Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
627/06.7TBAMT.P1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: MARCA
CONFUNDIBILIDADE
ABUSO DO DIREITO
SUPRESSIO
USO TOLERADO DA MARCA
Data do Acordão: 01/11/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

    1. A marca é um sinal distintivo de produtos ou serviços, visando individualizá-los, não só para assegurar clientela, como para proteger o consumidor do risco de confusão ou associação com marcas concorrentes.

    2. O titular da marca goza do direito de se opor a que outrem a use sem o seu consentimento, bem como pode impedir o seu uso possa ser confundido ou associado àquela que lhe pertence, semelhança essa que pode ser gráfica, fonética ou figurativa.

    3. A Ré, sem oposição da Autora, vem explorando na cidade de Amarante, desde 1993, o seu estabelecimento comercial de sapataria, sob a denominação “Sapataria Carocha, Unipessoal, Ldª”, na mesma rua em que a Autora explora o seu, sob a denominação “Sapataria Carocha” vendendo igualmente, produtos de sapataria.

    4. A omissão, a inércia, fomentam a confiança na situação induzida pelo comportamento omissivo, pelo que o exercício de direitos em contradição é abusivo por violador do princípio da boa-fé suposto na proibição do abuso do direito.

    5. A passividade da Autora, não reagindo ao uso de marca confundível com a sua, por uma empresa concorrente, durante pelo menos onze anos, constitui tolerância de uso de marca por esse concorrente, pelo que sendo tão dilatado o período de violação do direito, depreende-se, razoavelmente, que pelo seu silêncio contemporizou com uma situação a que agora, sem invocar quaisquer circunstâncias relevantes supervenientes pretende obstar, em desconsideração pela expectativa e confiança adquiridas pela Ré em que tal direito não seria exercido.

    6. A actuação da Autora, atento o objectivo que visa com a acção, ao fim de largos anos de inércia, aparece à luz da boa-fé e do fim social e económico do direito que pretende exercer, como violadora do princípio da segurança, pelo não deve ser atendida, não na modalidade de venire contra factum proprium, mas na modalidade da “supressio” do direito da Autora que assim deverá ser penalizada pela sua injustificada passividade, durante pelo menos onze anos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, Lda., com sede na Rua ....., loja ...., n.º...., S. Paio, Guimarães, instaurou, em 3.3.2006, pelo Tribunal Judicial da comarca de Amarante – 2º Juízo – acção declarativa de condenação com processo comum na forma ordinária, contra:

Sapataria C..., Unipessoal, Lda., com sede na Rua.............., ....., S. Gonçalo, Amarante.

Pedindo que se anule a denominação social “Sapataria Carochinha, Unipessoal, Lda.”.

Para tanto alega, em síntese:

- ser legítima proprietária da marca “Carochinha”, registada desde 20.03.1992, com o n.º000000, para assinalar “botas, sapatos e pantufas”; “Carochinha”, registada desde 22.04.1985, com o n.º 000000, para assinalar “malas, carteiras (de bolso) e carteiras em couro e pantufas”; nome de estabelecimento n.º00.000“Sapataria Carochinha”, registado desde 05.01.1987;

- a Ré tem, por sua vez, a denominação social “Sapataria Carochinha, Unipessoal, L.da“, desde 20.03.2000, em virtude da alteração verificada no seu pacto social e tem como objecto social a “compra e venda de calçado, sapataria”;

- a Ré explora vários estabelecimentos comerciais com o nome de “Sapataria Carocha”;

- os produtos assinalados pelas marcas da Autora e que são vendidos no seu estabelecimento são idênticos aos produtos vendidos pela Ré nos seus;

- a denominação social “Sapataria Carocha, Unipessoal, Lda.” tem como elemento distintivo e dominante o nome “Carocha”;

- as marcas e o nome de estabelecimento da Autora são conhecidos e identificados pelo nome “Carochinha”, diminutivo de “Carocha”;

- os consumidores que conhecem o nome “Carochinha” e a sapataria com o mesmo nome, poderão, como já aconteceu e, certamente, acontecerá, associarem a “Sapataria Carocha” com a “Sapataria Carochinha”, com os inevitáveis erros e equívocos que tal situação comporta para a Autora, com os consequentes prejuízos para a sua actividade comercial;

- a Ré tem como sócio-gerente BB, que foi funcionário da sociedade CC, Lda, anterior denominação social da Autora, até 1993, data em que rescindiu o seu contrato de trabalho com a Autora;

- o referido BB tinha conhecimento que a Autora era proprietária das marcas “Carochinha” e do nome do estabelecimento “C.......” e, por isso, sabia que, ao constituir a sociedade denominada “Sapataria Carocha”, estava, com toda a probabilidade, a violar os direitos de propriedade industrial da Autora, em particular os direitos sobre as marcas e nome de estabelecimento comercial “Carochinha”;

- a Ré agiu assim de má fé quando, tendo conhecimento dos registos das marcas e do nome do estabelecimento “Carochinha”, pediu o registo da denominação social “Sapataria Carocha”, confundível com aqueles sinais.

A Ré contestou, impugnando parte da matéria alegada pela Autora, sustentando que a sua denominação social foi a segunda escolha que o seu legal representante apresentou, em 1993, junto do Registo Nacional de Pessoas Colectivas, já que a primeira denominação que escolhera foi “Sapataria C...., Lda.”, que não foi admitida pelo Registo Nacional de Pessoas Colectivas;

Mais sustentou que a Autora intentou, em 1993, uma acção criminal contra a Ré pelo crime de concorrência desleal e violação do disposto no art. 218º do anterior CPI, que acabou por ser arquivada;

Sustentou, ainda, que os vocábulos “Carocha” e “Carochinha” são gráfica, literal e foneticamente diferentes, além de que ambas se fazem representar por logótipos, sendo a marca da Autora constituída por um animal, enquanto a da Ré por um veículo da marca “Volkswagen” – o “Carocha” –, pelo que a marca “Carocha” não é susceptível de induzir em erro ou confusão o consumidor mais desprevenido e desatento;

Os estabelecimentos de Autora e Ré convivem na mesma rua desde, pelo menos, 1993 e nunca nenhum consumidor entrou no estabelecimento da Ré por mero engano;

As razões que poderão estar subjacentes à escolha pelos consumidores de um ou de outro estabelecimento prendem-se com a qualidade dos produtos e com os preços praticados, mas isso são as contingências a que todos os comerciantes estão sujeitos.

Concluiu pedindo a sua absolvição do pedido.


Foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido.


Inconformada, a Autora recorreu para o Tribunal da Relação do Porto que, por Acórdão de 24.5.2010 – fls. 437 a 448 –, negou provimento ao recurso e confirmou a sentença recorrida.


De novo inconformada, a Autora recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. Quer a sentença da primeira instância quer agora o Acórdão da Relação do Porto fundamentaram a sua decisão num facto errado.

2. O de que a queixosa no processo que correu em 1993 teria sido a Autora sob a denominação social CC, Lda.

3. Só que no despacho de arquivamento elaborado pelo Ministério Público a queixosa chama-se DD, Lda. anterior proprietária das marcas Carochinha e do nome estabelecimento SAPATARIA CAROCHINHA e não CC, Lda.

4. Ora a queixosa nada tem a ver com a Autora e os autos não contém qualquer elemento de prova em contrário.

5. Pelo que a Autora não se encontra constituída desde 1993 contrariamente ao que vem referido no douto Acórdão.

6. Por outro lado, só em 2005, por via da transmissão a seu favor dos registos de marca Carochinha e do nome de estabelecimento SAPATARIA CAROCHINHA, a Autora ficou habilitada a exercer os seus direitos de exclusivo sobre aqueles sinais e o direito de se opor a que outros e a Ré em particular, usem sinais idênticos ou semelhantes.

7. A acção de anulação foi interposta em 2006, pelo que não existiu, por parte da Autora, qualquer conformação ou inércia quanto à existência da denominação social da Ré, que justifique uma actuação em termos clamorosamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico socialmente dominante, ou seja, com abuso de direito.

8. O douto Acórdão cometeu assim um erro de julgamento por violação do disposto no nº3 do art. 659º do Código de Processo Civil, no nº5 do art. 4º do Código da Propriedade Industrial e no art. 334° do Código Civil.

Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente e consequentemente, revogar-se quer o Douto Acórdão na parte em que julgou ter existido abuso de direito por parte da Autora quer a douta sentença recorrida e que seja anulada a denominação social SAPATARIA CAROCHA, UNIPESSOAL, LDA.

A Ré contra-alegou, batendo-se pela confirmação do Julgado.


Colhidos os vistos legais cumpre decidir tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

A) - A Autora é a detentora dos seguintes direitos de propriedade industrial:

- Marca Carochinha, registada desde 20 de Março de 1992, com o n.º 000000, para assinalar “botas, sapatos e pantufas” – doc. de fls. 53 a 57;

- Marca Carochinha, registada desde 22 de Abril de 1985, com o n.º 000000, para assinalar “malas, carteiras (de bolso) e carteiras em couros” – doc. de fls. 58 a 62.

- Nome de estabelecimento n.º 00.000 Sapataria Carochinha, registado desde 05 de Janeiro de 1987 – cfr. doc. de fls. 48 a 51.

B) - No Diário da República n.º 82, III Série, de 06 de Abril de 2000, foram publicadas as alterações ao pacto social da Ré, em 20 de Março de 2000, tal como consta do documento de fls. 25, que aqui se dá por reproduzido.

C) - A Ré explora, pelo menos, três estabelecimentos comerciais de sapataria com o nome “Sapataria Carocha”.

D) - Os produtos assinalados pelas marcas da Autora e que são vendidos no seu estabelecimento são idênticos aos produtos vendidos pela Ré nos seus estabelecimentos.

E) - As marcas e o nome de estabelecimento da Autora são conhecidos e identificados pelo nome “Carochinha”.

F) - Os consumidores conhecem os estabelecimentos comerciais de sapataria da Autora pelo nome da “Sapataria Carochinha” e sucede, com frequência, associarem a “Sapataria Carocha” com a “Sapataria Carochinha”.

G) - A Ré tem como sócio-gerente o Sr. BB, que foi funcionário da “CC, Lda.”, anterior denominação social da Autora, até 1993, data em que fez cessar o seu contrato de trabalho com a Autora.

H) - O sócio da Ré, BB, tinha conhecimento que a Autora era detentora das marcas Carochinha.

I) - A denominação “Sapataria Carocha” foi a segunda escolha apresentada por EE, com a explicação que este DD constituiu, em 1993, com BB a sociedade “Sapataria Carocha, Lda.”, de que eram os únicos sócios-gerentes, tendo na sequência da extinção desta sociedade sido constituída a sociedade Ré.

J) - A marca “Sapataria Carochinha” faz-se representar associada ao logótipo constituído por um animal, fazendo-se a marca “Sapataria Carocha” representar, em regra, associada a um logótipo constituído por um veículo automóvel da marca “Volkswagen”.

K) - Ambos os estabelecimentos de sapataria de Autora e Ré, em Amarante, convivem na mesma rua há vários anos, estando o estabelecimento da Autora aberto nesta cidade desde 1993.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente, que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber se a Autora/recorrente ao pretender que a Ré não use a denominação social “Sapataria Carocha, Unipessoal, Lda.” age em abuso do direito.

A Autora invocou como fundamento da sua pretensão de “anulação da denominação social Sapataria Carocha, Unipessoal LDª”, antes “Sapataria Carocha Lda.” o facto de a marca da Ré ser passível de confusão com sua marca e denominação social “Sapataria Carochinha”, já que ambas se dedicam ao comércio de sapataria.

Quanto à lei aplicável sufragamos o entendimento da 1ª Instância quando, a propósito, afirma (fls. 345/346):

“…Da certidão da matrícula de fls.91 a 93, resulta que a Ré foi constituída e matriculada em 13/01/1994, tendo a sua constituição sido publicada no D.R. nº45, em 23/02/1994, com a denominação social “Sapataria C......., Lda.”, sendo por via disso à luz do ordenamento jurídico vigente em 23/02/1994 que tem que ser apreciada a pretensão de tutela judiciária deduzida pela Autora nos autos e isto não obstante a alteração do contrato social e da consequente alteração da sua denominação social para “Sapataria C......., Unipessoal, Lda.” ocorrida em 06/04/2000.
“…Em 23/02/1994, encontrava-se em vigor o Código da Propriedade Industrial, aprovado pelo Dec.Lei nº30.679, de 24/08/1940, pelo que, ao contrário do que vem sustentado pelas partes a pretensão de tutela judiciária formulada pela autora carece de ser apreciada por referência ao apontado Código de Propriedade Industrial e demais ordenamento jurídico então vigentes e não por referência ao actual Código da Propriedade Industrial, o qual, porque entrou em vigor apenas em1 de Julho de 2003, não se mostra aplicável ao caso em análise.”

A marca é um sinal de representação visual destinado, essencialmente, a distinguir a origem dos produtos ou serviços, não podendo confundir o destinatário do processo de comunicação – o consumidor.

A marca é, pois, um sinal distintivo de produtos ou serviços, visando individualizá-los, não só para assegurar clientela, como para proteger o consumidor do risco de confusão ou associação com marcas concorrentes.

Acerca do risco de associação o Professor Coutinho de Abreu, in “Boletim da Faculdade de Direito”, vol. LXXIII, 1997, pág.145, em estudo sobre as “Marcas (Noções, Espécies, Funções, Princípios Constituintes)” escreve:

“ […] O risco de confusão deve ser entendido em sentido lato, de modo a abarcar tanto o risco de confusão em sentido estrito ou próprio como o risco de associação.
Verifica-se o primeiro quando os consumidores podem ser induzidos a tomar uma marca por outra e, consequentemente, um produto por outro (os consumidores crêem erroneamente tratar-se da mesma marca e do mesmo produto).
Verifica-se o segundo quando os consumidores, distinguindo embora os sinais, ligam um ao outro e, em consequência, um produto ao outro (crêem erroneamente tratar-se de marcas e produtos imputáveis a sujeitos com relações de coligação ou licença, ou tratar-se de marcas comunicando análogas qualidades dos produtos)”.

O Professor Oliveira Ascensão, in “Concorrência Desleal” – edição de Março de 2002 – págs. 422/423 – relativamente ao art. 260º a) do revogado CPI de 1995 que, tal como o § 1º do Código de 1940 considerava que a concorrência desleal se manifesta “qualquer que seja o meio empregue” (expressão igual à da al. a) do art. 317º do vigente CPI), acerca dos conceitos de confusão e imitação, no âmbito de lesão dos interesses dos concorrentes (e não de consumidores) escreve:

“A imitação é um grande princípio da vida social, que permite que as inovações vantajosas se expandam rapidamente. É natural que as empresas de ponta, capazes de maior inovação, tragam os progressos na vida empresarial e que esses progressos se generalizem subsequentemente.
A concorrência exige evolução incessante, e não a multiplicação de monopólios que estancam a expansão das práticas e permitem ganhos parasitários […].
Há que ter bem presente que a grande directriz que encontrámos nesse domínio não foi a do repúdio da cópia ou da imitação, mas reacção contra o risco de confusão.
E apenas por trazer (e se trouxer) este risco que o acto de cópia é rejeitado…é necessário que a confusão actue no espírito do público de maneira a fazê-lo tomar um operador ou os seus produtos ou serviços por outros.
Só assim funciona no sentido de uma eventual deslocação de clientela…O que é importante acentuar é que há um certo grau, mesmo de confundibilidade, que é socialmente adequado.
Todos os operadores económicos se imitam.
Toda a imitação traz alguma confusão.
Mas esta só é repelida como concorrência desleal se atingir um certo grau de intolerabilidade.
Temos aqui uma das mais importantes manifestações do princípio, atrás enunciado, de que a liberdade de concorrência prima sobre a concorrência desleal...
É necessário assegurar essa liberdade perante a ameaça da multiplicação dos entraves.
Por isso, um certo nível de confundibilidade é ainda admissível – ou se quisermos, é ainda compatível com as normas e usos honestos.” (destaque e sublinhados nossos).

O titular da marca goza do direito de se opor a que outrem a use sem o seu consentimento, bem como pode impedir o uso de marca que possa ser confundida ou associada àquela que lhe pertence, semelhança essa que pode ser gráfica, fonética ou figurativa.

Em relação às marcas existe, pois, um dever de não adoptar denominações, sejam elas de que espécies forem, susceptíveis de confundibilidade pelo consumidor comum.

Estão em causa salutares regras da concorrência empresarial, a par da protecção dos consumidores, num mundo em que a oferta atinge uma inimaginável variedade, tornando, paradoxalmente, por isso, mais difícil o estabelecimento de padrões ou elementos diferenciadores.

Dito isto importa acentuar que a questão decidenda não assenta na consideração de serem as marcas da Autora ou da Ré passíveis de confusão ante o consumidor comum.

Ficou provado que a confusão existe – F) dos factos provados – não obstante a diferença de logótipo da Autora, um animal – cfr. item J) dos factos provados – e o da Ré a representação de um automóvel Volkswagen (tradicionalmente conhecido o modelo representado por “Carocha”).

A decisão da 1ª Instância considerou, erradamente, que a Ré havia excepcionado a caducidade do direito de accionar – e dizemos erradamente, pelo facto incontroverso de a Ré não ter invocado na contestação tal excepção, que não é sequer de conhecimento oficioso por não estarem em causa direitos indisponíveis (arts.333º, nºs 1 e 2, e 303º do Código Civil) – concluindo pela improcedência de tal excepção, mas considerando que a longa inércia da Autora em reagir à alegada confundibilidade das marcas, quando há mais de 10 anos sabia desse facto, sendo que em Amarante ambas as sociedades têm estabelecimentos a dezenas de metros, consubstanciava abuso do direito.

Também a Relação do Porto analisou o recurso sob o enfoque do abuso do direito, considerando que a recorrente assim actuou pela longa inércia em reagir, criando na Ré a expectativa de não invocar a confundibilidade das marcas.

Pretende a recorrente que houve erro na apreciação dessa actuação, porquanto “quem intentou a presente Acção foi a sociedade AA, Lda. que adquiriu, por escritura celebrada em 15 de Junho de 2005 o registo do nome de estabelecimento nº 00000 SAPATARIA Carochinha, o registo da marca nº000000 Carochinha e o registo da marca nº000000 Carochinha, conforme resulta dos documentos 1, 2, 3 e 4 da petição inicial e com base nos quais resultou a factualidade assente pelas Instâncias.
E quem demandou criminalmente a sociedade Ré em 1993 e de cujo processo resultou o referido despacho de arquivamento foi a sociedade DD, Lda.
A sociedade AA, Lda., a Autora e ora Recorrente, nada têm a ver com a sociedade DD, Lda.”

Pretende, assim, que, pese embora as marcas citadas terem pertencido a uma sociedade que a Autora adquiriu em 15.6.2005, não se pode considerar que o tempo passado sem oposição à denominação social usada pela Ré e à confundibilidade da denominação social, não relevam como circunstância reveladora da inércia e, logo não se podendo considerar que tendo instaurada a acção em 2006 a sua conduta tenha incutido na ré confiança no não exercício do direito que exerce na acção, pelo que não existe abuso do direito.

Importa esclarecer que a ora Autora foi inicialmente denominada “DD Lda.”, e era a detentora dos seguintes direitos de propriedade industrial: Marca Carochinha, registada desde 20 de Março de 1992, com o n.º 000000, para assinalar “botas, sapatos e pantufas” – doc. de fls. 53 a 57; Marca Carochinha, registada desde 22 de Abril de 1985, com o n.º 000000, para assinalar “malas, carteiras (de bolso) e carteiras em couros” – doc. de fls. 58 a 62 – bem como o nome de estabelecimento n.º 00.000“Sapataria Carochinha”, registado desde 05 de Janeiro de 1987 – cfr. doc. de fls. 48 a 51.

Temos, assim, que a marca “Carochinha” agora da Autora, está registada desde 22.4.1985 e 20.3.1992 e o estabelecimento da Ré desde 5.1.1987, muito embora em 6.4.2000 tenha alterado a sua denominação social para “Sapataria Carocha, Unipessoal Lda.” (antes “Sapataria Carocha, Lda.”), o que temos por irrelevante para apreciar da pretensa confundibilidade entre a denominação social da marca da Autora – “Carochinha” e o nome do estabelecimento da Ré “Sapataria Carocha, Unipessoal, Lda.”.

A recorrente, bem sabendo que em 1993, a anterior proprietária das marcas “Carochinha” participou criminalmente contra BB “proprietário” do estabelecimento “Sapataria Carocha”, pelo uso abusivo dessa marca, concorrência desleal, e denominação do seu estabelecimento comercial, e que sem reacção da queixosa o processo-crime foi arquivado, em 5.1.1994 (doc. de fls. 34/35 não impugnado), por se ter considerado que não existia concorrência desleal em função da similitude da denominação social dos estabelecimentos, pretende que tendo adquirido àquela sociedade e com ela o registo da marca e nome do estabelecimento em 2005, que esse tempo de utilização pela Ré da marca pretensamente confundível se lhe não opõe, pelo que não incorreu em abuso do direito.

A Ré vem explorando na cidade de Amarante, desde 1993, o seu estabelecimento comercial de sapataria, sob a denominação “Sapataria Carocha”, na mesma rua em que a Autora explora o seu, sob a denominação “Sapataria Carochinha”.

A Ré encontra-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Amarante desde 13/01/1994, sob a denominação “Sapataria Carocha, Lda.” e viu a sua constituição publicada no D.R. n.°45, em 23/02/1994 – cfr. fls. 32.

Pese embora a sociedade CC Lda. ter reagido contra o comportamento ilícito da Ré participando-o ao Ministério Público, em 1993, e imputando àquela sociedade “Sapataria Carocha, Lda.” a prática de um crime de concorrência desleal, tal inquérito, como vimos, veio a ser arquivado por decisão proferida em Janeiro de 1994, sem que exista notícia, nos autos, de ter a Autora, como titular dos direitos alegadamente violados, reagido contra essa decisão e à conduta da Ré, limitando-se a instaurar a presente acção em 03/3/2006, volvidos mais de onze anos sobre aquela decisão, não podendo escudar-se na mera alteração da denominação social da Ré, para se auto-responsabilizar apenas pelos factos que considera ilícitos, a partir de 2005.

A propriedade da marca confere ao seu titular o direito de propriedade e de a usar em exclusivo, não resultando tais direitos senão do registo, já que no sistema de eficácia constitutiva e atributiva do registo, que é o nosso, prevalece o direito de quem primeiro registou a marca, princípio com assento no actual art. 224º do CPI.

Do estabelecimento comercial fazem parte elementos corpóreos e incorpóreos, entre os quais os sinais distintivos essenciais ao cumprimento de actuações leais na prática comercial, pelo que quem é titular desses direitos é a sociedade que detém e usa no seu estabelecimento as marcas que a seu favor registou, pelo que, havendo transmissão da titularidade da sociedade detentora dos registos das marcas e da denominação social do estabelecimento, mais a mais há longo tempo registados, e mudando apenas a denominação do nome da sociedade como sucede no caso, não pode a Autora, agora titular dos direitos que considera violados por um concorrente, “esquecer” o passado em relação à imitação e/ou ao risco de confusão das marcas para afirmar que, apenas em 2005 se tornou dona das marcas pertencentes ao estabelecimento que adquiriu, e que logo no ano de 2006 intentou a acção, visando a proibição de uso da marca da Ré que considera confundível com a sua.

Senão antes, a reacção do titular das marcas (a Autora e a sua antecessora) poderiam e deveriam ter reagido quando o Ministério Público em 5.1.1994 arquivou a queixa-crime da Autora (sua antecessora).

Ao não o fazer e ao intentar a acção mais de onze anos volvidos é razoável considerar que a Ré tenha investido na confiança que a sua conduta não afrontava o direito agora questionado, mais a mais ante a consideração de que o inquérito foi arquivado por considerar que não existia concorrência desleal.

Ora é esta confiança na estabilidade dos comportamentos, que mais não é que expressão da actuação de boa-fé – art. 762º, nº1, do Código Civil – entendida como comportamento normativo, ou seja, como um agir respeitador dos direitos alheios, mormente, num domínio em que a concorrência leal é um valor caro às relações comerciais e dever ser exercida com lisura e sem ofender os direitos de propriedade intelectual, pelo que se impõe uma rápida actuação quando estão em causa comportamentos de terceiros idóneos a causar prejuízos, que a inércia da Autora é censurável e passível de enquadramento no instituto do abuso do direito – art. 334º do Código Civil – não na modalidade de venire contra factum proprium, como parece ser o entendimento das instâncias, mas como “supressio” do direito da Autora que assim deverá ser penalizada pela sua injustificada passividade (1). durante 11 anos, isto se não nos reportarmos a momento anterior, ao registo mais antigo, que remonta a 22 de Abril de 1985.

A lealdade da concorrência implica a adopção de práticas comerciais honestas, uma vez que a propriedade industrial deve considerar-se expressão da propriedade intelectual, já que abrange elementos de cariz imaterial, que integram o estabelecimento comercial com as suas marcas, invenções, patentes, modelos, desenhos industriais, logótipos, etc.

Daí que a preservação e não infracção dos sinais distintivos do comércio constitua um dos núcleos mais importantes do carácter incorpóreo sobre que incidem muitos dos direitos de propriedade industrial e a sua violação não se compadece com o longo tempo no exercício dos direitos de concorrentes ameaçados por práticas lesivas e que exprimem concorrência desleal.

A omissão, a inércia, fomentam a confiança na situação induzida pelo comportamento omissivo, pelo que o exercício de direitos em contradição é abusivo por violador do princípio da boa-fé suposto na proibição do abuso do direito.

Dispõe o art. 334º do Código Civil.

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

A concepção adoptada de abuso do direito é a objectiva.

Não é necessária a consciência de se excederem, com o seu exercício, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico; basta que se excedam esses limites.

O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117.

A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava.

“Há abuso do direito, segundo a concepção objec­tiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.
Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – “ Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, Antunes Varela.

Na Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 119, pág. 232, sobre o abuso do direito e a tutela da confiança, escreveu Baptista Machado:

“Dentro da comunidade das pessoas responsáveis (ou imputáveis), a toda a conduta (conduta significativa, comunicativa) é inerente uma “responsabilidade” – no sentido de um “responder” pelas pretensões de verdade, de rectitude ou de autenticidade inerentes à mensagem que essa conduta transmite (...).
Desta “autovinculação” inerente à nossa conduta comunicativa derivam ao mesmo tempo regras de conduta básicas, também postuladas pelas exigências elementares de uma ordem de convivência e de interacção, que o próprio direito não pode deixar de tutelar, já que sem a sua observância nem essa ordem de convivência nem o direito seriam possíveis (...).
Do exposto podemos também concluir que o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamentalíssimo e que a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem”. (destaque e sublinhado nossos)

Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil” – Colecção Teses, pág.745, considera, ainda, a existência de outras categorias de actos abusivos – a “supressio” e “surrectio”.

“Há suppressio quando uma posição jurídica, não tendo sido exercida durante certo tempo, não mais possa sê-lo por, de outra forma, se atentar contra a boa fé; ocorreria, pois, uma supressão de certas faculdades jurídicas, pela conjugação do tempo com a boa fé.
A surrectio, por seu turno, traduziria, de algum modo, o inverso do mesmo fenómeno: uma pessoa veria, por força da boa fé, surgir na sua esfera uma possibilidade que, de outro modo, não lhe assistiria.
Seria como que a contraface da suppressio…”.

Ora, no caso que nos ocupa, como se provou – “ambos os estabelecimentos de sapataria de Autora e Ré em Amarante, convivem na mesma rua há vários anos, estando o estabelecimento da Autora aberto nesta cidade desde 1993”.

É um caso nítido de tolerância de uso de marca por um concorrente, capaz de induzir risco de confusão com a marca da Autora, pelo que o perdurar no tempo sem que a Autora tivesse reagido, sendo tão dilatado o período de violação do direito, depreende-se, razoavelmente, pelo seu silêncio que contemporizou com uma situação a que agora, sem invocar quaisquer circunstâncias relevantes supervenientes, pretende obstar em desconsideração pela expectativa e confiança adquiridas pela Ré em que tal direito não seria exercido.

A actuação da Autora, o largo tempo decorrido, o objectivo que visa com a acção, ao fim de largos anos de inércia, aparece à luz da boa-fé e do fim social e económico do direito que pretende exercer, como chocante do sentido de justiça, pelo que não merece ser atendida.

Decisão:

Nestes termos nega-se a revista.

Custas pela recorrente.

Fonseca Ramos (Relator)
Salazar Casanova
Azevedo Ramos
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O art. 267 do CPI de 2003, estabelece uma “preclusão por tolerância”, impondo justamente, em nome da certeza e estabilidade jurídica, uma actuação de oposição ao uso de marca registada ulteriormente, no prazo de cinco anos.
Dispõe: “1 - O titular de uma marca registada que, tendo conhecimento do facto, tiver tolerado, durante um período de cinco anos consecutivos, o uso de uma marca registada posterior, deixa de ter direito, com base na sua marca anterior, a requerer anulação do registo da marca posterior, ou a opor-se ao seu uso, em relação aos produtos ou serviços nos quais a marca posterior tenha sido usada, salvo se o registo da marca posterior tiver sido efectuado de má fé. 2 - O prazo de cinco anos, previsto no número anterior, conta-se a partir do momento em que o titular teve conhecimento do facto. 3 - O titular do registo de marca posterior não pode opor-se ao direito, mesmo que este já não possa ser invocado contra a marca posterior”. José Mota e Maia, in “Propriedade Industrial, Código da Propriedade Industrial Anotado”, Vol. II, pág. 482, em nota ao citado normativo escreve – “…O facto que está subjacente ao disposto no n.°1 do artigo 267.°, […] É um conflito de interesses entre o titular de uma marca registada posteriormente e o titular de direitos anteriores em relação àquela, fundamentados em registo de marca anterior.
Nos termos da referida disposição a questão apoia-se no pressuposto de que a marca posterior foi objecto de uso efectivo e difundida no mercado com a aquiescência, ou, pelo menos, a passividade do titular dos direitos anteriores no conflito.
Nestes casos, parece razoável limitar as possibilidades de defesa dos titulares desses direitos anteriores face à marca de registo e uso posterior, quanto mais não seja, por razões de equidade…, É necessário, igualmente, que o titular da marca de registo anterior conheça o uso que o titular da marca de registo posterior dela faz”