Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
718/12.5TBTVR.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: SALRETA PEREIRA
Descritores: ACÇÃO DECLARATIVA
AÇÃO DECLARATIVA
LETRA DE CÂMBIO
TÍTULO DE CRÉDITO
QUIRÓGRAFO
RELAÇÃO JURÍDICA SUBJACENTE
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 10/20/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO COMERCIAL - TÍTULOS DE CRÉDITO / LETRAS DE CÂMBIO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS ) / NULIDADES DOS ACTOS PROCESSUAIS ( NULIDADES DOS ATOS PROCESSUAIS.
Doutrina:
- Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, vol. I, 2011, p. 321.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 186.º, NºS. 1 E 2 AL. A), 196.º, 200.º, N.º 2.
LULL: - ARTIGOS 53.º, 70.º.
Sumário :
Se a autora oferece seis letras de câmbio na acção, que não valem como títulos de crédito mas como meros quirógrafos, e se não invoca, e consequentemente, não prova, a relação jurídica subjacente, fonte da obrigação do pagamento pelo réu da quantia peticionada, a acção tem necessariamente de improceder.
Decisão Texto Integral:                                                                                                                                                                                                              

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

A Massa Insolvente de AA, CRL, representada por BB, na qualidade de administrador da insolvência, intentou acção declarativa ordinária contra CC, pedindo que o réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 62.002,22 correspondente à soma do capital de € 30.462,34 e juros vencidos, acrescida de juros vincendos até integral pagamento.

Alegou, para tanto e em resumo, que a AA, antes da declaração da sua insolvência, intentou acção judicial contra o réu, na qual pediu a condenação deste no pagamento do valor de 63 facturas, relativas ao fornecimento de produtos alimentares ao réu, entre 10.08.2001 e 31.12.2001, no âmbito da actividade comercial de ambos, no valor global de € 30.462,34 e que, tendo o réu invocado o pagamento de tais facturas, através da entrega de 5 letras de câmbio, o tribunal veio a considerar que efectivamente as facturas foram pagas, com a entrega das 5 letras de câmbio, cada uma delas no valor de € 6.092,47€ (uma delas, ainda, no seu equivalente em escudos, de 1.221.430$00).
Mais alegou que aquelas letras nunca foram pagas pelo réu à autora, estando as mesmas ainda na posse desta, as quais, embora não valendo como letras de câmbio, documentam a dívida comercial.                                                                    
Mais alegou ainda que, persistindo a dívida do réu para com a autora, desde 24.03.2002, no montante de € 30.462,34, deve aquele ser condenado a pagar tal quantia, acrescida de juros de mora à taxa legal, contabilizando os juros vencidos, desde aquela data até 24.09.2012, em € 31.539,88.

Citado, contestou o réu, invocando a excepção de caso julgado, tendo-se em consideração o que foi alegado e peticionado na outra acção, que visou também o pagamento das mesmas 63 facturas, e defendendo-se por impugnação, alegando, em resumo, que a sociedade autora deu quitação das vendas a que se referiam aquelas facturas.          
E invocou a litigância de má-fé da autora, por formular pretensão cuja falta de fundamento conhecia perfeitamente, omitindo factos relevantes para a decisão da causa, com o fim de obter o pagamento de uma quantia que se encontra já paga, pedindo, para além da improcedência da acção, a condenação da autora, por litigância de má-fé, em multa a ser arbitrada pelo Tribunal e em indemnização a pagar ao réu, nela se incluindo todas as despesas que a litigância de má-fé obrigou o réu a efectuar, designadamente os honorários do seu mandatário judicial, cujo quantitativo certo se liquidará em execução de sentença.
Replicou a autora, pugnando pela inexistência da invocada excepção de caso julgado e bem assim de litigância de má-fé.
Dispensada a preliminar, foi proferido despacho saneador, no qual se julgou improcedente a excepção do caso julgado e procedeu-se à selecção da matéria de facto, com a elaboração dos factos assentes e da base instrutória, após o que teve lugar a audiência de julgamento.
Entretanto, o réu interpôs recurso do despacho saneador, na parte relativa à improcedência da excepção de caso julgado, recurso esse que, subido em separado, foi julgado improcedente.
Seguidamente foi proferida sentença, nos termos da qual a acção foi julgada procedente, sendo o réu condenado a pagar à autora a quantia de € 30.462,34, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 12.9.2012 até efectivo e integral pagamento;
Inconformado, o réu recorreu para o Tribunal da Relação de Évora, que proferiu acórdão a julgar procedente a apelação, absolvendo o réu do pedido.
Inconformada, a autora veio recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça, alegando com as seguintes conclusões:
1ª. A causa de pedir na presente acção foram as letras de câmbio aceites pelo R e não pagas.
2ª. Tendo o Tribunal decidido que as letras em questão não foram pagas, o Tribunal não podia deixar de condenar o R a pagar o respectivo montante e os juros.
O recorrido não contra alegou.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
As instâncias julgaram provados os seguintes factos:
1. A autora, então AA, ainda na fase da pré-insolvência, enquanto empresa comercial no regime cooperativo, intentou acção declarativa com processo ordinário no Tribunal Judicial de Tavira, contra este mesmo réu, com o nº 274336/10.3YIPRT;
2. Para pagamento de vários fornecimentos efectuados pela AA, Lda. ao réu, este emitiu e entregou à dita sociedade comercial, como meio de pagamento desses fornecimentos, 5 letras de câmbio, 4 delas no valor de € 6.092,47€, e outra no valor de 1.221.430$00;       
3. A AA foi declarada insolvente por sentença publicada no Diário da República em 13 de Janeiro de 2011;
4. As letras de câmbio identificadas em 2 não foram pagas pelo réu na data do seu vencimento;

FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
A AA – …, CRL intentou contra o aqui réu CC, acção em que pedia o pagamento de vários fornecimentos de produtos alimentares, documentados por 63 facturas.
Esta acção foi julgada improcedente e o réu absolvido do pedido, pelo facto de o Tribunal ter julgado que todas as facturas já se encontravam pagas.
Naquela mesma acção, com o nº 274336/10.3YIPRT, a autora juntou as mesmas 5 letras que apresentou nesta acção com a petição inicial.
Naquela acção o Tribunal apenas deu como provado que o réu procedeu ao pagamento de todas as facturas aludidas na matéria de facto assente.
Aliás, na motivação do julgamento de facto o Tribunal considerou não ter ficado provado que as letras foram emitidas e aceites pelo réu para pagamento das mesmas facturas.
O afirmado pela autora na petição inicial da presente acção não corresponde à verdade, na parte em que afirma que o pagamento daquelas facturas foi feito com a entrega das referidas 5 letras e que tal facto foi reconhecido pela sentença proferida naquela acção nº 274336/10.
A autora vem, agora, accionar as 5 letras, não pagas pelo réu, afirmando que as mesmas se destinavam ao pagamento dos fornecimentos identificados naquela outra acção, documentados pelas 63 facturas juntas.
A autora reconhece que as letras não valem como letras de câmbio, ou títulos executivos, mas sim como documentos emitidos de comerciante para comerciante, referentes à dívida comercial que ali se atesta (fls. 5 dos autos).
Não se compreende como prosseguiu a acção para julgamento e se conheceu de mérito com a petição inicial apresentada.
A autora afirma que as letras não valem como letras de câmbio, nem como títulos executivos, pois o vencimento da última letra a ser paga é de 24.07.2002 e a presente acção deu entrada em Tribunal em 19 de Setembro de 2012.
As letras foram apresentadas com a petição como meros quirógrafos, como meios de prova de obrigação assumida pelo réu, o pagamento dos bens alimentares fornecidos pela insolvente ao réu, entre 10.08.2001 e 31.12.2001, e não como títulos constitutivos de obrigação cambiária, com as características da autonomia, literalidade e abstracção.
Esta posição assumida pela autora impediu o réu de excepcionar a falta de apresentação a pagamento das letras (artº. 53º da LULL) e a caducidade da acção (artº. 70º da LULL).
Perante a arguição da excepção do caso julgado pelo réu, veio a autora na réplica dizer que a causa de pedir não era constituída pelos fornecimentos de bens alimentares, entre 10.08.2001 e 31.12.2001, mas pelas próprias letras de câmbio e pelas obrigações nelas incorporadas, que, milagrosamente, passaram de meros quirógrafos a títulos de crédito.
O certo é que o Tribunal aceitou que a causa de pedir da presente acção era a falta de pagamento das letras e decidiu não ocorrer a excepção do caso julgado invocada pelo réu por falta de identidade de causas de pedir.
Houve recurso desta decisão, que subiu em separado, tendo o Tribunal da Relação confirmado a decisão da 1ª instância.
Esta decisão transitou e nada pode ser feito para a alterar.
Como é que se pode entender que o não pagamento das letras constitui a causa de pedir, quando as letras foram juntas como meio de prova documental de uma outra obrigação, a relação subjacente, não concretizada nem tipificada, face ao abandono, na réplica, da obrigação resultante do fornecimento de bens alimentares pela ora insolvente ao réu.
Desde que se decidiu, com trânsito em julgado, não haver identidade de causas de pedir, a acção ficou sem causa de pedir, pois as letras perderam a natureza de títulos de crédito, constitutivos de obrigação cambiária, autónoma relativamente à relação causal, bem como as características da literalidade e da abstracção.
Efectivamente, a falta de apresentação a pagamento das letras ou a prescrição dos direitos nelas incorporados determina a sua extinção como títulos de crédito, deixando de poder circular como tal e deixando de incorporar qualquer direito (Pedro Pais de Vasconcelos – Direito Comercial, vol. I – 2011, pág. 321).
São meros quirógrafos, documentos que ajudam a provar a existência da relação jurídica que justificou a respectiva emissão, que tem que ser alegada.
A falta de causa de pedir constitui nulidade de todo o processo, que devia ter sido conhecida no saneador (artºs. 186º nºs. 1 e 2 al. a), 196º e 200º nº 2, todos do CPC).
Já não estamos em tempo de conhecer da nulidade referida, pelo que temos de conhecer do mérito.
O Tribunal levou à matéria assente o facto constante da alínea B):
“Para pagamento de vários fornecimentos efectuados pela AA, Lda. ao R este emitiu e entregou à dita sociedade comercial, como meio de pagamento desses fornecimentos, 5 letras de câmbio, 4 delas no valor de 6.092,47 € e outra no valor de 1.221.430$00”.
Este facto foi impugnado na presente acção e não foi dado como provado na acção com o nº 274336/10.
O facto não devia ter sido dado como assente, mas não se justifica levá-lo à base instrutória e ordenar a repetição do julgamento, pois é perfeitamente irrelevante para a decisão a proferir.
As letras apresentadas não valem como títulos de crédito, constituindo meros quirógrafos, documentos que podem servir de meio probatório de uma relação jurídica entre a autora e o réu, fonte da obrigação deste, cujo cumprimento é pedido.
No caso concreto, a autora, uma vez que foi decidido, a seu pedido, que a causa de pedir da acção não era constituída pelo não pagamento dos fornecimentos de bens alimentares feitos ao réu entre 10.08.2001 e 31.12.2001, não fez prova de qualquer relação jurídica fonte da obrigação de pagamento pelo réu da quantia peticionada.
A presente acção estava condenada ao insucesso, ou por força do caso julgado, ou por falta de fundamentação substantiva do pedido, uma vez que as letras, só por si, não o podiam sustentar.
Nos termos expostos, na improcedência das conclusões da recorrente, decide-se negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Supremo Tribunal de Justiça, 20 de Outubro de 2015

Salreta Pereira (Relator)
João Camilo
Fonseca Ramos