Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07A3028
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: TRANSACÇÃO JUDICIAL
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
VALIDADE
Nº do Documento: SJ200710230030281
Data do Acordão: 10/23/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
O acordo de compra e venda de imóvel celebrado entre autores e réus num processo judicial formalizado em “termo de transacção” e a sentença homologatória, com trânsito em julgado, sobre ele proferida constituem título válido e suficiente para a transmissão da respectiva propriedade.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - AA e BB propuseram contra “S...– Construções Lda” e CCe mulher, DD, acção declarativa, em que pediram que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade sobre o lote de terreno para construção urbana inscrito na matriz sob o artigo 8.616 e descrito na Conservatória do registo Predial de Faro sob o n.º .../950306, que fosse declarada nula a venda feita pelos 2.ºs RR. à Ré Sociedade, a caducidade do registo a favor desta e a validade do registo requerido pelos AA., podendo ser convertido em definitivo.
Alegaram, para tanto, e em síntese, que na acção declarativa n.º 145/95, do 1.º juízo do Tribunal de Círculo de Coimbra, o A. e os segundos RR. lavraram termo de transacção no qual estes declararam vender àquele o aludido lote de terreno, pelo preço de 3.000.000$00, transacção que foi homologada por sentença de 15.7.1997, tendo o A. efectuado o pagamento do importo de sisa e, posteriormente, pago a respectiva contribuição autárquica. Por escritura pública lavrada a 8 de Julho de 1998 os segundos Réus venderam o mesmo lote de terreno à Ré “S...”, assim alienando coisa alheia, encontrando-se efectuados como provisórios por dúvidas os registos de propriedade requeridos por ambas as Partes.

Contestou a Ré “S..., Lda.” Para sustentar que a venda efectuada ao autor é nula, por não ter sido celebrada por escritura pública, pelo que a propriedade do lote de terreno não se transferiu.

No despacho saneador a acção foi julgada improcedente, decisão que a Relação confirmou.


Os AA. pedem agora revista, insistindo na pretensão de lhes ser reconhecido o direito de propriedade sobre o lote de terreno, como consequência da validade da respectiva venda e nulidade da celebrada entre os Réus.
Para tanto, argumentam, em síntese:
- O Termo de Transacção Judicial, feito por dois advogados e devidamente homologado por um Juiz de Direito, tem força de sentença é titulo superior á escritura pública, e bastante para operar a transferência de direitos, inclusive o de propriedade, não sendo necessária qualquer outra formalidade.
- Caso fosse necessário escritura pública para a Transacção Judicial, no artigo 1250º do Código Civil, não restringiria esta exigência apenas para a transacção preventiva ou extrajudicial, mas sim para todas as Transacções inclusive a judicial.
- Nos termos do artigo 408 e 1317 al. a ) do C. Civil, “ A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada, dá-se por mero efeito do contrato ».

- No n.º 1 do artigo 408 do Cód. Civil consagra-se o Princípio da Consensualidade isto significa que os contratos que implicam a constituição ou transmissão de direitos reais sobre coisas certas e determinadas produzem, em regra, de per si, essa consequência – quer dizer, pelo exclusivo resultado do consenso das partes legitimamente manifestado e no próprio instante da celebração – sem necessidade de qualquer acto posterior

- Ficou muito claro, no termo de transacção que os agora segundos Réus declararam vender aos autores (ora recorrentes) o lote de construção urbana em causa.

- A lei não exige que o juiz, ao homologar uma transacção, repita os termos em que esta foi feita, bastando que por remissão, condene nos respectivos termos;

- “A transacção sobre o objecto de uma causa é um contrato processual, sendo a intervenção do juiz, quando a homologa, de fiscalização da legalidade do objecto desse contrato e da qualidade das pessoas que contrataram.”

- Quando a lei não concretize, directa ou indirectamente, o documento necessário, para a prova do facto a registar, resta ao conservador apreciar livremente a suficiência dos documentos que lhe sejam apresentados para instruir o processo de registo.

- Ora, no caso concreto, o Título dos ora recorrentes não sofre de qualquer nulidade material ou formal.

- Tanto assim é que o Sr. Conservador do Registo Predial nunca pôs em causa a validade material ou formal do Título (Termo de Transacção devidamente homologado) apresentado pelos ora Recorrentes.

- Os recorrentes, desde a data de homologação do termo de transacção, para além de terem inscrito o prédio em seu nome na respectiva repartição de finanças, e pago o respectivo imposto de sisa, todos os anos pagam a respectiva contribuição autárquica.

- Assim, deve ser declarada inválida a segunda venda, por se tratar de venda de coisa alheia, nula por força do artigo 892 do C.Civil .

- Deve o termo de transacção homologado ser considerado documento válido e suficiente para permitir a transferência da propriedade pata os recorrentes.

Não foi apresentada qualquer resposta.


2. - A questão que se coloca é, no essencial, a de saber se é válido o acordo de compra e venda celebrado entre os AA. e os segundos Réus, consubstanciado no “termo de transacção” homologado por sentença transitada em julgado, constituindo título bastante de transmissão da propriedade do imóvel.

3. - Vêm definitivamente provados os seguintes factos:

1. No âmbito da acção ordinária n.º 145/95 que correu termos no 1º juízo do Tribunal de Circulo de Coimbra em que eram autores AA e EE e réus CC e mulher DD, as partes efectuaram transacção na qual os aí réus declararam vender aos aí autores o lote de terreno para construção urbana, com a área de 300 m2, sito na Urbanização Monte Branco, freguesia de S. Pedro, concelho de Faro, designado por lote 35, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 8.616, com o valor patrimonial de 2.520.000$00, descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º .../950306, pelo preço de 3.000.000$00, que os aí autores declararam ter recebido tal montante de que deram quitação;
2. Na sequência desse termo de transacção, no mesmo processo foi proferido o seguinte despacho: “ Através do termo lavrado a fls. 63 vieram os autores AA e EE representados no acto pelo seu ilustre mandatário, Dr. A...H..., munido de procuração com poderes especiais para o efeito, e os réus CCe sua mulher DD, por termo ao presente litígio mediante os termos da transacção ali inscrita. Desse modo, atendendo à natureza disponível dos direitos em causa e à qualidade das pessoas que nela intervêm declaro válida a transacção e consequentemente condeno as partes que nela intervieram, ou seja, os autores e os réus atrás identificados a observá-la nos seus precisos termos (cfr artigos 293º, n.º 2, 294º e 300º, todos na versão anterior do cpc”;
3. Por escritura Pública lavrada a 8 de Julho de 1998 no 2º Cartório Notarial de Faro J...M...L..., na qualidade de procurador de CCe DD declarou vender à sociedade “S...– Construções Lda.”, pelo preço de 5.500.000$00, o lote de terreno para construção urbana com a área de 300 m2, designado por Lote 35, sito na Urbanização Monte Branco, na Freguesia de S. Pedro, concelho de Faro, inscrito na matriz sob o artigo 8616º, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Faro sob o n.º .../950306.;
4. Pela apresentação n.º 27 de 5.8.1998, a ré “S...– Construções Lda” requereu o registo da propriedade do aludido lote n.º 35, referido no ponto 3 supra, a seu favor, por compra a CCe mulher DD;
5. Tal registo ficou provisório por dúvidas;
6. Pela apresentação n.º 5, de 9.9.1998, os aqui autores requereram o registo da propriedade do aludido lote n.º 35, referido no ponto 2 supra, com base em transacção judicial celebrada com CCe mulher DD.

4. - Mérito do recurso.

4. 1. - Nas Instâncias respondeu-se negativamente à questão enunciada com fundamento em que a compra e venda de imóveis está sujeita a escritura pública, consistindo a exigência estabelecida no art. 875º C. Civil uma formalidade ad substantiam, donde a nulidade do contrato, nulidade que a homologação por sentença, por não se pronunciar sobre a relação substancial, não sanou.

4. 2. - As Partes no processo outorgaram no termo de transacção onde fizeram declarações negociais típicas de um contrato de compra e venda dum imóvel, pondo termo a uma acção e dando “sem efeito o arresto e o respectivo embargo”.
Sobre a transacção foi proferida sentença homologatória, de natureza tabelar, que a declarou válida e condenou “as partes que nela intervieram a observá-la nos seus precisos termos”.

Transacção é, na definição legal, o contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante recíprocas concessões, as quais podem envolver a constituição, modificação ou extinção de direitos diversos do controvertido – art. 1248º C. Civil.
Como contrato que é, a transacção está sujeita ao respectivo regime geral e, mais amplamente, ao regime geral dos negócio jurídicos estabelecido no art. 217º e ss. do C. Civil, onde se incluem, naturalmente, as exigências de forma e consequências da respectiva inobservância (arts. 219º e 220º).
No caso, o conteúdo da transacção – os elementos do autos não permitem conhecer os exactos contornos e objecto do litígio a que se pôs termo – apresenta-se como da espécie denominada “novativa”, incidindo sobre direitos diversos do direito controvertido.

Celebrada, como foi, na pendência da lide, à forma da transacção é aplicável o art. 300º-1 do CPC a dispor que, tal como a confissão ou desistência «podem fazer-se por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva, ou por termo no processo”.
Lavrado o termo ou junto o documento, o juiz condenará ou absolverá nos termos acordados pelas partes se, examinado o documento em causa, a transacção se mostrar válida, pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas (n.º 2 do mesmo preceito).


4. 3. - No caso, é, como dito, indiscutível que as declarações que as Partes fizeram constar do “termo de transacção” são declarações negociais que integram um contrato de compra e venda de bem imóvel para as quais a lei substantiva coloca como condição de validade constarem de escritura pública (art. 875º C. Civil; no mesmo sentido o art. 80º-1 C. Notariado).

O efeito translativo da propriedade, por mero efeito do contrato, ou princípio da consensualidade, a que os Recorrentes fazem apelo, que, como regra, o art. 408º-1 C. Civil consagra e no contrato compra e venda, em especial, o art. 879º-a) reafirma, nada tem que ver com a questão, que se prende tão somente com a validade e eficácia das declarações negociais que integram o contrato e, por isso, se situa a montante, isto é, de existir ou não um contrato por efeito do qual se possa transmitir o direito, matéria que encontra resposta nos já referidos arts. 219º e 220º, ou seja, agora subtraída, por excepcionada da regra da “consensualidade” ou da liberdade de forma prevista no primeiro segmento daquele art. 219º.

Exige, pois, a lei substantiva, como formalidade ad substantiam, de validade das declarações negociais do contrato de compra e venda, a escritura pública, sob pena de nulidade por vício de forma.
Como contrato que é, por aplicabilidade das regras gerais já referidas, a transacção não escapa á referida exigência e respectivos efeitos.

É isso mesmo que a lei corrobora ao dispor sobre a forma exigível para a validade da transacção preventiva ou extrajudicial, fazendo-a depender da forma exigida pela lei substantiva – art. 1250º C. Civil.

4. 4. - Porém, quando celebrada na pendência da lide, a lei alude a dois meios de formalização: - documento autêntico ou particular, em correspondência com o que a lei substantiva exigir; - ou termo no processo, a tomar pela secretaria.

No primeiro caso, a lei equipara, em termos formais, a transacção em lide pendente à transacção extrajudicial; se as partes fazem juntar ao processo documento não elaborado por funcionário judicial, a forma depende da que a lei substantiva estabelecer para o negócio.
Mas, se celebrada a transacção por termo no processo, a lei já não faz idêntica exigência; neste caso, certamente por se tratar de acto processual, praticado por oficial público, no exercício das suas competências (arts. 300º-2 e 161º e ss. CPC), a lei dispensa a intervenção notarial, desde que, judicialmente verificada a validade das cláusulas do contrato “pelo seu objecto e pela qualidade das pessoas”, as partes sejam condenadas ao seu cumprimento.
Certo que, seja como for, a lei distingue nitidamente os casos em que o documento que formaliza a transacção é formado fora da Secretaria judicial e junto ao processo daquele em que o oficial de justiça intervém, como documentador, na sua formação.

A sentença homologatória incorpora, então, as cláusulas do contrato de transacção, como que delas se apropriando, e nessa medida impondo às partes a vinculação ao respectivo cumprimento.

Como se escreveu no ac. deste Supremo de 25/3/2004 (Proc. 03B4074 ITIJ), a sentença homologatória, “que inicialmente arranca da transacção lavrada no processo (…), acaba assim por ganhar ou adquirir, pelo princípio da absorção, valência a se.
Tal sentença não conhece do mérito da causa, mas chama necessariamente a si a solução de mérito para que aponta o contrato de transacção, acabando por dar, ela própria, mas sempre em concordância com a vontade das partes, a solução do litígio. E, uma vez transitada em julgado, como que corta, e definitivamente, o cordão umbilical que a ligava à transacção de que nascera”.


4. 5. - No caso, não vem arguido qualquer vício do contrato de transacção que não seja a insuficiência de forma, nem posta em causa a validade e efeitos da sentença homologatória transitada em julgado.

Assim sendo, como proposto, entende-se que a transacção e a sentença homologatória sobre ela proferida constituem título válido e suficiente para a transmissão da propriedade do lote de terreno em causa.


4. 6. - Daqui decorre ser de coisa alheia, porque propriedade dos Autores, a venda do lote efectuada pelos segundos Réus à Ré Sociedade, titulada pela escritura pública de oito de Julho de 1998, e, como tal, nula – art. 892º C. Civil.

4. 7. - Não se mostra estar em vigor qualquer inscrição registal do prédio a favor das Partes, razão por que nenhuma declaração cabe emitir sobre a respectiva validade ou caducidade, pretensão também abandonada no recurso

5. - Decisão.

Em conformidade com o expendido, decide-se:
- Conceder a revista;
- Revogar o acórdão impugnado;
- Julgar procedentes os pedidos formulados em a) e b) da acção e, consequentemente:
- Reconhecer os Autores como titulares do direito de propriedade plena sobre o lote de terreno identificado no artigo 3.º da petição inicial; e,
- declarar nula a venda dos segundos Réus à primeira Ré Sociedade “S..., Lda”, titulada pela escritura pública celebrada em 8 de Julho de 1998 no 2.º Cartório Notarial de Faro; e,
- Condenar os Recorridos nas custas.


Lisboa, 23 Outubro 2007
Alves Velho (Relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias