Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A4653
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: PINTO MONTEIRO
Descritores: ARRENDAMENTO
ACTIVIDADE ACESSÓRIA
FIM CONTRATUAL
DESPEJO
SUBLOCAÇÃO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
ALTERAÇÃO DO FIM CONTRATUAL
CADUCIDADE
USUFRUTUÁRIO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
MÁ FÉ
Nº do Documento: SJ200504070046531
Data do Acordão: 04/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - Destinando-se o andar arrendado a "boutique de senhora", não existe afectação do locado a fim diverso do contratado (artigo 64º n.º 1, alínea b) do RAU), se aí se vender roupa de senhora e se realizar pequena e artesanal confecção de alguma.
II - Essa artesanal confecção surge como complemento da actividade da venda, existindo uma conexão, um limite de acessoridade, sendo que numa "boutique" são, em regra, realizados arranjos, modificações, acertos, existindo assim uma relação de instrumentalidade.
III - Não seria assim se o uso dos meios empregues fosse de molde a causar deterioração, diminuição de comodidade ou desvalorização do locado.
IV - O autor ao incorrer em contradição com comportamentos anteriores ("venire contra factum proprium"), pedindo que seja decretado o despejo por exercício de uma actividade que durante anos foi autorizada, e sem que tenha existido qualquer nova ocorrência ou alteração da situação existente, atenta contra a boa fé.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

I - "A", Lda intentou acção com processo ordinário contra B, Lda, pedindo que se declare a resolução da relação sublocatícia existente e se condene a ré a entregar à autora o local sublocado.

Alegou que parte do locado foi cedido à ré sem autorização da autora-arrendatária ou da senhoria, tendo a ré alterado a actividade que era exercida na loja.

Contestando, a ré excepcionou a caducidade, e em sede de impugnação, sustentou que a posição de sublocatária da ré foi aceite expressamente pela autora e, em reconvenção, pediu que a autora seja condenada a emitir os recibos correspondentes às rendas e às comparticipações das despesas.

O processo prosseguiu termos, tendo tido lugar audiência de julgamento, sendo proferida sentença que decidiu pela procedência da acção e improcedência da reconvenção.

Apelou a ré.

O Tribunal da Relação confirmou o decidido.

Novamente inconformada, recorre a ré para este Tribunal.

Formula as seguintes conclusões:
- A actividade de venda e confecção de roupas de senhora é exercida no sublocado desde 1981;
- O autor recebeu as rendas referente ao sublocado desde 1981 até 1987 pagas pelo C;
- A partir de 1987 recebeu as rendas pagas pela sociedade ré através de cheque sacado sobre uma conta da ré;
- Nos cheques consta a denominação da ré - B, Lda;
- A acção de despejo foi proposta em 1999, dezasseis anos após C ter permanecido no locado a desenvolver a actividade de venda e confecção de roupa;
- Doze anos após a sociedade ser constituída e procedido ao desenvolvimento da mesma actividade cumprindo escrupulosamente os seus deveres de pagamento de renda e comparticipação nas despesas;
- A autora nunca se opôs ao desenvolvimento da actividade de confecção no sublocado;
- Beneficiou do exercício desta actividade, quer recebendo as rendas e comparticipação das despesas, quer usufruindo da mesma ao solicitar estes serviços à ré;
- Com o seu comportamento criou na ré a legítima convicção de aceitação da actividade exercida no locado - venda e confecção de roupa de senhora;
- Este comportamento, apreciado objectivamente, na perspectiva de um declaratário sensato, revela inequivocamente de modo implícito, com toda a probabilidade, a aceitação do autor para que fosse exercida no locado a actividade de boutique e confecção de roupas de senhora;
- Estamos perante uma declaração tácita de aceitação por parte da autora, outro entendimento não se podendo retirar do seu comportamento omisso ao longo de tão grande período de tempo, sendo o mesmo incompreensível se não for considerado como tácita anuência à actividade desenvolvida no locado;
- Para o apuramento da verdade material e com vista a alcançar a justa composição e interpretação do litígio de forma a obter decisão justa e correcta, deverá considerar-se os factos dos quais o Tribunal de 1ª instância conheceu, no que se refere às relações de amizade existente entre o sócio gerente da autora e da ré;
- Bem como da forma como se organiza o espaço comercial no prédio arrendado, sendo que o acesso às diversas lojas se faz por dentro da loja da autora ou da ré, que confinam por vezes sem paredes divisórias;
- E ainda o facto de o sócio gerente da autora ter mandado confeccionar as fardas para as empregadas do seu estabelecimento no atelier da sociedade ré;
- Os factos anteriormente referidos foram alegados pela ré na sua contestação, pelo que o Tribunal de 1ª instância podia dos mesmos conhecer;
- O exercício do direito de resolução do subarrendamento por parte da autora reconduz à figura de abuso de direito nos termos do artigo 334º do CC;
- O exercício de um direito poderá ser ilegítimo, pois quando houver manifesto abuso, ou seja, quando o direito seja exercido em termos clamorosamente ofensivos da justiça, traduzindo uma clamorosa ofensa ao sentimento jurídico socialmente dominante;
- Estamos perante um comportamento que viola manifestamente os limites imposto pelo princípio basilar da boa fé enquadrado no denominado "venire contra factum proprium";
- Comportamento que atinge proporções juridicamente intoleráveis que se traduz em aberrante e chocante contradição com o comportamento anteriormente adoptado pela autora - aceitação do pagamento da renda, cobrança de comparticipação de pagamento de despesas de água e luz, bem como utilização dos serviços de confecção prestados pela autora;
- A actividade de boutique não poderá ser apreciada, somente através da literalidade do seu significado em termos de definição de dicionário;
- Deverá ter-se em conta os usos comuns;
- Um estabelecimento de boutique é usualmente associado à alta costura, sendo normal a confecção de peças de roupa, tendo em conta que se encontra vocacionada para uma clientela específica, oferecendo não só produtos standarizados, mas igualmente a confecção de peças tendo em atenção as características específicas do cliente;
- Sendo normal a existência de um atelier - sala de trabalho - para a confecção;
- A confecção acompanha normalmente a actividade de boutique, sendo necessária para o seu desenvolvimento;
- Resulta de tudo o exposto que a ré não deu ao locado uma utilização que viole os termos no disposto do artigo 64º n.º 1, alínea b) do RAU;
- Resulta ainda que a autora anuiu dando o seu consentimento tácito ao desenvolvimento da actividade de confecção no sublocado;
- A decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos artigos 264º do CPC, 217º do CC e 334º do CC.

Contra-alegando, a autora defende a manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Vem dado como provado:

Por escritura de 07.11.79 a Companhia de Seguros D deu de arrendamento à sociedade autora a loja 17-A e r/c esquerdo do prédio urbano situado na Av. Guerra Junqueiro, 17 a 17-B, em Lisboa;

Nos termos desse contrato, a autora ficou autorizada a sublocar parte do local arrendado, não podendo esses sublocatários ceder os seus direitos nem mudar de ramo sem autorização escrita do senhorio;

Por escritura de 10.09.87 foi constituída a sociedade por quotas B, Lda, tendo como sócios C e irmã;

Dão-se por reproduzidos todos os documentos juntos nos autos;

Na data em que foi celebrada a escritura de arrendamento, em 07.11.79, já E trabalhava no local subarrendado com C;

A autora sublocou parte do local arrendado apenas à E, para actividade de boutique de senhora e não ao C;

Em 1981 a E deixou o local, nele ficando C a exercer a actividade de venda e confecção de roupa de senhora;

A autora recebia as rendas pagas por C;

Desde 1987 a autora passou a receber as rendas da sociedade ré e a comparticipação desta nas despesas de água e electricidade;

A sociedade ré pagava as rendas através de cheque sacado sobre uma conta da ré.

III - Intentada acção de despejo, veio a ser decretada a resolução da relação sublocatícia e condenada a ré a entregar à autora o local sublocado, com o fundamento de que existiu alteração da finalidade contratual do locador.

Teria assim havido violação da regra prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 64º do RAU, que estipula que o senhorio pode resolver o contrato de arrendamento se o arrendatário usar ou consentir que outrem use o arrendado para fim ou ramo de negócio diverso daquele a que se destina.

Em concreto, vem dado como provado que parte do local arrendado foi sublocado para "actividade de boutique de senhora", vindo a ser exercida no local "a actividade de venda e confecção de roupa de senhora". Entenderam as instâncias que foi assim preenchido o condicionalismo do referido fundamento.

Daí o recurso.

Defende a recorrente que:

O comportamento da autora integra o venire contra factum proprium;

A confecção acompanha normalmente a actividade de boutique, sendo necessária para o seu desenvolvimento, pelo que não ocorre o fundamento.

São estas as questões a resolver.

É entendimento dominante na doutrina e na jurisprudência que a solução da lei ao permitir a resolução do arrendamento se o local for afectado a fim diverso do que houver sido acordado se funda na necessidade de garantir que não é nele desenvolvida actividade que provoque mais desgaste ou deterioração do que os previstos, causando uma eventual desvalorização. A ter em conta ainda a possível diminuição de segurança e da comodidade e até, por outro lado, o desiquilíbrio que uma mudança de actividade pode causar nas prestações acordadas - Prof. Lobo Xavier, RLJ 116, págs. 105, 153 e 179; Ac. STJ de 21.03.2000 CJ I, pág. 136.

Nada disto vem dado como provado e nem sequer foi alegado.

Sendo assim, não existindo nenhum dos motivos referidos, haverá que interpretar o contrato celebrado, por forma a concluir qual a vontade das partes e saber se o fim último foi ou não respeitado.

Constata-se da escritura de arrendamento que os locais arrendados se destinavam ao exercício dos seguintes ramos: sapataria, boutique de pronto-a-vestir para homem, senhora e criança, mini-bar, perfumaria, tabacaria, malas, decorações, brinquedos, bazar e cabeleireiro. Há assim uma vastidão de ramos permitidos acrescentando-se no parágrafo único que "o exercício dos referidos ramos deverá ser feito de modo a não incomodarem ou prejudicarem os vizinhos e inquilinos do prédio, dando aso a quaisquer reparos".

No caso em apreço a parte locada destinava-se ao "ramo de boutique de senhora".

Não vem dada como provada factualidade que mostre ter sido violado o referido parágrafo, ou seja, que do exercício da actividade desenvolvida no locado resultou incómodo ou prejuízo para vizinhos e inquilinos ou que tenha sido feito qualquer reparo.

Chegados aqui, resta saber se a actividade desenvolvida no locado se afasta do fim para que o mesmo foi destinado.

Os termos em que o negócio foi realizado não são decisivos, nem existem nos autos elementos interpretativos que mostrem com clareza qual o sentido da declaração negocial, como seriam os interesses em jogo, a finalidade perseguida pelo declarante, as negociações prévias, as precedentes relações negociais entre as partes, os usos da prática, na terminologia do Prof. Manuel de Andrade - "Teoria Geral de Relação Jurídica" 2º, pág. 313.

Destinando-se o andar a "boutique de senhora" não existe afectação do locado a fim diverso do contratado, se aí se vender e confeccionar roupa de senhora. Não seria assim se o uso dos meios empregues fosse de molde a causar deterioração, diminuição de comodidade, desvalorização. Nada disto, contudo, acontece, como já está dito. Não são referidos máquinas, barulhos, incómodos, pelo que, necessariamente (até pelo espaço diminuto), se trata de pequena e artesanal confecção. Ora, este tipo de actividade é acessória, instrumental de uma "boutique de senhora" onde são, como regra, realizados arranjos, modificações, acertos, existindo assim uma relação de instrumentalidade. A confecção (sem que venha precisado em que termos se desenvolve) surge como complemento da actividade da venda, tratando-se, como se trata, de uma "boutique". Há assim uma conexão, um limite de acessoridade que não é transposto, já que a confecção e venda estão ligados ao ramo de negócio expressamente autorizado.

Em concreto, a outra conclusão não se poderia chegar sem violar o princípio da boa fé.

Resulta com clareza dos autos que foi com conhecimento do senhorio que durante anos foi exercida no locado a mesma actividade, sem que, por qualquer forma, fossem tomadas medidas destinadas a impedi-la.

Estando-se perante uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente, surge a figura do venire contra factum proprium. A base legal encontra-se no artigo 334º do C. Civil, fundando-se na boa fé.

A pessoa que manifeste a intenção de não praticar determinado acto e depois o pratique, pode ser condenada, em certas circunstâncias, ainda quando o acto em causa seja permitido, por integrar o conteúdo de um direito subjectivo - Prof. Menezes Cordeiro - "Da Boa Fé no Direito Civil", 1984, II, principalmente pág. 747, 754, 755 e 756.

A ligação à doutrina da confiança leva a que exista violação da boa fé, sobretudo quando a outra parte pode confiar numa determinada situação jurídica ou material proveniente do comportamento anterior do titular do direito e actuou com base nisso.

O autor ao incorrer em contradição com comportamentos anteriores, pedindo que seja decretado o despejo por exercício de uma actividade que durante anos foi autorizada, e sem que tenha existido qualquer nova ocorrência ou alteração da situação existente, atenta contra a boa fé.

Impõe-se assim a revogação do decidido, sendo a acção improcedente.

Pelo exposto, concede-se a revista.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 7 de Abril de 2005

Pinto Monteiro
Lemos Triunfante
Reis Figueira