Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
369/22.6PBSNT-D.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: HABEAS CORPUS
FUNDAMENTOS
PRISÃO PREVENTIVA
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO.
Sumário :
I - O habeas corpus é uma providência extraordinária e expedita, independente do sistema de recursos penais, que se destina exclusivamente a salvaguardar o direito à liberdade.
II - Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP, de enumeração taxativa.
III - Constitui jurisprudência constante do STJ o entendimento de que o prazo máximo de duração da prisão preventiva a que se reporta o art. 215.º, n.os 1, al. a) e 2, do CPP, conta-se desde a aplicação daquela medida de coação, sendo a data da dedução da acusação - que não a da sua notificação ao arguido - o seu termo final, tendo tal prazo natureza substantiva.
Decisão Texto Integral:




Habeas Corpus


Processo n.º 369/22.6PBSNT-D.S1


5.ª Secção


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO


1. AA, com os sinais dos autos, na situação de prisão preventiva, veio, através do seu advogado, apresentar petição de habeas corpus, nos termos e com os fundamentos que se transcrevem:


«1.°


O Requerente AA, encontra-se privado da liberdade, desde 31 de julho de 2023, sujeito às medidas de coação de prisão preventiva, o que lhe foi aplicado em sede de primeiro interrogatório.


2.°


O Requerente, encontra-se indiciado da prática de dois crimes de violação, previstos pelo disposto no artigo 164.°, n.º 1, al. a) e b) do Código Penal, dois crimes de importunação sexual, previsto pelo artigo 170.°, n.º 1, do Código Penal, punível com pena de prisão até um ano ou com pena de multa e de um crime de abuso de poder, previsto no artigo 382.°, do Código Penal.


3.°


Sendo certo que, o crime de violação, nos termos do art.º164° n.º 1, al, a) e b) do Código Penal, é o crime que detém a moldura penal mais gravosa, no presente caso é punível com pena de prisão de um a seis anos.


4.°


Não foi declarada a excepcional complexidade do processo, atenta a simplicidade dos autos não se vislumbra como o poderá vir a ser.


5.°


Sem relevo para a presente providência, desde já se refere que o Requerente, sempre se defendeu com a justificação de ter praticado um ato médico.


Mais, em caso algum praticou cópula, coito anal ou coito oral com as denunciantes, facto que é demonstrado pelas declarações destas.


Sucede que,


6.°


Até a presente data de 30.01.2024, não foi deduzida acusação.


7.º


De acordo com a al. a), do n.º 1, do artigo 215.° do Código de Processo Penal, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido quatro meses, acrescido do prazo de dois meses do n.º 2 do referido artigo, sem que tenha sido deduzida acusação.


8.°


Ou seja, passaram mais de 180 dias sem que tenha sido deduzida acusação pública contra o arguido.


9.°


No caso dos autos, o prazo referido no artigo anterior esgotou-se no passado dia 27.01.2024, resultando claramente que está ultrapassado o referido prazo de 180 dias.


10.°


Pelo que, a prisão preventiva aplicada ao Requerente extinguiu-se em 27.01.2024.


11.º


Porém, estando hoje, 30.01.2024, no quarto dia em que se mostra ultrapassado "O prazo máximo definido na al. a), do n.º 1, do artigo 215,° do Código de Processo, o Requerente, ainda, não foi posto em liberdade, conforme decorre do n. ° 1, do art.º 217.°do CPP.


12.°


Em suma, o Requerente, encontra-se privado da liberdade, desde 31 de julho de 2023, sujeito às medidas de coação de prisão preventiva, sendo que até a presente data de 30.01.2024, não foi deduzida acusação. Consequentemente, de acordo com a al. a), do n.º 1, do artigo 215.° do Código de Processo Penal, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido 180 dias sem que tenha sido deduzida acusação. Pelo que, a prisão preventiva aplicada ao Requerente extinguiu-se em 27.01.2024.


Assim, nosso modesto olhar estão reunidas as condições para apresentar a presente petição de Habeas Corpus e requerer, como se requer, a concessão imediata da providência de Habeas Corpus em virtude de prisão ilegal, ordenando-se a imediata libertação do requerente.


DO PEDIDO:


Pelo exposto, o Requerente, encontra-se ilegalmente preso nos termos da al. c), do n.º 2, do artigo 222.° do Código de Processo Penal, em clara violação do disposto nos art.º 27.° e 28,°, n.º 4 da CRP e na al. a), do n.º 1, do artigo 215.° e do n.º 1, do art.º 217.°, ambos do Código de Processo Penal.


Assim, deve ser declarada ilegal a prisão preventiva em que o Arguido, aqui Requerente, atualmente se encontra e ordenada a sua libertação imediata, nos termos do art.º 31.°, n.º 3 da CRP e dos artigos 222.° e 223.°, n.°4, ambos do CPP.


NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE SER DECLARADA A ILEGALIDADE DA PRISÃO PREVENTIVA E ORDENADA A LIBERTAÇÃO IMEDIATA DO REQUERENTE.


FAZENDO-SE, DESTE MODO, A CUSTUMADA JUSTIÇA.»


2. Foi prestada a informação referida no artigo 223.º, n.º1, parte final, do Código de Processo Penal (doravante CPP), nos termos que, seguidamente, se transcrevem:


«AA veio interpor a presente providência excecional de Habeas Corpus, para libertação do arguido, por excesso de prisão preventiva.


Alega para tanto que se encontra em prisão preventiva desde o dia 31 de julho de 2023 indiciado da prática de um crime de coação sexual, previsto e punido pelos artigos 14.°, n°1, 26°. 163.° n.°s 1 e 3, do Código Penal, dois crimes de violação, previstos e punidos pelos artigos 14.°, n.°1, 26°, 164.°, n.º 1, al. b) do Código Penal e um crime de abuso de poder, previsto e punido pelos artigos 14.°, n.°1, 26.° e 382.° do Código Penal.


Não foi declarada a excecional complexidade do processo e até à data de 30 de janeiro de 2024 não foi proferida acusação. Ou seja, decorridos mais de 180 dias sem que tenha sido deduzida acusação a prisão preventiva que lhe foi aplicada esgotou-se no dia 27 de janeiro de 2024. Por conseguinte deve ser declarada a ilegalidade da prisão preventiva e ordenada a libertação imediata do requerente.


O Ministério Público opôs-se à sua pretensão.


*


A providência de habeas corpus é uma providência excepcional, destinada a garantir a liberdade individual contra o abuso de autoridade, vocacionada a responder a situações de gravidade extrema ou excecional. A petição de habeas corpus, em caso de prisão ilegal, tem os seus fundamentos taxativamente previstos no n.º 2 do artigo 222.° do Código de Processo Penal:


a) - Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;


b) - Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite;


c) - Manter-se para além dos prazos fixados por lei ou por decisão judicial.


No caso vertente está em causa o excesso do prazo da medida de coação de prisão preventiva.


Com relevo para a decisão releva a seguinte factualidade:


1 - O arguido foi detido no dia 31 de julho de 2023 a coberto de mandado de detenção ( fora de flagrante delito) emitido pelo Ministério Público ( fls. 203 a 206v.°).


2 - O arguido foi presente a primeiro interrogatório judicial de arguido detido no dia 31 de julho de 2023 (fls. 252).


3 - Na sequência do interrogatório judicial ficou sujeito às medidas de coação de a) prisão preventiva, b) suspensão do exercício de funções de médico no Centro de Saúde de ...-..., c) proibição de contactos por qualquer meio (incluindo telefone) com as ofendidas BB e CC; ( fls. 278).


4 - A medida de coação foi objeto de reexame em 30 de outubro de 2023 (fls.389) e reapreciada a requerimento do arguido em 19 de dezembro de 2023 e 9 de janeiro de 2024.


5 - Em 29 de janeiro de 2024 o Ministério Público deduziu acusação contra o arguido imputando-lhe a prática de um crime de coação sexual, previsto e punido pelos artigos 14.°, n°1, 26.° e 163.°, n.°s 1 e 3, do Código Penal. - dois crimes de violação, previstos e punidos pelos artigos 14.°, n.°1, 26.°, 164.°, n.° 1, al. b) do Código Penal; - um crime de abuso de poder, previsto e punido pelos artigos 14.°, n.°1, 26.° e 382.°, do Código Penal.


6 - A notificação da acusação ao arguido e seu I. Mandatário foi efetuada na mesma data 29 de janeiro de 2024, por correio eletrónico.


Estatui o n.º1 do artigo 222.° do Código de Processo Penal que "a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus".


A ilegalidade da prisão vem enumerada taxativamente nas alíneas a) a c) do n°2. Delas decorre que a prisão é tida como ilegal se: a) foi efetuada ou ordenada por uma entidade que não tinha competência para tal, se b) o motivo que lhe deu origem não é permitido por lei (inadmissibilidade substantiva) e ainda se c) ocorre a mais tempo do que o permitido por lei ou por decisão judicial (insubsistência de pressupostos).


No caso vertente considera o requerente que a prisão preventiva se mantém para além do prazo legal que considera ter expirado em 27 de janeiro de 2024.


Cremos que não lhe assiste razão.


O arguido AA encontra-se em prisão preventiva desde o dia 31 de julho de 2023.


De acordo com o disposto no artigo 215.°, n.°2, por referência ao artigo 1°, alínea j), do Código de Processo Penal, a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início tiverem decorrido seis meses sem que tenha sido deduzida acusação, ou quando tiverem decorrido dez meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória ou quando tiverem decorridos um ano e seis meses sem que tenha havido condenação em 1° instância ou dois anos sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.


Considerando que o termo inicial do prazo da medida de coação de prisão preventiva é 31 de julho de 2023, o prazo máximo de seis meses seria atingido em 31 de janeiro de 2024.


Do mero confronto de datas resulta evidente que o despacho de acusação foi proferido antes de se encontrar esgotado o prazo máximo legal da referida medida.


Em face do exposto, por não se mostrar excedido o prazo máximo legal da medida de coação que lhe foi imposta, carece de fundamento o seu pedido de libertação devendo o arguido continuar a aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.


Instrua um apenso para conhecimento do pedido de Habeas Corpus com certidão dos elementos mencionados por referência a fls., auto de interrogatório judicial de arguido detido, despacho de acusação, petição de habeas corpus, informação do Ministério Público e bem assim desta decisão.


Após, remeta a Sua Exa, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.


Notifique.»


3. O processo encontra-se instruído com a documentação pertinente.


4. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.


Após o que a secção reuniu para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Questão a decidir:


Saber se o peticionário se encontra ilegalmente em prisão preventiva, nos termos do artigo 222.º, n.º 2, al. c), do CPP - ilegalidade proveniente de, alegadamente, manter-se preso para além do prazos máximo fixados pela lei.


2. Factos


A matéria factual relevante para o julgamento do pedido resulta da petição de habeas corpus, da informação prestada e da certidão que acompanha os presentes autos, extraindo-se os seguintes dados de facto e processuais (em súmula):


1. O arguido/ora peticionário foi submetido a 1.º interrogatório de arguido detido, no Juízo de Instrução Criminal de Sintra – Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, tendo-lhe sido imposta, no final dessa diligência, por despacho de 31 de julho de 2023, a medida de coação de prisão preventiva prevista no artigo 202.º do CPP, por se considerar fortemente indiciada a prática por parte do mesmo, em autoria material e concurso real: de dois crimes de violação, p. e p. pelo artigo 164. º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal; dois crimes de importunação sexual, p. e p. pelo artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal; um crime de abuso de poder, p. e p. no artigo 382.º, do Código Penal.


2.A medida de coação imposta ao peticionário foi sendo sucessivamente revista e mantida.


3. Em 29 de janeiro de 2024 foi deduzida acusação contra o arguido/peticionário, imputando-lhe a prática, como autor material e em concurso real, de:


- um crime de coação sexual, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º1, 26.º e 163.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal.


- dois crimes de violação, p. e p. pelos artigos 14.º, n.º1, 26.º e 164.º, n.º1, al. b) do Código Penal;


- um crime de abuso de poder, p. e p. pelos artigos 14.º ,n.º1, 26.º e 382.º, do Código Penal.


4. A notificação da acusação ao mandatário do arguido foi efetuada na mesma data de 29 de janeiro de 2024, por correio eletrónico.


*


3. Direito


3.1. Nos termos do artigo 27.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), todos têm direito à liberdade e ninguém pode ser privado dela, total ou parcialmente, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de ato punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança.


Excetua-se a privação da liberdade, no tempo e nas condições que a lei determinar, nos casos previstos no n.º 3 do mesmo preceito constitucional, em que se incluem: (a) a detenção em flagrante delito; (b) a detenção ou prisão preventiva por fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos; (c) a prisão, detenção ou outra medida coativa sujeita a controlo judicial, de pessoa que tenha penetrado ou permaneça irregularmente no território nacional ou contra a qual esteja em curso processo de extradição ou de expulsão; (d) a prisão disciplinar imposta a militares, com garantia de recurso para o tribunal competente; (e) a sujeição de um menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente; (f) a detenção por decisão judicial em virtude de desobediência a decisão tomada por um tribunal ou para assegurar a comparência perante autoridade judiciária competente; (g) a detenção de suspeitos, para efeitos de identificação, nos casos e pelo tempo estritamente necessários e; (h) o internamento de portador de anomalia psíquica em estabelecimento terapêutico adequado, decretado ou confirmado por autoridade judicial competente.


O artigo 31.º da CRP consagra o direito à providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer pela própria pessoa lesada no seu direito à liberdade, ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente.


Em anotação ao artigo 31.º, n.º 1, da CRP, escrevem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, p. 508):


«Na sua versão atual, o habeas corpus consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros, garantido nos arts. 27.º e 28.º (...). A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no art. 27.º, quando efetuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir, quando a detenção ou prisão ocorra fora dos estabelecimentos legalmente previstos, etc.


Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade.»


José Lobo Moutinho (Jorge Miranda e Rui Medeiros, com a colaboração de José Lobo Moutinho [et alii], Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Tomo1, 2.ª edição, 2010, pp. 694-695), em comentário ao mesmo artigo 31.º, n.º1, da Lei Fundamental, sustenta que a qualificação de «providência extraordinária», atribuída ao habeas corpus « …não significa e não equivale à excecionalidade. Juridicamente excecional é a privação da liberdade (pelo menos, fora dos termos e casos de cumprimento de pena ou medida de segurança) e nunca a sua tutela constitucional. A qualificação como providência extraordinária será de assumir no seu descomprometido significado literal de providência para além (e, nesse sentido, fora – extra) da ordem de garantias constituída pela validação judicial das detenções e pelo direito ao recurso de decisões sobre a liberdade pessoal.»


A lei processual penal, dando expressão ao referido artigo 31.º da CRP, prevê duas modalidades de habeas corpus: em virtude de detenção ilegal e em virtude de prisão ilegal.


Dispõe o artigo 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”:


«1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.


2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:


a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;


b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou


c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.»


A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem considerando que constituem fundamentos da providência de habeas corpus os que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos suscetíveis de pôr em causa a regularidade ou a legalidade da prisão (acórdão de 06.04.2023, proc. n.º 130/23.0PVLSB-A.S1, disponível em www.dgsi.pt, como outros que sejam citados sem diversa indicação).


Tem também decidido uniformemente o Supremo Tribunal de Justiça que a providência de habeas corpus, por um lado, não se destina a apreciar erros de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (por todos, o acórdão do STJ, de 04.01.2017, proc. n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada) e, por outro, que a procedência do pedido pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que é apreciado o pedido (entre muitos, o acórdão de 19.07.2019, proferido no proc. n.º 12/17.5JBLSB, com extensas referências jurisprudenciais).


Os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se, necessariamente, à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do CPP.


Como se tem afirmado, em jurisprudência uniforme, o Supremo Tribunal de Justiça apenas tem de verificar (a) se a prisão, em que o peticionário atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, proferida por autoridade judiciária competente, (b) se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c) se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial (acórdãos de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, de 18.05.2022, proc. 37/20.3PJLRS-A.S1, e de 06.09.2022, proc. 2930/04.1GFSNT-A.S1).


3.2. No caso concreto, o arguido/peticionário considera que a prisão preventiva que lhe foi imposta por despacho proferido no dia 31.07.2023 se mantém para além do prazo fixado na lei.


Vejamos.


Em matéria de prisão preventiva, os prazos a considerar são os previstos no artigo 215.º, do CPP, sob a epígrafe «prazos de duração máxima da prisão preventiva», onde se dispõe, nomeadamente, e com interesse para o presente caso:


«1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:


a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;


b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;


c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;


d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.


2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime:


(…).».


Tendo em vista os crimes fortemente indiciados no momento da imposição da prisão preventiva e o conceito legal de “criminalidade violenta” previsto no artigo 1.º, al. j), do CPP, o prazo de duração máxima da prisão preventiva sem que fosse deduzida acusação era, in casu, de seis meses.


Constitui entendimento pacífico, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, ser a partir do momento da aplicação da prisão preventiva que se contam os prazos máximos da medida de coação correspondentes à fase pré-acusatória, e não do momento da detenção que o tenha precedido (neste sentido, entre muitos, o acórdão de 11.11.2021, proc. 869/18.2JACBR-G.S1).


Do que decorre que, tendo como termo a quo o momento do decretamento da prisão preventiva – 31.07.2023 –, o prazo de seis meses atingiu o seu termo final no dia 31.01.2024, às 24h00, porquanto se trata de um prazo de natureza substantiva, devendo computar-se nos termos dos artigos 296.º e 279.º, do Código Civil (cf. o citado acórdão de 11.11.2021).


Quer isto dizer que o peticionário requereu a providência de habeas corpus antes de decorrido o prazo de duração máxima da prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.ºs 1, al. a) e 2, sendo totalmente incompreensível a alegação de que tal prazo ter-se-ia esgotado em 27.01.2024.


Acresce constituir, igualmente, jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP, é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido (entre muitos, os acórdãos de 17.05.2023, proc. 3233/21.2T9VNF-J.S1; de 29.06.2023, proc. 787/22.0PBMTA-B.S1; de 31.08.2023, proc. 442/23.3JABRG-B.S1).


Os autos documentam que a acusação foi deduzida no dia 29.01.2024, ou seja, antes de completado o referido prazo.


O peticionário nem sequer teve o elementar cuidado de aguardar o tempo mínimo necessário para permitir que, findo o prazo aplicável de duração máxima da prisão preventiva, pudesse ser notificado da acusação, tendo em vista o regime do artigo 113.º do CPP.


Com a dedução da acusação o prazo de duração máxima da prisão preventiva passou a ser o da condenação em 1.ª instância, ou, sendo requerida a instrução, o da decisão instrutória, o que no caso está longe de se verificar.


Em suma, a medida coativa de prisão preventiva do arguido/peticionário mostra-se ordenada por entidade competente; é motivada por facto pelo qual a lei o permite; e não se mantém para além dos prazos fixados na lei, pelo que não se verificam os pressupostos para deferir o habeas corpus fixados nos artigos 31.º da CRP e 222.º do CPP.


3.3. O artigo 223.º, n.º6, do CPP, estabelece: «Se o Supremo Tribunal de Justiça julgar a petição de habeas corpus manifestamente infundada, condena o peticionante ao pagamento de uma soma entre 6 UC e 30 UC.»


A jurisprudência tem considerado, a propósito do recurso, que este é manifestamente infundado quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que está votado ao insucesso.


O mesmo critério deve ser utilizado para determinar quando uma petição de habeas corpus é “manifestamente infundada”, justificando a aplicação de uma sanção processual pecuniária, penalizadora do uso manifestamente censurável da providência por evidente ausência de pressupostos e fundamentos.


É o que ocorre no presente caso, em que é patente e indubitável, numa avaliação perfunctória dos fundamentos do pedido de habeas corpus, diversamente do alegado, que o prazo de prisão preventiva não se mostra ultrapassado.


Em consequência, deve o peticionário ser condenado, para além da tributação devida nos termos do artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III, do Regulamento das Custas Processais, também numa soma, nos termos do artigo 223.º, n.º6, do CPP, que, in casu, se fixa em 10 UC.


*


III - DECISÃO


Pelo exposto, acordam os juízes desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a providência de habeas corpus ora em apreciação.


Custas pelo peticionário, com 3 UC de taxa de justiça (artigo 8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III anexa), sendo ainda condenado, nos termos do artigo 223.º, n.º 6, do CPP, no pagamento de uma soma de 10 (dez) UC, a título de sanção processual.


Supremo Tribunal de Justiça, 8 de fevereiro de 2024


(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)


Jorge Gonçalves (Relator)


Agostinho Torres (1.ª Adjunto)


Albertina Pereira (2.ª Adjunta)


Helena Moniz (Presidente da Secção)