Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06P3201
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: RODRIGUES DA COSTA
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
DIREITOS DE DEFESA
DIREITO AO RECURSO
NON BIS IN IDEM
APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ACUSAÇÃO
NULIDADE SANÁVEL
COMISSÃO NACIONAL DE ELEIÇÕES
Nº do Documento: SJ20061221032015
Data do Acordão: 12/21/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONTRA ORDENAÇÃO
Decisão: CONCEDIDOPROVIMENTO
Sumário :

I - A indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art.58.°, n.º 1, do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas
relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.°, n.º 10).
II - Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda
do ne bis in idem” - cf. Ac. deste STJ de 21-09-2006, Proc. n.º 3200/06 - 5.ª.
III - Nesse aspecto, a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente devido à sua menor
incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão.
IV - Na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo MP como acusação (art.62.°, n.º 1, do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.°, n.º 3, al. b), do CPP, aplicável
subsidiariamente ao processo das contra-ordenações (art. 41.º, n.º 1, do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém, sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
V - A sanção para o incumprimento da al. b) do n.º 1 do referido art. 58.º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.°, n.º 3, 374.°, n.º 2, e 379.°, n.º 1, al. a), do CPP, aplicável subsidiariamente.
VI - Tal nulidade é sanável e pode ser suprida pela autoridade que inicialmente tramita o processo - no caso a CNE -, inclusive com recurso a diligências probatórias indispensáveis para apuramento dos elementos em falta.
Decisão Texto Integral:

I.
1. O PartidoAA e a sociedade comercial “CC – Transportes Aéreos, S.A. foram condenados por decisão da Comissão Administrativa da Comissão Nacional de Eleições de 31/1/2006, pela prática da contra-ordenação prevista no art. 46.º e punida pelo art. 209.º, ambos da lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (LEOAL),o Partido AA, na coima de € 4.987,98 (quatro mil, novecentos e oitenta e sete euros e noventa e oito cêntimos) e aquela sociedade comercial, na sanção de admoestação.

2. Inconformado, o Partido AA veio impugnar judicialmente a referida decisão administrativa nos termos do disposto no n.º 1 do art. 203.º da acima referida LEOAL, e art. 59.º do DL 433/82, de 27 de Outubro (Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social - RGCO), e ainda da Lei n.º 109/2001, de 24/12.
Em síntese, alegou:
- Que não realizou qualquer contrato comercial com a referida empresa “CC” para disponibilização de meios aéreos, com vista à propaganda eleitoral no âmbito da campanha eleitoral às eleições autárquicas de 2005;
- Que para que uma pessoa colectiva possa ser responsabilizada em termos de contra-ordenação é necessário que um qualquer órgão dessa pessoa colectiva, no exercício das funções, tenha praticado um acto ilícito e censurável previsto e punido como contra-ordenação, o que não aconteceu no caso, pois não se prova a prática de qualquer acto desse tipo por um qualquer órgão do Partido AA;
- Que é inconstitucional, por violação do art. 30.º, n.º 3 da Constituição a decisão administrativa proferida contra o PS, por violação do princípio da intransmissibilidade das penas (sanções) e por violação do princípio da igualdade, enquanto condena o arguido independentemente da existência de culpa;
- Para além disso, é nula nos termos da alínea c) do art. 379.º do CPP, aplicável por força do disposto no art. 41.º do RGCO, já que falta um pressuposto essencial que é a possibilidade da imputação do facto ao arguido, invocando ainda falta de fundamentação, por não indicação dos factos provados, e os vícios do art. 410.º, n.º 2 do CPP, como também violação do art. 58, n.º1, alínea b) do RGCO;
- Que a decisão viola, por sobre isso, o princípio in dubio pro reo;
- Por último, e ainda admitindo que algum representante local ou cidadão anónimo, como parece ser o caso, pudesse representar legalmente o PS, vinculando-o perante terceiros, não se verifica actuação dolosa, não sendo a contra-ordenação punível a título de negligência.

3. Antolhando-se como possível decidir sem audiência prévia de julgamento, o Partido AA e o M.º P.º foram notificados para dizerem se se opunham a que se decidisse o caso em conferência, nenhum deles se tendo oposto.

4. Colhidos os vistos em simultâneo, o processo veio para conferência para decisão.

II.
5. A decisão impugnada (deliberação da CNE de 31/1/2006) incorpora o projecto de decisão assinado pelo gabinete jurídico de fls. 40 a 52.
Desse projecto, na parte relativa aos factos, consignou-se o seguinte:
1. A Comissão Nacional de Eleições tomou conhecimento, mediante participação apresentada pelo Partido BB, da utilização de propaganda política através de meios de publicidade comercial por parte da candidatura do Partido AA à Câmara Municipal de Baião, designadamente através do recurso ao serviço de reboque de manga por meio de avião, propriedade da sociedade comercial CC - Transportes Aéreos, S.A..
2. No dia 27 de Setembro de 2005 foi instaurado o devido processo contra-ordenacional à sociedade comercial CC — Transportes Aéreos, S.A. e ao Partido AA, por violação do disposto no artigo 46.° da Lei Eleitoral dos Órgãos das Autarquias Locais (Lei Orgânica l /2001,14 Agosto), p. e p. conforme o artigo 209.° do mesmo diploma.
3. Em cumprimento dos direitos processuais dos arguidos, foram o Partido AA e a sociedade comercial CC - Transportes Aéreos, S.A. notificados no dia 27/09/2005, nos termos do artigo 50.° do Decreto-Lei n.° 433/82, de 27 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n° 244/95, de 14 de Setembro, para se pronunciarem no prazo legal sobre o ilícito de mera ordenação social que lhes é imputado.
4. A 11 de Outubro de 2005 veio a sociedade comercial CC — Transportes Aéreos S.A. pronunciar-se sobre a prática da contra-ordenação que lhe é imputada, o que fez nos seguintes termos:
(…)
5. A 14 de Outubro de 2005 veio o Partido AA pronunciar-se sobre a prática da contra-ordenação que lhe é imputada, o que fez nos seguintes termos:
(…)
6. Resultado de diligências efectuadas pelos serviços da CNE no âmbito do processo de contra-ordenação acima identificado, foi possível identificar, através da matrícula, o avião constante dos elementos fotográficos como pertencente à frota de aviões apresentada no sítio oficial da sociedade comercial CC - Transportes Aéreos S. A.(www.CC.com).
7. Face a esta constatação, a CNE notificou a arguida para, no prazo de 15 dias, se pronunciar sobre a mesma, tendo requerido, concomitantemente que se procedesse à junção aos autos do contrato subjacente à prestação de serviços de publicidade em apreço.
8. Como resposta à notificação supra referida, a CC — Transportes Aéreos, S.A nunca remeteu a esta Comissão quaisquer esclarecimentos.

6. Para além destes, topam-se ainda outros elementos factuais já em sede de considerações de direito, tais como:
Dos elementos probatórios constantes dos autos, em concreto, dos elementos fotográficos, retira-se que a manga do avião acima identificado, contém a seguinte inscrição: “ Força EE. – PS.”
Tal mensagem encontra-se identificada com a sigla do PartidoAA e, ainda, com o nome do cabeça de lista da candidatura do PS à Câmara Municipal de Baião.
O Partido AA é a entidade proponente da candidatura à Câmara Municipal de Baião do Sr. EE que se encontra identificada na manga do avião em causa.
O beneficiário da propaganda em causa é o Partido AA e não qualquer outra entidade.

7. Ora, nos termos do regime estabelecido pelo RGCO (DL 433/82, de 27/10, alterado pelo DL 244/95, de 14/9), as coimas podem aplicar-se tanto às pessoas singulares, como às pessoas colectivas, estas sendo responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções (art. 7.º).
Ora, em primeiro lugar, não se vê no número dos factos provados que factos é que um qualquer órgão do PS, no exercício das respectivas funções, nomeadamente um órgão local, agindo por intermédio de determinadas pessoas físicas integradoras desse órgão, tenha praticado e que pudessem ser imputadas à pessoa colectiva que é o referido partido.
Designadamente, não se sabe quem é que contratou o quê com a empresa proprietária do avião para utilização em serviço de propaganda política a favor da candidatura do Partido AA à Câmara Municipal de Baião, com recurso à modalidade de reboque de manga.
Assim, não se pode imputar ao Partido AA um acto que não se sabe por quem foi praticado. Não basta o referido partido ter sido supostamente beneficiado para estabelecer por aí o nexo de imputação do facto constitutivo de contra-ordenação à pessoa colectiva.
Mas também no tocante a este faltam de todo os seus elementos caracterizadores.
Assim, que acto é que foi realmente praticado? Publicidade comercial a favor da candidatura à Câmara Municipal de Baião? Mas em que consistiu ele? Nada consta a propósito na decisão impugnada, a não ser que “A Comissão Nacional de Eleições tomou conhecimento, mediante participação apresentada pelo Partido BB, da utilização de propaganda política através de meios de publicidade comercial por parte da candidatura do Partido AA à Câmara Municipal de Baião, designadamente através do recurso ao serviço de reboque de manga por meio de avião, propriedade da sociedade comercial CC - Transportes Aéreos, S.A.”. E ainda, se formos buscar aos outros factos que constam das considerações de direito, que “ dos elementos fotográficos retira-se que a manga do avião acima identificado contém a seguinte inscrição: “Força EE – PS”.
Em suma: resulta da materialidade fixada que foi dado conhecimento pelo Partido BB de utilização de propaganda política, através do recurso ao serviço de reboque por manga, por meio de avião, mas uma coisa é o conhecimento e outra, o facto de que foi dado conhecimento. Ora, é preciso descrever o facto, dizendo em que consistiu, designadamente que actos concretos é que consubstanciam a prática da infracção, no caso, provavelmente, o sobrevoo do espaço aéreo em determinada localidade por avião que rebocava uma manga contendo a tal mensagem publicitária a favor da candidatura do PS à Câmara de Baião (se é que as coisas se passaram assim).
Ora, a decisão impugnada, para além de não conter a descrição do facto típico, também omite as circunstâncias da sua prática, nomeadamente de tempo e lugar, pois nada diz sobre a data em que os factos se passaram, de forma a poder saber-se se foi ou não em período de proibição de propaganda política com características comerciais. E nada refere sobre o local em que os factos se desenrolaram.
Ora, a indicação dos factos imputados com menção das provas obtidas é uma exigência do art. 58.º, n.º 1 do RGCO, em tributo aos mais elementares princípios que devem reger um direito de carácter sancionatório e que têm a ver sobretudo com garantias mínimas relacionadas desde logo com o direito de defesa, por muito sumário e expedito que se apresente o processo contra-ordenacional, pois a própria Constituição estende a este tipo de processos essas garantias (art. 32.º, n.º 10).
Entre essas garantias mínimas de defesa, avulta, como se refere no Acórdão deste STJ de 21/9/2006, Proc. n.º 3200-06, da 5.ª Secção, de que o presente relator foi um dos adjuntos, a de “serem conhecidos os factos que são imputados ao arguido, pois sem que os mesmos estejam estabelecidos não é possível avaliar a justiça da condenação, fica inviabilizado o direito ao recurso e não há salvaguarda do ne bis in idem”.
Nesse aspecto, a decisão condenatória em matéria contra-ordenacional, apresentando alguma homologia com a sentença condenatória em processo penal, tem uma estrutura semelhante a esta última, se bem que mais concisa, por menos exigente devido à sua menor incidência na liberdade das pessoas, devendo conter a identificação dos arguidos, a descrição dos factos imputados, com indicação das provas obtidas, a indicação das normas aplicáveis e a fundamentação da decisão.
Ora, na fase de recurso, valendo a apresentação dos autos ao juiz pelo Ministério Público como acusação (art. 62.º, n.º 1 do RGCO), torna-se necessário, no que toca aos elementos imprescindíveis a que nos vimos reportando, o recurso ao art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo das contra-ordenações (art. 41.º, n.º 1 do mesmo diploma legal). E segundo este dispositivo, a acusação contém sob pena de nulidade, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.
Como vimos, a decisão impugnada não contém esses elementos imprescindíveis, devidamente adaptados a este tipo de processo e que são tendentes a caracterizar uma acção ou omissão, um nexo psicológico de ligação do facto ao agente e uma imputação desse mesmo facto a título de dolo ou negligência, quando esta seja especialmente prevista. Sem esses pressupostos não pode ser aplicada a respectiva coima.
A sanção para o incumprimento da alínea b) do n.º 1 do referido art. 58.º do RGCO é a nulidade da decisão impugnada, nos termos dos arts. 283.º, n.º 3, 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alínea a) do CPP, aplicável subsidiariamente, como vimos.
A nulidade é sanável e pode ser suprida pela CNE, inclusive com recurso a diligências probatórias indispensáveis para apuramento dos elementos em falta..

III.
8. Nestes termos, acordam no Supremo tribunal de Justiça em conceder provimento à impugnação e em anular a decisão da comissão Nacional de Eleições, devendo os autos voltar a essa entidade para aí ser sanado o vício apontado.
Sem tributação.
Comunique à Comissão Nacional de Eleições.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 21 de Dezembro de 2006

Rodrigues da Costa (relator)
Arménio Sottomayor
Maia Costa