Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B339
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: RECURSO DE APELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ACORDÃO DA RELAÇÃO
FUNDAMENTOS
REMISSÃO
Nº do Documento: SJ200802280003397
Apenso:
Data do Acordão: 02/28/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO.
Sumário : Impugnado para a Relação o quadro de facto tido por assente na decisão proferida no tribunal da primeira instância, não pode a Relação decidir o recurso de apelação por via da remissão a que se reporta o artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I
A "AA, SA" intentou, no dia 28 de Dezembro de 2001, contra BB e CC, DD e EE, os primeiros na posição de mutuários e os últimos como fiadores, acção executiva para pagamento de quantia certa, com processo ordinário, a fim de haver deles a quantia de 12 833 000$.
DD e EE deduziram, no dia 6 de Janeiro de 2003, embargos de executado, afirmando a falta de título executivo em relação a eles, sob o argumento da substituição da obrigação que garantiram.
A exequente, na contestação, afirmou que a quantia exequenda resultou da reestruturação de débitos dos executados BB e CC, sem novação e que se mantêm as garantias anteriores, incluindo a de fiança prestada pelos embargantes.
Na fase da condensação, foi proferida sentença, no dia 5 de Janeiro de 2007, por via da qual foram os embargos julgados procedentes e os embargantes absolvidos do pedido exequendo.
Apelou a embargada, e a Relação, por acórdão proferido no dia 5 de Julho de 2997, julgou o recurso improcedente.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- a Relação não apreciou a questão da modificação da matéria de facto por forma a considerar provado que a obrigação assumida pelos mutuários, garantida por fiança dos recorridos, persiste por cumprir;
- não decidindo pela verificação da falta de pagamento integral do empréstimo garantido pela fiança, a Relação violou os artigos 712º, nº 1, alíneas a) e b) 713º, nº 5, do Código de Processo Civil e 651º e 762º, nº 1, do Código Civil;
- os recorridos constituíram-se fiadores e principais pagadores relativamente ao contrato de empréstimo reestruturado, no montante de 12 833 000$, acrescidos de juros e despesas;
- eles deram o seu acordo a eventuais alterações, moratórias e outras modificações a fixar ou a convencionar entre a recorrente e os mutuários DD e CC;
- a validade e a eficácia da fiança até ao limite do valor que garante no quadro do posterior contrato de reestruturação desse e de outros empréstimos não dependia da assinatura desse último contrato;
- à reestruturação dos créditos é estranha a ideia de substituição, novação ou extinção de dívidas, créditos e suas garantias, pelo que a fiança permanece enquanto não estiver paga a dívida até ao limite do valor por ela garantido;
- assim não tendo decidido, a Relação violou o artigo 627º do Código Civil.

II
É a seguinte a factualidade considerada assente no acórdão recorrido:
1. Por escrito datado de 4 de Fevereiro de 1994, denominado contrato de empréstimo e de garantias, relativo à proposta de crédito n.º 02139274, na modalidade de mútuo, no montante de 12 833 000$, a AA, SA concedeu a BB e CC um empréstimo daquele montante, à taxa de juro anual de 19,25%, pelo prazo de 60 meses, a amortizar em prestações anuais postecipadas.
2. Por escrito datado de 4 de Fevereiro de 1894, DD e EE – os recorrentes - e outros, declararam constituir-se fiadores solidários e principais pagadores do capital, juros e demais encargos objecto do contrato referido sob 1.
3. Os mutuários referidos sob 1 liquidaram, nos prazos e condições ali estabelecidas, as obrigações contraídas perante a mutuante, pagando as quantias, em 4 de Fevereiro de 1995 a de € 24 415,66, em 4 de Fevereiro de 1996 a de € 21 017,23 e, em 4 de Fevereiro de 1997, a de 16.764,60€;
4. No dia 6 de Junho de 1997, os mutuários efectuaram a liquidação antecipada do remanescente do capital, respectivos juros e despesas, objecto do contrato referido sob 1, no valor global de € 25 684,20.
5. Por escrito datado de 25 de Novembro de 1997, FF e GG declararam constitui-se fiadores solidários e principais pagadores do capital, juros e demais encargos objecto do contrato referido sob 3 e 6.
6. Por escrito datado de 26 de Novembro de 1997, denominado contrato de empréstimo-reestruturação de dívidas das empresas do sector agrícola e agro-industrial”,que os executados não subscreveram, relativo à reestruturação, entre outros, da dívida resultante do contrato referido sob 1, a AA, SA concedeu a BB e CC um empréstimo no montante de 13 900 000$, à taxa de juro anual de 7,500%, pelo prazo de 5 anos, com início/utilização efectiva em 6 de Junho de 1997, a amortizar em prestações anuais, vencendo-se a primeira 3 anos após a data do início/utilização efectiva.
7: No escrito referido sob 6 constam manuscritas, a clausula adicional 9.2. com o seguinte teor “Em substituição do disposto na cláusula 8.1., estabelece-se que o presente contrato se destina a reestruturar as dívidas contraídas e não pagas, junto da AA, SA, que tenham decorrido de investimentos realizados entre 1 de Julho de 1986 e 5 de Junho de 1997, pelo que não há novação, mantendo-se em vigor as operações ora reestruturadas em tudo o que não for contrário à respectiva reestruturação, bem como se mantêm em vigor as garantias constituídas”.
8. A cláusula de garantias 9.3., constante do escrito mencionado sob 6, tem o seguinte teor: “Garantias específicas da presente reestruturação, a constituir acessoriamente, em anexo e como parte integrante: Hipoteca de veículos automóveis e penhor de equipamento, para garantia do capital da reestruturação e respectivos juros … os contraentes FF … e HH … constituem-se fiadores solidários e principais pagadores.”
9. BB CC deixaram de cumprir as obrigações emergentes do contrato referido sob 6.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se aos recorridos assiste ou não o direito à extinção da acção executiva em causa no confronto da recorrente.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- lei adjectiva aplicável no caso-espécie;
- dinâmica do procedimento de embargos de executado ocorrida no tribunal da primeira instância e do recurso da decisão nele proferida;
- omitiu ou não a Relação a apreciação do âmbito do quadro de facto considerado assente pelo tribunal da primeira instância;
- natureza e efeitos dos contratos celebrados entre a recorrente, por um lado, e BB e CC, por outro;
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre os recorrentes e a recorrida;
- abrange ou não o último dos referidos contratos a quantia exequenda em causa?

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos por uma breve referência à lei adjectiva aplicável ao procedimento de oposição em causa.
Uma vez que a acção executiva em causa foi instaurada antes de 15 de Setembro de 2003, são-lhe aplicáveis as normas processuais anteriores às decorrentes da reforma operada pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março (artigo 21º, nº 1).
Em consequência, estamos ainda perante a já extinta designação de embargos de executado, a que se reportam os artigos 813º a 820º do Código de Processo Civil.

2. Prossigamos com a análise da dinâmica do procedimento de embargos de executado ocorrida no tribunal da primeira instância e do recurso da decisão nele proferida.
O tribunal da primeira instância decidiu do mérito dos embargos de executado na fase da condensação.
Actuou ao abrigo da lei de processo, segundo a qual, findos os articulados, se não houver que proceder à convocação da audiência preliminar, deve o juiz conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória (artigo 510º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil).
O Juiz do tribunal da primeira instância, a partir das afirmações dos embargantes, ora recorridos, e da embargada, ora recorrente, e dos documentos juntos com o requerimento executivo e com os articulados da petição e de contestação no âmbito do procedimento de embargos de executado, definiu determinado quadro de facto que considerou assente e, com base nele, julgou os embargos procedentes.
No recurso de apelação, a recorrente afirmou existirem no processo elementos necessários e suficientes para que a Relação modificasse a matéria de facto declarada assente na sentença recorrida por forma a dar como provado que a obrigação assumida pelos mutuários e garantida pela fiança não estava extinta por via pagamento invocado pelos recorridos.
A Relação, na decisão que proferiu no recurso de apelação, expressou, por um lado, ter este por objecto a discordância quanto à aplicação do direito aos factos e a consequente decisão jurídica.
E, por outro, quanto à subsunção do direito aos factos e à decisão jurídica proferida, referiu não merecer a sentença qualquer reparo e poder e dever ser confirmada face à evidente falta de fundamento do recurso.
Finalmente, mencionou que, sem necessidade de mais considerações, por concordar com os fundamentos de facto e de direito da sentença, para os quais remetia nos termos do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil, acordarem os juízes no sentido da improcedência da apelação e confirmarem a decisão recorrida.


3.
Atentemos agora na subquestão de saber se a Relação omitiu ou não a apreciação do âmbito do quadro de facto considerado assente pelo tribunal da primeira instância.
No recurso de revista, alegou a recorrente, por um lado, ter colocado em causa no recurso de apelação a apreciação pelo tribunal da primeira instância dos documentos disponíveis reveladores de que não foi paga a totalidade do seu direito de crédito garantido pelo contrato de fiança celebrado com os recorridos.
E, por outro, que a Relação fez mau uso dos poderes conferidos pelo 712º, nº 1, alíneas a) e b), e aplicou ilegalmente o disposto no artigo 713º, nº 5, ambos do Código de Processo Civil, apesar de haver colocado em crise a matéria de facto, limitando-se a dar por certa a sentença proferida à revelia do teor dos referidos documentos.
Reporta-se a alínea a) do nº 1 do artigo 712º do Código de Processo Civil à possibilidade de a Relação alterar a decisão da matéria de facto proferida no tribunal da primeira instância se do processo constarem todos os elementos que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa, ou se, tendo ocorrido a gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690º-A, a decisão com base neles proferida.
Refere, por seu turno, a alínea b) do nº 1 do mencionado artigo a possibilidade de alteração da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da primeira instância se os elementos fornecidos pelo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.
Ora, no caso vertente, como não houve no tribunal da primeira instância julgamento, e, consequentemente, não houve decisão da matéria de facto, a Relação não podia infringir, como não infringiu, o disposto nas alíneas a) e b) do nº 1 do artigo 712º do Código de Processo Civil.
Não tem, por isso, fundamento legal a alegação da recorrente no sentido de que a Relação fez mau uso dos poderes conferidos pelas aludidas normas, certo que, na realidade, não as aplicou.
Importa, agora, averiguar se a Relação infringiu ou não o disposto no artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil.
Expressa o referido normativo que se a Relação confirmar inteiramente, sem qualquer declaração de voto, o julgado em primeira instância, quanto à decisão e respectivos fundamentos, pode limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada.
Assim, permite o normativo em análise que a fundamentação do acórdão da Relação se cinja à remissão para a sentença recorrida, ou seja, ao remeter para os fundamentos da sentença impugnada assume como seus os fundamentos de facto e de direito dela constantes.
O funcionamento deste normativo pressupõe, como é natural, por um lado, que o colectivo de juízes da Relação aceite de pleno a sentença recorrida, isto é, os respectivos fundamentos e a parte decisória.
E, por outro, que o conteúdo das conclusões de alegação formuladas pelo recorrente - ou pelo recorrido no caso de ampliação do recurso - seja insusceptível de afectar negativamente o decidido na primeira instância.
Atentemos agora sobre se o acórdão recorrido está ou não afectado de nulidade por omissão de pronúncia, que a recorrente, implicitamente suscitou no recurso de revista.
O juiz ou o colectivo de juízes deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (artigo 660º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Importa, porém, ter em linha de conta que uma coisa são os argumentos ou as razões de facto e ou de direito e outra, essencialmente diversa, as questões de facto ou de direito.
As questões a que se reportam a alínea d) do nº 1 do artigo 668º e o nº 1 do artigo 716º, ambos do Código de Processo Civil, são os pontos de facto e ou de direito relevantes no quadro do litígio, ou seja, os concernentes ao pedido, à causa de pedir e às excepções.
Julgada que seja procedente a nulidade decorrente de omissão de pronúncia pela Relação, se for caso disso, impõe-se a baixa do processo a fim de aquele Tribunal operar a reforma do acórdão (artigo 731º do Código de Processo Civil).
A recorrente colocou à Relação, nas conclusões de alegação do recurso de apelação uma questão de facto e outra de direito, que não foram concretamente decididas em virtude de se ter proferido em relação a elas decisão de conformidade, nos termos do artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil.
As referidas questões são, essencialmente, por um lado, a da errada apreciação da prova documental constante do processo, e, por outro, por virtude desse erro, a ilegalidade do decidido ao abrigo das normas aplicáveis.
Assim, suscitou a recorrente no recurso de apelação a modificação do quadro de facto tido por assente no tribunal da primeira instância, pedindo a sua reapreciação com base nos documentos disponíveis.
A estrutura do acórdão que resulta da lei é no sentido de que ao relatório se seguem os fundamentos, no âmbito dos quais o juiz deve discriminar os factos que considera provados (artigos 659º, nº 2, e 713º, nº 2, do Código de Processo Civil).
A Relação só pode limitar-se a remeter para os termos da decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal da 1ª instância se no recurso dela não houver impugnação nem fundamento para a sua alteração oficiosa (artigo 713º, nº 6, do Código de Processo Civil).
Acresce que a Relação só pode remeter para decisão proferida pelo tribunal da primeira instância e para os respectivos fundamentos no caso de os confirmar inteiramente (artigo 713º, nº 5, do Código de Processo Civil).
Da conjugação do que se prescreve nos nºs 5 e 6 do artigo 713º do Código de Processo Civil resulta que, tendo havido impugnação do quadro de facto tido por assente na decisão proferida no tribunal da primeira instância, não pode a Relação decidir nos termos do primeiro dos referidos normativos.
No caso vertente, não podia a Relação limitar-se a remeter para os fundamentos de facto da sentença proferida pelo tribunal da primeira instância, porque, no recurso de apelação, foram os mesmos impugnados.
Daí que não podia julgar o recurso de apelação por via da remissão para os fundamentos de facto e de direito envolventes da sentença proferida pelo tribunal da primeira instância.
Assim, remetendo ilegalmente para a decisão e os fundamentos da sentença proferida pelo tribunal da primeira instância, infringiu a Relação o disposto no nº 5 do artigo 713º e incorreu na omissão de pronúncia a que se reporta a alínea d) do nº 1 do artigo 668º, todos do Código de Processo Civil.
A conclusão é, por isso, no sentido da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, implicitamente invocada pela recorrente no recurso de revista.

4.
Vejamos agora a natureza e os efeitos dos contratos celebrados entre a recorrente, por um lado, e BB e CC, por outro.
Como a decisão desta questão e das enunciadas a seguir depende da prévia decisão da referida impugnação do quadro de facto fixado no tribunal da primeira instância, está naturalmente prejudicado o respectivo conhecimento (artigos 660º, n.º 2, 1ª parte, 713º, n.º 2 e 726º do Código de Processo Civil).

5.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso-espécie decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.
O acórdão recorrido está afectado de nulidade por omissão pronúncia.
Impõe-se, por isso, a sua anulação e a remessa do processo à Relação a fim de esta proceder à sua reforma, nos termos acima referidos, com a consequência de ficar prejudicado o conhecimento das restantes questões de direito suscitadas pela recorrente.
Procede, nos referidos termos, o recurso de revista interposto pela AA, SA.
Dada a natureza formal desta procedência, é responsável pelo pagamento das custas respectivas a parte que ficar vencida a final, na proporção em que o for (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, anula-se o acórdão recorrido e determina-se que a Relação o reforme por via do conhecimento da impugnação do quadro de facto e de direito e condena-se a parte vencida a final no pagamento das custas respectivas.

Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Fevereiro de 2008.

Salvador da Costa (Relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis