Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1764
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
ABUSO DO DIREITO
Nº do Documento: SJ200609120017646
Data do Acordão: 09/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA DA RÉ (PREJUDICADA A DA AUTORA)
Sumário : I - Os serviços na área da contabilidade, traduzidos em consultoria fiscal, designadamente a realização de estudos económicos e análises contabilísticas e o acompanhamento de processos administrativos e burocrátricos, enquadram-se substancialmente no exercício duma profissão liberal.
II - Para efeitos de aplicação do art. 317.º, al. c), do CC é essencial a natureza dos serviços prestados, mas indiferente a qualificação jurídica da entidade que os presta; nada impede que se trate uma sociedade comercial tendo por objecto a prestação dos serviços referidos em I.
III - A prescrição presuntiva tratada nesse normativo tem cáracter diferente da prescrição comum: nesta, basta ao devedor invocar e provar a inércia do credor no exercício do direito durante o tempo fixado na lei para se julgar verificada a extinção do direito accionado; já naquela, porque só se presume o cumprimento, o devedor carece de provar os elementos que a caracterizam e definem, podendo a presunção do cumprimento ser ilidida por confissão do devedor (judicial e extrajudicial, mas neste caso apenas por escrito - arts. 313.º e 314.º do CC).
IV - Ao falar em “actos incompatíveis” com a presunção de cumprimento no art. 314.º do CC, norma que remete sem dúvida para os textos que disciplinam a confissão como meio probatório (arts. 352.º e ss.) e para as modalidades possíveis de declaração negocial (art. 217.º), o legislador pretendeu deixar claro que a concludência dos factos em sentido contrário à presunção de cumprimento terá de ser inequívoca, como é próprio da declaração confessória (arts. 217.º, n.º 2, e 357.º, n.º 1, do CC).
V - Face ao modo como a petição inicial se apresenta estruturada, aí sendo deduzido pedido ilíquido, sem se explicitar em concreto quanto a Ré devia, nem quanto já tinha pago à Autora, e pretendendo a Ré fazer valer a prescrição, é adequado que, para esse efeito, alegue que todos os serviços prestados pela Autora ao abrigo do contrato de prestação de serviços de contabilidade estavam pagos e todas as obrigações cumpridas.
VI - Ao alegar nada dever à Autora para além do que lhe pagou, a Ré não está a impugnar o valor da dívida, o que seria incompatível com a presunção de cumprimento.
VII - Tão pouco se deve considerar que a invocação a título subsidiário do abuso do direito por parte da Ré constitua confissão tácita do incumprimento, pois trata-se de alegação apresentada a título subsidiário, com afirmação de facto atinente ao decurso de um dilatado período de tempo (15 anos) sem que a Autora tenha exercido o seu alegado direito, criando na Ré a confiança de que já não o faria.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Em 10.2.03, no Tribunal da comarca do Porto, AA Ldª, propôs contra BB, SA, uma acção ordinária, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe o preço da prestação de serviços resultante dum contrato celebrado entre ambas em 18.6.80 correspondente a uma quantia, a liquidar em execução de sentença, “igual a dez por cento do produto resultante da aplicação da taxa de 45% sobre a matéria colectável, líquida das deduções a que se referia o art.º 44º do Código da Contribuição Industrial (à época vigente), para os anos de 1983, 1984, 1985, 1986 e 1987” (fls. 5).
A ré contestou, invocando a excepção da prescrição, nos termos do art.º 317º, c), do Código Civil (diploma a que, salvo indicação em contrário, pertencerão todos os art.ºs citados), bem como o abuso do direito, além de impugnar, por ser “falso, deturpado ou omisso” (fls. 16), grande parte dos factos articulados na petição inicial.
Na réplica a autora respondeu às excepções e, quanto ao fundo, manteve a posi­ção expressa de início.
No despacho saneador conheceu-se da excepção da prescrição, que foi julgada improcedente.
A ré apelou, tendo o recurso sido admitido para subir à Relação com a decisão final, e com efeito suspensivo da decisão recorrida (fls. 43).
O processo seguiu o percurso previsto na lei – com organização da base instrutória, instrução e julgamento da matéria de facto controvertida – culminando com a sentença de fls. 256 e sgs, em 20.1.05, que julgou a acção improcedente e absolveu a ré do pedido.
No decurso da audiência de julgamento (fls. 173) foi admitida a rectificação (ou ampliação) do pedido formulado pela autora, que passou, assim, a incluir o ano de 1988; e concedido à ré o direito de exercer o contraditório, ela fê-lo, reiterando a alegação produzida na contestação de que, também quanto ao preço dito em dívida correspondente a serviços prestados relativamente ao ano de 1988, beneficia da presunção de cumprimento estabelecida no art.º 317º, c).
A autora apelou.
Por acórdão de 15.12.05 (fls. 487 e sgs), a Relação julgou improcedente a apela­ção da ré e, tendo embora introduzido uma alteração pontual no elenco da matéria de facto, julgou de igual modo improcedente a apelação da autora.
Mantendo-se inconformadas, ambas as partes recorreram de revista para o STJ.
Alegando (e contra alegando no recurso da parte contrária) pedem: a ré, que se julgue procedente a excepção da prescrição, com a sua consequente absolvição de todos os pedidos, por a Relação ter feito errada aplicação dos art.ºs 313º e 314º do Código Civil; a autora, que se julgue a acção procedente no que se refere aos anos de 1987 e 1988, “tal como decorreu da admitida ampliação do pedido concretizada na audiência de julgamento” (fls. 552).
Tudo visto, cumpre decidir.

2. É pelo recurso da ré, logicamente, que teremos que começar o julgamento, visto que, caso ele proceda, ficará prejudicado o conhecimento da revista da autora.
A questão a decidir é a de saber se ocorre a prescrição prevista no art.º 317º, c).
Confirmando nesta parte o que a 1ª instância decidira, o acórdão recorrido não pôs em dúvida a aplicabilidade daquele texto legal à situação ajuizada. Considerou, todavia, que por duas razões fundamentais a ré ilidiu a presunção de cum­primento:
Em primeiro lugar porque alegou na contestação o pagamento dos honorários que a autora oportunamente lhe apresentou (o que sucedeu até 1987), mas não o daqueles de que a presente acção trata, e que são os devidos por correcção do cálculo efectuado, bem como os relativos a 1987 e 1988; tal o que, segundo a Relação, resulta dos art.ºs 25º e 26º daquele articulado;
Em segundo lugar porque no art.º 42º da contestação a ré, por impugnação, alegou ser falsa a materialidade apontada na petição inicial que serve de funda­mento aos honorários peticionados (os “honorários acrescidos” e aqueles que nem sequer tinham sido calculados e liquidados à ré, referentes aos dois anos atrás indicados.
Destas premissas arrancou o acórdão impugnado para a conclusão de que a ré reconheceu não ter pago os honorários “sustentados” pela autora, “o que equi­vale a não poder operar a dita excepção de prescrição, a qual se fundamenta pre­cisamente na presunção dum cumprimento que, no caso, não deve dar-se como adquirido” (fls. 491).
Assim isolado o problema a resolver, diremos que estamos de acordo com as instâncias acerca da pertinência ao caso sub judice da norma do art.º 317º, c), mas não quanto à decisão convergente que adoptaram de julgar improcedente a excepção arguida.
Vejamos porquê.
O art.º 317º, c), do CC diz que prescrevem no prazo de dois anos os créditos pelos serviços prestados no exercício de profissões liberais e pelo reembolso das despesas correspondentes.
A prescrição de que aqui se trata é uma prescrição presuntiva ou “imperfeita”, na medida em que, decorrido o prazo legal, o que funciona, o que actua em ter­mos jurídi­cos não é propriamente a extinção da obrigação – mais precisamente, a recusa legítima do cumprimento da prestação por parte do beneficiário (art.º 304º, nº 1 do CC) – mas apenas a presunção do cumprimento; a “imperfeição”, a incompletude resulta justa­mente da sua natureza presuntiva, e não extintiva do direito accionado.
A presunção do cumprimento pode ser ilidida por prova em contrário, que, no entanto, a lei só aceita que se faça por confissão do devedor (judicial e extraju­dicial, mas neste caso ainda com a limitação de ter que se realizar por escrito – art.ºs 313º e 314º do mesmo diploma legal). Trata-se, como afirma o Prof. Meneses Cordeiro no Tratado de Direito Civil Português, Tomo IV, 181, duma presunção “muito forte. O credor, contra o que resultaria das regras gerais das presunções iuris tantum – art.º 350º/2 – não pode ilidir a presunção provando que, afinal, o devedor nada pagou. Apenas o próprio devedor, caindo em si, o poderá fazer: por confissão: artigo 313º” Esta afirmação é repetida no Parecer junto ao processo, da autoria do mesmo Professor Catedrático de Direito Civil (fls 447). .
A prescrição presuntiva, portanto, tem um carácter diferente da prescrição comum; nesta, basta ao devedor invocar e provar a inércia do credor no exercício do direito durante o tempo fixado na lei; naquela, exactamente porque só se presume o cumprimento, o devedor carece de provar os elementos (requisitos) que a caracterizam e defi­nem. No caso ajuizado, o elemento fulcral é o tratar-se de créditos por serviços prestados no exercício de profissão liberal. Ora, tal ele­mento está demonstrado, contrariamente ao que a autora, recorrida, sustenta. Na verdade, encontra-se provado que a autora é uma sociedade por quotas que tem por objecto a prestação de serviços na área da contabilidade, sendo certo que os serviços que estão na base dos honorários reclamados se traduziram, essencialmente, em consultoria fiscal (segundo a petição, a autora efectuou para a ré, conforme o contratado, estudos económicos, análises contabilísticas e trabalhos de organização empresarial, efectuou pedidos de isenções e acompanhou os pro­cessos administrativos e burocráticos, obtendo benefícios fiscais para a ré). Ser­viços, portanto, que substancialmente se enquadram no exercício duma profissão liberal, sendo indiferente para o legislador a qualificação jurídica da entidade que os presta; tanto da letra como do espírito da norma resulta que o critério de subsunção ao preceito em análise se define unicamente pela natureza dos serviços em causa, e não da entidade que os presta.
No caso dos autos sucedeu que, tomando posição sobre os factos alegados na petição inicial, a ré alegou explicitamente o seguinte na sua contestação (fls. 12 e sgs):
Art.º 7º: De todo o modo, também a presente acção deverá improceder na sua totalidade, dado que a ré não é devedora à autora de qualquer quantia;
Art.º 38º: Conforme supra se referiu, a pretensão da autora assenta em supostos créditos decorrentes da prestação de serviços à ré;
Art.º 39º: Sucede, porém, que todos os serviços prestados pela autora à ré, decorrentes do contrato entre elas celebrado a que se refere o documento junto com a petição inicial, foram integralmente pagos pela ré;
Art.º 40º: A ré não é devedora da autora de qualquer quantia, seja a título de honorários seja a qualquer outro título;
Art.º 41º: Todas as obrigações que do contrato em causa decorriam para a ré foram por ela cumpridas;
Art.º 43º: Aliás, a fragilidade da pretensão da autora é bem patente nas contradições em que incorre no seu articulado, no qual, depois de proclamar no art.º 15º que”até hoje, não foi possível à A. apresentar o cálculo dos seus honorários”, logo confessa no art.º 16º que no decurso dos anos de 1983, 1984, 1985, 1986 e 1987 apresentou efectivamente honorários à ré;
Art.º 44º: Honorários esses que a autora não alega sequer que não lhe tenham sido pagos.
Não temos qualquer dúvida em afirmar, interpretando os passos transcritos da contestação da recorrente em obediência aos cânones fixados no art.ºs 236º, que ela alegou – e alegou de maneira peremptória e terminante – ter já pago a dívida accionada. E também não temos qualquer dúvida em dizer que semelhante alegação foi reiterada posteriormente, quando o julgador concedeu à ré o ensejo de exercer o contraditório quanto à rectificação do pedido autorizada. Com efeito, está dito preto no branco na peça de fls 175 e sgs:
5. Em primeiro lugar, reafirma-se que todos os serviços prestados pela autora à ré decorrentes do contrato entre elas celebrado a que se refere o documento junto com a petição inicial foram integralmente pagos pela ré.
6. Nenhuma factura relativa ao ano de 1988 ficou por pagar.
8. A ré beneficia da presunção de cumprimento estabelecida no art.º 317º, al. c), do Código Civil.
Não se vê que em algum passo da contestação a ré contradiga o que de essencial transparece dos artigos reproduzidos e que possa levar à conclusão, extraída nas instâncias, de que ela, afinal, reconhece não ter cumprido a obrigação ajuizada. Nos termos do art.º 314º, considera-se confessada a dívida se o devedor se recusar a depor ou a prestar juramento no tribunal, ou praticar em juízo actos incom­patíveis com a presunção de cumprimento. No caso presente, ninguém põe em dúvida que a hipótese prevista na primeira parte do preceito não se coloca. Mas coloca-se, diz-nos a Relação, a da segunda parte, como vimos de início, quando tentámos localizar com precisão o objecto do recurso. Não cremos, todavia, que os fundamentos da decisão recorrida sejam subsistentes. Ao falar em “actos incompatíveis” com a presunção de cumprimento numa norma que, intitulada “confissão tácita”, - o artigo 314º- remete sem qualquer dúvida, não só para os textos que disciplinam a confissão como meio probatório (art.ºs 352 e sgs), mas também para a regra que estabelece a distinção entre as modalidades possíveis de declaração negocial (art.º 217º), o legislador pretendeu deixar claro, a nosso ver, que a concludência dos factos em sentido contrário à presunção de cumprimento terá de ser inequívoca, como inequívoca deve ser sempre, em princípio, a declaração confessória (art.ºs 217º, nº 2, e 357º, nº 1); caso não preencha estes requisitos, a confissão do devedor não valerá como tal, isto é, como reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária (art.º 352º). Assim,, se está certo o que acabamos de dizer, então, contrariamente ao entendimento do acórdão recorrido, deve concluir-se que as alegações contidas nos art.ºs 25º, 26º e 42º da contestação não invalidam a afirmação categórica repetidamente feita nos art.ºs 38º a 41º - e cujo sentido, conforme referimos, se afigura inequívoco. O que se diz nos art.ºs 25º e 26º justifica-se pela necessidade imposta pelo art.º 490º, nº 1, do CPC – a necessidade do réu tomar posição definida perante os factos articulados na peti­ção, sob pena de, ressalvadas as excepções previstas no nº 2 do mesmo artigo, se considerarem tais factos admi­tidos por acordo. E a mesma coisa, de certo modo, sucede com o art.º 42º, onde a ré não faz mais, ao cabo e ao resto, do que num só artigo condensar o fulcro da sua posição em relação à matéria da petição inicial. Ora, segundo o entendimento prevalecente na nossa jurisprudência, na falta de impugnação especificada dos factos invocados pelo autor considera-se que o réu confessa tacitamente, assim ilidindo a presunção da prescrição. Não é possível, por outro lado, negar con­cordância a duas observações feitas pela recorrente, cujo acerto nos parece notório. A primeira respeita ao modo como a petição inicial se apresenta estruturada e, designadamente, como o pedido é formulado (pedido ilíquido): não tendo a autora explicitado em concreto quanto a ré lhe devia, nem quanto esta lhe tinha já pago, não se vê que a ré pudesse dizer senão o que disse para o efeito de fazer valer a prescrição – isto é, que todos os serviços prestados pela autora ao abrigo do contrato estavam pagos e todas as obriga­ções cumpridas. A segunda decorre da primeira: ao alegar nada dever à autora para além do que lhe pagou, a ré não está a impugnar o valor da dívida – alegação que, essa sim, poderia ser considerada, segundo a melhor doutrina Neste sentido, Pires de Lima e Antunes Varela, CCAnotado, I, pág. 281, e o Parecer junto aos autos (fls 449). , incompatível com a presunção de cumprimento – mantendo-se, pelo contrário, coerentemente, dentro da linha traçada ao gizar a contestação. Finalmente, resta dizer que a invocação a título subsidiário do abuso do direito por parte da ré nada tira nem nada põe relativamente à questão da prescrição, não devendo, por essa razão, ser tida como a prática dum acto incompatível com a presunção de cumprimento. Isto porque, justamente, é uma alegação apresentada a título subsidiário, para valer apenas no caso de impro­ceder a arguição da prescrição; e depois porque, obviamente, o facto que fundamenta a alegação do abuso diverge na sua essência daquele em que repousa a prescrição: ali, em resumo, é o decurso de um dilatado período de tempo (15 anos) sem que a autora tenha exercido o seu alegado direito, criando na ré a justificada convicção – confiança – de que já não o faria; aqui é a exi­gência de um crédito originado por serviços de certa e determinada natureza – serviços decorrentes do exercício duma profissão liberal.
Em resumo e conclusão: na contestação, a ré não confessou tacitamente que não cumpriu, nem produziu qualquer afirmação de facto incompatível com a presun­ção de cumprimento.
Procedem, consequentemente, as conclusões da revista da ré, o que inutiliza a apreciação da revista da autora.
3. Nos termos expostos, acorda-se em conceder a revista pedida pela ré. Assim:
a) Revoga-se o acórdão recorrido na parte em que julgou improcedente a apelação por ela interposta e, julgando-se procedente a excepção da prescrição, absolve-se a ré do pedido;
b) Não se conhece da revista da autora, por estar prejudicada pela decisão da revista da ré.
Custas pela autora.
Lisboa, 12 de Setembro de 2006
Nuno Cameira
Sousa Leite
Salreta Pereira