Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A491
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
POSSE
Nº do Documento: SJ200703270004916
Data do Acordão: 03/27/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : I – Da redacção do art.º 351º do C.P.C., conjugado com o seu correspondente substantivo constante do art.º 1285º do Cód. Civil, resulta o carácter autónomo e específico da posse em relação a qualquer outro direito real como fundamento dos embargos de terceiro, de modo que o embargante não necessita de provar a sua propriedade sobre os bens que considere indevidamente apreendidos, sendo bastante a prova da sua posse.
II – Fundando-se o embargante exclusivamente na posse, que exerce sobre o bem penhorado, correspondente ao exercício do direito de propriedade, importa, para que a invocação de ser o executado proprietário desse bem, feita pelo exequente-embargado, possa ser atendida com o efeito de tal direito de propriedade do executado se sobrepor à posse do embargante, que seja formulado pelo embargado o correspondente pedido de reconhecimento desse direito de propriedade. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 14/5/02, por apenso aos autos de execução ordinária para pagamento de quantia certa instaurados pelo Banco Empresa-A, - actualmente ..., S.A. -, contra Empresa-B, AA e BB, CC e DD, deduziu Empresa-C, embargos de terceiro, pedindo o levantamento da penhora efectuada na execução sobre uma fracção autónoma de um prédio urbano que identifica, por ofensiva da sua posse sobre tal fracção.
Contestou a exequente, impugnando a posse da ora embargante sobre a aludida fracção, que, segundo sustenta, é propriedade dos executados CC e mulher, DD.
Proferido despacho que dispensou a audiência preliminar, enumerou a matéria de facto desde logo dada por assente e elaborou a base instrutória, veio oportunamente a ter lugar audiência de discussão e julgamento.
Decidida a matéria de facto sujeita a instrução, foi proferida sentença que julgou os embargos improcedentes, admitindo o prosseguimento da execução quanto à aludida fracção autónoma.
Apelou a embargante, tendo a Relação julgado procedente o recurso e revogado a sentença ali recorrida, com as consequências legais.
É do acórdão que assim decidiu que vem interposta a presente revista, agora pela exequente, que, em alegações, formulou as seguintes conclusões:
1ª - A recorrida não dispõe da posse sobre a fracção “D” do prédio urbano descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Loures, com a área aproximada de 130 m2, sob o n.º 00141/980115;
2ª - A recorrida, embora detenha o poder de facto sobre a coisa (corpus), não detém nem nunca deteve o “animus” (vontade e direito de agir como titular do direito real, correspondente aos actos materiais praticados);
3ª - Tal “animus” sempre foi exercido pela embargante/recorrida e anteriores transmitentes em relação à fracção “C”, mas não em relação à fracção “D”;
4ª - A legitimidade para dedução dos embargos de terceiro baseia-se numa presunção de propriedade (ou de outro direito real de gozo) que, como tal, pode ser ilidida mediante a alegação e prova de que o direito de fundo (seja o direito de propriedade, seja outro direito real de gozo) pertence ao executado;
5ª - A questão da propriedade prevalece sobre a questão da posse;
6ª - Ainda que a recorrida tivesse a posse da fracção “D” (facto que a recorrente não aceita), a verdade é que a sua posse sempre seria preterida, dado ter ficado provado nos autos que a propriedade da mesma fracção pertencia aos executados;
7ª - A recorrida não adquiriu a fracção “D” por contrato;
8ª - A recorrida não adquiriu a fracção “D” por usucapião, porquanto não se mostra observado o prazo prescrito no art.º 1296º do Cód. Civil, sendo que a recorrida não tem legitimidade para invocar a acessão de posses, dado a sua posse (caso existisse) não ser titulada.
Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido.

Em contra alegações, a recorrida pugnou pela confirmação daquele acórdão.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir, tendo em conta que os factos assentes são os seguintes:
1º - Na execução que constitui o processo principal, a exequente, por requerimento de 7/3/97, nomeou à penhora a fracção autónoma designada pela letra “D”, com os respectivos frutos civis ou rendas que esteja a produzir ou venha a produzir até à venda nesta execução, a qual corresponde à 2ª cave esquerda, no 2º piso, para comércio, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal sito (no antigo lote ....) na Praceta ..., em ...., freguesia de S. João da Talha, inscrito na matriz no art.º 3089º e descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Loures na ficha 00526/870710 da referida freguesia;
2º - A penhora sobre essa fracção foi realizada em 24/4/97 por termo de fls. 52, tendo sido nomeado fiel depositário EE na qualidade de legal representante da Empresa-D;
3º - A fracção “D” está descrita na Conservatória do Registo Predial com a área aproximada de 130 m2, e actualmente está descrita sob o n.º 00141/980115 da freguesia de Bobadela;
4º - E está registada a sua aquisição a favor do executado CC, casado com DD, através da ap. 27/890209;
5º - A embargante adquiriu a fracção “C”, correspondente à 2ª cave direita do mesmo prédio, por escritura pública de compra e venda celebrada em 15/5/96, na qual foi vendedora Empresa-E;
6º - Que por sua vez a havia adquirido por escritura pública de compra e venda celebrada em 28/3/95, na qual foi vendedora Empresa-F;
7º - Que por sua vez a havia adquirido aos executados CC e DD por escritura pública celebrada em 22/3/91;
8º - A fracção “C” está descrita na Conservatória do Registo Predial como “segunda cave direita, no segundo piso, para comércio, com acesso pelo interior à primeira cave, com a área aproximada de 1200 m2”;
9º - A sua aquisição foi registada a favor do executado CC casado com a executada DD, através da ap. 27/890209;
10º - E foi registada a favor da Empresa-F através da ap. 30/910404;
11º - Foi registada a favor da Empresa-E através da ap. 44/950503;
12º - e foi registada a favor da embargante através da ap. 03/960624;
13º - Nas fracções “C” e “D” está instalado, desde 1994, um supermercado da cadeia ...;
14º - Estabelecimento esse que é explorado por Empresa-G, ao abrigo dos acordos denominados “Contrato – promessa de arrendamento”, cujos outorgantes foram Empresa-F e Empresa-G, Empresa-E e, Empresa-C e Empresa-H, e do acordo designado “contrato – promessa de subarrendamento” cujos outorgantes foram Empresa-H e Empresa-G;
15º - A Empresa-G paga a respectiva renda;
16º - Quando a embargante adquiriu a fracção “C” à Empresa-E, fê-lo convencida de que estava a adquirir a totalidade da área que corresponde ao somatório das fracções “C” e “D”;
17º - Convicção essa partilhada pela vendedora;
18º - Já nessa altura e já em 22/3/91 as fracções “C” e “D” apresentavam a actual configuração;
19º - A Empresa-E, ao adquirir a fracção “C” à Empresa-F, pretendeu comprar, e esta pretendeu vender-lhe, a totalidade da área ocupada pelas fracções “C” e “D”;
20º - Quando a Empresa-F adquiriu a fracção “C” ao executado CC, estavam ambos convencidos, vendedor e compradora, de que estavam, respectivamente, a dispor e a adquirir a totalidade das áreas ocupadas pelas fracções “C” e “D”.

Nas conclusões das alegações da recorrente mostram-se suscitadas duas questões: saber se a embargante dispõe ou não de posse sobre a mencionada fracção autónoma “D”, por, tendo o respectivo corpus, estar em causa apurar se tem também o respectivo animus, e saber se, na hipótese de dispor de tal posse, sendo porém o direito de propriedade da titularidade dos executados a quem a fracção em causa foi penhorada, tem legitimidade para deduzir embargos de terceiro.
Quanto à primeira questão, vem a posse definida no art.º 1251º do Cód. Civil como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real.
E pelo menos da conjugação do disposto nesse artigo com o estatuído no art.º 1253º do mesmo diploma, que contempla a simples detenção ou posse precária referindo-a como o exercício do poder de facto sem intenção de agir como beneficiário do direito, o aproveitamento da tolerância do titular do direito, ou a posse em nome de outrem, resulta que a posse, em sentido jurídico, comporta necessariamente dois elementos, que são o elemento material consistente no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, - habitualmente designado por corpus -, e o animus, que consiste na intenção de agir como titular do direito, isto é, na intenção de exercer sobre a coisa, como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.
É, aliás, unânime a exigência, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, desses dois elementos, para que se verifique a existência de posse, obviamente em sentido jurídico.
Ora, na hipótese dos autos, para além de se encontrar comprovado o corpus, ou seja, a detenção material da dita fracção autónoma pela embargante, embora por intermédio da Empresa-H e do Empresa-G – o que não exclui a posse (art.º 1252º, n.º 1, do Cód. Civil) e não é, aliás, posto em causa pela recorrente -, encontra-se também, ao invés do por ela sustentado, comprovado o animus, na medida em que a embargante se encontrava a actuar com a intenção de exercer poderes de proprietária do espaço pelo menos anteriormente constitutivo da mesma fracção por estar convencida de que, ao adquirir a fracção “C”, estava a comprar toda a área correspondente ao somatório das duas fracções, que apresentavam então, e já desde havia anos, a actual configuração.
Dai que não possa deixar de se entender que a embargante era efectivamente titular da posse da fracção “D”, penhorada na execução que constitui o processo principal, pelo que não se pode, sobre esta questão, reconhecer razão à recorrente.
Quanto à questão da legitimidade da recorrida para deduzir os presentes embargos mesmo que não comprove ser proprietária da fracção e que se mostre ser esta presumivelmente propriedade do executado, há que atentar no disposto no art.º 351º do Cód. Proc. Civil, segundo o qual, se qualquer acto, judicialmente ordenado, de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
Da redacção deste dispositivo, conjugado com o seu correspondente substantivo constante do art.º 1285º do Cód. Civil, nos termos do qual o possuidor cuja posse for ofendida por diligência ordenada judicialmente pode defender a sua posse mediante embargos de terceiro, nos termos definidos na lei de processo, resulta o carácter autónomo e específico da posse em relação a qualquer outro direito real como fundamento dos embargos, de modo que o embargante não necessita de provar a sua propriedade sobre os bens que considera indevidamente apreendidos, sendo bastante a prova da sua posse. É isto que ensina Henrique Mesquita, in Direitos Reais, 1967, pg. 129, acrescentando que a prova de que o embargante, conquanto possuidor, não é proprietário, e de que os bens podem ser executados, incumbe ao credor.
Só que, como a embargante se funda exclusivamente na posse que exerce sobre a fracção penhorada, embora identificada como posse correspondente ao exercício de direito de propriedade, importava, para que a invocação de serem os executados os proprietários do bem penhorado pudesse ser atendida com o efeito de tal direito de propriedade seu se sobrepor à posse da embargante, e uma vez que nos encontramos no domínio de um processo incidental com termos especiais, que fosse formulado pela exequente, única contestante, o correspondente pedido de reconhecimento do direito de propriedade dos executados CC e mulher, DD, sobre aquela fracção, nos termos do art.º 357º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, a fim de tal direito de propriedade poder ser declarado na titularidade desses executados, - tanto mais que o art.º 1042º do Cód. Proc. Civil anterior à revisão processual, o qual se contentava com a alegação da propriedade sem exigir formulação de pedido de reconhecimento desse direito, ao contrário do que faz aquele n.º 2 do art.º 357º actual, foi revogado -, caso contrário estar-se-ia a proferir uma decisão não pedida, em violação do disposto no art.º 661º, n.º 1, do mesmo Código, e que nem sequer produziria, quanto à propriedade, o efeito de caso julgado material previsto no art.º 358º do mesmo diploma.
Tal pedido, porém, não foi formulado, nem consequentemente sujeito ao oportuno exercício do contraditório nomeadamente com o objectivo de ser ilidida a presunção registral ou de ser comprovada a inexistência real da fracção, pelo que não pode, nestes autos, ser declarada a propriedade dos ditos executados sobre a mesma, isto na pressuposição da sua existência, pois, se esta não existe, não pode ser objecto do direito de propriedade (art.º 1302º do Cód. Civil).
Não tendo, pois, a embargante, de alegar e demonstrar mais que a posse do espaço que integraria a fracção penhorada, como fez, tinha ela legitimidade para dedução dos presentes embargos; e, não tendo a exequente pedido o reconhecimento do direito de propriedade dos executados sobre a dita fracção, não pode tal direito ser declarado nestes autos, pelo que se justifica o levantamento da penhora, por ser ofensiva da posse da embargante.
Termos em que não se pode reconhecer razão à recorrente.

Pelo exposto, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de Março de 2007
Silva Salazar
Afonso Correia
Ribeiro de Almeida