Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
139/02.8TASPS.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: RAUL BORGES
Descritores: ESTABELECIMENTO PRISIONAL
ILICITUDE CONSIDERAVELMENTE DIMINUÍDA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA DE PRISÃO
PENA SUSPENSA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES AGRAVADO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
Data do Acordão: 09/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário :
I - A previsão legal do art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, contém a descrição da factualidade típica de maneira compreensiva e de largo espectro, que abrange desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.

II - O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria de “crime exaurido”, que se caracteriza como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo. A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.

III - Enquadra-se também na categoria dos crimes de perigo abstracto, que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos. Cada uma das actividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime.

IV -É uniforme o entendimento de que a circunstância de a infracção ter sido cometida em EP não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da acção, a concreta infracção justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador.

V - O recorrente encomendou a um outro recluso que ia beneficiar de uma saída precária, a aquisição de cannabisno exterior do EP,para tanto entregando-lhe € 150, mas visando, uma vez na posse da substância, vendê-la a outros reclusos. Como este crime se exauriu com a mera encomenda, conclui-se que o recorrente não cometeu o crime de tráfico de estupefacientes agravado do art. 24.º, al. h), do DL 15/93.

VI - O crime de tráfico de menor gravidade contempla, como a própria denominação indica, situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base, se processa de forma a ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude, ou seja, em que se mostra diminuída a quantidade do ilícito.

VII - Os índices ou exemplos padrão enumerados no art. 25.º do DL 15/93 são atinentes, uns à própria acção típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da acção), outros ao objecto da acção típica (qualidade ou quantidade do estupefaciente), ou seja, pertinem todos estes factores ao desvalor da conduta, à execução do facto, fazendo parte do tipo de ilícito, não entrando em acção qualquer consideração relativa ao desvalor da atitude interna do agente, à personalidade deste, a juízo sobre a culpa.

VIII - Para se qualificar o facto como menos grave devem valorar-se complexivamente todas as circunstâncias, deve proceder-se à valorização global do episódio. O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão do bem jurídico protegido (saúde pública).

IX - A conduta do recorrente surge como de pouco relevo em face da qualidade da droga ─ cannabis (resina) ─ e da quantidade que veio a ser adquirida pelo co-arguido ─ metade de um sabonete de peso não apurado, mas próximo dos 100 g. . Como o co-arguido também não procedeu à entrega do produto adquirido ao recorrente, procede a pretensão de integração da sua conduta no tipo privilegiado do art. 25.º, al. a), do DL 15/93.

X - O cumprimento de pena de prisão efectiva, volvidos mais de 10 anos sobre os factos e mais de 6 sobre o julgamento, apresentar-se-ia como factor muito perturbador da actual vivência do arguido e do caminho por ele escolhido, com nefastas consequências não só para ele, mas para toda a família em que se incluem 4 crianças. Estão, pois, reunidas as condições para que seja decretada a suspensão da execução da pena aplicada de 3 anos de prisão.
Decisão Texto Integral:

      No âmbito do processo comum com intervenção de Tribunal Colectivo n.º 139/02.8TASPS, do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, integrante do Círculo Judicial de Viseu, foram submetidos a julgamento os arguidos:

       AA, solteiro, profissão desconhecida, nascido a … de … de 19…, em Angola, com última residência conhecida em Portugal na Rua …, Lote ……., em Viseu.

       BB, solteiro, pintor da construção civil, nascido a … de … de 19…, na freguesia de Santa Maria de Viseu, em Viseu, e residente no …, n.º …, ..º andar - … - Viseu.

           Segundo a acusação pública, de fls. 277 a 283, era imputada a cada um dos arguidos a prática em co-autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 1, e 24.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-C anexa ao referido diploma, aí se requerendo ainda a condenação do arguido BB numa pena relativamente indeterminada, nos termos do artigo 84.º, do Código Penal e o arguido AA, como reincidente, nos termos do disposto nos artigos 75.º e 76.º, ambos do Código Penal.

      Foi realizado o julgamento na segunda data designada, em 3 de Novembro de 2006, na ausência do arguido AA, ao abrigo do disposto no artigo 333.º, n.º 2, do CPP, constando da acta de fls. 370/3, que o mesmo se encontrava ausente em Inglaterra em morada desconhecida.

     

      Por acórdão do Colectivo da Comarca de Viseu de 30 de Novembro de 2006, constante de fls. 392 a 422 (depositado no mesmo dia - fls. 424), foi deliberado julgar a acusação parcialmente procedente e provada, e, consequentemente:

      a) Condenar o arguido AA, como co-autor de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º l, 24.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, com referência à Tabela I-C, anexa a tal diploma legal, e artigos 75.º e 76.º, do Código Penal, na pena de 6 anos e 10 meses de prisão.

      b) Condenar o arguido BB, como co-autor do mesmo tipo de crime, p. e p., pelas disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º l, 24.º, alínea h), do Decreto-Lei 15/93, de 22-01, com referência à Tabela I-C anexa, e artigos 72.º e 73.º, do Código Penal, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão.

      c) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido BB, pelo período de 3 anos, a contar do trânsito em julgado da decisão.

      Foi ordenada a notificação do arguido AA para os efeitos do disposto no artigo 333.º, n.º 5, do CPP.

                                                          *******

      Foi tentada a notificação do acórdão ao arguido ausente logo a seguir, a partir de 13-12-2006, conforme se mostra pelo que consta das tentativas certificadas de fls. 425 a 478, 492 a 502, 507, 516 a 519, 523 (em 5-11-2010, a PSP de Viseu informava que o arguido havia falecido há cerca de 3 anos!), 524 a 534, 550/1, 563/4, 573 a 582, começando, porém, o Tribunal por fazê-lo, de forma dispensável e perfeitamente destinada ao insucesso, para uma morada onde já se sabia que o arguido não habitava, em resultado de informações já recolhidas e constantes dos autos, maxime, da acta de audiência de fls. 371, e mais tarde, de fls. 376, confirmando residir o notificando em Inglaterra - fls. 430. 

     Obtida, mais de cinco anos depois, mais concretamente, em 24-01-2012, informação sobre a residência do notificando em Inglaterra - fls. 582 - foi ordenada a notificação do acórdão condenatório, sendo junta a carta de fls. 585, com aviso não assinado, o que determinou nova tentativa de notificação - fls. 586/7 - por carta registada com AR.

     Entretanto, veio o arguido, obviamente conhecedor do acórdão condenatório, em 1 de Março de 2012, via fax (fls. 608), interpor recurso, conforme fls. 589 a 596, e em original, de fls. 609 a 616, mostrando-se efectuado o pagamento da taxa de justiça realizado em multibanco em 1-03-2012 - fls. 607 e 627 a 629.

                                                           *******

     O arguido AA apresentou a motivação de fls. 609 a 616, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição integral): 

1. A pena aplicada de 6 anos e 10 meses é excessiva e desproporcional ao facto de ter ficado provado ter dado 150 euros a outro recluso para adquirir droga.

2. Estamos na presença de factos que em nosso entender devem enquadrar-se na previsão do artigo 25° do D.L. 15/93 de 22.01 e quando muito no artigo 26° mas nunca no artigo 21° como o fez o douto acórdão.

3. Na presente data, o arguido tem uma vida estável em Inglaterra, onde vive com a mulher CC com quem casou nesse país, de quem tem 4 filhos, ainda menores, a saber:

- DD (perfilhado);

- EE, nascido em ……..20…;

- FF, nascido em ……..20…;

- GG, nascida em …….20…;

4. Tem trabalho certo e regular à ordem da entidade patronal "..., com sede em … … …, …, …, … ….

5. Tem residência certa e regular na Inglaterra, na morada onde foi notificado do Acórdão de que se recorre e que somente recebeu em Fevereiro de 2012.

6. Os filhos frequentam a seguinte escola “… Community School”, em …, … St … .., …, …,

7. O arguido conseguiu desligar-se por completo desse mundo, estando plenamente inserido na sociedade e tendo interiorizado as regras do direito e da vida em comunidade.

8. Está plenamente motivado para orientar e reger a sua vida segundo os ditames do direito e do respeito pelos valores do direito, consagrados.

9. As condenações criminais que lhe foram aplicadas e a mera ameaça de poder vir a ser preso efectivamente, fizeram-nos mudar diametralmente o seu comportamento, conforme se pode constatar na actualidade, onde, em Inglaterra, está plenamente inserido na comunidade e tem família constituída.

10. A executar-se agora a pena de prisão a que o arguido foi condenado, iria o sistema judicial, cortar de forma radical e abrupta a vida do arguido / recorrente, uma vez que iria retirar da sociedade um cidadão que apreendeu e interiorizou os valores do direito, em suma, ressocializou-se.

11. A prisão efectiva do arguido / recorrente significaria, enviar para a prisão um cidadão que se conseguiu ressocializar.

12. Aquando do julgamento o arguido já se encontrava na Inglaterra a refazer a sua vida.

13. Tal situação e factos acima explanados, implicam uma drástica diminuição da pena que foi aplicada ao aqui recorrente.

14. Com a pena efectiva e elevada de 6 anos e 10 meses de prisão que lhe foi aplicada, o recorrente, potencialmente, e sendo forçado a cumprir pena efectiva de prisão, não conformará a sua conduta com o direito, já que perspectiva no seu íntimo a ideia de um encarceramento longuíssimo, numa prisão, o que lhe incute a ideia de que lhe foi coarctada a via do direito e da ressocialização que já vive neste momento.

15. Tal reclusão, terá antes um efeito negativo, estigmatizante, até perverso.

16. Atendendo a tal facto, a opção por outras medidas que não a reclusão em estabelecimento prisional, realizariam de forma mais premente a necessidade de ressocialização do arguido e a continuação dessa ressocialização que é neste momento efectiva por parte do arguido.

17. Estamos a referir-nos à condenação do arguido em pena de prisão inferior a 5 anos, e à suspensão da mesma. De facto, de acordo com a redacção dada ao art. 50° nº 1 do Código Penal pela Lei nº 59/2007 de 04/09, reduzindo-se a pena de prisão do arguido para moldura inferir a 5 anos, seria a suspensão na sua execução a forma de fazer justiça no sentido de concluir que a simples ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

18. Deve alterar-se o douto acórdão proferido e considerar-se a conduta do arguido recorrente subsumível à previsão dos artigos 25° ou quando muito 26° do DL n.° 15/93 de 22.01.

19. Fundamental e primordial é considerar que este novo regime é o mais favorável ao arguido e deve ser aqui aplicado.

20. Entendemos, modestamente, que V. Exas. deverão conceder ao arguido, a possibilidade de comprovar à sociedade e a si próprio, que está disposto a refazer a sua vida, inserido na comunidade, necessitando para tal que a pena aplicada, por um lado lhe seja reduzida, e por outro lado, seja suspensa na sua execução.

21. Foram quanto a nós violadas, entre outras, as normas previstas nos artigos 21°, 25° e 26° do DL n.° 15/93 de 22.01. e art. 50° nº 1 do Código Penal, que interpretadas e aplicadas aos factos da presente situação, levariam a uma pena em concreta mais conforme o direito e à suspensão da execução da mesma.

     No provimento do recurso, pede a redução da pena em que foi condenado e a suspensão da execução da mesma.

           

     O Ministério Público respondeu ao recurso, de fls. 631 a 640, concluindo: 

1- À factualidade assente - e que o recorrente não questionou - foi dado correcto enquadramento jurídico-penal.

2- Tendo presente as finalidades da punição, a culpa do agente e as exigências de prevenção, sem haver deixado de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depunham a favor ou contra aquele, o Tribunal determinou, com critério, a pena concreta aplicada ao arguido/recorrente.

3- Essa pena de seis (6) anos e dez (10) meses de prisão mostra-se ajustada à gravidade dos factos em ponderação e a uma personalidade que evidencia propensão para o crime, total indiferença pelas regras jurídicas que disciplinam a vida em sociedade e por elevados bens jurídicos merecedores da tutela do direito penal.

4- Como as conclusões da sua motivação o demonstram, o recorrente assume ainda uma postura de desresponsabilização pessoal - "faltou ao julgamento porque já se encontrava em Inglaterra a refazer a sua vida, não pôde dessa forma, se estivesse presente em audiência de julgamento, beneficiar de atenuantes, tais como arrependimento ou esclarecimento do que se passou, tal situação e tais factos implicam uma drástica diminuição da pena que foi aplicada ao aqui recorrente - demonstrando, contrariamente ao que pretende, grande dificuldade para interiorizar, sem reservas, o desvalor da sua conduta criminosa e a sua elevada danosidade social.

5- Pelo que, além de não ser viável a suspensão da execução da pena de prisão ditada, desde logo pela medida superior a cinco anos, nunca a simples censura do facto e a ameaça da pena, no caso, se mostrariam adequadas e suficientes para assegurarem as finalidades da punição, mesmo que, por mera hipótese, outra e em mais baixa medida tivesse sido fixada a pena.

6- O douto acórdão recorrido não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, o disposto nos artigos 21.° e 24°, alínea h), 25º e 26º, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro e 40°, 71° e 50º, do Código Penal.

      Defende a improcedência do recurso interposto e, consequentemente, a confirmação do acórdão recorrido.

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     O recurso foi admitido por despacho de fls. 641, sendo ordenada a remessa dos autos ao STJ após instrução com suporte digital da decisão objecto de recurso e das alegações de recurso e da resposta do Ministério Público.

     Surpreendentemente, visando o recurso apenas matéria de direito, veio a ser ordenada a transcrição de cassetes, sendo junto auto de transcrição referente ao registo fonográfico de inquirição de testemunhas, actividade perfeitamente inútil, geradora de perda de tempo e que determinou despesa escusada no montante de € 204,84, conforme fls. 644 a 654. 

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     A Exma. Procuradora-Geral Adjunta neste Supremo Tribunal emitiu douto parecer de fls. 657 a 665, suscitando a questão prévia de falta de notificação pessoal ao recorrente do acórdão recorrido, pelo que o prazo para recorrer ainda não se teria iniciado, segundo o disposto nos artigos 333.º, n.º 5 e 113.º, n.º 9, do CPP, não podendo ser conhecido o recurso.

    Quanto ao fundo, considera que “os factos dados como provados devidamente conjugados e que só resultaram das declarações do co-arguido, pois o guarda prisional foi “de ouvir dizer a este”, parece-nos que só poderiam levar a autoria do crime de forma tentada”.

    De qualquer modo, a manter-se a condenação pela autoria e não pela tentativa do crime de tráfico de estupefaciente cometido pelo arguido AA, entende que a agravação não resultará dos factos provados, citando em abono dessa posição os acórdãos de 7-07-2009, proferido no processo n.º 82/07.2-3.ª e de 24-02-2010, por nós relatado no processo n.º 59/06.7GAPFR.P1.S1, defendendo ainda a integração na previsão do artigo 25.º, adiantando que “No caso concreto dos autos avaliando globalmente a situação de facto ter-se-á de concluir que o tipo de trafico cometido pelo arguido será privilegiado o que resulta de varias factores — qualidade e quantidade do estupefaciente, encomendado, – canabis pelo preço de 150 €, para consumo”.

   E quanto à medida da pena, defende que a mesma deverá situar-se perto dos 4 anos de prisão, entendendo por último estarem reunidos os factores que sustentam a sua suspensão.

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    Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o recorrente silenciou.

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    Não tendo sido requerida audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.

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    Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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    Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (neste sentido, o acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, proferido no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995, e BMJ n.º 450, pág. 72, que fixou jurisprudência, então obrigatória, no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”) e verificação de nulidades, que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.

    Questões a apreciar
    O recorrente afirma a sua discordância, conforme resulta do exposto na motivação e levado às conclusões, que traduzem, de forma sintética, as razões de divergência com o decidido, em dois pontos centrais, a saber, o não preenchimento do crime qualificado, pretendendo alteração da qualificação jurídica e medida da pena, que pretende ver reduzida e na sequência, suspensa na execução.

    Assim, são questões a apreciar e decidir:

    I Questão – Qualificação do crime cometido pelo recorrente como crime de tráfico de estupefacientes consumado ou tentado – Questão suscitada pela Exma. PGA

    II Questão – Alteração da qualificação jurídica

    1 – Da (in)verificação da qualificativa da alínea h) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 15/93 – Questão colocada pelo recorrente apenas de forma indirecta.

    2 – Convolação para crime de traficante - consumidor (artigo 26.º do DL n.º 15/93) ou para crime de tráfico de menor gravidade (artigo 25.º, alínea a), do DL n.º 15/93)? – Conclusões 2.ª, 18.ª, 19.ª e 21.ª

    III Questão – Medida da pena – Conclusões 1.ª, 3.ª a 17.ª, 20.ª

    IV Questão – Suspensão da execução da pena – Conclusões 17.ª, 20.ª e 21.ª

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     Apreciando. - Fundamentação de facto.

     Factos Provados

      Foi dada como provada a seguinte matéria de facto, que é de ter-se por imodificável e definitivamente assente, já que da leitura do texto da decisão, por si só considerado, ou em conjugação com as regras de experiência comum, não emerge a ocorrência de qualquer vício decisório ou nulidade de conhecimento oficioso, mostrando-se a peça expurgada de insuficiências, erros de apreciação ou contradições que se revelem ostensivos, sendo o acervo fáctico adquirido suficiente para a decisão, coerente, sem contradição, harmonioso, e devidamente fundamentado.

      Eis os factos provados (em formato reduzido no que respeita ao co-arguido não recorrente).

       No dia 23 de Agosto de 2002, cerca das 13h30m, no Estabelecimento Prisional de S. Pedro do Sul, o arguido AA sabedor que o arguido BB teria em breve uma saída precária desse estabelecimento prisional, nesse mesmo dia por volta das 14h00, local onde ambos se encontravam em cumprimento de pena, a troco de o compensar com alguns pacotes para seu consumo e de lhe assegurar no estabelecimento prisional as suas despesas com aquisição de tabaco e algumas bebidas, deu ao arguido BB a quantia de 150 €, pedindo ao mesmo que comprasse “canábis” e para a levar para o EP aquando do seu regresso, para aí proceder à sua venda aos outros reclusos, a troco de dinheiro.

      Face à proposta efectuada, o arguido BB acedeu ao pedido do arguido AA, tendo recebido tal quantia.

      Assim, e conforme previamente combinado, no dia 28 de Agosto de 2002, cerca das 23h00, o arguido BB dirigiu-se ao Parque desta cidade, onde adquiriu com tal quantia, a um indivíduo desconhecido, cerca de 1/2 de um sabonete de canábis - resina - de peso não concretamente apurado.

      No dia seguinte, e pelas 23h00m, o arguido BB dividiu tal produto estupefaciente em seis partes, envolveu-as em plástico e de seguida engoliu-as com o auxílio de água, tal como lhe tinha sido indicado pelo arguido AA, para tal produto não ser detectado ao entrar para o E.P. de S. Pedro do Sul, e assim proceder à sua entrega ao AA.

      Sucede que, o arguido BB deu aí entrada no dia 29 de Agosto de 2002, pelas 15h00, e pelo facto de ter chegado ao estabelecimento prisional a denúncia de que este trazia produto estupefaciente, foi colocado em cela individual, isolado da restante população prisional, razão pela qual não procedeu à entrega do produto ao arguido AA, conforme combinado entre eles.

      Mais tarde, e na sequência da aludida denúncia foi transferido para o EP de Viseu, onde já cerca das 20h00, e após uma revista, os guardas prisionais suspeitaram que este detinha produto estupefaciente no estômago, tendo então sido convidado a tomar dois comprimidos de cor amarela para evacuar.

      Entretanto, a seu pedido, o arguido BB foi transferido para o Hospital da cidade, onde através de radiografia, se concluiu que o produto já tinha descido para os intestinos.

      Após o que foi o arguido BB transportado de novo ao EP de Viseu, onde cerca das 2lh00, e na presença dos guardas prisionais HH e II, aí a prestar serviço, evacuou cinco pacotes, que logo apreenderam, e tendo sido o arguido BB questionado se havia mais para sair, o mesmo afirmou não possuir mais.

      No entanto, já cerca das 22h30 e na ausência dos guardas prisionais, o arguido BB evacuou o restante, mais um pacote, ao que o guardou debaixo do seu armário.

      No dia seguinte, 30 de Agosto de 2002, e após o almoço, o recluso JJ, com a alcunha B...., sabedor que o arguido BB detinha consigo produto estupefaciente, dirigiu-se à sua cela.

      E, o arguido BB tendo na sua posse o pacote guardado, acabou por lhe vender uma dose de “canabis”, desse mesmo pacote, de quantidade não concretamente apurada, pelo preço de 5 €.

      No dia 31 de Agosto, o arguido vendeu ainda mais três doses de “canabis”, do referido pacote, cada uma de quantidade não apurada, ao mesmo recluso, o que fez pelas 09h30, após o almoço e cerca das 16hl5, pelo preço global de 9,45€.

      No dia l de Setembro de 2002, os Serviços-Prisionais decidiram proceder a revista à Camarata do arguido BB, e realizada a diligência, os Guardas HH e KK detectaram e apreenderam, no armário, presa na calha, uma “placa” que aparentava ser de natureza estupefaciente, e ainda a quantia de 17,45€ (dezassete euros e quarenta e cinco cêntimos).

      Realizado o necessário exame-laboratorial, apurou-se que os pacotes referidos e evacuados pelo arguido BB, continham um produto vegetal prensado que revelou ser “Canabis” (Resina), com um peso líquido de 92,062gr e que a placa encontrada no armário da cela do arguido BB, continha um produto vegetal prensado que revelou ser “Canabis” (Resina), com um peso líquido de 6,461 gr.

      Quer as aludidas quatro doses vendidas ao recluso JJ, quer a placa encontrada no armário da camarata, faziam parte do mesmo pacote evacuado mais tarde pelo arguido na ausência dos guardas prisionais.

      A quantia de 150 euros que o arguido AA deu ao arguido BB foi determinante para a aquisição do produto estupefaciente em causa, o qual, por si só, não dispunha de meios económicos suficientes para a aquisição de tal produto ou outro da mesma natureza.

      As substâncias referidas evacuadas pelo arguido BB, destinavam-se ao arguido AA, conforme previamente acordado, recebendo aquele, em troca, algumas doses para o seu consumo.

      A quantia de 14,45 € apreendida ao arguido BB, era produto da venda de estupefacientes ao recluso JJ.

      Os arguidos actuaram livre, voluntária e conscientemente, conhecendo a natureza e características das substâncias que acordaram comprar para posteriormente consumir e transaccionar e do local onde o fizeram e pretendiam fazer, bem sabendo que tais condutas lhes estavam proibidas por lei e de que incorriam em responsabilidade criminal ao praticá-las.

      Mais sabiam que o facto de comprarem, deterem e venderem o produto estupefaciente em estabelecimento prisional lhes agravava a sua responsabilidade.

      O arguido AA já sofreu diversas condenações pela prática de crimes de roubo, consumo de estupefacientes e tráfico de estupefacientes, tendo a última ocorrido no âmbito do processo comum colectivo n.° 685/99 (actual 16/99.8PEVIS) do 2º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Viseu, no qual por acórdão de 16 de Junho de 2000, transitado em julgado em 1 de Julho de 2000, foi condenado pela prática, entre finais de 1998, pelo menos, a início de 1999, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21° nº 1 do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de prisão, processo à ordem do qual esteve preso desde 23 de Março de 1999 até ao dia 23 de Setembro de 2003, data do términus da respectiva pena.

      Não obstante tal condenação, o arguido AA em pleno cumprimento da pena que lhe foi aplicada, cometeu os factos em apreço.

      O arguido BB já sofreu igualmente várias condenações, a saber:

         No âmbito do processo comum colectivo n.° 370/98 (actual 1051/97.6PBVIS) do 2.° Juízo Criminal do Tribunal da comarca de Viseu foi condenado por acórdão de 8 de Janeiro de 1999, pela prática, em 6 de Dezembro, na noite de 12 para 13 de Dezembro, na noite de 16 para 17 de Dezembro, 20 de Dezembro, na noite de 24 para 25 de Dezembro, 26 de Dezembro e 28 de Dezembro, todos de 1997, e meados de 1997 a finais de Janeiro de 1998, de nove (9) crimes de furto qualificados, p. e p. pelos artigos 204° nº 2 al. e) do Código Penal, na pena, por cada crime, de 8 (oito) meses de prisão e de um crime consumo de estupefaciente, p. e p. pelo artigo 40° nº 1 do DL n.° 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de 30 (trinta) dias de prisão . Em cúmulo jurídico foi condenado na pena de três anos de prisão.

       No âmbito do processo comum colectivo n.° 202/00 (actual 1036/99.8PBVIS) do 2.° Juízo Criminal do Tribunal da comarca de Viseu foi condenado por acórdão de 10 de Julho de 2000, pela prática, em finais de Setembro de 1999, entre o dia 29 de Setembro e 1 de Outubro de 1999, na noite de 2 para 3 de Outubro de 1999, no dia 6 de Outubro de 1999 e 10 de Outubro de 1999, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204° n.° 2 al e) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão; de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204° n.° 2 al f) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204° n.° 2 al e) do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 3 (três) meses de prisão; de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203° nº 1 do Código Penal, na pena de 7 (sete) meses de prisão; de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204° n.° 2 al e) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 11 (onze) meses de prisão; de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203° nº 1 do Código Penal, na pena de 12 (doze) meses de prisão. Em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 4 anos e seis meses de prisão.

       No âmbito do processo comum colectivo n.° 101/00 (actual 257/99.8 GASPS) do 1.° Juízo Criminal, do Tribunal Criminal da Comarca de S. Pedro do Sul, por acórdão de 22 de Março de 2001, foi condenado pela prática, em 20 de Outubro de 1999, de um crime de furto qualificado, p. e p. nos termos dos artigos 202° al d), 203° nº 1 e 204° n.° 2 al e) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão.

       Esteve ininterruptamente preso, em cumprimento dessas penas, desde 16 de Fevereiro de 1998 a 14 de Maio de 1999 (fls. 143), 20 de Outubro de 1999 até 16 de Agosto de 2001, data em que foi desligado do processo n.° 202/2000 (actual 103/99.8PBVIS) e ligado ao processo 257/99.8GASPS até 21 de Maio de 2004, data em que foi concedida a liberdade condicional pelo período decorrente até ao dia 21 de Julho de 2005.

       O arguido BB é proveniente de um meio familiar de nível sócio- económico e cultural modesto, mas sempre preocupado com o acompanhamento educativo-afectivo do arguido. Este em idade escolar revelou dificuldades de aprendizagem, decorrentes de limitações intelectuais e instabilidade emocional, que se traduziram também em problemas comportamentais, os quais se agravaram a partir dos 15 anos de idade quando iniciou o consumo de estupefacientes, facto que associado ao convívio com jovens conotados, com comportamentos desajustados terá influenciado a sua conduta delituosa. A partir da data em que lhe foi concedida a liberdade condicional o arguido BB esforçou-se na procura de um emprego, encontrando-se actualmente a trabalhar como pintor de construção civil, por conta da entidade patronal “Pintiviriato”, situação que se mantém desde 1 de Agosto de 2005, auferindo com tal actividade o salário líquido mensal de 435,00 euros.

       É tido como um trabalhador pontual e assíduo, correspondendo às tarefas exigidas.

       No ano transacto retomou os estudos em regime nocturno no ensino recorrente, tendo concluído o 6º ano de escolaridade.

       Vive com os pais, pessoas organizadas e disponíveis para lhe continuar a prestar o necessário apoio, e com uma irmã, contribuindo para as despesas da casa.

       O arguido mantém-se afastado do consumo de estupefacientes.

       É tido como uma pessoa facilmente influenciável, denotando algumas limitações intelectuais.

       Demonstrou em audiência estar arrependido de ter praticado os factos em apreço.

                                              *******

     Questão prévia

     A Exma. Procuradora-Geral Adjunta no parecer emitido suscitou a questão prévia obstativa do conhecimento do recurso, por o recorrente não se mostrar notificado pessoalmente do acórdão condenatório.

     A questão foi ultrapassada no despacho preliminar, entendendo-se ser de ter o arguido por notificado, atento o recurso interposto, com o pagamento de taxa de justiça devida, e sobretudo, tendo em consideração a declaração assumida na conclusão 5.ª, quando o recorrente afirma que foi notificado do acórdão que vem impugnar na residência onde vive em Inglaterra há anos.

     Assim, nada obsta a que se prossiga com a reapreciação do decidido.

    Apreciando. Fundamentação de direito.

     Começar-se-á pela análise da qualificação jurídica da conduta do arguido dada por provada, efectuada pelo tribunal recorrido, mas abordando desde já a questão numa perspectiva não assinalada pelo recorrente, mas suscitada pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta no referido parecer.

     I Questão – Qualificação do crime cometido pelo recorrente como crime de tráfico de estupefacientes consumado ou tentado – Questão suscitada pela Exma. PGA

     O recorrente foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. p. pelo artigo 24.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, em conjugação com o disposto nos artigos 75.º e 76.º, do Código Penal, sendo certo que não vem questionada a declarada reincidência.

     Importará proceder a esta análise face ao condicionalismo fáctico do presente caso, que levou inclusive a Exma. PGA no seu douto parecer, a colocar a questão de saber se o crime cometido pelo ora recorrente é de ter-se como consumado, ou se antes, se quedará por uma mera tentativa.

     O problema coloca-se apenas em relação ao recorrente, uma vez que no que respeita ao co-arguido nenhuma dúvida se coloca quanto à integração na figura da consumação.

     No que tange a esta posição assumida pela Exma. PGA há que dizer que a questão é pertinente e não obstante não ter sido equacionada pelo recorrente, deverá ser abordada, como sempre o poderia ser, de forma oficiosa, no âmbito dos poderes de cognição deste Supremo Tribunal em sede de matéria de direito.

     Havendo um efectivo impedimento quanto a agravamento de pena aplicada – de acordo com o artigo 409.º do Código de Processo Penal, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo do arguido – o tribunal superior não está inibido de proceder a requalificação jurídica, quando o entender necessário.

     Nada impede este Supremo Tribunal de indagar, por iniciativa própria, da correcção e justeza da subsunção jurídica feita no acórdão recorrido, como tem sido entendido em vários arestos, sem olvidar, desde logo, o Acórdão n.º 4/95, de 07-06-1995, publicado no Diário da República, I Série, de 06-07-1995, e no BMJ n.º 448, pág. 107, que então decidiu: “O Tribunal Superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.

     Mesmo quando o recorrente não ponha operativamente em causa a incriminação definida pelas instâncias, não pode, nem deve, o STJ dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções, como tem sido decidido, por exemplo, nos acórdãos seguintes: de 02-05-1996, processo n.º 171, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 179; de 19-10-2000, processo n.º 2803/00-5.ª (não pode nem deve o STJ – enquanto tribunal de revista e órgão, por excelência e natureza, mentor de direito – dispensar-se de reexaminar a correcção das subsunções); de 08-02-2001, processo 2745/00-5.ª, SASTJ, n.º 48, pág. 62; de 04-10-2001, processo n.º 1091/01-5.ª, CJSTJ 2001, tomo 3, pág. 178 (o entendimento do colectivo não vincula o STJ que, sem prejuízo da proibição da reformatio in pejus tem, como tribunal de revista que é, plena liberdade de julgar de direito, ou seja, de qualificar juridicamente os factos, mesmo divergindo da qualificação operada no tribunal a quo, e que tal qualificação não venha directamente posta em causa. “Sendo a determinação da concreta medida da pena decorrência jurídica da qualificação dos factos, não faria qualquer sentido, e seria, mesmo, absurdo, que tal (des)qualificação (inatacada pelo recorrente) levada a cabo pelo tribunal recorrido manietasse o tribunal de revista naquilo que é a sua natural área de actuação: dizer o direito em última instância”); de 17-01-2002, processo n.º 3132/01-5.ª, CJSTJ 2002, tomo 1, pág. 183; de 02-10-2003, processo n.º 2606/03-5.ª, in CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 194; de 05-02-2004, processo n.º 151/04 - 5.ª, CJSTJ 2004, tomo 1, 195; de 17-11-2005, processo n.º 2527/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 212; de 07-12-2005, processo n.º 2894/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 233; de 12-07-2006, processo n.º 1709/06 -3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 239 (assiste ao Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista (art. 434º do CPP) o poder – dever de reexaminar sem reservas, ressalvada a proibição da “reformatio in pejus”, o direito aplicado, melhorando a decisão…); de 02-04-2008, processo n.º 4197/07-3.ª (caso de tráfico de estupefacientes considerado abrangido em conduta já apreciada em anterior julgamento, com verificação de caso julgado); de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5.ª (O STJ, como tribunal de revista, pode alterar a qualificação dos factos feita pelas instâncias, mesmo que a questão da qualificação não constitua fundamento do recurso); de 24-02-2010, processo n.º 59/06.7GAPFR.P1.S1, por nós relatado (caso de tráfico de estupefacientes, referido no parecer da Exma. PGA); de 27-05-2010, processo n.º 18/07.2GAAMT.P1.S1-3.ª (requalificando em caso de tráfico de estupefacientes, o crime de associação criminosa para a qualificativa integração em bando); podendo ainda ver-se o acórdão de 31-01-2012, por nós relatado no processo n.º 2381/07.6PAPTM.E1.S1, onde se citam vários acórdãos que abordam este tema.

     Vejamos então se a conduta do recorrente configura um crime de tráfico de estupefacientes (e agora independentemente da questão de saber se é agravado ou privilegiado), na forma consumada ou tentada.

     Começar-se-á pela caracterização do tipo base, seguindo-se na exposição que segue o constante dos acórdãos de 28-11-2007, 05-12-2007 e 22-10-2008, por nós relatados nos processos n.º s 3253/07, 3406/07 e 215/08.

      A previsão legal do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, a exemplo do “antecessor” artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 480/83, de 13-12, contém a descrição da respectiva factualidade típica, de maneira compreensiva e de largo espectro, contendo o tipo base, fundamental, essencial, matricial.

     Trata-se de um tipo plural, com actividade típica ampla e diversificada, abrangendo desde a fase inicial do cultivo, produção, fabrico, extracção ou preparação dos produtos ou substâncias até ao seu lançamento no mercado consumidor, passando pelos outros elos do circuito, mas em que todos os actos têm entre si um denominador comum, que é exactamente a sua aptidão para colocar em perigo os bens e os interesses protegidos com a incriminação.

     Não importa ao preenchimento deste tipo legal a intenção específica do agente, os seus motivos ou os fins a que se propõe; o conhecimento do fim apenas pode interessar para efeitos de determinação da ilicitude do facto.

     O tráfico de estupefacientes tem sido englobado na categoria do “crime exaurido”, “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, que se vem caracterizando como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.

     Dito de outra forma, o resultado típico alcança-se logo com aquilo que surge por regra como realização inicial do iter criminis, tendo em conta o processo normal de actuação, envolvendo droga que se não destine exclusivamente ao consumo. A previsão molda-se, na verdade, em termos de uma certa progressividade, no conjunto dos diferentes comportamentos contemplados na norma, que podem ir de uma mera detenção à venda propriamente dita.

     A consumação verifica-se com a comissão de um só acto de execução, ainda que sem se chegar à realização completa e integral do tipo legal pretendido pelo agente.

     O conceito foi introduzido na nossa jurisprudência a propósito deste tipo legal de crime (anteriormente versara-se esta qualificação, estando em causa crimes de falsificação e de contrafacção de moeda, no acórdão deste STJ, de 05-05-1993, recurso n.º 42290, CJSTJ 1993, tomo 2, pág. 220, onde se aborda a questão de várias resoluções criminosas e seu enquadramento nas figuras de crime único, crime continuado ou de acumulação de infracções) com o acórdão do STJ de 18-04-1996, recurso n.º 254/96, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 170, proferido pelo mesmo relator do anterior (aqui com um voto de vencido, em que se aborda a temática da unidade e pluralidade de crimes, continuação criminosa e unificação de conduta, e a figura de crime único de execução continuada), onde se define o crime exaurido como sendo “uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de os mesmos corresponderem a uma execução completa, e em que a repetição dos actos, com produção de sucessivos resultados, é, ou pode ser, imputada a uma realização única”, isto é, “aquele em que o resultado típico se obtém logo pela realização inicial da conduta ilícita, de modo que a continuação da mesma, mesmo que com propósitos diversos do originário, se não traduz necessariamente na comissão de novas violações do respectivo tipo legal”.

     O conceito foi retomado pelo mesmo relator dos anteriores no acórdão de 18-06-1998, recurso n.º 256/98, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 167, se bem que aqui olhado mais na perspectiva da unificação da conduta plural, abarcando a extensão do período temporal de conexão entre comportamentos protraídos em determinado lapso de tempo, abrangidos pelo caso julgado, tendo este sido seguido de perto no acórdão de 12-07-2006, recurso n.º 1709/06-3.ª, in CJSTJ2006, tomo 2, pág. 239.

     O delito de empreendimento é referido por Hans Heinrich Jescheck, no Tratado de Derecho Penal, tradução de S.Mir Puig e F. Munõz Conde, edição de 1981, volume II, pág. 715, em parágrafo respeitante ao conceito, tipo e punição da tentativa, ao abordar a questão da punibilidade dos actos preparatórios e da tentativa, avançando como definição de empreendimento de um delito, como sendo a sua consumação e a sua tentativa.

     Especifica o Autor que “O sentido do delito de empreendimento é agravar a reacção jurídico-penal, equiparando a tentativa e consumação e impedindo assim a atenuação da pena na tentativa”, esclarecendo que “o empreendimento castiga-se como a consumação” e daí não ser possível a desistência – ibidem, pág. 754.

     Trata-se de crimes que, como as falsificações e outros, ficam perfeitos com a comissão de um só acto, sendo crime formal com antecipação de punição - para o crime de falsificação, veja-se o acórdão do STJ de 15-02-2006, processo n.º 4306/05-3.ª.

     Sobre esta categoria de crime pronunciou-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 262/01, de 30-05-2001, proferido no processo n.º 274/2001, 2.ª Secção, publicado no Diário da República-II Série, de 18-07-2001, em que estava em causa a inconstitucionalidade da dimensão normativa do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, segundo o qual o crime em questão não admite a tentativa, por violação do princípio da legalidade penal e do artigo 32.º da Constituição.

     Aí pode ler-se: “A intervenção penal não tem de acontecer apenas nas situações em que o bem jurídico tutelado pela norma incriminadora é efectivamente lesado pela conduta proibida. Em várias situações o legislador procede a uma antecipação da tutela penal, punindo comportamentos que ainda não lesaram efectivamente esse bem jurídico. Tal acontece, quando o comportamento em questão apresenta uma especial perigosidade para bens jurídicos essenciais à subsistência da própria sociedade, sendo, por essa via, legitimada aquela antecipação”.

     “O preceito incriminador define o tráfico de substâncias proibidas por uma série de condutas conducentes à efectiva transmissão da substância. Assim, qualquer um dos comportamentos previstos implica a consumação do crime.

      Subjacente a esta concepção está o cariz particularmente perigoso das actividades em questão e a ideia do tráfico como processo e não tanto como resultado de um processo.           

      As consequências pessoais e sociais do tráfico de droga justificam plenamente uma intervenção penal preventiva sobre o processo que conduz a tais consequências, abrangendo várias actividades relacionadas com a actuação no mercado onde a droga se transacciona.

    O preceito encontra o seu fundamento na particular perigosidade das condutas que justifica uma concepção ampla de tráfico, desligada da obtenção do resultado da transacção. Porque se trata de condutas que concretizam de modo particularmente intenso o perigo inerente à actividade relacionada com o fornecimento de estupefacientes, o legislador antecipa a tutela penal relativamente ao momento da transacção”.

   E finaliza o acórdão do modo seguinte: “A não punição da tentativa tem por justificação o facto de este crime não ser um crime de dano nem de resultado efectivo. Assim, a não punição de tentativa é apenas consequência de não se pretender antecipar mais a tutela penal já suficientemente antecipada na descrição típica”, concluindo pela não violação de qualquer disposição constitucional.

      No acórdão de 15-12-2005, processo n.º 2890/05-5.ª, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 235, é seguida de perto a orientação do acórdão do Tribunal Constitucional referido, qualificando o crime de tráfico de estupefacientes como pertencendo à categoria dos crimes exauridos ou de tutela antecipada, não sendo concebível a tentativa deste tipo de crimes (“no crime de tráfico punem-se, como realizações do crime consumado, comportamentos recuados, em relação à efectiva consumação, dado o cariz particularmente perigoso das actividades em questão e a ideia do tráfico como processo e não como resultado dum processo”), e do mesmo modo no de 19-04-2007, processo 449/07-5.ª – cfr. acórdãos do STJ de 08-02-2007, processo n.º 4460/07-5.ª, em que se define o crime como sendo “aquele em que para a incriminação do agente é suficiente a prática de um qualquer acto  de execução, independentemente de corresponder à execução do facto”, e de 26-04-2007, processo n.º 3181/06-5.ª (defendendo a imputação de crime tentado, veja-se o acórdão de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5.ª).

     Como se referia no acórdão do STJ de 12-12-1991, BMJ n.º 412, pág. 206, o crime é de perigo, em cuja punição relevam exigências de prevenção de futuros crimes.

      O crime em causa é um crime de trato sucessivo, em que a mera detenção da droga é já punida como crime consumado, dada a sua vocação (é um crime de perigo presumido) para ser transaccionada - acórdão do STJ de  29-06-1994, recurso n.º 45.530, CJSTJ1994, tomo 2, pág. 258.

      O crime de tráfico de estupefacientes enquadra-se na categoria dos crimes de perigo abstracto: aqueles que não pressupõem nem o dano, nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a um desses bens jurídicos.

     O perigo presumido envolve-se na mera comprovação da detenção de uma determinada quantidade de substância tóxica, independentemente da real demonstração do perigo, ou o que dá no mesmo, da intenção de transmiti-la.

     Cada uma das actividades previstas no preceito, sem mais, é dotada de virtualidade bastante para integrar o elemento objectivo do crime.

     Trata-se de crime de perigo abstracto ou presumido, pelo que não se exige para a sua consumação a verificação de um dano real e efectivo; o crime consuma-se com a simples criação de perigo ou risco de dano para o bem jurídico protegido (a saúde pública na dupla vertente física e moral), como se refere nos acórdãos de 12-02-1986, BMJ n.º 354, pág. 331; de 30-04-1986, BMJ n.º 356, pág. 166; de 23-09-1992, BMJ n.º 419, pág. 464; de 24-11-1999, processo n.º 1029/99, BMJ n.º 491, pág. 88; de 01-07-2004, processo n.º 2035/04-5.ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 239; de 04-10-2006, processo n.º 2549/06-3.ª; de 11-10-2006, processo n.º 3040/06-3.ª; de 12-04-2007, processo n.º 1917/06-5.ª; de 19-04-2007, processo n.º 449/07-5.ª.

     Como se referia no acórdão do STJ de 18-02-1996, BMJ 354, 331, realizado o transporte fica criado o perigo que, com a proibição, se pretendeu evitar.

     Como se expressavam os acórdãos do STJ de 01-10-2003, processo n.º 2646/03 e de 26-11-2003, processo n.º 2439, in CJSTJ 2003, tomo 3, págs. 182 e 244, em causa está crime de perigo abstracto em que a protecção é recuada a momentos anteriores a qualquer manifestação de consequências danosas.

    Tem-se entendido que a natureza do crime p. e p. pelo artigo 21.º referido, enquanto crime de perigo abstracto, se traduz numa antecipação da tutela penal, independentemente da efectiva lesão do bem jurídico em causa, a saúde pública, antecipação consubstanciada na punição dos primeiros actos de execução do agente, sem se exigir, para preenchimento do tipo, o desenvolvimento da acção projectada por esse mesmo agente.

     Coisa diversa será considerar-se o crime consumado, mesmo sem ocorrer o preenchimento do tipo, só porque o agente iniciou um qualquer processo executivo para cometimento do crime. A consumação exige que se dê por provada, pelo menos, uma das ocorrências mencionadas no preceito em causa: cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, pôr à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fazer transitar, ou ilicitamente deter produto estupefaciente – cfr. acórdão do STJ de 15-07-2008, processo n.º 1787/08 - 5.ª, e ainda, no mesmo sentido, acórdãos deste Tribunal  de 05-09-2007, processo n.º 1900/07 - 3.ª; de 02-04-2008, processo n.º 3874/07 - 3.ª e de 25-06-2008, processo n.º 2046/07 - 3.ª, entre muitos outros, todos in www.stj.pt (Jurisprudência/Sumários de Acórdãos)

    Como se extrai do acórdão deste Supremo Tribunal de 04-07-2007, processo n.º 2303/07 - 3.ª, ibidem, parecendo seguir o registo do acórdão de 1-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 182: «O art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, que define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas relacionadas com substâncias estupefacientes, descreve de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica.          Tal preceito contém a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo: a lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que estas revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão interindividual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou determine – a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.

    Os tipos de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência, conduzem à lesão, não dependendo da perigosidade do facto concreto, mas sim de um juízo de perigosidade geral.

    O crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, é um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal, reconduzidos à saúde pública. E é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo para um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a esses bens jurídicos.»

     A decisão recorrida no supra referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 262/2001, era o acórdão do STJ, de 07-03-2001, proferido no processo n.º 101/01-3.ª, publicado na CJSTJ 2001, tomo 1, pág. 237, em que estava em causa importação de cocaína, da Colômbia, através de encomenda postal que nunca chegou a ser levantada, não tendo o arguido tido a disponibilidade sobre o produto estupefaciente e muito menos a posse desse mesmo produto, e em que é citado, para além do já referido acórdão do STJ de 18-04-1996, o acórdão da Relação do Porto de 11-05-1983, in Colectânea de Jurisprudência 1983, tomo 3, pág. 281, onde se defendeu não ser necessário para a consumação do crime de tráfico que o produto chegue à posse do destinatário, por ser apreendido na Alfândega.

    Numa outra decisão proferida há 30 anos prescindia-se de que a encomenda chegasse à posse do destinatário, por ter sido descoberta a remessa por correio – cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 28-07-1982, in Colectânea de Jurisprudência 1982, tomo 4, pág. 142. 

    No acórdão deste Supremo Tribunal de 25-06-2008, processo n.º 2046/07-3.ª, versa-se caso de encomenda, remetida por via postal registada, a partir da Holanda, contendo 1 Kg de MDMA, levantada por terceira pessoa.

    No acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, por nós relatado, em causa estava caso de encomenda e transporte de 4 Kgs. de cocaína colocados em cadeira de parapente, proveniente do Brasil, e não recebida por quem a encomendara por intercepção do transportador logo após chegar do Brasil.

     Outro caso de encomenda que não chega ao empreendedor foi versado no acórdão de 22-10-2008, por nós relatado no processo n.º 215/08.

     Neste caso foi considerado que o comportamento do recorrente JP, ao encomendar o produto estupefaciente ao arguido FC, desencadeou uma actividade por parte deste último que se traduziu num contacto com o arguido CC, que, por sua vez, o solicitou a um terceiro, que lho fez chegar, e que o CC se propunha entregar ao FC, com vista a ser por este, finalmente, entregue (em parte) ao recorrente JP.

     Foi considerado que, por força da actuação do arguido JP verificou-se, desde logo, o perigo abstracto que a norma visa salvaguardar, não sendo necessário que «ocorra um dano-violação, como é característico dos crimes de resultado, nem sequer um perigo-violação, como é norma nos crimes de perigo concreto» – cfr. o já referido acórdão do STJ de 19-04-2007 – não tendo, por isso, razão o recorrente ao pretender que o tribunal a quo equacionasse a «falta de perigo real da lesão do bem jurídico protegido», em virtude da «apertada vigilância policial».

     Com a encomenda da substância referida consumado ficou o crime, pouco importando a motivação do recorrente, pois a lesão efectiva que viesse a ter lugar não fazia parte do tipo substanciado neste específico iter, erigido em conduta bastante e suficiente para configurar o delito pelo perigo que ele próprio envolve de vir a cocaína a ser traficada, no sentido de introduzida no circuito de distribuição final, sendo, pois, suficiente a matéria de facto apurada para integrar o crime de tráfico por que foi condenado o recorrente”.

     “Como referido supra, já nos acórdãos da Relação do Porto de 11-05-1983, CJ 1983, tomo 3, pág. 281 e da Relação de Lisboa, de 28-07-1982, CJ 1982, tomo 4, pág. 142, se defendia não ser necessário que o produto chegasse à posse do destinatário, por ser apreendido na Alfândega ou por ter sido descoberta a remessa por correio.

     Não há, assim, qualquer dúvida de que a encomenda efectuada pelo recorrente fez transitar o estupefaciente que se lhe destinava, consubstanciando uma das acções típicas previstas no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, na forma consumada”.

     Como se referia no citado acórdão de 07-03-2001, a caracterização como exaurido significa que o “primeiro passo” dado pelo agente na senda do iter criminis já constitui preenchimento do tipo, valendo os passos seguintes apenas para efeitos de estabelecimento da medida concreta da pena a impor. 

     No acórdão de 08-02-2006, processo n.º 3790/05-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 181, em caso de tentativa de introdução de haxixe em estabelecimento prisional, considera-se que há que distinguir os casos em que o produto estupefaciente chega ao alcance do preso dos que não chega, não relevando tal distinção para efeitos de consumação do crime, uma vez que o tipo legal, no que respeita ao preso, contenta-se com as regras da autoria moral.

     Revertendo ao caso concreto.

     O recorrente limitou-se a encomendar a um outro recluso que ia beneficiar de uma saída precária, a aquisição no exterior de “canabis”, para tanto entregando-lhe 150 euros, mas visando, uma vez na posse da substância, vendê-la a outros reclusos, compensando o co-arguido com parte do produto, bebidas e tabaco.

     Com este pedido o recorrente determinou um processo que conduziu a aquisição de droga no exterior e que efectivamente nunca chegou ao seu poder, mas este facto de não ter tido o controle da situação até final não significa que se afaste a consumação do crime de tráfico. O recorrente empreendeu o processo necessário conducente ao efectivo recebimento da droga, não se exigindo para o preenchimento do tipo o desenvolvimento da acção projectada, bastando o primeiro passo dado.

     No caso, independentemente de ser agravado, de se verificar o preenchimento do tipo base/essencial, ou antes o privilegiado, o crime será sempre consumado no que toca ao recorrente, já que quanto ao co-arguido dúvidas não há a esse respeito; não se está perante uma mera tentativa, tendo-se consumado o crime, para tanto bastando a encomenda feita, independentemente do que ocorra depois, seja o produto recebido ou interceptado antes de chegar ao destino, mesmo que não tenha jamais a disponibilidade ou a posse do produto encomendado.

      Concluindo: estamos perante um crime de tráfico de estupefacientes na forma consumada.

       II Questão – Alteração da qualificação jurídica

     1 – Da (in)verificação da qualificativa da alínea h) do artigo 24.º do Decreto-Lei n.º 15/93.

     O recorrente não suscita esta questão de forma expressa, uma vez que se limita a dizer que não se verifica a agravação, sem nada fundamentar, avançando em linha recta para a defesa da integração da conduta provada no tráfico de menor gravidade.

      Na análise da presente questão a conduta do ora recorrente não pode obviamente ser dissociada do comportamento do co-arguido BB, a quem, na execução de acordo entre ambos estabelecido, competia, após aquisição no exterior, introduzir a droga no estabelecimento prisional, para ser entregue ao comprador que a encomendara.

     Estabelece o artigo 21.º, n.º 1, do referido diploma legal que «quem, sem para tal estar habilitado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no art. 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».

     O artigo 24.º, alínea h), do mesmo Decreto-Lei n.º 15/93, na redacção do artigo 54.º da Lei n.º 11/2004, de 16-07, preceitua que:

     As penas previstas nos artigos 21.º e 22.º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se:

h) A infracção tiver sido cometida em instalações de serviços de tratamento de consumidores de droga, de reinserção social, de serviços ou instituições de acção social, em estabelecimento prisional, unidade militar, estabelecimento de educação, ou em outros locais onde os alunos ou estudantes se dediquem à prática de actividades educativas, desportivas ou sociais, ou nas suas imediações.

     Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 07-07-2009, processo n.º 52/07.2PEPDL.S1-3.ª, a razão de ser da agravação quando a conduta tem lugar em estabelecimento prisional reside na perturbação do processo de ressocialização dos reclusos e no grave transtorno da ordem e organização das cadeias que o tráfico comporta; e segundo o acórdão de 02-05-2007, processo n.º 1013/07-3.ª, o intuito do legislador é o de preservar de forma reforçada a saúde física e psíquica de sectores específicos da população, por estarem mais expostos aos riscos e perigos de contacto com os estupefacientes e não o de defesa da autoridade do Estado dentro de certos territórios - cfr. ainda a este propósito, os acórdãos de 06-06-2006, processo n.º 2034/06-5.ª, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 204, e de 28-06-2006, processo n.º 1796/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 230 (a razão de ser da agravante reside no desrespeito pelos  objectivos de prevenção e reinserção ínsitos ao cumprimento das penas e prosseguidos pela instituição prisional; o mencionado desrespeito decorre do grau de disseminação da droga por outros reclusos ou pela quantidade de droga em causa).

      É uniforme o entendimento de que a circunstância de a infracção ter sido cometida em estabelecimento prisional não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da acção, a concreta infracção justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador – acórdãos de 14-07-2004, processo n.º 2147/04-3.ª; de 30-03-2005, processo n.º 3963/04-3.ª, in CJSTJ 2005, tomo 1, pág. 224; de 21-04-2005, processo n.º 1273/05-5.ª; o já citado acórdão de 28-06-2006, processo n.º 1796/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 230 (a agravante resultante do tráfico ocorrer em estabelecimento prisional não é de aplicação automática); de 06-07-2006, processo n.º 2034/06-5.ª; de 12-10-2006, processo n.º 2427/06-5.ª; de 29-11-2006, processo n.º 2426/06-3.ª; de 02-05-2007, processo n.º 1013/07-3.ª; de 12-07-2007, processo n.º 3507/06-5.ª; 16-01-2008, processo 4638/07-3.ª; de 06-11-2008, processo n.º 2501/08-5.ª; de 21-01-2009, processo n.º 4029/08-3.ª (a detenção de droga, no interior de um estabelecimento prisional, por um recluso, em cumprimento de pena, não é circunstância bastante de per se que agrave automaticamente a punição, qualificando o crime).

    É preciso que resulte do facto verificado que essa detenção de estupefaciente se traduz numa conduta dolosa do agente com vista a potencial produção do resultado desvalioso que levou o legislador a autonomizar o especial agravamento.

    No acórdão deste Supremo de 8-02-2006, processo n.º 3790/05-3.ª, in CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 181, com o mesmo relator do acórdão de 28-06-2006, foi tratada uma situação com alguma similitude com a dos autos, e que se acompanhará de perto no caso presente.

      Aí se diz que a razão de ser da agravante reside no desrespeito pelos objectivos de prevenção e de reinserção ínsitos necessariamente no cumprimento das penas e prosseguidos pela instituição prisional, sendo tais objectivos inerentes à pessoa dos presos, e, assim, há que distinguir os casos em que o produto estupefaciente chega ao seu alcance daqueles em que não chega.

     No caso presente, a “canabis” encomendada, tendo entrado no Estabelecimento Prisional de São Pedro do Sul foi-o no interior do corpo do co-arguido BB, nunca tendo chegado ao recorrente. Não chegou tão pouco a sair da posse do arguido BB, que era em princípio, um mero executor de uma encomenda. A ousadia de ambos os arguidos chocou contra a segurança do estabelecimento, que por denúncia, actuou de imediato, aquando da entrada do comprador, assim impedindo a entrega do produto ao recorrente.

     Há que ter em consideração que apenas uma pequena parte – menos de 1/6 – do produto adquirido (metade de um “sabonete”) entrou em circulação, o que só sucedeu já noutro estabelecimento prisional, por exclusiva iniciativa do co-arguido BB, fora do quadro do ajuste inicial e completamente à revelia do arguido/recorrente.

    Na verdade, no seu regresso ao Estabelecimento Prisional de São Pedro do Sul em 29 de Agosto de 2002, o arguido BB nunca esteve com o co-arguido ora recorrente nem fez qualquer tentativa de lhe fazer chegar a “canabis” que conseguiu reter, antes de a consumir e vender noutro local.

    Como ficou provado, o arguido BB foi colocado em cela individual, isolado da restante população prisional, não tendo tido oportunidade de contactar com o antigo companheiro de cela.

    No que respeita à conduta do arguido, como vimos, o crime exauriu-se com a mera encomenda, com o ajuste feito com o co-arguido BB e entrega a este do dinheiro necessário à aquisição do produto, limitando-se a sua tarefa a tal actividade.

     Conclui-se assim que o recorrente não cometeu um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. p. pelo artigo 24.º, alínea h), do Decreto-Lei n.º 15/93, sendo de revogar a decisão recorrida nesta parte.

     Sendo de afastar, como se afasta, a qualificativa em causa, resta saber se a conduta dada por provada cai na previsão do crime base/essencial/nuclear do artigo 21.º, ou antes a integração é de fazer, como pretende o recorrente, no tipo privilegiado do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, ou mesmo do artigo 26.º do mesmo diploma.

     Não se preenchendo a qualificativa, afastado o tipo agravado, vejamos se funciona no caso o privilegiamento previsto no artigo 25.º, alínea a), ou no artigo 26.º, do Decreto-Lei n.º 15/93.

       II Questão – Alteração da qualificação jurídica

       2 – Convolação para crime de traficante - consumidor (artigo 26.º do DL 15/93) ou para crime de tráfico de menor gravidade (artigo 25.º, a), do DL 15/93)?

       O recorrente nas conclusões 2.ª, 18.ª, 19.ª e 21.ª defende a requalificação jurídica da conduta dada por provada, de modo a integrá-la no crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. p. pelo artigo 25.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01, “ou quando muito”, artigo 26.º do mesmo DL, mas nunca na do seu artigo 21.º, n.º 1, como o fez o acórdão recorrido.

  Dispõe o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01:

«Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40°, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 4 a 12 anos».

       Estabelece o artigo 25.º, alínea a), do mesmo diploma:

       “Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.

     Estabelece, por seu turno, o artigo 26.º, com a epígrafe “Traficante-consumidor”:

1 – Quando, pela prática de algum dos factos referidos no artigo 21.º, o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal, a pena é de prisão até três anos ou multa, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, ou de prisão até 1 ano ou multa até 120 dias, no caso de substâncias ou preparações compreendidas na tabela IV.

       Começando por este último.

       Para o acórdão do STJ, de 24-11-1999, processo n.º 1029/99, BMJ n.º 491, pág. 88, o tráfico só é subsumível ao tipo privilegiado da previsão do artigo 26.º (traficante-consumidor) quando o agente tiver por finalidade exclusiva conseguir droga para uso pessoal – cfr. acórdão de 27-04-2011, processo n.º 20/10.7SRLSB.S1-3.ª.

      Acontece que a matéria de facto dada por provada não consente de modo algum a subsunção da conduta provada em tal tipo legal, pois a referida finalidade exclusiva do próprio agente não se provou.

      Pelo contrário, provado ficou – parte final do primeiro parágrafo dos factos provados – que a entrega de € 150,00 ao co-arguido BB visava a aquisição de canabis que seria levada para o Estabelecimento Prisional pelo co-arguido para o ora recorrente “aí proceder à sua venda aos outros reclusos, a troco de dinheiro”.

Improcede esta pretensão.

                                                         *******

       Vejamos se colhe a pretensão do recorrente, no que concerne à subsunção da conduta provada no crime de tráfico de menor gravidade.

       (Seguir-se-á neste particular a linha de exposição que adoptámos nos acórdãos de 30-04-2008, de 28-05-2008, de 22-10-2008, de 27-05-2009 e de 01-10-2009, por nós relatados nos processos n.º s 4723/07, 1147/07, 215/08, 484/09 e 185/06.2SVLSB.L1.S1).   

      O crime de tráfico de menor gravidade contempla, como a própria denominação indica, situações em que o tráfico de estupefacientes, tal como se encontra definido no tipo base, se processa de forma a ter-se por consideravelmente diminuída a ilicitude, ou seja, em que se mostra diminuída a quantidade do ilícito.

     A título exemplificativo, indicam-se no preceito como índices, critérios, exemplos padrão, ou factores relevantes, de graduação da ilicitude, circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações objecto do tráfico, os quais devem ser analisados numa relação de interdependência, já que há que ter uma visão ou perspectiva global, uma mais ampla e correcta percepção das acções desenvolvidas (actividade disseminadora de produtos estupefacientes) pelo agente, de modo a concluir-se se a conduta provada fica ou não aquém da gravidade do ilícito justificativa da integração no tipo essencial, na descrição fundamental, do artigo 21.º, n.º 1.

     O Decreto-Lei n.º 15/93 abriu o leque sancionatório relativamente ao antecessor Decreto-Lei n.º 430/83, de 13-12, adicionando ao elenco dos tipos já previstos um novo específico tipo legal de crime, o denominado tráfico de menor gravidade.

     Na anterior lei, o artigo 23.º – “antecessor” do actual artigo 21.º – abrangia as grandes, médias e pequenas quantidades de substâncias estupefacientes.

       De fora, ficavam apenas as quantidades diminutas, situação prevista no artigo 24.º, definidas no n.º 3 do preceito como as que não excediam o necessário para consumo individual durante 1 dia, estabelecendo-se então para as substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III, a pena compósita de prisão de 1 a 4 anos e multa de 20.000$ a 1.500.000$.

      O novo artigo 25.º veio colmatar uma lacuna existente no sistema e prevenir os casos de diminuição considerável da ilicitude baseada, entre outros critérios, na qualidade ou quantidade de plantas, substâncias ou preparações.

      Não estando em causa no novo crime apenas um critério quantitativo relativo ao produto estupefaciente, até porque considerado isoladamente de pouco valerá, é óbvio que nunca o artigo 25.º poderia ser encarado como um “sucessor directo” do artigo 24.º do DL n.º 430/83, cuja marca distintiva era apenas a quantidade – a diminuta quantidade de estupefaciente – independentemente da sua conjugação com outros factores de avaliação, e mesmo no plano da mera dosimetria, do que isso pudesse exactamente significar, ou do modo como pudesse ser computada, sendo que nessa altura – dificuldade acrescida – não havia lugar sequer a reporte a diploma legal, como veio a acontecer já no âmbito da nova lei, com a Portaria n.º 94/96, de 26-03, norma complementar, que veio dar expressão, por força do critério do valor probatório da remissão nela contida, à norma sancionatória (em branco) – norma incompleta – do artigo 71.º, n.º 1, alínea c), do DL n.º 15/93, que veio definir os limites quantitativos máximos admitidos nas doses individuais de estupefacientes (em função dos quais se aplicam tipos de ilícitos comuns ou privilegiados) e de entender como norma de natureza meramente técnica, devendo ser interpretada como um critério de prova pericial, permitindo, pois, impugnação dos dados apresentados, nos termos do artigo 163.º do CPP – neste sentido, cfr. acórdão do Tribunal Constitucional n.º 534/98, de 7 de Agosto, comentado in Revista do Ministério Público, n.º 75, págs. 173-180; ver ainda, a propósito, O Regime Legal do Erro e as Normas Penais em Branco, de Teresa Pizarro Beleza e Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Almedina, 2001, págs. 37/38.

      Segundo Hans Heinrich Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte General, Edição Bosch, tradução de S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, pág. 363, a modificação dos tipos tem lugar através de «variantes dependentes do tipo básico completamente reguladas, que constituem por sua vez tipos qualificados ou privilegiados», ou pelo recurso a «causas inominadas de agravação ou de atenuação da pena», que a lei designa como «casos especialmente graves» ou «casos menos graves».

      Com o argumento da moldura da pena, tomou a pena aplicável como círculo dentro do qual se estabelecem as variações próprias dos casos especialmente graves e dos casos menos graves, com formação de grupos valorativos especiais que correspondem a diversos graus de gravidade.

      O artigo 25.º encerra um específico tipo legal de crime, o que pressupõe a sua caracterização como uma variante dependente privilegiada do tipo de crime do artigo 21.º – cfr. Jescheck, Tratado citado, pág. 363.

      A sua aplicação tem como pressuposto específico a existência de uma considerável diminuição do ilícito; pressupõe um juízo positivo sobre a ilicitude do facto, que constate uma substancial diminuição desta, um menor desvalor da acção, uma atenuação do conteúdo de injusto, uma menor dimensão e expressão do ilícito.

      Os pressupostos da disposição respeitam, todos eles, ao juízo sobre a ilicitude do facto no sentido positivo, constatando, face à específica forma e grau de realização do facto, que o caso se situará forçosamente aquém da necessidade de pena expressa pelo limite mínimo do tipo base, uma substancial diminuição desta.

      Os índices, exemplos padrão, ou Regelbeispiel, enumerados no preceito, a par de outros, são atinentes uns, à própria acção típica (meios utilizados, modalidade, circunstâncias da acção), outros ao objecto da acção típica (qualidade ou quantidade do estupefaciente), ou seja, pertinem todos estes factores ao desvalor da conduta, à execução do facto, fazendo parte do tipo de ilícito, não entrando em acção qualquer consideração relativa ao desvalor da atitude interna do agente, à personalidade deste, a juízo sobre a culpa.

      Haverá que proceder à valorização global do episódio, não se mostrando suficiente que um dos factores interdependentes indicados na lei seja idóneo em abstracto para qualificar o facto como menos grave ou leve, devendo valorar-se complexivamente todas as circunstâncias.

      O critério a seguir será a avaliação do conjunto da acção tendo em conta o grau de lesividade ou de perigo de lesão (o crime de tráfico é um crime de perigo abstracto) do bem jurídico protegido (saúde pública).

      Valerá o tipo privilegiado ou atenuado para os casos menos graves e equivale aos casos de pouca importância do facto da lei italiana, sendo de assinalar a similitude e paralelismo com os pressupostos gerais da atenuação especial da pena, mas quedando-se aqui a “atenuação” em função do juízo de ilicitude, sem intervenção da culpa do agente e da necessidade de pena, presentes no artigo 72.º do Código Penal, pois o princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção.

      Qualquer que seja a posição adoptada sobre o posicionamento dogmático do novo crime, a verdade é que entre o citado artigo 25.º e o artigo 72.º do Código Penal, ressalta uma evidente conexão.

      Aquele dispositivo comina uma redução substancial da pena de prisão, relativamente ao tipo matricial (mínimo de 1 ano de prisão, em vez de 4 anos estabelecido para o tipo base, e máximo de 5 anos de prisão, em vez de 12 anos, encurtando-se de forma sensível, considerável, os limites da moldura abstracta cabível ao tipo fundamental) para os casos de tráfico em que a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, estabelecendo, inclusive, uma mais benévola moldura penal – 1 a 5 anos de prisão – do que a que resultaria de atenuação especial do crime base, pois, por força do artigo 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, a moldura penal seria então de 9 meses e 18 dias a 8 anos de prisão!

      Por outras palavras, o artigo 25.º possibilita a aplicação de uma pena cujo limite máximo fica aquém da aplicação à moldura penal do tráfico base das regras de atenuação modificativa da pena do artigo 73.º do Código Penal.

      A moldura atenuada emergente (prevista) deste tipo não é, pois, coincidente com a que resulta do Código Penal para a atenuação em geral e nessa medida será, incontornavelmente, uma regra de determinação de pena, de medida judicial da pena (consagra uma pena mais leve) a que se refere Jescheck, in loc. cit..

      Trata-se de uma especial forma de atenuação para a qual aqui só se tem em consideração o plano da ilicitude, quando nos termos gerais é necessário estar-se perante diminuição acentuada, não só da ilicitude do facto, mas também da culpa do agente ou da necessidade da pena.

      Como se expressou o acórdão do STJ, de 23-02-2000, processo n.º 1200/99 - 3.ª, in SASTJ, n.º 38, pág. 75 «É na acentuada diminuição da ilicitude e/ou da culpa e/ou das exigências da prevenção que radica a autêntica ratio da atenuação especial da pena».

     Algo semelhante se passa com o crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo artigo 133.º do Código Penal, punível com idêntica penalidade, mas em que o privilegiamento assenta num especial tipo de culpa.

      Aliás, o novo crime veio colmatar uma lacuna existente no anterior regime, face ao fosso existente entre a previsão das quantidades diminutas e o tipo fundamental, de tal modo que o equilíbrio do sistema se procurava então entre o uso abusivo do artigo 24.º e o recurso, mais frequente, à atenuação especial da pena do artigo 23.º, para as situações de pequenas quantidades que se não devessem subsumir no artigo 24.º do DL nº 480/83.

      Maria João Antunes (in Droga - Decisões de Tribunais de 1.ª instância, Comentários, 1993, pág. 296) expendia que o artigo 25.º «exige do intérprete, fundamentalmente, que equacione se a imagem global do facto se enquadra ou não dentro dos limites das molduras fixadas nos artigos 21º e 22º, sob pena de a reacção criminal ser, à partida, desproporcionada».

      Adiantava que o legislador «consagrou para o efeito o critério da diminuição considerável da ilicitude do facto, adoptando a denominada técnica dos exemplos padrão, uma vez que só exemplificativamente fornece o substrato a partir do qual se poderá concluir por aquela diminuição».

      E finalizava, dizendo que significava isto duas coisas fundamentais: “Por um lado, «os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações» são meramente indiciadoras da consideravelmente diminuída ilicitude do facto; por outro, não sendo a enumeração esgotante, mas só exemplificativa, o tribunal pode concluir que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, apesar do substrato que funda esta conclusão ser alheio à enumeração prevista no artigo 25º”.

     Como se extrai do acórdão do STJ de 08-10-1998, processo n.º 838/98, CJSTJ, 1998, tomo 3, pág. 188, e citando o comentário de Lourenço Martins in Nova Lei da Droga: Um Equilíbrio Instável, o artigo 25.º, alínea a), do DL n.º 15/93, de 22-01, constitui uma “válvula de segurança do sistema”, destinado a evitar que se parifiquem os casos de tráfico menor aos de tráfico importante e significativo, evitando-se que situações de menor gravidade sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que se utilize indevidamente uma atenuação especial.

      Para o acórdão do STJ, de 24-11-1999, processo n.º 1029/99, BMJ n.º 491, pág. 88 (seguindo os acórdãos de 11-01-1995 e de 11-10-1995, in BMJ n.º 443, pág. 85 e n.º 450, pág. 111, no sentido de uma maior flexibilização do funcionamento dos pressupostos de aplicação deste tipo privilegiado), o crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.º do DL n.º 15/93, é um tipo de crime privilegiado que se fundamenta na diminuição considerável da ilicitude do facto, revelada pela valoração conjunta de diversos factores, alguns deles exemplificativamente indicados na norma: meios utilizados, modalidade e circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das substâncias.

      Como se diz no acórdão do STJ, de 12-07-2000, processo n.º 266/2000-3.ª Secção, in BMJ n.º 499, pág. 117, no artigo 25.º prevê-se uma ilicitude do facto consideravelmente diminuída, por referência à ilicitude pressuposta no artigo 21.º, exemplificando aquela norma circunstâncias factuais com susceptibilidade de influírem no preenchimento valorativo da cláusula geral aí formulada. Esse artigo 25.º tem na sua base o reconhecimento de que a intensidade das circunstâncias pertinentes à ilicitude do facto não encontra na moldura penal do artigo 21.º, pela sua gravidade diminuta, acolhimento justo, equitativo, proporcional.

      Segundo os acórdãos de 17-01-2001 e de 01-03-2001, processos n.º 2821/00-3.ª e n.º 4128, da 5.ª Secção, in CJSTJ, 2001, tomo 1, págs. 216 e 234; de 01-07-2004, processo n.º 2035/04-5.ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 239; de 29-11-2005, processo n.º 2940/05-5.ª CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 219; de 22-03-2006, processo n.º 664/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 216; de 23-03-2006, processo n.º 767/06-5.ª, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 219 (a qualidade e quantidade do estupefaciente traficado, embora sejam elementos relevantes para aferição da imagem global do facto, não são decisivos); de 28-06-2006, processo n.º 2035/06-5.ª CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 227; de 20-12-2006, processo n.º 3059/06-3.ª; de 22-03-2007, processo n.º4808/06-5.ª, in CJSTJ 2007, tomo 1, pág. 226; de 12-07-2007, processo n.º 2084/07-5.ª; de 16-01-2008, processo n.º 4638/07-3.ª, in CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 198, i. a.,  a contemplação de uma hipótese atenuada de tráfico implica uma valorização global do facto, isto é, as circunstâncias relevantes do ponto de vista da ilicitude têm de ser complexivamente analisadas, delas tendo de sobressair uma imagem global do facto acentuadamente diminuída, de forma a poder dizer-se que punir o agente pelo artigo 21.º seria desproporcionado, já que a ilicitude que lhe corresponde se não enquadra no padrão de ilicitude que constitui o pressuposto da punição prevista no tipo-base de tráfico.  Ver ainda acórdãos de 27-04-2011, processo n.º 20/10.7SLSB.S1-3.ª; de 17-11-2011, processo n.º 127/09.3PEFUN.S1-5.ª; de 05-01-2012, processo n.º 3399/10.7TASXL.L1.S1-5.ª e de 12-01-2012, processo n.º 118/09.4PJAMD.S1-5.ª.

     Como se extrai dos acórdãos do STJ de 26-11-2003, CJSTJ, tomo 3, pág. 245, de 13-04-2005, processo n.º 459/05-3.ª, CJSTJ, 2005, tomo 2, pág. 173/4, e o já referido de 22-03-2006, processo n.º 664/06-3.ª, CJSTJ, 2006, tomo 1, pág. 216, todos do mesmo relator, «A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de “considerável diminuição de ilicitude”.

     A diversificação dos tipos apenas conforme o grau de ilicitude, com imediato e necessário reflexo na moldura penal, não traduz, afinal, senão a resposta a realidades diferenciadas que supõem respostas também diferenciadas: o grande tráfico e o pequeno e médio tráfico».

     A este propósito, veja-se o acórdão de 13-02-2003, CJSTJ2003, tomo 1, pág. 191, onde se procede a um “corrido respigo da jurisprudência mais recente do STJ”, dando-se nota da jurisprudência que então começava a contrariar uma interpretação mais restritiva até então dominante e que quase esvaziara de conteúdo útil os artigos 25.º e 26.º do DL n.º 15/93, remetendo para o artigo 21.º a generalidade das situações (cfr. acórdão de 28-06-2006, CJSTJ 2006, tomo 2, pág. 227).

      Revertendo ao caso concreto.

     O acórdão recorrido chegou a abordar esta possibilidade de subsunção, a fls. 408 e 409, mas concluindo não ser a mesma defensável, invocando para tanto, o acórdão de 08-11-2000, processo n.º 2835/00-3.ª, segundo o qual se os factos se subsumem ao tipo legal p. p. dos artigos 21.º e 24.º fica irremediavelmente excluída a possibilidade de integrarem o tipo privilegiado, desde logo, porque sem contradição insanável, não se poder qualificar a ilicitude de um facto como especialmente grave e, simultaneamente, como consideravelmente diminuída, defendendo estar-se perante uma ilicitude mais elevada e qualificada por força da qualificativa que é aceite.        

     Sobre esta pretensão do recorrente disse a Exma. PGA no parecer emitido:

     «3.2. No caso concreto dos autos avaliando globalmente a situação de facto ter-se-á de concluir que o tipo de trafico cometido pelo arguido será privilegiado o que resulta de varias factores — qualidade e quantidade do estupefaciente, encomendado, – canabis pelo preço de 150 €, para consumo.

     Não chegou a possuir menos de 100 gr. de canabis nem consumiu ou vendeu pois foi o co-arguido BB que o fez mas não no seu estabelecimento de S. Pedro do Sul, mas em Viseu, onde ainda detinha 6,461gramas de Canabis.

     O seu grau de traficante parece-nos poder situar-se na escala de consumidor/vendedor, o que conjugado com as circunstâncias atrás referidas, nomeadamente as quantidades de canabis, leva-nos a considerar que o resultado da avaliação só poderá ser no sentido de menor ilicitude e gravidade consideravelmente diminuída.

     Por isso os factos como provados só poderão levar a alterar também a condenação do arguido AA para autoria do de tráfico previsto e punido pelos artºs 21 e 25º do dec.lei 15/93, pois estão preenchidos todos os seus elementos tipo».     

     Pouco mais haverá a dizer, pois no caso estão reunidos os pressupostos que justificam a subsunção no tipo privilegiado do artigo 25.º
     O que privilegia o crime é a diminuição sensível, ponderosa, da ilicitude, o que se se verifica no caso; a avaliação global da conduta olhada no contexto em que o recorrente operou, está longe de revelar uma projecção de ilicitude com alguma magnitude, tendo por referência os pressupostos que enquadram o tipo base, demonstrando antes a conduta apurada um grau de ilicitude de pouca intensidade.
    No caso é possível fazer uso da previsão atenuada pois a conduta do arguido surge como de pouco relevo à luz dos critérios mencionados na norma, o que é patente não só face à qualidade da droga – canabis (resina) –, pela quantidade que veio a ser adquirida pelo co-arguido, a quantidade possível de adquirir com € 150,00, o que se traduziu na metade de um sabonete de canabis de peso não concretamente apurado, mas situando-se próximo dos 100 gramas, valor que se alcança somando as quantidades descriminadas (92,062 + 6,461 = 98,523), a que acrescerão as quatro doses vendidas pelo co-arguido BB ao recluso JJ já no EP de Viseu.
    No caso estamos perante um acto isolado, sendo certo que o arguido BB nunca procedeu à entrega do produto adquirido ao recorrente, aquando do regresso em 29-08-2002, pois enquanto esteve no EP de S. Pedro do Sul a substância estava dentro do seu corpo, sendo de seguida transferido para o EP de Viseu, sendo o recorrente alheio aos episódios subsequentes, maxime, as vendas que o co-arguido realizou.
    Em suma, procede a pretensão de integração da conduta do recorrente no tipo privilegiado do artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01.

     

     III Questão – Medida da pena

     Nas conclusões 1.ª, 3.ª a 17.ª e 20.ª, o recorrente expressa a pretensão de ver reduzida a pena de prisão aplicada para medida inferior a cinco anos, de modo a ser possível a suspensão da respectiva execução, como concretamente resulta das conclusões 17.ª e 20.ª

     A primeira instância laborou num quadro em que estava presente a qualificação do crime e a qualificativa da reincidência com uma moldura penal situada entre os 6 anos e 8 meses e os 15 anos de prisão.

     Atento o novo enquadramento a situação é muito diferente, pois a penalidade cabida ao crime de tráfico de menor gravidade é de 1 a 5 anos de prisão, que no caso concreto, por força da declarada reincidência, nos termos do artigo 76.º, n.º 1, do Código Penal, passa a ser de dezasseis meses a cinco anos.

      Dentro da moldura cabível no caso concreto funcionam todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente, designadamente:

- O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

- A intensidade do dolo ou da negligência;

- Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

- As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

- A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

- A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

     Sendo um dos fins da pena a tutela dos bens jurídicos nos termos do artigo 40.º do Código Penal, há que olhar ao bem jurídico em causa neste tipo de crime.
   No que toca ao bem jurídico protegido, como é consabido, para além de estarmos perante um crime de perigo abstracto, noutra perspectiva, estamos face a um crime pluriofensivo.
   Com efeito, o normativo incriminador do tráfico de estupefacientes tutela uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal - a vida, a integridade física e a liberdade dos virtuais consumidores - visando ainda a protecção da vida em sociedade, o bem-estar da sociedade, a saúde da comunidade (na medida em que o tráfico dificulta a inserção social dos consumidores e possui comprovados efeitos criminógenos), embora todos eles se possam reconduzir a um bem geral - a saúde pública - pressupondo apenas a perigosidade da acção para tais bens, não se exigindo a verificação concreta desse perigo - ver acórdão do Tribunal Constitucional n.º 426/91, de 06-11-1991, in DR, II Série, n.º 78, de 02-04-1992 e BMJ n.º  411, pág. 56 (seguido de perto pelo acórdão do TC n.º 441/94, de 07-06-1994, in DR, II Série, nº 249, de 27-10-1994), onde se afirma: “O escopo do legislador é evitar a degradação e a destruição de seres humanos, provocadas pelo consumo de estupefacientes, que o respectivo tráfico indiscutivelmente potencia” – cfr. ainda sobre o tema, a propósito do concurso - real - do crime de tráfico e de associação criminosa, seguindo o citado acórdão n.º 426/91, o acórdão do mesmo Tribunal, n.º 102/99, de 10-02-1999, processo n.º 1103/98-3.ª secção, publicado in DR, II Série, n.º 77, de 01-04-1999, pág. 4843 e no BMJ n.º 484, pág. 119.  

No caso presente há que atender à natureza e qualidade do produto adquirido, reveladora de ilicitude dentro daquela que caracteriza o tipo legal, por se tratar de canabis - substância incluída na Tabela I–C, anexa ao Decreto-Lei n.º 15/93 – tratando-se de droga de menor potencialidade de dano, com menor grau de lesividade dos bens jurídicos protegidos, sendo considerada como droga leve.

   Sendo certo que o Decreto-Lei n.º 15/93 não adere totalmente à distinção entre drogas duras e drogas leves, não deixa de no preâmbulo referir uma certa gradação de perigosidade das substâncias, dando um passo nesse sentido com o reordenamento em novas tabelas e dai extraindo efeitos no tocante às sanções, e de afirmar que “A gradação das penas aplicáveis ao tráfico, tendo em conta a real perigosidade das respectivas drogas afigura-se ser a posição mais compatível com a ideia de proporcionalidade”, havendo, pois, que atender à inserção de cada droga nas tabelas anexas, o que constitui indicativo da respectiva gradação, pois a organização e colocação nas tabelas segue, como princípio, o critério da sua periculosidade intrínseca e social.

    Sobre a distinção entre drogas leves e duras refere a citada Estratégia Nacional de 1999, a págs. 88: «É hoje evidente que as drogas não são todas iguais nos seus efeitos para a saúde e nas consequências sociais do seu consumo (…), devendo ter-se em atenção o grau de perigosidade inerente ao consumo das diferentes drogas, sem prejuízo do reconhecimento e divulgação dos efeito nefastos de todas as drogas».

A ter em consideração a quantidade que veio a ser adquirida e já referida, a qual nunca chegou a ser detida pelo recorrente. 

Há que ter em conta estar-se perante um acto único, um comportamento isolado, traduzido no ajuste com o co-arguido, com a encomenda feita.

Quanto à modalidade do dolo, o recorrente agiu com dolo directo.

Contra o arguido funcionam os antecedentes criminais, incluída condenação por tráfico em pena de prisão que cumpriu desde 23-03-1999, sendo libertado em 23-09-2003, bem como a circunstância de ter saído do País, sem nada comunicar ao processo.

Os factos foram cometidos enquanto cumpria pena de prisão, mas este aspecto foi valorado em sede de conformação da qualificativa de reincidência.

      Haverá que atender ao longo tempo já decorrido, ultrapassando os 10 anos sobre a prática dos factos, período em que fora do país o arguido refez a sua vida, trabalhando, sendo pai de quatro crianças.

      As razões e necessidades de prevenção geral positiva ou de integração -  que satisfaz a necessidade comunitária de afirmação ou mesmo reforço da norma jurídica violada, dando corpo à vertente da protecção de bens jurídicos, finalidade primeira da punição - são elevadas, fazendo-se especialmente sentir neste tipo de infracção, tendo em conta o bem jurídico violado no crime em questão – a saúde pública - e impostas pela frequência do fenómeno e do conhecido alarme social e insegurança que estes crimes em geral causam e das conhecidas consequências para a comunidade a nível de saúde pública e efeitos colaterais, justificando resposta punitiva firme, mas sempre proporcional e adequada ao caso concreto.

    Como expende Figueiredo Dias em O sistema sancionatório do Direito Penal Português inserto em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Eduardo Correia, I, pág. 815, “A prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; numa palavra, como estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da norma infringida”.   

      As necessidades de prevenção especial avaliam-se em função da necessidade de prevenção de reincidência.

  Como refere Américo Taipa de Carvalho, a propósito de prevenção da reincidência, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 325, trata-se de dissuasão necessária para reforçar no delinquente o sentimento da necessidade de se auto-ressocializar, ou seja, de não reincidir.

     A Exma. PGA no parecer citado consignou: “Atendendo-se pois às circunstâncias que não fazem parte do crime e referidos no nº2 do artº 71º do CP realçando-se em especial os 10 anos já decorridos desde o cometimento do crime e a conduta lícita que nesse período aprendeu e manteve, com uma vida estabilizada, a pena mais ajustada parece-nos dever situar-se perto dos 4 anos, também tendo por base da sua graduação as exigências de prevenção especial e a culpa do agente”. 

Face ao novo quadro punitivo, tendo em consideração os factores supra mencionados, fixar-se á a pena em 3 anos de prisão, a qual não afronta os princípios da necessidade, proibição do excesso ou proporcionalidade das penas – artigo 18.º, n.º 2, da CRP –, nem as regras da experiência, antes é adequada e proporcional à defesa do ordenamento jurídico, e não ultrapassa a medida da culpa do recorrente.

     Concluindo.

     Procede esta pretensão do recorrente, fixando-se a pena em três anos de prisão.

    

     IV Questão – Suspensão da execução da pena

    Nas conclusões 17.ª, 20.ª e 21.ª defende o recorrente a suspensão da pena, o que pressupunha a pretendida convolação

     No presente recurso apenas num cenário de uma redução na medida da pena aplicada, poderia equacionar-se tal eventualidade, pois face à pena aplicada no acórdão de 1.ª instância não era possível ventilar a hipótese, por encontrar-se ultrapassado o limite de 5 anos.

     Com a pena ora fixada a questão é diferente, impondo-se um outro tipo de abordagem, já que se mostra preenchido o pressuposto formal, pois que a pena queda-se por patamar inferior ao limite estabelecido para a ponderação da suspensão da execução no artigo 50.º do Código Penal.   

     Atenta a dimensão da pena ora aplicada, que se situa abaixo do limite até ao qual é possível fazer funcionar a substituição, há que indagar da possibilidade de suspender a respectiva execução, impondo-se pronúncia sobre a concessão ou denegação de aplicação no caso presente da pena de substituição, havendo que averiguar se a pena cominada deve ou não ser objecto de suspensão na sua execução, o que demanda a necessidade de avaliar a situação concreta em ordem a ver se é possível a formulação de um juízo de prognose favorável relativamente à conduta futura do arguido.

    O Supremo Tribunal tem vindo a entender, de forma pacífica, tratar-se a suspensão da execução de um poder-dever, de um poder vinculado do julgador, tendo o tribunal sempre de fundamentar especificamente, quer a concessão quer a denegação da suspensão - acórdãos de 11-05-1995, processo n.º 47577; de 04-06-1996, processo n.º 47969, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 186; de 27-06-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 204; de 24-05-01, CJSTJ 2001, tomo 2, pág. 201; de 20-02-2003, CJSTJ 2003, tomo1, pág. 206; de 09-11-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 209; de 08-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 203; de 10-10-2007, processo n.º 3407/07-3ª, CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 210, bem como muitos outros citados no acórdão de 12-09-2012, por nós relatado no processo n.º 139/09.7IDPRT.P1-A.S1.

      O Tribunal Constitucional no acórdão nº 61/2006, de 18-01-2006, in DR, II Série, de 28-02-2006, julgou inconstitucionais, por violação do art. 205º, nº 1, da CRP, as normas dos artigos 50º, nº 1, do Código Penal e 374º, nº 2 e 375º, nº 1, do CPP, interpretados no sentido de não imporem a fundamentação da decisão de não suspensão da execução de pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos.

     Com a 23.ª alteração do Código Penal, introduzida com a Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, foi modificado o pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão e alterou-se o tempo de suspensão, passando a dispor o n.º 1 do artigo 50.º: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

     Estabelece o n.º 5 que o período de suspensão tem duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.

     A partir de 15 de Setembro de 2007 alargou-se assim o campo de aplicação daquela pena de substituição a penas de prisão até cinco anos, em vez do limite anterior de 3 anos.

    A aplicação desta pena de substituição só pode e deve ser aplicada quando a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, como decorre do citado artigo 50.º.

     Circunscrevendo-se estas, a partir de 1 de Outubro de 1995, de acordo com o artigo 40.º do Código Penal (intocado na revisão da Lei nº 59/2007), à protecção dos bens jurídicos e à reintegração do agente na sociedade, é em função de considerações de natureza exclusivamente preventivas – prevenção geral e especial – que o julgador tem de se orientar na opção ora em causa.

     Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518, pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente  ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade”. E acrescentava: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade , ou só das circunstâncias do facto -,  o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.

     O que a lei visa com o instituto é, ainda segundo o mesmo Autor, “o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes”. “Decisivo é aqui o conteúdo mínimo da ideia de socialização, traduzida na prevenção da reincidência”.

    Por outro lado, há que ter em conta que a lei torna claro que, na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.

     Adverte ainda o citado Professor - § 520 - que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização - , a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime».

     Reafirma que “estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade  que ilumina o instituto em causa”.

     Como refere H. H. Jescheck, Tratado, versão espanhola, volume II, págs. 1152 e 1153, «A suspensão da execução da pena «une o juízo de desvalor ético - social contido na sentença penal ao chamamento, pela ameaça de executar no futuro a pena, à própria vontade do condenado para reintegrar-se na sociedade». É uma pena, porque oriunda de condenação produtora de antecedentes criminais. É uma medida de correcção, enquanto busca, v.g., a reparação do delito ou «prestações socialmente úteis». Aproxima-se das medidas de ajuda social, se no domínio respectivo se desenham instruções que «afectam o comportamento futuro do condenado». E tem uma coloração sócio-pedagógica activa, pelo «estímulo ao condenado para que seja ele mesmo quem com as suas próprias forças possa durante o regime de prova reintegrar-se na sociedade».

     Trata-se de uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, tendo na sua base uma prognose social favorável ao arguido, a esperança fundada e não uma certeza – assumida sem ausência de risco - de que a socialização em liberdade se consiga realizar, que o condenado sentirá a sua condenação como uma advertência solene e que em função desta, não sucumbirá, não cometerá outro crime no futuro, que saberá compreender, e aceitará, a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, pautando a conduta posterior no sentido da fidelização ao direito.

    Como se referia nos acórdãos do STJ de 04-06-1996 e de 27-06-1996, do mesmo relator, ambos proferidos no âmbito de crimes de tráfico de estupefacientes, in CJSTJ 1996, tomo 2, págs. 186 e 204, estamos perante um poder-dever, um poder vinculado do julgador, que terá, obrigatoriamente, de suspender a execução da pena de prisão, sempre que se verifiquem os pressupostos do artigo 50º do Código Penal, realçando-se que a suspensão da execução da pena de prisão é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, como unanimemente salientado.  

     Conforme se pode ler no acórdão do STJ de 25-06-2003, processo n.º 2131/03-3.ª, CJSTJ 2003, tomo 2, pág. 221, repetido no acórdão de 13-04-2005, processo n.º 459/05 - 3.ª, CJSTJ 2005, tomo 2, pág. 173, ambos proferidos em casos de tráfico de menor gravidade,  o instituto em causa “Constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que esta impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores inscritos nas normas.

     A suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão.

    Não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas.

    Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos.     

     A suspensão de execução da pena, enquanto medida com espaço autónomo no sistema de penas da lei penal, traduz-se numa forte imposição dirigida ao agente do facto para pautar a sua vida de modo a responder positivamente às exigências de respeito pelos valores comunitários, procurando uma desejável realização pessoal de inclusão, e por isso também socialmente valiosa” – cfr., do mesmo relator, os acórdãos de 05-11-2003, processo n.º 3299/03 e de 06-10-2004, processo n.º 3031/03-3.ª. 

    Como se extrai do acórdão de 31-01-2008, processo n.º 2798/07-5.ª “São sobretudo razões de prevenção especial (e não considerações de culpa) as que estão na base do instituto, permitindo substituir uma pena institucional ou detentiva, por outra não detentiva, isoladamente aplicada ou associada à subordinação de deveres que se impõem ao condenado, destinados a reparar o mal do crime e (ou) de regras de conduta, estabelecidas com o fim de melhor reinserir aquele socialmente em ordem ao acatamento dos valores comunitários, cujo respeito, pelo afastamento do condenado da criminalidade (e não pela sua regeneração) se pretende obter”; do mesmo modo no acórdão de 17-01-2008, processo n.º 3762/07 – 5.ª.

    Como se referia no acórdão de 11-01-2001, processo n.º 3095/00-5.ª, na apreciação da situação há que ter em atenção os seguintes elementos ou indicadores: a personalidade da arguida, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível, as circunstâncias do facto punível.

     Para aplicação da pena em causa necessário se torna que o julgador se convença que o facto cometido não está de acordo com a personalidade do arguido e que foi caso acidental, esporádico, ocasional na sua vida e que a ameaça da pena, como medida de reflexos sobre o seu comportamento futuro, evitará a repetição de condutas delitivas e ainda que a pena de substituição não coloque em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos.

    Foram efectuadas aplicações concretas de suspensão da execução em caso de tráfico de estupefacientes nos acórdãos por nós relatados de 23-11-2008, processo n.º 2294/08, de 14 de Maio de 2009, processos n.ºs 96/09 e 19/08.3PSPRT.S1 e de 24-02-2010, processo n.º 59/06.7GAPFR.P1.S1.

      Revertendo ao caso concreto.

     A Exma. PGA ainda no mesmo parecer a propósito da pena de substituição opinou: “O juízo a formular sobre o carácter favorável de prognose não tendo de se fundamentar em certezas, deverá assentar na esperança de uma possibilidade de que a socialização pode ser alcançada em liberdade (Ac. do STJ de 29.06.05, p. 1942/05, 3ª sec.) o que parece ter acontecido nestes 10 anos posterior à data do crime cometido quando tinha 24 anos e agora já terá 33 anos de idade, com trabalho, família e filhos, parece-nos levar à possibilidade de se declarar suspensa a eventual pena aplicada (igual ou inferior a 5 anos)”.

      Há que ter em atenção às actuais condições pessoais, familiares e económicas do arguido e sua inserção no respectivo agregado familiar. O arguido encontra-se inserido socialmente, com uma família a seu cargo, com quatro crianças, trabalha, sendo de conceder uma oportunidade ao arguido, constituindo a substituição da pena um sério aviso e uma solene advertência no sentido de que o recorrente terá de pautar a sua vida de acordo com a lei. 

     Como se refere no acórdão de 19-12-2007, processo n.º 4088/07-3.ª, in CJSTJ 2007, tomo 3, pág. 261, a medida constitui uma chamada à razão do condenado reforçada pelo facto de poder vir a executar no futuro, a prisão, para que não volte a incorrer em nova situação criminal, sendo também uma pena de correcção, de ajuda social e sócio-pedagógica.

    E como refere H. H. Jescheck, Tratado, versão espanhola, volume II, págs. 1152 e 1153, a suspensão da execução da pena tem uma coloração sócio-pedagógica activa, pelo «estímulo ao condenado para que seja ele mesmo quem com as suas próprias forças possa durante o regime de prova reintegrar-se na sociedade».

     Nesta perspectiva, crê-se ser fundada a esperança de que a socialização em liberdade possa ser lograda e não saírem defraudadas as expectativas comunitárias de reposição/ estabilização da ordem jurídica, da confiança na validade da norma violada e no cumprimento do direito, nem será demasiado arriscado conceder uma oportunidade ao arguido, suspendendo a execução da pena, por haver condições para alcançar a concretização da socialização em liberdade, enfim, a finalidade reeducativa e pedagógica, que enforma o instituto, e que face ao disposto no n.º 5 do artigo 50.º, terá duração igual à da pena de prisão e a contar do trânsito desta decisão.

     Neste quadro, tendo presente que sempre serão de evitar riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão, e assumindo por outra via, o risco que sempre estará presente em decisões deste tipo, com projecção e avaliação da sua justeza no futuro, suspender-se-á a execução da pena nos termos do artigo 50º do Código Penal.

     A simples ameaça da execução da pena como medida de reflexos sobre o comportamento futuro será suficiente para dissuadir o recorrente de futuros crimes, evitará a repetição de comportamentos delituosos por parte do arguido, dando-se crédito ao seu sentido de responsabilidade de pai, à capacidade de resposta e inserção social nos próximos três anos.

     Por outro lado, a pena de suspensão não colocará em causa de forma irremediável a necessária tutela dos bens jurídicos e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.

     A imposição de cumprimento de pena de prisão efectiva, volvidos mais de dez anos sobre a data da prática dos factos, e mais de seis sobre o julgamento, apresentar-se-ia no quadro actual como facto muito perturbador da actual vivência do arguido e do caminho por ele escolhido, com nefastas consequências não só para ele, mas para toda a família em que se incluem quatro crianças.

          Sendo certo que todo o juízo de prognose sobre um futuro comportamento comporta inevitavelmente algum risco, no caso concreto, podemos afirmar que tal juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido não se mostra demasiado arriscado.

     Nestes termos, considera-se estarem reunidas as condições para que seja decretada a suspensão da execução da pena aplicada.

  Concluindo: a pena aplicada será suspensa por três anos.

         Decisão

          Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal em:

a) Julgar o recurso interposto pelo arguido AA totalmente procedente e em consequência:

b) Revogar o acórdão recorrido na parte em que condenou o recorrente pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. p. pelo artigo 24.º, alínea h), do DL 15/93 e artigos 75.º e 76.º 1 do Código Penal, substituindo-se a condenação do arguido pela prática, como reincidente, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. p. pelo artigo 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22-01 e artigos 75.º e 76.º, n.º 1, do Código Penal;

c) Condenar o arguido AA pela prática do referido crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade na pena de três anos de prisão;

d) Suspender a execução da pena imposta ao arguido AA por igual período.

       Sem custas, nos termos dos artigos 374.º, n.º 3, 513.º, n.º s 1, 2 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redacção anterior à que lhes foi dada pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro (rectificado pela Declaração de Rectificação n.º 22/2008, de 24 de Abril, e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 43/2008, de 27 de Agosto, pelo Decreto-Lei n.º 181/2008, de 28 de Agosto, pelo artigo 156.º da Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (Suplemento n.º 252), pelo artigo 163.º da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril, pelo Decreto-Lei n.º 52/2011, de 13 de Abril e pela Lei n.º 7/2012, de 13 de Fevereiro), o qual aprovou – artigo 18.º – o Regulamento das Custas Processuais, publicado no anexo III do mesmo diploma legal, uma vez que de acordo com os artigos 26.º e 27.º daquele Decreto-Lei, o novo regime de custas processuais é de aplicar aos processos iniciados a partir de 20 de Abril de 2009, e o presente teve início em Agosto de 2002.

        .

        Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Lisboa, 26 de Setembro de 2012 

Raul Borges (Relator)

Henriques Gaspar