Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1614/05.8TJNF.S2
Nº Convencional: 1ª SECÇÂO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: REVOGAÇÃO DE CHEQUE
CAUSA VIRTUAL
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :

1) Como regra, o Banco está obrigado, nos termos da convenção que celebrou com o sacador (titular da provisão) a pagar à vista a soma inscrita no cheque desde que a conta do sacador tenha fundos disponíveis.

2) A revogação do cheque consiste na declaração do sacador ao Banco para que não o pague, apesar do título já ter entrado em circulação.

3) O instituto da revogação rege-se pelo artigo 32.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, sendo controversa a vigência da segunda parte do artigo 14.º do Decreto n.º 13004 de 12 de Dezembro de 1927, uma vez que Portugal não opôs qualquer reserva ao artigo 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912 que consagrou a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa (alínea a) do artigo 16.º do Anexo III) e o citado artigo 32.º só acolheu a 1.ª parte do corpo daquele artigo 14.º.

4) A ordem de revogação pelo sacador tem de especificar – clara e inequivocamente – os motivos que a determinaram (v.g., desapossamento fraudulento ou aquisição com falta grave) não sendo suficiente a mera alegação genérica de não coincidência entre a vontade real do emitente e o declarado no titulo.

5) O regime da revogação ilícita deve acolher-se nos princípios comuns da responsabilidade civil extracontratual.

6) O portador do cheque que vê o seu pagamento recusado por revogação tem de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana: ilícito, culpa, nexo causal e dano.

7) Ao aceitar uma revogação sem causa legitima, o Banco comete um acto ilícito pois recusa o pagamento do título com esse fundamento, impedindo a sua ulterior, e nova, apresentação a pagamento, retirando-o indevidamente da circulação.

8) Se a conta do sacador não apresentar saldo permissivo do pagamento, o Banco deve recusá-lo, mas por falta de provisão, dando cumprimento ao artigo 1-A do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro e comunicando ao Banco de Portugal para inclusão na listagem a que se refere o artigo 3.º daquele diploma.

9) O facto de o cheque não ter provisão, mas ser recusado por revogação indevida, não exonera a responsabilidade do Banco, por irrelevância negativa da causa virtual, mas o dano do portador deve ser por ele demonstrado, ou seja deve alegar e provar que sem o facto operante (cancelamento) o pagamento ser-lhe-ia efectuado na sequência da notificação ao sacador para provisionar a conta ou pagar-lhe directamente, da inclusão na listagem do Banco de Portugal (que sempre funciona como forma de pressão) ou da possibilidade de, em momento ulterior, voltar a apresentar o cheque a pagamento, assim surgindo a relevância, agora positiva, da causa virtual.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

“AA – Têxteis e Acabamentos, S.A” intentou acção, com processo ordinário, contra “BB, Vestuário Desportivo, Limitada” e “Banco Português de Investimento – BPI, S.A, Sociedade Aberta” pedindo a sua condenação solidária a pagarem-lhe a quantia de 46.400,00 euros acrescida de juros.

Invocou ser portadora de quatro cheques, no montante de 11.600,00 euros cada um, sacados pela primeira ré sobre o Banco réu, mas que, apresentados a pagamento, foram devolvidos com a indicação de “cheque revogado — falta ou vício na formação da vontade”.

Tal declaração resultou de conluio entre os réus, – tanto mais que o Banco réu não podia aceitar uma ordem de revogação de cheques sem averiguar o que estava por trás dessa ordem de revogação, que era evitar a rescisão da convenção de cheque que vigorava entre eles; daí resultarem prejuízos para a autora nesse montante.

Contestou apenas o Banco réu, sustentando, em resumo, que se limitou a observar a ordem de revogação dos cheques dada pela primeira ré e negando qualquer conluio.

Proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções nem nulidades secundárias, foi enumerada a matéria de facto, desde logo dada por assente, e elaborada a base instrutória, de que ninguém reclamou.

Oportunamente, teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto sujeita a instrução, após o que foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou o Banco réu no pagamento à autora da quantia pedida como capital, acrescida de juros legais sobre o montante titulado por cada um dos cheques referidos desde as datas da sua devolução.

A primeira ré foi absolvida do pedido.

O Réu apelou para a Relação do Porto que confirmou o julgado.

O Acórdão veio a ser anulado por este Supremo Tribunal, em sede de revista, para que a matéria de facto fosse reapreciada tal como tinha sido requerido.

Cumprido o determinado, a Relação confirmou, de novo, a sentença recorrida.

O Banco réu pediu revista, assim concluindo a sua alegação:
“- Ao contrário do sustentado no acórdão a quo, a devolução dos cheques agora em causa surgiu sem qualquer influência do gerente da BB, que a (nova) gerência de Vizela do Banco BPI, ao tempo, nem sequer conhecia.
- Pelo contrário, essa decisão foi tomada de acordo com a orientação seguida, nesse domínio, pelo Banco BPI e sem qualquer intenção reservada e/ou menos correcta e, bem assim, sem conhecimento da sua (hipotética) ilicitude.
- Logo, sem culpa por parte de quem a praticou, que, no caso, não se presume.
- A par de ter, como suporte legal, o previsto, na matéria, pelo SICOI, Regulamento difundido pelo Banco de Portugal para aplicação no sistema bancário, que o Banco BPI, que o integra deve observar, como é reconhecido por esse Alto Tribunal.
- O acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 4/2008, de 28.02. p.p., considerou um conjunto de situações, que engloba a ‘falta ou vício de vontade’, que não se enquadram na previsão do art. 32 da LUC.
- Nesta senda, o caso dos autos não deve ser considerado como uma revogação, já que se trata de uma hipótese de ‘falta ou vício de vontade’, prévia e devidamente justificada pela sacadora dos cheques em questão, consubstanciadora de justa causa para assim proceder.
- Deste modo, a actuação do Banco BPI no transe foi séria, fundada e legítima, não suscitando, nem devendo merecer, censura.
- A absolvição da BB, por alegada falta de ‘culpa’ e de produção de ‘danos’, impõe que o Banco BPI seja, também e por maioria de razão, alvo de idêntico tratamento.
- Já que, se colocadas lado a lado, a responsabilidade daquela sociedade, como mandante, foi/é muito superior à imputável ao agora recorrente, como mero executor de ordem emanada e recebida do gerente daquela.
- E se houve danos decorrentes para a AA foram, directamente, provocados pela intervenção/acção da BB, ao impedir o pagamento dos cheques em questão.
- Nessa medida, impunha-se que o Banco BPI fosse, de igual modo, absolvido do pedido formulado.
- Ou, quando muito, condenado em medida correspondente à da sua culpa, manifestamente leve e inferior à da BB.
- Perante a situação crítica em que esta sociedade se encontrava, aliás do prévio e perfeito conhecimento da AA, nada garante que, ainda que os ditos cheques fossem devolvidos por falta de provisão, aquela sociedade os conseguisse cobrar, sequer em parte.
- Deste modo, constitui pura ficção pretender-se fazer coincidir os prejuízos (ditos) causados à AA com o valor facial desses cheques.
- Tanto mais que nenhuma obrigação impendia sobre o Banco recorrente de assegurar o seu pagamento, já que a conta sobre que foram emitidos, aquando da sua apresentação, não estava, para tanto, devidamente provisionada.
- Deste modo, a manter-se a condenação do Banco BPI, apenas conforme admitida a fixação dos danos porventura efectivamente suportados pela AA deverá ser relegada para execução de sentença.
- A decisão em causa afronta os princípios constitucionais da universalidade e da igualdade.
- Ao entender de forma diversa, os Magistrados a quo violaram o disposto nos art°s, 12, 2 e 13, 1, da Constituição da República Portuguesa, 483, 486, 487, 563, 566 e 1170 do CC, 25 e 40 da LUC, 8° do DL n° 316/97 e Anexo à Instrução n° 25/03, de 15.10., do Banco de Portugal (SICOI).
- Em consequência, o acórdão deve ser revogado e substituído por outro que:
A — Julgue improcedente, por não provada, a presente acção, também quanto ao Banco recorrente; ou, subsidiariamente, B — Relegue para execução de sentença a fixação dos danos porventura sofridos pela recorrida, por ‘acção’ do Banco BPI e de acordo com a sua culpa tocante, sempre com as legais Consequências.”

Não foram oferecidas contra alegações.

A Relação deu por assentes os seguintes factos:
1.º Apresentados a pagamento dentro do prazo de 8 dias, os 4 cheques sacados sobre o Banco Réu, com os n.°s 000000000000, datado de 04.05.12, 00000000000, datado de 04.05.22, 00000000000, datado de 04.05.31, e 00000000000 datado de 04.06.12, no valor, cada um, de € 11.600,00, foram devolvidos com a menção aposta de “cheque revogado/falta ou vício na formação da vontade”.
2° No cheque sacado sobre o Banco R., com o n.° 000000000, datado de 04.09.20, devolvido em 04.09.23, foram escritos à mão, no verso, os seguintes dizeres: “este cheque destina-se à substituição do n/cheque n.° 000000000, no valor de 11.600,00 euros”.
3° No cheque sacado sobre o Banco R:, com o n.° 0000000000, datado de 04.09.30, devolvido em 04.10.04, foram escritos à mão, no verso, os seguintes dizeres: “este cheque destina-se à substituição do n/cheque n.° 0000000000, no valor de €1 1.600,00”.
4° No cheque sacado sobre o Banco R., com o n.° 000000000000, datado de 04.10.10, devolvido em 04.10.14, foram escritos à mão, no verso, os seguintes dizeres: “este cheque destina-se à substituição do n/cheque n.° 0000000000, no valor de € 11.600,00”.
5° No cheque sacado sobre o Banco R., com o n.°0000000000 datado de 04.10.20, devolvido em 04.10.22, foram escritos à mão, no verso, os seguintes dizeres: “este cheque destina-se à substituição do n/cheque n.° 0000000000, no valor de 11.600, 00 euros”.
6° Apresentados a pagamento os 4 cheques sacados sobre o Banco R., com os n.°s 0000000000, 0000000000, 00000000000 e 0000000000, aludidos nos antecedentes n.°s 2° a 5°, em substituição dos cheques neles mencionados, foram os mesmos devolvidos com idêntico motivo de recusa do pagamento: “cheque revogado/falta ou vício na formação da vontade”.
7° A A. é uma empresa que se dedica à indústria têxtil de acabamentos
8° No domínio da sua actividade industrial, ao longo de cerca de 2 anos, prestou diversos serviços de acabamentos têxteis a CC, Lda.
9° Para pagar o preço de tais serviços de acabamentos têxteis, esta última sociedade entregou à A. os 4 cheques aludidos no n.° 1°, cada um do montante de € 11.600,00, num total de € 46.400,00, emitidos pela primeira R. e que tinha em carteira.
10° Após a data de vencimento e a apresentação a cobrança destes 4 cheques, o sócio-gerente da primeira R., EE, deslocou-se à sede da A. onde esclareceu que os mesmos não podiam ser pagos por carência de verba, pedindo alteração das suas datas de vencimento. Na sequência dessa conversa, em substituição daqueles 4 primeiros cheques, entregou à autora outros 4 cheques novos, que pré-datou: são a segunda série de cheques já aludida (factos 2.º a 5.º).
11.º A aposição no verso dos cheques da menção manuscrita referida nos antecedentes n.°s 2° a 5.º foi levada a cabo pela primeira R., mais precisamente por uma sua funcionária.
12° Esta actuação foi combinada entre o gerente da 1.ª ré e o gerente da agência do BPI em Vizela, Sr. DD, devido à falta de saldo na conta sacada, para evitar uma rescisão da convenção do uso do cheque por parte do BPI para com a 1.ª ré e a inclusão desta na lista de sacadores de risco junto do Banco de Portugal.
13° A A. nunca recebeu o montante de quaisquer dos cheques em causa.
14.º A 1.ª ré/sacadora, na sequência do referido em 12.º deu prévias instruções escritas ao Banco sacado no sentido da “revogação” dos referidos cheques por motivo de “cheque revogado p/justa causa — falta/vício na formação da vontade.”

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,
1- Não pagamento de cheque por ordem de revogação.
2- Dano – indemnização.
3- Conclusões.

1- Não pagamento de cheque por ordem de revogação

Para buscar uma conceptualização de cheque vamos ter por base no ensinado pelo Prof. Ferrer Correia (e Dr. António Caeiro) como o “titulo cambiário, à ordem ou ao portador, literal, formal, autónomo e abstracto, contendo uma ordem incondicionada, dirigida a um banqueiro, no estabelecimento do qual o emitente tem fundos disponíveis, ordem de pagar à vista a soma nele inscrita.” (in “Revista de Direito e Economia”, IV, n.º 2, 1978 – Julho – Dezembro, 457).

Embora não sendo obrigado cambiário, nos precisos termos da dogmática da relação cartular, e do disposto na Lei Uniforme Relativa ao Cheque, já que não interveio naquela relação nem subscreveu o titulo, o Banco está obrigado perante o sacador ao pagamento do cheque nos termos da convenção que celebrou com o depositante (titular da provisão).

De acordo com o artigo 32.º da Lei citada “a revogação do cheque só produz efeito depois de findo o prazo de apresentação”, sendo que, se não tiver sido revogado, “o sacado pode pagá-lo mesmo depois de findo o prazo”, que é de oito dias contados da data indicada como da emissão (artigo 29.º).

Revogar um cheque é a declaração do sacador ao Banco para que não o pague, mau grado o mesmo já ter entrado em circulação.

E por Portugal não ter oposto reserva ao artigo 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912, que consagrou a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa (alínea a) do artigo 16.º do Anexo II) mantem-se em vigor o citado artigo 32.º.

Daí que o pagamento do cheque não possa ser impedido, por revogação, durante o prazo de apresentação, sendo ineficaz a ordem enquanto não findar esse prazo (cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2001 – 01 A 1461).

Pressupõe-se, no entanto, que o cheque não esteja a ser detido de má fé por um terceiro, por desapossamento de modo fraudulento ou aquisição com “falta grave”, de acordo com os artigos 19.º e 21.º da LUCH.

O artigo 14.º do Decreto n.º 13004, de 12 de Janeiro de 1927 dispõe que “a revogação do mandato de pagamento conferido por via do cheque ao sacado, só obriga este depois de findo o competente prazo de apresentação estabelecido no artigo 12.º do presente decreto com força de lei. No decurso do mesmo prazo, o sacado não pode, sob pena de responder por perdas e danos, recusar o pagamento do cheque com fundamento da referida revogação.”

E logo o § único do mesmo preceito refere que “se porém o sacador, ou o portador tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que o adquiriu por meios legítimos.”

Mas a vigência deste diploma vem sendo posta em causa – e propende-se para a sua revogação – já que, e como acima se acenou, Portugal não fez reservas ao artigo 32.º da Lei Uniforme nem à Resolução da Haia.

Vejamos,

A Convenção de Genebra de 19 de Março de 1931, tem, como seu anexo I, a Lei Uniforme Relativa ao Cheque, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 23721, de 29 de Março de 1934 e ratificada, com os anexos e protocolo, em 10 de Maio de 1934, para entrada em vigor em 9 de Junho seguinte.

Nesta data foi depositada no Secretariado da Sociedade das Nações, com os respectivos instrumentos de ratificação, sendo que, então, Portugal apenas declarou a sua inaplicabilidade no “Território Colonial Português” (cf., “inter alia”, o Cons. Lucas Coelho in “Problemas Penais do Cheque sem Cobertura”, 1979, p. 149).

Certo, porém, que na sequência do artigo 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912, veio a ser adoptado o artigo 32.º da LUCH que, no essencial, corresponde a esse preceito.

Portugal, então, propôs a adopção de um regime idêntico ao consagrado no artigo 14.º n.º 2 do Decreto n.º 13004, o que não veio a ser aceite, sendo que, de seguida, e como se disse, não formulou qualquer reserva ao citado artigo 32.º (como lhe era permitido pela alínea a) do artigo 16.º do Anexo II).

Tal implica duas conclusões: a plena vigência do artigo 32.º da LUCH e fundadas dúvidas sobre a vigência da segunda parte do corpo do artigo 14.º do Decreto n.º 13004.

Para alcançar esta última conclusão há que enfatizar que a 1.ª parte do corpo e § único do artigo 14.º desse Decreto são reproduções dos § 1.º e 2.º do artigo 17.º das Resoluções da Haia enquanto o artigo 32.º da LUCH só acolheu (no § 1) a 1.ª parte do corpo do artigo 14.º e (no § 2) o 3.º do artigo 17.º e que a 2.ª parte do corpo daquele artigo 14.º não tem qualquer correspondência quer nas Resoluções da Haia, quer no artigo 32.º da LUCH.

Outrossim, não tem eco em qualquer outra norma da LUCH nem no artigo 19.º do Anexo II da Convenção de Genebra, onde, aliás, se lê que “a lei uniforme não abrange a questão de saber se o portador tem direitos especiais sobre a provisão e quais são as consequências desses direitos.”

Essa eventual revogação é “vexata quaestio”, com larga controvérsia doutrinária e jurisprudencial, (cf., no sentido da revogação, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Outubro de 1943 – B.O III, 409, e de 20 de Dezembro de 1977 ,este anotado favoravelmente pelo Prof. Ferrer Correia – “Revista de Direito e Economia”, 4.ª, 1978; Prof. Galvão Telles, Drs. Mário de Castro, Tito Arantes e Manuel Casanova e, no sentido da não revogação, os Profs. Palma Carlos, Paulo Cunha, e Drs. Cancela de Abreu, Carlos Pereira e Vasco de Almeida e Silva – “Revista da Ordem dos Advogados”, 6.º, n.ºs 1 e 2, p. 439 e ss e o Supremo Tribunal de Justiça - Assento n.º 4/2000).

A tese da revogação foi ainda sustentada pelo Dr. Filinto Elísio – in “A revogação do cheque”, apud, “O Direito”, 100.º, 1968, n.º 4 – Out-Dez, 450 – com o argumento de conter princípios não compatíveis com a Lei Uniforme e acrescentando que “a revogação do cheque dentro do comando do artigo 32.º não dá nem tira quaisquer direitos ao portador; estranho seria, portanto, que este viesse a adquirir com a revogação direitos que então não possuía.” E continuando: “Se não há justa causa – de que tem por exemplos clássicos, designadamente, a perda, o roubo ou outra forma fraudulenta de desapossamento do título – o sacador é responsável; se ela existe, dirime essa responsabilidade. Mas o sacado em nenhuma hipótese é responsável, quer haja ou não, justa causa. Ele está ao serviço do sacador, único protagonista que conhece e com quem contratou, e enquanto não houver preceito a responsabilizá-lo não pode sofrer as consequências desfavoráveis de qualquer acto impensado do sacador.”

É para escapar a esta argumentação que o citado Assento n.º 4/2000 (Diário da República I A de 17 de Fevereiro de 2000), embora forçado a reconhecer a inexistência de uma relação prévia entre o portador e o sacado, refere que a solução da segunda parte do corpo do artigo 14.º “não é imposta pelo regime geral do cheque (…) mas sim pelos princípios do direito comum, mais concretamente pela responsabilidade civil extracontratual” (…) “pelo que a norma em crise é do direito comum”, e a Convenção absteve-se de tratar essa questão, “para a deixar sob o império exclusivo do direito comum.”

O Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/2008 (Diário da República I A de 4 de Abril de 2008) aplicou, embora com diferente argumentação, (mas apoiando-se, também, no Decreto-Lei n.º 454/91, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/97) a 2.ª parte do artigo 14.º do Decreto n.º 13004 como um caso de responsabilidade aquiliana.

Naquele ponto o aresto teve onze votos de vencido que apenas aceitaram tratar-se de responsabilidade extracontratual “tout court”, por revogação daquele preceito do Decreto de 1927.

Se se aderir a este entendimento por se entender parecer o mais consentâneo com a dogmática da revogação do cheque adoptada na Lei Uniforme – instrumento de direito internacional a que o Estado Português se vinculou – terá de, no direito interno, ser encontrada uma solução compatível com o travejamento jurídico genérico.

Seja como for, feita a alegação e prova dos pressupostos da responsabilidade civil – artigos 483.º e 487.º do Código Civil – ilícito, culpa, dano e nexo causal, o portador de um cheque cujo pagamento foi recusado por determinação do sacador, deva ser indemnizado pelos prejuízos que esse não pagamento lhe provocou.

2- Dano-Indemnização

2.1 “In casu”, o Banco recorrente, através do seu gerente da Agência (artº 500º CC) conluiou-se com o sacador dos cheques, apondo no verso dos títulos a menção “cheque revogado/falta ou vício na formação da vontade”, para que dos cheques não constasse o não pagamento por falta de provisão, assim evitando sanções do “Banco de Portugal”.

Isto é, aceitou uma revogação indevida – por se traduzir numa afirmação genérica não constituída por factos concretos mas, apenas, por uma abstracção que teria de ser preenchida com circunstâncias integradoras da não coincidência entre a vontade real e a vontade declarada – fazendo constar do cheque uma afirmação que sabia nem sequer ser verdadeira, para evitar a aplicação de um imperativo constante da legislação e regulamentos bancários.

Praticou, em consequência, um acto ilícito ao, por aquela razão fictícia, recusar o pagamento dos cheques que lhes tinham sido apresentados no prazo legal.

Perfilam-se, assim, os primeiros pressupostos da responsabilidade civil – acto ilícito e culpa – sendo que a ilicitude consiste no facto de o Banco ter certificado no título um facto que sabia não corresponder à realidade.

E também, ao não recusar o pagamento por falta de provisão e não certificar esse facto, incumpriu a obrigação de notificar o sacador para regularizar a situação nos trinta dias seguintes (depositando as quantias que os cheques titulavam ou entregando-as directamente à Autora – artigo 1-A do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, aditado pelo Decreto-Lei n.º 316/97 de 19/11).

Ademais, não comunicando a situação ao Banco de Portugal o que, necessariamente, representaria um meio de pressão contra a sacadora, impediu a utilização desse meio.

Finalmente, ao considerar os cheques revogados, de modo ilegal, também impediu definitivamente a sua reutilização, com eventual, nova e ulterior, apresentação a pagamento numa altura em que a provisão já existisse.

A conduta do Banco – através do seu gerente-comissário (artigo 500.º do Código Civil) constituiu um facto ilícito, pressuposto da responsabilidade civil.

Mas qual o dano sofrido pela Autora?

2.2 Antes do mais insiste-se que nos movemos no âmbito da responsabilidade extra contratual, instituto cujos pressupostos devem ser alegados e provados pelo lesado, apenas a culpa podendo resultar de presunção legal, “ex vi” do n.º 1 do artigo 487.º do Código Civil.

A Autora limitou-se a pedir o pagamento das quantias tituladas pelos cheques, alegando que foi esse o seu dano causado pela actuação concertada entre a Ré sacadora e o Réu Banco.

Provou-se, contudo, que a conta não dispunha de saldo permissivo de tal pagamento pelo que os cheques, ainda que não indevidamente revogados, não seriam pagos aquando da sua apresentação à entidade sacada.

Isto é, a Autora não logrou provar o dano real, isto é, que os cheques só não lhe foram pagos pelo ilegal cancelamento conluiado entre o sacador e o sacado.

E cumpria-lhe esse “onus probandi”, como constitutivo do seu direito – n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil – também alegando que em ulterior momento, e se cumprido pelo Banco o artigo 1.ºA do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, a conta seria provisionada, as quantias lhe seriam pagas, directamente, pela 1.ª Ré, ou, finalmente, se perante a eventualidade de inclusão na listagem a que se refere o artigo 3.º daquele diploma, a sacadora procedesse ao pagamento.

Se tal tivesse alegado e provado, o seu dano seria, indiscutivelmente, o montante dos cheques, a suportar pelo Banco (considerando a, já transitada, absolvição do pedido da 1.ª Ré).

O Banco fica, em consequência, exonerado do pagamento que lhe é pedido por improvado aquele pressuposto da responsabilidade civil.

2.3 Mas assim é só por este motivo, que não pela mera razão de a conta não ter provisão.

É que, a assim não ser, estar-se-ia a dar relevância negativa à causa virtual, isto é a exonerar o autor da causa real por invocação de virtualidade geradora do mesmo dano.

Na lição do Prof. Almeida Costa, “alude-se a causalidade interrompida, ou interrupção do nexo causal, quanto um facto (causa virtual) adequado a provocar determinado dano, não chega todavia a ocasioná-lo, porque, entretanto, um outro facto (causa operante) autónomo do primeiro – quer dizer, não a sua consequência adequada – e independentemente dele, produziu o mesmo resultado danoso.” (in “Direito das Obrigações”, 6.ª ed., 658), cf., ainda o Prof. A. Varela, “Das Obrigações em Geral”, 10.ª ed., I, 617).

O saber se a causa hipotética do dano pode exonerar ou excluir a obrigação de indemnização que impende sobre o autor da causa operante é de tratar na dogmática da relevância negativa da causa virtual (cf., Prof. Pereira Coelho, in “O problema da causa virtual na responsabilidade civil.”, 7; Prof. Galvão Telles, in “Direito das Obrigações”, 7.ª ed., 418 e Prof. Manuel de Andrade – “Teoria Geral das Obrigações”, 358).

Trata-se de transpor o problema para a causalidade e concluir pela não relevância negativa da causa virtual, nos casos como o em apreço com o argumento de que o não pagamento dos cheques sempre ocorreria por falta de provisão, ainda que não fossem cancelados.

E só assim não seria se demonstrado que, sem o facto operante (cancelamento dos cheques), o pagamento seria efectuado na sequência da notificação ao sacador da comunicação ao Banco de Portugal, ou de ulterior apresentação a pagamento, sendo idêntico o seu dano. (cf., v.g., os artigos 491.º, 492.º, n.º 1, 493.º, n.º 1, 616.º, n.º 2, 807.º, n.º 2 e 1136.º, n.º 2, todos do Código Civil).

Mas aqui não se trata de ser o Banco a exonerar-se da obrigação de indemnizar pela relevância negativa da causa virtual, que só excepcionalmente existe, mas sim, como acima se disse, de a demandante não ter provado o dano sofrido quer pela causa operante, quer pela relevância, mas agora positiva, da causa virtual.

Procedem, assim, embora por algo diversa fundamentação, as alegações do recorrente.

3 - Conclusões

É tempo de concluir que:

a) Como regra, o Banco está obrigado, nos termos da convenção que celebrou com o sacador (titular da provisão) a pagar à vista a soma inscrita no cheque desde que a conta do sacador tenha fundos disponíveis.

b) A revogação do cheque consiste na declaração do sacador ao Banco para que não o pague, apesar do título já ter entrado em circulação.

c) O instituto da revogação rege-se pelo artigo 32.º da Lei Uniforme Relativa ao Cheque, sendo controversa a vigência da segunda parte do artigo 14.º do Decreto n.º 13004 de 12 de Dezembro de 1927, uma vez que Portugal não opôs qualquer reserva ao artigo 17.º das Resoluções da Conferência da Haia de 1912 que consagrou a possibilidade de derrogação do regime de irrevogabilidade relativa (alínea a) do artigo 16.º do Anexo III) e o citado artigo 32.º só acolheu a 1.ª parte do corpo daquele artigo 14.º.

d) A ordem de revogação pelo sacador tem de especificar – clara e inequivocamente – os motivos que a determinaram (v.g., desapossamento fraudulento ou aquisição com falta grave) não sendo suficiente a mera alegação genérica de não coincidência entre a vontade real do emitente e o declarado no titulo.

e) O regime da revogação ilícita deve acolher-se nos princípios comuns da responsabilidade civil extracontratual.

f) O portador do cheque que vê o seu pagamento recusado por revogação tem de alegar e provar os pressupostos da responsabilidade civil aquiliana: ilícito, culpa, nexo causal e dano.

g) Ao aceitar uma revogação sem causa legitima, o Banco comete um acto ilícito pois recusa o pagamento do título com esse fundamento, impedindo a sua ulterior, e nova, apresentação a pagamento, retirando-o indevidamente da circulação.

h) Se a conta do sacador não apresentar saldo permissivo do pagamento, o Banco deve recusá-lo, mas por falta de provisão, dando cumprimento ao artigo 1-A do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28 de Dezembro, na redacção do Decreto-Lei n.º 316/97, de 19 de Novembro e comunicando ao Banco de Portugal para inclusão na listagem a que se refere o artigo 3.º daquele diploma.

i) O facto de o cheque não ter provisão, mas ser recusado por revogação indevida, não exonera a responsabilidade do Banco, por irrelevância negativa da causa virtual, mas o dano do portador deve ser por ele demonstrado, ou seja deve alegar e provar que sem o facto operante (cancelamento) o pagamento ser-lhe-ia efectuado na sequência da notificação ao sacador para provisionar a conta ou pagar-lhe directamente, da inclusão na listagem do Banco de Portugal (que sempre funciona como forma de pressão) ou da possibilidade de, em momento ulterior, voltar a apresentar o cheque a pagamento, assim surgindo a relevância, agora positiva, da causa virtual.

Nos termos expostos, acordam conceder a revista, absolvendo o recorrente do pedido.

Custas a cargo do recorrido, também nas instâncias.

Lisboa, 02 de Fevereiro de 2010

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho