentação e defesa deste paradigma vem-se destacando Rogall a quem se deve uma das suas mais acabadas e consequentes formulações. Isto no contexto duma construção, que se nos afigura exageradamente simplificadora e que reconduz as proibições de prova a uma conflitualidade unidimensional a partir da sua definição como «meros instrumentos da tutela de direitos individuais (lnstrumente des lndividualrechtsschutzes). Instrumentos cuja actualização, em nome e ao serviço de direitos individuais constitucionalmente sancionados, colide forçosa e abertamente com outro interesse de não menos ostensiva dignidade: «uma justiça criminal funktionstüchtige, sem a qual nunca poderia afirmar-se plenamente realizado o Estado de Direito». Na síntese do autor: «Para o cidadão as proibições de prova aparecem como instrumento de defesa dos direitos individuais contra a actividade estadual de perseguição criminal. As proibições de valoração emergem e relevam assim do conflito entre os interesses individuais e o interesse da perseguição penal. Só pode afirmar-se a sua existência quando a consideração da concreta situação de conflito faz aparecer a prevalência do interesse individual porque o princípio do Estado de Direito reclama a garantia e efectivação do bem jurídico individual face á actividade de perseguição do Estado. A ponderação, precisa Rogall terá de orientar-se para as singularidades da situação, fazendo nomeadamente relevar o significado do interesse punitivo, a gravidade da violação legal, a dignidade de tutela e a carência de tutela do interesse lesado. (24)

Entre nós é consabido o entendimento de que a própria Constituição apenas sanciona com nulidade as provas obtidas mediante intromissão na vida privada que deva ser considerada abusiva.(25)
Assim, e se é indesmentível que a tutela do direito à reserva da intimidade da vida privada se projecta em sede processual penal, impondo limites à valoração de provas que representem uma abusiva intromissão em tal esfera – designadamente quando seja “efectuada fora dos casos previstos na lei e sem intervenção judicial (art. 34º - 2 e 4), quando desnecessária, ou desproporcionada, ou quando aniquiladora dos próprios direitos– também deve considerar-se que o problema da (i)licitude de uma ingerência pública no âmbito da intimidade pessoal não pode, sem mais, subtrair-se a uma ponderação que, atenda às especificidades do caso concreto, relevando os direitos e interesses aí nuclearmente envolvidos (26) (27)

Porém, importa sublinhar, uma vez mais, o ponto de fractura doutrinal e jurisprudencial que surge perante a afirmação da existência, ou inexistência, de uma esfera da intimidade, área nuclear, inviolável e intangível da vida privada, protegida contra qualquer intromissão das autoridades ou dos particulares e, por isso, subtraída a todo o juízo de ponderação de bens ou interesses, é essencial na aferição da protecção do direito á intimidade. O que, para os seus defensores, significaria a proibição radical, e sem excepções, de todas as provas que contendam com este círculo pois que na perspectiva da jurisprudência do Tribunal Constitucional: «(...) Na determinação do conteúdo e extensão do direito fundamental (...) há-de ter-se presente que, de acordo com a norma fundamental do artigo 1º, n.º 1, da Lei Fundamental, a dignidade do homem é inviolável (...). Nem sequer os interesses superiores da comunidade podem justificar uma agressão à área nuclear da conformação privada da vida, que goza duma protecção absoluta. Uma ponderação segundo o critério do princípio de proporcionalidade está aqui fora de causa». Para além deste núcleo central da intimidade, estende-se a área normal da vida privada, também ela projecção, expressão e condição do livre desenvolvimento da personalidade ética da pessoa. E, nessa medida, erigida em autónomo bem jurídico pessoal e como tal protegido tanto pela Constituição como pelo direito ordinário. Trata-se, porém (...) de um bem jurídico que não pode perspectivar-se absolutamente isolado dos compromissos e vinculações comunitárias e, nessa medida, inteiramente a coberto da colisão e ponderação dos interesses. O seu sacrifício em sede de prova estará, por isso, legitimado sempre que necessário e adequado à salvaguarda de valores ou interesses superiores, respeitadas as exigências do princípio da proporcionalidade. (...) Em terceiro e último lugar, é possível referenciar a extensa e periférica vida de relação em que, apesar de subtraída ao domínio da publicidade, sobreleva de todo o modo a funcionalidade sistémico-comunitária da própria interacção (...)”.

A diferença de perspectivas sobreleva, assim, no que concerne á afirmação, ou não, daquele núcleo essencial e espaço de afirmação do homem consigo que próprio e de realização ética da pessoa humana, subtraído a qualquer juízo de ponderação ou, pelo contrário, o entendimento de que aqui, no âmbito de proibições de prova de natureza relativa (artigo 126 nº3 do CPP) é admissível a afirmação que o direito protegido- a intimidade- não tem um valor absoluto e deve ceder quando em contraposição estejam os valores que realizam objectivos primários do Estado de Direito, como é o da funcionalidade do processo penal perante uma a criminalidade grave.
Aliás, ao mesmo caminho da ponderação são conduzidos todos aqueles que, sob a capa de uma visão gradualista, preservando o núcleo inviolável da intimidade, acabam por atribuir a este núcleo uma elasticidade, e plasticidade, que permite que o mesmo claudique perante uma panóplia de situações que coincidem, na prática, com a alcançada através da teoria da ponderação. Neste sentido se encontra o Tribunal Constitucional alemão que invocando a impossibilidade do sacrifício da dignidade da pessoa como reduto sagrado, e inviolável, cujo toque poderia redundar no total aniquilamento desse direito, proclama simultaneamente a relevância da imposição de limites que “podem decorrer, em especial, de um interesse geral prevalecente da comunidade, porquanto, se o indivíduo, como cidadão, vive inserido numa comunidade e entra, através da sua conduta, em relação comunicativa com os outros, pode, com isso, tocar a esfera pessoal dos seus concidadãos e os interesses da comunidade (die persönliche Sphäre seiner Mitmenschen oder die Belange der Gemeinschaft berührt”) -, decisão de 14.09.89.
Por igual forma se situa entre nós o acórdão do Tribunal Constitucional nº 607/2003 que, numa abordagem global e minuciosa do tema, acaba por concluir pela inadmissibilidade de uma ponderação de valores face ao á Constituição “Refere a mesma decisão, a propósito da questão da utilização dos diários que,: -daqui resulta, inexoravelmente, que o Tribunal da Relação adoptou um critério de ponderação “geral” , segundo o qual, uma vez justificada formalmente a legalidade do acesso aos diários do arguido, o interesse da realização da justiça penal subjugaria a tutela da intimidade da vida privada do arguido, independentemente do concreto conteúdo das descrições deles constantes e da diferenciada densidade de tutela que lhes há-de ser reservada.
Antes de mais cumpre acentuar, retendo que qualquer valoração probatória que atente contra a dignidade da pessoa humana deve ter-se em face do panorama constitucional vigente por inadmissível, que, mesmo justificada a licitude da obtenção dos diários do arguido, sempre importa ter em linha de conta se, em concreto, existirá, ou não, uma proibição de valoração da informação (Informationverwertungsverbot na terminologia de Amelung, in Informationsbeherrschungsrechte im Strafprozess. Dogmatische Grundlagen individualrechtlicher Beweisverbote, Berlin, 1990, p. 12, apud Manuel da Costa Andrade, Sobre as proibições de prova..., op. cit., p. 23) decorrente, desde logo, desse limite intransponível.
Na verdade, como resulta das considerações tecidas, deve afirmar-se que a validade de uma ponderação prudencial suscitada neste domínio, ainda que balanceando a tutela da intimidade com o contrapeso do premente interesse público na realização da justiça, não pode excluir a inviolabilidade ética inerente à dignidade da pessoa humana.
Em bom rigor, só fora de uma “área interior colocada sob o domínio exclusivo do arguido” se há-de admitir tal ponderação, sendo que, mesmo aí, o “fiel da balança” dos valores em questão deve encontrar-se no respeito pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade, indagando, designadamente, se a intromissão na vida privada é, em face do caso concreto, necessária e não desproporcionada.

Aquilo que, em face da teoria da ponderação, é a ordenação de valores, assumindo que o direito á intimidade da vida privada não é um valor absoluto e deve ceder perante interesses fundamentais, como é o caso da eficiência da justiça criminal no combate á criminalidade grave, é ali, na visão da “teoria das esfera e núcleo intocável”, entendido como valor híbrido que será relativo até um determinado momento, mas absoluto quando toca o insuperável núcleo da dignidade do Homem. A questão é a de saber onde começa, e acaba, tal núcleo essencial por forma a não se conceder a tal domínio, onde se jogam valores fundamentais, uma inescapável margem de insegurança, e de vacuidade, que, querendo dizer tudo, acaba por não dizer nada.
A Constituição não exclui que, neste domínio específico, uma ponderação possa conduzir a que, em concreto, o interesse público geral na investigação dos ilícitos penais imputados ao arguido e na prossecução da verdade material e a subsequente realização da justiça se sobreponham, acauteladas as devidas reservas, às necessidades de tutela da sua esfera de privacidade. Porém, quando o juízo sobre a existência, ou não, de uma afronta á dignidade do homem tem implícita a forma como o imputado equaciona a sua relação com a dignidade dos outros, colocando em causa valores fundamentais (como o direito à vida) aquele núcleo essencial deve ser avaliado num juízo de ponderação em que pesam a gravidade do crime e os valores jurídicos tutelado pela lei penal. O respeito pela dignidade e intimidade de cada cidadão acaba quando o mesmo desrespeita a dignidade dos outros cidadãos e os valores fundamentais prosseguidos pelo Estado como é o caso da funcionalidade da justiça penal.
É, quanto a nós, incontornável o pressuposto de que dificilmente se pode afirmar um núcleo inviolável de dignidade a respeitar quando o que está em causa é a perseguição penal do agente que coloca em causa direitos fundamentais como é a vida dos seus concidadãos (por exemplo a leitura do diário íntimo do serial killer revelando a sua psicopatia, ou a situação da desresponsabilização do injustamente condenado)

Assumida uma defesa do princípio da ponderação nesta área de prova proibida e protecção do direito á intimidade é evidente que a invocação do recorrente não tem o mínimo de fundamento. A ponderação investigatória, e probatória, da agenda do telemóvel como factor de determinação da sua propriedade, e da relação sequente com o crime praticado, não colide com nenhum núcleo fundamental da dignidade do mesmo recorrente e está perfeitamente justificada pela ponderação do interesse em perseguir criminalmente quem comete um crime de homicídio voluntário, sob a forma tentada, face á mera determinação dos contactos telefónicos existente na agenda do telemóvel que foi abandonado.
Estamos em face de uma situação análoga á da mera agenda, ou do documento, que por mero descuido o agente criminoso esqueceu no local do crime não se vislumbrando onde exista qualquer utilização de meio proibido e prova.

B

A questão fundamental que se coloca quanto ao reconhecimento em sede de audiência de julgamento é a da conformação que o mesmo acto deve assumir quando suceda em audiência.
A recente alteração introduzida pela Lei 48/2007 pretendeu esclarecer as divergências pré-existentes na jurisprudência, afirmando que as regras inscritas para o reconhecimento em sede de inquérito igualmente têm aplicação na fase de audiência, ou seja, a sua inobservância implica a proibição da sua valoração como prova.
Colocada perante a questão a tendência jurisprudencial anterior àquela Lei era maioritária no entendimento de que os requisitos do artigo 147º CPP apenas se aplicavam à instrução, e inquérito, e não à audiência de julgamento (28). Argumentava-se que este tipo de reconhecimentos consubstanciava uma prova atípica que seria admissível nos termos do disposto no artigo 125º CPP, devendo ser valorada nos termos do preceituado no artigo 127º do mesmo diploma. Tal entendimento foi objecto de apreciação no Acórdão do Tribunal Constitucional 137/2001 que se pronunciou no sentido de inconstitucionalidade, referindo que é inconstitucional, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição, a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal. Num sentido convergente também se argumentava que o reconhecimento em audiência de julgamento corresponde ao relato de uma testemunha e não tem valor processual autónomo do depoimento prestado, sem que tal consideração prejudique os direitos do arguido, na medida em, na audiência de julgamento, vigora em toda a sua plenitude o princípio do contraditório.(29)
Desenhado os caminhos seguidos pela jurisprudência anteriormente á Lei 48/2007 é importante que se diga agora que a alteração pela mesma introduzida, querendo resolver tudo o que concerne á questão, acaba por não resolver nada. Na verdade, subsiste a questão fundamental da indefinição da natureza da prova por reconhecimento o que tem subjacente a precisão sobre a sua finalidade.
Pressuposto básico da resolução de tal questão é o de que estamos perante a prova por reconhecimento quando não esteja identificado o agente do crime, sendo necessária a sua determinação. Constitui algo de absolutamente distinto a situação de confirmação como agente do crime em relação a alguém previamente identificado, investigado e assumido como sujeito processual com todo o catalogo de direitos inscritos como tal a qual se traduz numa intima comunicabilidade e interacção entre os diversos intervenientes processuais envolvidos no julgamento.

Imporá salientar aqui a aparente aporia em que se evolveu o legislador pretendendo tratar uniformemente situações que, de todo, não são susceptíveis de equiparação. Na verdade, em sede de audiência de julgamento rege o principio da publicidade e não se vislumbra como é que se possa evitar que neste acto, ou, previamente, e a partir do momento em que é pública a identidade do arguido, se possa evitar o eventual contacto ou uma possível identificação num espaço publico, ou privado, ou até a própria interpelação na abertura da audiência.
Na verdade, a questão fundamental não consiste em saber se o formalismo deve, ou não, ser observado em audiência de julgamento. Que não pode ser realizado, a não ser através de uma ficção, ou simulacro é, quanto a nós, um dado adquirido, pois que as regras que regulam a audiência de julgamento são incompatíveis com essa observância. A não ser que se interrompa a audiência para ir realizar o acto processual a uma esquadra de polícia o que, para além de ser ridículo e um desperdício de tempo, é desaconselhável e inútil.
Aliás, sendo desadequada tal prática é desaconselhável pois que o arguido, em fase de julgamento – antes mesmo da audiência – está publicamente exposto e já foi visto (ou pode ter sido visto) por todos os intervenientes processuais o que é uma mera decorrência da característica de publicidade dessa fase processual. Daí que um reconhecimento realizado, pela primeira vez, em audiência de julgamento seja substancialmente injusto, pois que já exposto o arguido aos olhares das testemunhas que o irão reconhecer. E aqui basta a mera possibilidade de tal já ter ocorrido. Desaconselhável, também, por ser já um dado adquirido por estudos em psicologia da memória que o “reconhecimento” deve ser realizado o mais próximo possível da data do evento.
“O tempo é um importante factor na determinação da fidelidade da identificação e o número de correctas identificações declina à medida que o intervalo de tempo entre o crime e o procedimento de identificação aumenta”. (30) Admitir um reconhecimento realizado pela primeira vez em audiência de julgamento é, além do exposto, uma clara violação do due process of law, na medida em que, na audiência, o arguido está exposto publicamente.
Sintetizando o exposto pode-se afirmar que a questão que legitimamente se coloca, desde logo, é a de saber até que ponto será exequível aplicar as regras do reconhecimento previstas no artigo 147º do CPP à audiência de julgamento em que há um inevitável contacto directo entre ofendidos e arguidos, não apenas na própria sala de audiências, como nos corredores do tribunal ou no simples acto de chamada para o processo realizada pelo funcionário judicial. Em todo o caso, mesmo que se considere possível, com as devidas adaptações, o cumprimento em audiência de julgamento das regras do artigo 147º, sempre ficará necessariamente excluída a possibilidade de ocultação do identificante a que alude o nº 4 do aludido preceito legal

Na verdade, para além daquilo que constitui, quanto a nós, uma impossibilidade material temos por adquirido que o pensamento do legislador foi obliterado pela confusão entre prova testemunhal e prova por reconhecimento. Omitiu-se o pressuposto fundamental de que a prova por reconhecimento pressupõe a indeterminação prévia do agente do crime.
Assim, é, quanto a nós, linear que a situação em que a testemunha, ou a vitima, é solicitada a confirmar o arguido presente como agente da infracção não se configura um acto processual, consubstanciando o reconhecimento pessoal. Pelo contrário, tal confirmação da identidade de alguém que se encontra presente, e perfeitamente determinado, apenas poderá ser encarado como integrante do respectivo depoimento testemunhal.
Como refere Medina de Seiça o acto de reconhecimento visual de uma pessoa, na medida em que implica uma reevocação de uma percepção ocular anterior, apresenta profun­das similitudes com o processo mental próprio do depoimento testemunhal. Na verdade, «têm em comum o fundo: memórias empíricas» que, por meio da recordação podem emergir como informação disponível. Sustentados, pois, na complexa actividade mnemónica, ambos os meios de prova são par­ticularmente vulneráveis a múltiplos factores de distorção e engano que ocor­rem ao longo de todo o itinerário da cognição, da memorização e da evocação. Esta similitude, porém, não elimina as diferenças estruturais existentes entre as duas formas de percepção e recordação (31).
Numerosos estudos psicológicos têm posto em evidência que no teste­munho o depoente organiza a recordação mediante referentes de espaço e tempo, causa e efeito. Deste modo, as informações prestadas são apreensíveis com facilidade pelos destinatários, pois recondutíveis aos esquemas usuais da comunicação verbal. A situação é diversa quando se trata de efectuar um reconhecimento: dizendo-o com Cordero, aqui trabalha-se sobre uma maté­ria completamente alógica, que se presta aos «curtos-circuitos» de sensações racionalmente insondáveis. (32)
Por outro lado, em face de uma identificação visual feita por uma pes­soa, os meios de controle são muito mais limitados do que perante um tes­temunho. Neste último, o processo de composição da recordação pode ser aprofundado, vigiado e submetido a verificação, sobretudo no decurso da audiência mediante contra-interrogatório. Muito embora a pessoa que efec­tua o reconhecimento deva ser também ela objecto de interrogatório, em ordem a fiscalizar o mais possível o contexto em que terá ocorrido a sua percepção originária e a possibilidade de factores de erro entretanto ocorri­dos, certo é que o acto recognitivo em sentido estrito escapa a um efectivo controle.
Estamos, assim, reconduzidos ao postulado inicial do presente excurso e, consequentemente, levados a perfilhar o entendimento já expresso pelo Tribunal Constitucional quando refere que Não há dúvida de que entre a "prova por reconhecimento" e a "prova testemunhal" existem diversos "pontos de contacto" (cf. Nicola Triggiani, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 775 e Massimo Ceresa Gastaldo, "La ricognizione personale "attiva" all’esame della Corte Costituzionale: facoltà di astenzione o incompatibilità del coimputato", in Rivista italiana di diritto e procedura penale, 1, 1995, p. 264).
Desde logo, pode dizer-se que um testemunho, enquanto "juízo" de imputação fáctica, implica sempre um "reconhecimento" de um determinado sujeito – recte, uma individualização concretizadora ou um acto de identificação directa [cf. Nicola Triggiani, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 773, n. 173; v. também Daniela Vigoni, "La ricognizione personale", cit., p. 183; Giovanni Conso/Vittorio Grevi, Commentario breve al Nuovo Codice di Procedura Penale, Pádua, 1994, pp. 213 e ss.; Tommaso Rafaraci, "Ricognizione informale dell'imputato e (pretesa) fungibilità delle forme probatorie" – nota a Cass. sez. II pen. 28 febbraio 1997 – in Cassazione Penale, n.º 6, 1998, pp. 1739-1747].
Contudo, não podem olvidar-se as diferenças qualitativo-funcionais entre estes dois domínios probatórios.
De tal pressuposto arranca também a mesma decisão na declaração do pressuposto de que importa ter presente o pressuposto específico – que autonomiza o reconhecimento e o erige como meio de prova – traduzido num inequívoco juízo de necessidade, direccionado, como se disse, ao esclarecimento de uma situação de incerteza subjectiva, em termos de a ele se recorrer apenas "quando houver necessidade de proceder ao reconhecimento de qualquer pessoa" (v. Alberto Medina de Seiça, "Legalidade da prova e reconhecimentos "atípicos" em processo penal..., cit., p. 1413).
E se este juízo permite distinguir a valoração autónoma deste meio de prova daqueloutra relativa à prova testemunhal qua tale, também não é menos verdade que, por ele, se devem circunscrever à esfera da prova testemunhal os "reconhecimentos testemunhais", onde não se autonomize e onde não releve a necessidade de esclarecimento de uma qualquer situação de incerteza quanto à autoria dos factos e à identificação do agente.

De facto, a identificação subjacente a um depoimento testemunhal esgota a sua eficácia – e a possibilidade de o juiz o valorar – no âmbito de um meio probatório não direccionado ao reconhecimento de uma pessoa e, assim, qualquer "individualização" ou "reconhecimento" – em sentido impróprio, diga-se – que aí se faça não pode deixar de ter como pressuposto uma situação de determinação subjectiva, e, por isso, só poderá ser valorada dentro da esfera probatória de onde emerge – a prova testemunhal –, não lhe podendo ser reconhecido um valor probatório autónomo e separado.
Ou seja, por outras palavras, não estando implicada na produção e valoração deste meio de prova uma necessidade de se afastar uma situação de incerteza quanto à identificação de um sujeito, a funcionalidade e a finalidade inerentes a um acto de "reconhecimento" – de imputação – que se produza neste contexto terá sempre uma função exógena da que é cumprida pelo reconhecimento em sentido próprio – v. g. aferir da credibilidade e consistência do depoimento –, não podendo aquele ser autonomamente valorado para responder às situações onde se justifique a autonomização de um verdadeiro acto de reconhecimento.
Diferenciadas serão já aqueloutras situações onde se torne necessário proceder ao reconhecimento de pessoas.
Na verdade, havendo que dirimir-se um problema de (in)determinação subjectiva – e recorde-se aqui a especificidade da reconstrução mnemónica que se preside ao acto de reconhecimento, já evidenciada supra, nas suas diferenças em face da construção lógico-narrativa que marca um depoimento testemunhal, comportando aquele uma bem maior margem de aleatoriedade pela inevitável presença de factores emotivos e pela sua difícil controlabilidade (cf. Nicola Triggiani, "La ricognizione personale: struttura ed efficacia", cit., p. 729; sobre as diferenças ao nível do discurso evocativo, v., inter alia, Tommaso Rafaraci, "Ricognizione informale dell'imputato e (pretesa) fungibilità delle forme probatorie", cit., pp. 1740 e ss.; Alberto Medina de Seiça, "Legalidade da prova e reconhecimentos "atípicos" em processo penal..., cit., pp. 1413 e ss.) –, não poderão deixar de ser adoptados critérios adequados a um "objectivo" judicar da "incontrolabilidade da (...) validade gnoseológica" emergente do reconhecimento qua tale como forma de lhe garantir um mínimo de idoneidade probatória


Assim, estamos em crer que a crítica do recorrente emerge de uma manifesta confusão entre prova por reconhecimento e prova testemunhal. O reporte testemunhal ao acto processual praticado no inquérito ou a afirmação de que o arguido foi o autor dos factos incursos em tipicidade criminal concretiza-se no conceito de prova testemunhal e não de prova por reconhecimento.
Não tem fundamento a critica formulada.

C
Entende o recorrente que, ao não declarar a existência de erro notório na apreciação da prova, bem como a nulidade da prova produzida em audiência, consistindo no conhecimento dos factos por "ouvir dizer" a pessoas determinadas (que não foram ouvidas) ou a pessoas indeterminadas (que também não o foram), - como resulta do depoimento do Inspector da polícia Judiciária L… P…) a decisão recorrida violou o disposto na Lei Penal Adjectiva acerca da proibição de prova, "maxime" o disposto no art.º 356.° nº 7 do CPP.
Assumida a relevância que assumem as exigências da contraditoriedade e do princípio da imediação num processo penal de sistema acusatório compreende-se a irrelevância que, em princípio, é conferida ao depoimento indirecto. Na verdade, como referem Fernando Gonçalves e Manuel João Alves (33) para que o debate ou discussão entre a acusação e a defesa, em que se traduz o princípio da contraditoriedade, cumpra plenamente a sua função de contribuição para o esclarecimento dos factos e consequente descoberta da verdade material, toma-se necessário que os depoimentos incidam sobre factos concretos e não sobre o que se ouviu dizer ou o que se diz, bem como a presença física da testemunha e do arguido durante o julgamento, por forma a puder existir, a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base de decisão, em que se traduz, o princípio da prova imediata, maxime da imediação.
A essência da prova testemunhal é a que a mesma se refere ás declarações que efectua uma pessoa sobre aquilo que percebeu pessoal e directamente. A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente.
O depoimento indirecto refere-se a um meio de prova, e não aos factos objecto de prova, pois que o que está em causa não é o que a testemunha percepcionou mas sim o que lhe foi transmitido por quem percepcionou os factos. Assim, o depoimento indirecto não incide sobre os factos que constituem objecto de prova mas sim sobre algo de diferente, ou seja, sobre um depoimento.
Uma vez que a prova testemunhal tem como referência o princípio da imediação e do contraditório não admiram as reservas suscitadas pelo depoimento indirecto em que está ausente a relação de imediação entre a testemunha e o objecto por ele percebido. Tais reservas não se situam apenas nos sistemas processuais penais contemporâneos e já no direito romano não se admitia a testemunha de ouvir dizer.
Pronunciando-se sobre o tema, e de uma forma radical, Manzini afirma que "as atestações indirectas, os conhecimentos reflexos, os depoimentos por ter ouvido dizer, não têm carácter de testemunho, senão que apenas podem ser consideradas como elementos inseguros de informação, através dos quais se pode eventualmente chegar ao verdadeiro testemunho” E, resumindo as objecções fundamentais, acrescenta: "Com efeito, em tais depoimentos a percepção sensorial que interessa à prova, não é do depoente, senão de quem a manifestou ao mesmo depoente. E o confidente, que seria a verdadeira testemunha, se não é imaginário, escapa à responsabilidade do que disse se o outro não o revela, e se subtrai também à valoração de sua credibilidade; além do facto de que o que se conta de “boca em boca” se altera e se deforma progressivamente.”(34)
Precisa-se, assim, que a proibição do artigo 129 do Código Penal visa os testemunhos que visam suprir o silêncio do arguido, não os depoimentos de agentes de autoridade que relatam o conteúdo de diligências de investigação, nomeadamente a prática das providências cautelares a que se refere o art. 249º do CPP. Na verdade, nesta a autoridade policial procede diligências investigatórias, no âmbito do inquérito, em relação a infracção de que teve noticia. Sobre a mesma incumbe o dever de, nos termos do art. 249º do CPP, praticar “os actos necessários e urgentes para assegurar os meios de prova”, entre os quais, “colher informações das pessoas que facilitem a descoberta dos agentes do crime”. Estas “providências cautelares” são fundamentais para investigar a infracção, para que essa investigação tenha sucesso. E daí que a autoridade policial deva praticá-las mesmo antes de receberem ordem da autoridade judiciária para investigar (art. 249º, nº 1). Nessa fase não há ainda inquérito instaurado, não há ainda arguidos constituídos.
É uma fase de pura recolha informal de indícios, que não é dirigida contra ninguém em concreto. As informações que então forem recolhidas pelas autoridades policiais são necessariamente informais, dada a inexistência de inquérito. Ainda que provenham de eventual suspeito, essas informações não são declarações em sentido processual, precisamente porque não há ainda processo.

No caso concreto o agente policial inquirido apenas se refere ás diligências q que procedeu em termos cautelares e de inquérito fazendo perante o tribunal uma súmula dos factos que entendeu estarem apurados e da sua razão de ciência. Não se vislumbra onde é que cabe a afirmação de estarmos perante um depoimento indirecto, sendo certo que a remissão feita para as pessoas que confirmaram ter sido o arguido o autor dos disparos pode, e deve, ser entendida em relação a audição que se produziu em fase prévia ao inquérito e, posteriormente, concretizada na prova testemunhal produzida em audiência.

III

Relativamente á agora convocada dissensão em matéria de medida de pena importa precisar em primeiro lugar que a fixação da pena dento dos limites do marco punitivo é uma acto de discricionariedade Judicial. Sem embargo, esta discricionariedade não é livre, mas sim vinculada aos princípios individualizadores que, em parte, não estão escritos, mas que radicam na própria finalidade da pena.
Como refere Jeschek o ponto de partida da individualização penal é a determinação dos fins das penas pois que só arrancando de fins claramente definidos é possível determinar os factos que relevam na respectiva ponderação. Aqui, é preciso, em primeiro lugar, readquirir a noção da importância fundamental que assume a justa retribuição do ilícito, e da culpa, compreendendo o princípio da culpa quer uma função fundamentadora, quer uma função limitadora da mesma pena. Ao mesmo nível que a retribuição justa situa-se o fim da prevenção especial.
Por consequência a pena deve ponderar, também, a forma de contribuir para a reinserção social do arguido e de não prejudicar a sua posição social para além do estritamente inevitável. Esta exigência está plasmada na fórmula de Kohlrausch sobre a prevenção especial “Na individualização da pena o tribunal deve considerar os meios necessários para reconduzir o arguido a uma vida ordenada e ajustada á lei”.
Salienta Jeschek que, na prevenção especial, se contem a protecção da comunidade face ao delinquente perigoso o que é, frequentemente, esquecido.
Por fim a prevenção geral é um fim indispensável da pena pois que esta deve ser ponderada por forma a neutralizar os efeitos do delito como exemplo negativo para a comunidade e deve contribuir, simultaneamente, para fortalecer a sua consciência jurídica assim como a satisfazer o pedido de justiça por parte do circulo de pessoas afectadas pelo delito e pelas suas consequências (confirmação da ordem jurídica).

Substancialmente distinta da exposta é a posição de Figueiredo Dias que, analisando os vectores que devem presidir á aplicação da medida da pena, salienta que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado a pena não pode ultrapassar em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside, na sua opinião, a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução do problema da medida da pena.(35)
Mais refere o mesmo autor que, primordialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. E não se objectará validamente a esta ideia que não tem sentido falar em tutela de bens jurídicos face a uma infracção já verificada e que precisamente lesou ou pôs em perigo bens jurídicos. Quando se afirma que é função do direito penal tutelar bens jurídicos não se tem em vista só o momento da ameaça da pena, mas também - e de maneira igualmente essencial - o momento da sua aplicação. Aqui, pois, protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral positiva ou prevenção de integração, que decorre precipuamente do princípio político-criminal básico da necessidade da pena que o art. 18.°-2 da CRP iniludivelmente consagra. A ponto de poder afirmar-se que onde a medida da pena não fosse comandada essencialmente por este critério de necessidade, aí poderia descortinar-se uma infracção ao espírito da referida norma constitucional.
Em última análise está em causa a formulação de Jakobs - emitida na esteira da terminologia de Luhmann - segundo a qual a finalidade primária da pena reside na estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade da norma violada. A medida da necessidade de tutela de bens jurídicos não será, pois, um acto de valoração in abstracto, mas um acto de valoração in concreto, de conformação social da valoração legislativa, a levar a cabo pelo aplicador à luz das circunstâncias do caso. Factores, por isso, da mais diversa natureza e procedência - e, na verdade, não só factores do «ambiente», mas também factores directamente atinentes ao facto e ao agente concretos podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos e da necessidade da pena. (36)
Afirma o mesmo Autor que a medida da pena não pode, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa. A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena segundo o Professor Figueiredo Dias, reside, efectivamente, numa incondicional proibição de excesso: a culpa constitui um limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas - sejam de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização. Com o que se toma indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa: de uma ou de outra forma, é o limite máximo de pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado. Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, logo por razões jurídico-constitucionais, inadmissível.
Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração - entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos – podem, e devem, actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve, em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos.
Tal entendimento converge com o desenvolvimento da uma das linhas da dogmática da culpa na qual se situa Günther Jakobs, ao formular uma “concepção funcional da culpa” construída sobre a teoria sociológica da formação do Direito a cargo de Niklas Luhmann. Perfilham a orientação de Jakobs, autores para quem a culpa reside num “ deficit na motivação jurídica do agente”. Essa culpa depende das exigências da prevenção geral, no grau de responsabilidade pessoal do autor pela sua acção.
Jakobs designa a culpa quase como um “derivado da prevenção geral”. O objectivo da sanção seria a estabilização da vigência da norma e a exercitação da confiança no Direito por parte da sociedade, e não a confrontação com o agente. A dependência da culpa em relação ás exigência da prevenção geral alcança uma expressão evidente, como refere o mesmo Autor, no facto de que no momento de estabelecer o conteúdo da culpa resulta decisivo “o estado em que se encontra a sociedade em cada caso
Ainda na perspectiva de Jakobs os próprios implicados “deverão gerir quantas restrições sociais poderá ser onerado o agente por aplicação do princípio da culpa e quantas características desagradáveis deste têm que ser aceites pelo Estado e pela sociedade”.A censura da culpa, não se refere á lesão dolosa, ou imprudente, de um bem jurídico por parte do autor, mas liga-se a uma carência no “âmbito da organização” próprio, carência pela qual o mesmo autor é responsável.
A culpa é a “parte de responsabilidade” do agente pela sua falta de disponibilidade para deixar-se motivar pela norma correspondente” quando “esse deficit não possa fazer-se compreensível sob a afirmação de que não afecta a confiança geral na norma”.



Estamos em crer que é nunca é demais acentuar o papel da culpa como critério fundamentador da medida da pena, ao invés da preponderância que alguns, entre os quais Jakobs, outorgam á prevenção geral, colocando-a acima da retribuição da culpa pelo delito quando é esta, na realidade, que justifica a intervenção penal. Na verdade as normas deveriam “ser reafirmadas na sua própria existência como um fim em si mesmas” enquanto o agente, pelo contrário, tem direito a esperar, e espera, sobretudo uma resposta ao facto injusto e culposo que cometeu. Realçando-se a prevenção como critério fundamental desvanece-se, com prejuízo da justiça individual, a orientação que o Direito penal faz da responsabilidade do agente pela sua acção.
Sem embargo, a culpa e a prevenção residem em planos distintos. A culpa responde á pergunta de saber de se, e em que medida, o facto deve ser reprovado pessoalmente ao agente, assim como qual é a pena que merece. Só então se coloca a questão, totalmente distinta da prevenção. Aqui há que decidir qual a sanção que parece apropriada para introduzir de novo o agente na comunidade e para influir nesta num sentido social-pedagógico.
A culpa é a razão de ser da pena e, também, o fundamento para estabelecer a sua dimensão. A prevenção é unicamente a finalidade da mesma.
Não se ignora, realça Jeschek, a relevância na Alemanha uma interpretação que pretende conceder ao principio da culpa exclusivamente a função de limite superior da pena, enquanto que para precisar a mesma pena concreta só os aspectos preventivos devam ser decisivos Assim se indicava no § 59, 1° do Projecto alternativo de 1966 que “ a culpa pelo facto determina o limite superior da pena”, enquanto que a sua dimensão no caso particular se rege unicamente por objectivos de prevenção.
Como justificação, os autores do Projecto argumentaram, de forma negativa, que “queriam prevenir a ideia de retribuição. O Código Penal alemão, sem embargo, não seguiu este Projecto, mas, pelo contrário, converte a culpa no § 46, 1°, 1°no “fundamento para a fixação da pena” e, com isso, não só em fronteira superior da medida da pena, mas também em principio decisivo para a fixação da pena concreta. A razão de ser desta decisão do legislador reside no facto de a pena não dever estar só ao serviço das finalidades preventivas mas, em primeiro lugar, ao serviço da retribuição da culpa, ou seja, a sanção está marcada pelo pensamento de que através dela “o agente experimenta a merecida resposta de desaprovação da comunidade jurídica ao facto ilícito e culposo por ele cometido”.
A restrição do princípio da culpa á função de “meio para a limitação da pena” é o ponto central na interpretação deste conceito transmitida por Claus Roxin. Por tal forma pretende o mesmo autor fazer a teoria jurídico-penal da culpa “independente do livre arbítrio” . Por seu turno, tal conceito de culpa, restringido ao papel de margem superior da pena, é o fundamento da nova categoria sistemática de “responsabilidade”, na qual se fundiu a culpa do autor com a necessidade preventiva da pena.
A isto pode-se objectar, reafirmando o ensinamento de Jeschek, que a culpa, se é o limite superior da pena, também deve ser co-decisivo para toda a determinação da mesma que se encontre abaixo daquela fronteira. Aliás, e fundamentalmente, ao limitar-se a fixação concreta da pena a fins preventivos, a decisão do juiz perde o ponto de conexão com a qualificação ética do facto que é julgado, e a pena, por esse facto perde também todo a possibilidade de influir a favor daqueles objectivos de prevenção.
Só apelando á profundidade moral da pessoa se pode esperar tanto a ressocialização do condenado como também uma eficácia socio-pedagógica da pena sobre a população em general. A renúncia ao critério da culpa para a pena concreta é um preço demasiado alto por evitar o problema da liberdade na teoria da culpa (37)

Aprofundando ainda o exposto, mas agora em sede de violação do princípio da proporcionalidade, torna-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade da culpa expressa no facto e a gravidade da pena. Ao cometer um crime, o agente incorre na sanção do Estado, no exercício do seu direito de punir e esta sanção poderá importar uma limitação de sua liberdade.
Uma das principais ideias presente no princípio da proporcionalidade é justamente, invadir o menos possível a esfera de liberdade do indivíduo isto é invadir na medida do estritamente necessário á finalidade da pena que se aplica porquanto se trata de um direito fundamental que será atingido.
É certo que a determinação da concreta medida definitiva da pena tem sempre presente pon­tos de vista preventivos. Dado que o parâmetro da culpa representa um estádio na determinação da medida definitiva da pena a sua dimensão final fixa-se, também, de acordo com critérios preventivos dentro dos limites impostos pela culpa.
Também neste contexto a proibição de excesso tem uma importância determinante. Segundo o mesmo importa eleger a forma de intervenção menos gravosa que ofereça perspectivas de êxito e, assim, é possível que a dimensão concreta da pena varie dentro dos limites da culpa segundo a forma como se apresenta a concreta imagem de prevenção do autor. (38)
Como refere Anabela Rodrigues a finalidade de prevenção geral que aqui está em causa é limitada pela referência ao bem jurídico e sua importância. Com o que o conteúdo da prevenção geral que aqui está em causa começa a ganhar contornos: a gravidade do facto cometido deve integrar esse conteúdo, servindo, além do mais, de limite à prevenção (39).
Adianta a mesma Autora que O que se diz, pois, é que, exactamente do ponto de vista de um controlo racional preventivo da criminalidade que se justifique a partir da necessidade social da intervenção penal jurídico-constitu­cionalmente consagrada (artigo 18.°-2), é possível assinalar à preven­ção geral um conteúdo que a impeça de excessos. Via a exigir que o efeito preventivo, a obter-se (apenas) mediante a confirmação da validade da norma jurídica violada, se realize em consonância com a função de protecção de bens jurídicos que cabe ao direito penal assegurar. Só assim, e ainda na medida em que esta função ape­nas se legitima se e enquanto não há outros meios para possibilitar a convivência pacifica dos homens em sociedade, a realização daquela finalidade de prevenção postulará a sua limitação pelo princípio da proporcionalidade. Princípio que não é mais do que um limite à intervenção penal derivado do fundamento da prevenção geral na necessidade social e que implica, no âmbito da medida da pena, que a sua gravidade seja adequada à gravidade da lesão do bem jurídico ocorrida. O que significa que, com isto, o efeito de preven­ção geral que se quer obter - protecção de bens jurídicos -, radi­cado na necessidade, mediante o limite que constitui a própria refe­rência ao bem jurídico, postula um limite à sua própria realização - a proporcionalidade -, com que nunca correrá o risco de se transformar numa prevenção geral de intimidação.

Na verdade, e atribuindo consistência prática ao exposto, as penas têm de ser proporcionadas á transcendência social- mais que ao dano social - que assume a violação do bem jurídico cuja tutela interessa prever. O critério principal para valorar a proporção da intervenção penal é o da importância do bem jurídico protegido porquanto a sua garantia é o principal fundamento da referida intervenção.(40)
A necessidade de proporcionalidade constitui também uma exigência do Estado democrático: um direito penal democrático deve ajustar a gravidade das penas á transcendência que para a sociedade têm os factos a que se ligam. Exigir uma proporção entre delitos e penas no é, com efeito, mais que pedir que a dureza da pena não exceda a gravidade que pa­ra a sociedade possui o facto punido.
Em termos redutores dir-se-á que a proporcionalidade entre a medida da pena e o crime que implica uma retribuição pelo mal praticado pelo arguido é uma exigência da comunidade que só assim pode, e deve, aceitar a justiça encontrada no caso concreto.

Partindo de tal pressuposto, considerando a culpa como sendo critério fundamental na determinação da medida da pena, e no que concerne aos factores de medida da pena no caso concreto, estão os mesmos devidamente inscritos nas penas aplicadas. Estas equacionam devidamente a determinação do fim das penas no caso vertente e na sua tríplice dimensão de justa retribuição da culpa; de contribuição para a reinserção social do arguido em sede de prevenção especial, e neutralização dos efeitos negativos da prática do crime em sede de prevenção.
Nomeadamente, e no que toca á “execução do facto”, importa salientar as circunstâncias inerentes ao modo de execução, com o inusitado recurso á violência, aproveitando as circunstâncias de tempo e lugar, e com uma superioridade resultante da posse de arma Tais factores revelam-se, assim, relevantes quer em sede de tipo de ilícito quer em tipo de culpa e devem ser aferidos em termos de medida da pena.
Em sede de tipo de culpa salientou-se a forma acabada de dolo directo. A intensidade da culpa na relevância para a medida da pena é, por alguma forma indicada na forma como o arguido procurou o confronto para tirar desforço de um situação de futilidade.
No processo de formação da vontade que conduziu á tentativa de homicídio nenhum elemento existiu que pudesse provocar uma perturbação intelectual ou volitiva nas faculdades mentais do arguido.
E grande a intensidade da ilicitude evidenciada pelo actos praticados e graves as suas consequências.
A morte foi procurada, mas não alcançada por razões alheias á vontade do recorrente.
O mesmo apresenta antecedentes criminais relevantes e ensaiou uma fuga á sua responsabilidade criminal assente num álibi construído por forma a desinformar, ou iludir, o tribunal.

A pena aplicada ao arguido, eivada de benevolência, não merece qualquer crítica.

Nesta conformidade os Juízes Conselheiros que integram esta 3ª Secção Criminal decidem julgar improcedente o recurso interposto por AA confirmando a decisão recorrida
Custas pelo recorrente
Taxa de Justiça 10 UC
Lisboa, 3 de Março de 2010
Santos Cabral (Relator)
Oliveira Mendes

______________________________________________

(1) Como decidiu o Ac. da Rel. de Coimbra de 6Mar.02, na C.J. ano XXVII, tomo 2, pág.44 “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear em opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”. No mesmo sentido, o Ac. da Rel. de Évora de 25Maio04, na C.J. ano XXIX, tomo 3, pág.258.
(2) Conf. Pefecto Andrés Ibanez “Acerca de la motivacion de los hechos en la sentencia penal”
(3) Jornadas de Direito Processual Penal
(4) -São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio ou nas telecomunicações.,
(5) Confrontar Castanheira Neves Sumários de Processo Penal
(6) Direito Processual Penal, 1974
(7) cf. Eduardo Correia, «Les preuves en droit pénal portugais», in Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, 1967, p. 8).
(8) Comentário ao Código de Processo Penal pag 326
(9) Canotilho e V.Moreira obra citada pag 392
(10) As restrições aos direitos fundamentais não expressamente autorizadas pela Constituição”, pág. 833, da ed. de 2003, da Coimbra Editora.
(11) Vide Parecer n.º 16/94/complementar, acessível em www.dgsi.pt, e Parecer n.º 21/2000, no DR II Série, de 23 de Julho de 2002).
(12) ob. cit., p. 341
(13) Costa Andrade, em “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo III, pág. 797-798.
(14) Sobre as proibições de prova em processo penal pag 32 e seg
(15) Vieira de Andrade Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976 p. 117; Gomes Canotilho e Vital Moreira Constituição..., op. cit., p. 212; e Paulo Mota Pinto, A protecção..., op. cit., p. 156)
(16) in A protecção..., op. cit., p. 164
(1/) O direito geral de personalidade, Coimbra, 1995, p. 318 e ss.),
(18) Publicado no Diário da República II Série, de 24 de Julho de 1992,
(19) Publicado no Diário da República II Série, de 2 de Novembro de 1995
(20) Paulo Mota Pinto, in A protecção..., op. cit., p. 168.
(21) Os Direitos Fundamentais na Constituição da Republica Portuguesa de 1976
(22) v. Gomes Canotilho, Vital Moreira Constituição..., op. cit., p. 206)
(23) Claramente identificável aporia a que conduzem as situações extremas como a necessidade de extorquir ao terrorista que colocou a bomba, prestes a explodir, a informação sobre a sua localização.
(24) Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal pag 32 e seg
(25) Sobre a necessidade de realizar um juízo de ponderação relativo ao direito à reserva da intimidade da vida privada, cfr. Acórdão n.º 263/97, publicado no Diário da República II Série, de 19 de Março de 1997.
(26) Sobre a necessidade de realizar um juízo de ponderação relativo ao direito à reserva da intimidade da vida privada, cfr. Acórdão n.º 263/97, publicado no Diário da República II Série, de 19 de Março de 1997).
(27) (cfr. art. 18º - 2 e 3)” (v. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição..., op. cit., p. 206)
(28) Neste sentido se situavam os Acórdãos do STJ de 01-02-96 CJ IV-I-198; de 11-05-2000, BMJ 497-293; de 2-10-96, BMJ 460-534; Acórdão da Relação de Évora de 07-12-2004, proc. 25/03-1; Acórdão da Relação de Lisboa de 11-02-2004, proc. 928/2004-3; Acórdão da Relação de Coimbra de 06-12-2006, proc. 146/05.9GCVIS.C1; Acórdão da Relação de Guimarães de 31-05-2004, proc. 2415/03-1; Acórdão da Relação do Porto de 22-01-2003, proc. 0240877
(29) Neste sentido se situam os Acórdãos do Tribunal Constitucional nº425/2005, proc. 425/05; do STJ de 06-09-2006, proc. nº 06P1392; da Relação do Porto de 19-01-2000, proc. nº 9940498 e de 07-11-2007, proc. 0713492).
(30) Deffenbacher, Carr & Leu, 1981 – Egan, Pittner & Goldstein, 1977 – Malpass & Devine, 1981 – Shepherd & Ellis, 1973.
(31) Medina de Seiça Legalidade da prova e reconhecimentos atípicos em processo penal Liber Discipulorum pag 1265
(32) F. CORDERO, Procedura, cit., 6." ed., 756: «o acto recognitivo difere do testemunhal resultando ainda mais falível. Quem evoca facros usa grelhas sintáticas ("antes-depois", sincronia, causa efeito): e as percepções de acontecimentos humanos formam quadros tipologicamente defi­níveis [...] por vezes as testemunhas percebem mal ou equivocam-se, mas até certo ponto as reminiscências micro-históricas mostram-se verificáveis. Quem faz o reconhecimento, ao invés, no momento culminante trabalha sobre matéria alógica, no curto-circuito das "sensações": o "déjà vu está entre as menos exploráveis». Sobre toda esta problemática, com amplas indica-
(33) A Prova do crime-meios legais para a sua obtenção pag 163 e seg.
(34) Trattato di Procedura Penal pag 98
(35) Direito Penal Português pag 227
(36) À primeira vista, dir-se-ia que este critério básico da necessidade da pena, ligado à tutela de bens jurídicos, haverá de fornecer um quantum exacto de pena; com o que a pena concreta, medida a esta luz, se tomaria de novo numa Punktstrafe, que não admitiria qualquer correcção: fosse pela consideração da culpa (senão na medida em que esta influenciasse o nível de estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada), fosse por pontos de vista de prevenção especial de socialização. Pois, acrescentar-se-ia, tudo o que fique aquém desta medida exacta de tutela de bens jurídicos não cumpre ainda a finalidade primária da pena, enquanto tudo o que vá além excederá a medida da necessidade e será assim ilegítimo.
Nada, porém, seria menos exacto do que urna tal concepção. Há, decerto, urna medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias; medida, pois, que não pode ser excedida em nome de considerações de qualquer tipo. Mas, abaixo desse ponto óptimo, outros existem em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se sem que esta perca a sua função primordial; até se alcançar um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar.
(37) Hans Heinrich Jescheck, "Evolución del concepto jurídico penal de culpabilidad en Alemania y Austria Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia Núm. 05 (2003) -
(38) É justa aquela medida que se limita estritamente á obtenção da finalidade imprescindível. Como refere Liszt: "A pena necessária, neste sentido, é também a pena justa".
(39) A determinação da medida da pena privativa de liberdade pag 371
(40) Norbert Barranco “El principio de proprcionalidad” pag 211