Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
155/2002.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: CUSTÓDIO MONTES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
PRIORIDADE DE PASSAGEM
PROVA DA CULPA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 02/04/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
1. A prioridade de passagem só se coloca quando é previsível que ambos os veículos cheguem ao local da intercepção ao mesmo tempo.
2. Se o veículo entra na estrada prioritária, com quatro faixas de rodagem, atravessa duas delas e passa a circular na terceira, por a quarta faixa estar ocupada com veículos estacionados e percorre nela 6 a 8 metros, sendo embatido por trás, no lado esquerdo, pelo veículo que aparece pela direita na estrada prioritária, este não goza de prioridade de passagem.
3. Cabe ao lesado demonstrar que a lesante, ao entrar na estrada prioritária, não verificou se da sua direita circulava trânsito e que a sua manobra não o embaraçava.
4. Apesar de vir apenas demonstrado que a moto da vítima vinha a “mais de 60Km/hora”, na cidade, o facto de ter embatido por trás naquele veículo, tendo duas faixas de rodagem à sua esquerda sem trânsito, sendo projectada para a frente e para o passeio do lado contrário, indo embater num carro da polícia que estava estacionado mais acima sobre o passeio, arrastando-o para trás, leva a concluir que o acidente ocorreu por culpa do condutor da moto que não regulou a sua velocidade para o parar no espaço livre e visível à sua frente.
Decisão Texto Integral:
Acordam Supremo Tribunal de Justiça

Relatório

AA e BB Intentaram contra a Companhia de Seguros Tranquilidade SAT (1).

Acção declarativa de condenação sob a forma ordinária

Pedindo

A condenação desta a pagar-lhe a quantia de €169.162,99 e juros legais, desde a citação até efectivo pagamento, por danos causados no acidente de viação que escrevem, ocorrido por culpa exclusiva da segurada da R. e que causou a morte ao seu filho que, na altura, conduzia o seu motociclo que identificam.

A R. contestou por impugnação e invocando também inexistência de seguro válido à data do acidente.

Houve réplica.

Foi proferida sentença a julgar parcialmente procedente a acção, condenando a R. a pagar aos AA. a quantia de €65.462,23 (70% do montante global apurado - €93.517,47 – percentagem essa que foi atribuída à condutora segurada na eclosão do acidente) e juros de mora desde a citação e até 30.04.03 à taxa de 7% e, desde então e até integral e efectivo pagamento, à taxa de 4%.

A R. apelou sem sucesso e agora pede revista, terminando as suas alegações com as seguintes

Conclusões

1. Da matéria de facto apurada em sede de audiência de discussão e julgamento resulta a culpa única e exclusiva do condutor do NF na produção do acidente e não resulta do comportamento da condutora do XZ que esta tenha violado qualquer regra estradal.

2- O embate do NF no XZ verifica-se após o XZ ter percorrido, a partir do fim da zona do cruzamento, cerca de 8 a 10 metros, e de se encontrar o mais possível encostado ao lado direito da estrada, atento o seu sentido de marcha. Atente-se que o XZ não percorreu cerca de 8 a 10 metros após sair da Rua Nau Trindade. Antes daqueles 8 a 10 metros, havia já realizado, pelo menos, percurso correspondente à largura da quase totalidade da Av. Femão de Magalhães, que é composta por quatro faixas de rodagem, e ainda percurso correspondente ao espaço do cruzamento formado pela Rua Nau Trindade com a Av. Femão de Magalhães e que, no mínimo, terá obrigatoriamente de corresponder à largura da Rua Nau Trindade, composta por duas faixas de rodagem.

3- O direito de prioridade de passagem apenas e só tem aplicação quando se verifica a chegada simultânea de dois ou mais veículos ao ponto de cruzamento, o que, no caso dos autos, manifestamente não se verificou.

4- Nem existiu, da parte da condutora do XZ, comportamento tendente a concluir que a mesma não respeitou as cautelas e cuidados necessários na realização da manobra de mudança de direcção à esquerda, já que a condutora do XZ entrou no cruzamento, após o que direccionou o veículo para a esquerda, e passou a circular na Av. Femão de Magalhães com o XZ mais encostado possível ao lado direito, atento seu sentido de marcha, o que fez durante cerca de 8 a 10 metros, até o XZ ser embatido pelo NF.

5- Se a condutora do XZ não se tivesse assegurado previamente que com a sua manobra não criava perigo para o demais trânsito, não poderia, nunca por nunca, ter percorrido a distância que percorreu desde o momento em que se encontrava imobilizada na Rua Nau Trindade até ao momento do embate do NF no XZ.

6- Sendo aqui ainda de referir, sublinhar e relembrar que a Av. Femão de Magalhães dispõe de três faixas de rodagem destinadas ao trânsito que circula no sentido em que circulavam o NF e o XZ, ou seja, que à esquerda do XZ existiam, livres e desimpedidas, metade da faixa central e a totalidade da faixa localizada mais à esquerda, atento o sentido de marcha dos veículos.

7- Assim, nenhuma censura, do ponto de vista ético-jurídico, pode ser apontada ao comportamento da condutora do XZ.

8- O acidente dos autos ocorreu em virtude de o malogrado condutor do NF, circulando a velocidade manifestamente excessiva para o local, sempre superior a 60 km/hora, haver embatido com o motociclo que conduzia na parte traseira esquerda do XZ, quando este veículo se encontrava já a uma distância de cerca de 8 a 10 metros do cruzamento formado pela Rua Nau Trindade com a Av. Fernão de Magalhães e encostado o mais possível ao lado direito da estrada, atento o sentido de marcha dos veículos, pese embora, na altura, o condutor do NF dispor de metade da faixa central e da totalidade da faixa da esquerda destinadas ao trânsito que circula no mesmo sentido, completamente livres e desimpedidas. Aliás, também a faixa de rodagem destinada ao trânsito que circulasse no sentido inverso ao do NF, se encontrava, na altura, livre e desimpedida, o que vale por dizer, "utilizável" pelo condutor do NF, em caso de necessidade de realização de manobra de emergência.

9- A tudo isto acrescem outros factos, essenciais para o apuramento da velocidade do NF na altura do embate, seguramente superior a 60 kmlhora - e muito superior -, como sejam: o malogrado condutor do NF ainda travou antes de embater no XZ e o NF só se imobilizou após embater no FB; o veículo FB - carro patrulha da PSP - com a força do embate provocado pelo NF recuou, apesar de se encontrar imobilizado em cima do passeio que no local ladeia o pavimento; o condutor do NF, por força do acidente, sofreu violentíssimas lesões, as quais vieram a ser consequência da sua morte; o NF é um potente motociclo, com a cilindrada de 900 cm3.

10- Dada a existência, no local, de uma passadeira para peões, o condutor do NF deveria, ainda, ter moderado especialmente a velocidade que imprimia ao motociclo, o que não sucedeu.

11- Com a sua actuação, o condutor do NF, não só infringiu o disposto nos art.os 24°, n° , 25°, n° 1, aI. a) e 27°, todos do CEstrada em vigor à data do acidente, como não actuou de forma a que da circulação do NF não resultasse perigo, quer para si, quer para os restantes utentes da via, assim infringindo também o disposto no art.o 3°, n° 2, do citado diploma legal.

12- Infracções, todas elas, caUSaIS do acidente e concorrentes, em exclusivo, para a sua produção.

13- Por outro lado, na altura do acidente o condutor do NF imprimia ao motociclo velocidade superior a 60 km/hora, sendo que o local do acidente configura uma localidade e no mesmo local é proibida a circulação de veículos a velocidade superior a 50 km/hora.

14- A velocidade imprimida ao NF pelo seu condutor, por superior à legalmente permitida no local, faz, desde logo, impender sobre o condutor do NF uma presunção judicial, consubstanciada na violação de regras estradais destinadas a proteger interesses de terceiros, que os recorridos não lograram ilidir.

15- Donde resulta que a recorrente deveria ter sido absolvida do pedido.

16- Ao assim não decidir, fez-se menos acertada interpretação dos factos e menos correcta aplicação, no douto acórdão ora recorrido, do disposto no art.o 483° do CCivil e dos art.os 30, n° 2,24°, n° 1,25°, n° 1, aI. a), 27°, 30° e 35°, todos do CEstrada em vigor à data do acidente.

Termina pedindo se revogue o acórdão recorrido.

Os recorridos contra alegaram para pugnar pela manutenção da decisão recorrida.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Fundamentação

Matéria de facto provada:

1. DD, nascido em 08/07/71, filho de AA e de BB, faleceu no dia 26/08/02, no estado de solteiro (docs. de fls. 15/16) (al. A) dos factos assentes);

2. AA e BB, por escritura de 04/10/2002, foram habilitados como únicos herdeiros do falecido DD (doc. de fls. 17 a 20) (al. B) dos factos assentes);

3. DD faleceu cerca das 21 e 25 horas (resposta ao item 1º da base instrutória);

4. No dia 26 de Agosto de 2002, pelas 20:50 horas, no cruzamento da Avenida Fernão de Magalhães com a Rua de Nau Trindade, deste concelho, ocorreu um embate no qual foram intervenientes o ligeiro de passageiros matrícula 00-00-00, o motociclo matrícula 00-00-00 e um carro patrulha da PSP, matrícula 00-00-00 (resposta ao item 2º da base instrutória);

5. O ligeiro de passageiros era conduzido pela sua proprietária CC (resposta ao item 3º da base instrutória);

6. O motociclo era conduzido pelo seu dono, o falecido DD (resposta ao item 4º da base instrutória);

7. O condutor do carro patrulha referido em 4) e pertencente ao Estado Português, era na altura o agente da PSP nº 3353-3ª EE , a prestar serviço na 3ª Esquadra do Porto (resposta ao item 5º da base instrutória).----

8. No local a Av. Fernão de Magalhães é constituída por uma recta em betuminoso, boa visibilidade e inclinação moderada, cujo piso no dia e hora referidos estava seco (resposta ao item 6º da base instrutória).----

9. E possui trânsito nos dois sentidos com quatro faixas de rodagem, sendo:

- uma descendente – sentido Norte/Sul – destinada ao trânsito de transportes públicos;

- e três ascendentes – sentido Sul/Norte – destinadas ao tráfego geral ;

- tendo pintadas no pavimento setas indicadoras dos sentidos de marcha;

- uma passadeira para peões;

- sendo o trânsito regulado por semáforos verticais e aéreos (resposta ao item 7º da base instrutória);

10. A Rua Nau Trindade tem um só sentido de trânsito Poente/Nascente, desaguando na Av. Fernão de Magalhães e possui

- duas faixas de rodagem, junto ao cruzamento;

- setas indicadoras do sentido de marcha – na fila da esquerda para virar para esse lado e na direita para seguir em frente;

- passadeira para peões;

- sinal vertical de proibição de virar à direita; e

- semáforos verticais, reguladores do trânsito (resposta ao item 8º da base instrutória);

11. Os semáforos reguladores do trânsito no dia, local e hora do acidente encontravam-se intermitentes (resposta ao item 9º da base instrutória);

12. O XZ provinha da esquerda da Rua Nau Trindade, sentido descendente Poente/nascente (resposta ao item 10º da base instrutória);

13. E circulava pela via da direita (resposta ao item 11º da base instrutória);

14. Sendo que na via da esquerda havia viaturas estacionadas (resposta ao item 12º da base instrutória);

15. O NF circulava na Av. Fernão de Magalhães no sentido ascendente Sul/Norte (resposta ao item 13º da base instrutória);

16. O FB estava então estacionado no passeio, em frente ao Posto de abastecimento da Galp, junto da via reservada aos transportes públicos, sentido Norte/Sul (resposta ao item 14º da base instrutória);

17. O condutor do motociclo pretendia prosseguir a sua marcha mantendo o sentido que trazia (resposta ao item 15º da base instrutória);

18. A condutora do XZ pretendia virar à esquerda dando entrada na Av. Fernão de Magalhães (resposta ao item 16º da base instrutória);

19. O condutor do NF tinha colocado o capacete(resposta ao item 18º da base instrutória);

20. Ao virar à esquerda, conforme referido em 18), a condutora do XZ entrou na Av. Fernão de Magalhães (resposta ao item 20º da base instrutória);

21. O NF provinha da direita, em relação ao XZ (resposta ao item 21º da base instrutória);

22. A fim de evitar embater no XZ, o condutor do NF ainda travou (resposta ao item 22º da base instrutória);

23. Ao embater no XZ, o NF deslizou pelo chão indo embater no FB (resposta ao item 23º da base instrutória).---

24. O condutor do NF após o embate com o FB, veio a cair desamparado no pavimento, a cerca de 6 metros e 80, na diagonal, por referência ao local onde a moto se imobilizou (resposta ao item 24º da base instrutória);

25. Ao chegar ao local onde a Rua Nau Trindade entronca na Av. Fernão de Magalhães e porque pretendia tomar o sentido Sul/Norte desta mesma avenida, a condutora do XZ imobilizou o veículo que conduzia (resposta ao item 25º da base instrutória);

26. No sentido Norte/Sul da Av. Fernão de Magalhães, não circulava então qualquer veículo, tendo o XZ reiniciado a sua marcha (resposta ao item 26º da base instrutória);

27. Após mudar de direcção à esquerda, a condutora do XZ passou então a circular pelo interior da referida avenida, no sentido Sul/Norte, entre a via de trânsito que constitui a via central e a via de trânsito mais à direita, considerando as três vias de circulação destinadas ao trânsito que, naquele local, circula no sentido Sul/Norte (resposta ao item 27º da base instrutória);

28. A via de trânsito, situada mais à direita, atento o referido sentido de marcha, encontrava-se então parcialmente obstruída com veículos estacionados em segunda fila (resposta ao item 28º da base instrutória);

29. Quando a condutora do XZ tinha já transposto a zona do cruzamento formado pela Rua Nau Trindade com a Av. Fernão de Magalhães e havia percorrido cerca de 8 a 10 metros após aquela zona de cruzamento, foi o XZ embatido na parte traseira esquerda, junto ao canto desse mesmo lado, pelo NF (resposta ao item 29º da base instrutória);

30. O condutor do NF circulava a velocidade superior a 60 km/hora (resposta aos itens 17º e 30º da base instrutória);

31. Na sequência do referido em 23) o NF imobilizou-se após embater na parte da frente do FB (resposta ao item 32º da base instrutória);

32. O FB com a força do embate, recuou (resposta ao item 33º da base instrutória);

33. O condutor do NF ficou imobilizado para lá do FB, atento o sentido de marcha Sul/Norte da Av. Fernão de Magalhães (resposta ao item 34º da base instrutória);

34. O filho dos AA. veio a falecer em consequência das lesões sofridas com o embate descrito (resposta ao item 35º da base instrutória);

35. O NF, em consequência do acidente, ficou com a parte da frente completamente destruída (resposta ao item 36º da base instrutória);

36. CC transferiu a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo Fiat Uno matrícula 00-00-00 para a Companhia de Seguros Tranquilidade SA, através de contrato de seguro para o qual foi emitido o certificado provisório de seguro nº 0000000, com data de emissão e início de validade indicados em 24/08/02, a que veio depois a corresponder a apólice nº 000000000, estando nesta apólice indicado como início do seu efeito “28-08-2002 12:15 (resposta aos itens 39º e 40º da base instrutória);

37. O falecido acarinhava, estimava e proporcionava entranhado amor aos AA. (resposta ao item 43º da base instrutória;

38. Os AA. tinham por ele especial ternura e afeição (resposta ao item 44º da base instrutória);

39. Mantendo entre eles um relacionamento perfeito, harmonioso e respeitoso (resposta ao item 45º da base instrutória);

40. Os AA. choram agora todos os dias o seu repentino e inesperado desaparecimento (resposta ao item 46º da base instrutória);

41. O agregado familiar do “de cujus” era constituído, para além dele próprio pelos aqui AA., o pai desempregado e a mãe doméstica (resposta ao item 47º da base instrutória);

42. O falecido auxiliava o agregado familiar, com os seus rendimentos, no pagamento dos gastos de água, luz e telefone, nos custos da alimentação, vestuário, medicamentos e demais despesas domésticas comuns a todos (resposta ao item 48º da base instrutória);

43. O falecido era até aí uma pessoa saudável, dinâmico e alegre, com gosto pela vida e bastante comunicativo (resposta ao item 49º da base instrutória);

44. Após o acidente e antes da hora da sua morte, o falecido teve plena consciência da sua situação, sofrendo a agonia face à morte eminente (resposta ao item 50º da base instrutória);

45. Mesmo casando, o falecido iria continuar a viver em casa dos pais e a ser o seu amparo na velhice, contribuindo para a economia comum (resposta aos itens 51º e 52º da base instrutória);

46. Como Serralheiro de 1ª classe, o falecido auferiu até pelo menos Fevereiro de 2002 na firma Friemo – Fábrica de Equipamentos Hoteleiros, Lda., a quantia de € 569,85 mensais líquidos (resposta ao item 53º da base instrutória);

47. Após a data referida em 46), o falecido passou a trabalhar por conta própria (resposta ao item 54º da base instrutória);

48. Em consequência do embate o NF sofreu danos no valor de € 11.161,85 (resposta ao item 55º da base instrutória);

49. O valor venal da viatura actualmente é de 1.500 contos, isto é, € 7.481,97 (resposta ao item 56º da base instrutória);

50. O “de cujus” na altura do acidente era portador de pelo menos 1 relógio, capacete, vestia blusão e calças de ganga, uma camisola, “t-shirt”, meias e roupa interior, calçando sapatos (resposta ao item 57º da base instrutória);

51. Na sequência do acidente desapareceu um sapato, tendo o restante vestuário ficado em mau estado de conservação (resposta ao item 58º da base instrutória);

52. Com o decesso do filho, os AA. tiveram que adquirir roupas escuras para “deitar” luto (resposta ao item 59º da base instrutória);

53) Com o funeral no armador “A Funerária da Giesta”, despenderam os AA. € 1.421,57 (resposta ao item 60º da base instrutória);

54. Com a Junta de Freguesia de Águas Santas, para concessão de campa, de floreira, autorização para colocação de campa completa no coval n.º 107 da 4ª secção, despenderam os AA. € 210,50 (resposta ao item 61º da base instrutória);

55. Com o arranjo da campa, cabeceira, candeeiro e floreira despenderam os AA. € 325,00 (resposta ao item 62º da base instrutória).

O direito

A questão fundamental que se aborda no recurso é a de saber se a condutora do veículo seguro na Recorrente agiu ou não com culpa, defendendo ela que o causador do acidente foi a vítima que circulava com excesso de velocidade.

A decisão recorrida, contrariamente, defendeu que a culpa do acidente foi repartida: 70% para o veículo seguro na R. e 30% para o sinistrado.

Vem demonstrado que o acidente se deu da seguinte forma:

O XZ – conduzido pela segurada da R. – provinha da rua Nau Trindade, de um só sentido Nascente/Poente e que entronca na Av. Fernão de Magalhães que, por sua vez, tem quatro faixas de rodagem – uma no sentido Norte/Sul, só para transportes públicos, outra no sentido Sul/Norte, com três faixas de rodagem, destinadas ao trânsito em geral, com setas no pavimento a indicar o sentido de marcha e uma passadeira para peões, estando, na altura, os semáforos, que ali existem, intermitentes e não havendo trânsito na Av. Fernão de Magalhães, no sentido Norte/Sul.

A segurada da R. – o XZ – pretendia entrar na Av. Fernão de Magalhães e tomar o sentido Sul/Norte; parou no entroncamento, atravessou a referida Avenida, passando a circular nesse sentido, entre a via de trânsito que constitui a via central e a via de trânsito mais à direita, que, naquele momento, estava ocupada com carros nela estacionados.

Quando havia percorrido já cerca de 6 a 8 metros nessa via, foi embatido pelo NF, conduzido pela vítima, no sentido Sul/Norte que, vindo a velocidade superior a 60Km/hora, ainda travou mas foi embater na traseira do XZ, lado esquerdo, deslizando pelo chão e indo embater no FB – carro patrulha - que estava estacionado em cima do passeio, em frente ao posto de abastecimento da Galp, junto à via reservada aos transportes públicos, o qual, com a força do embate, “recuou”.

Tem que se considerar que a velocidade a que circulava a Moto (NF) era de 60Km/hora.

É certo que vem dado como provado que ela circulava a “mais de 60KM/hora” mas essa expressão apenas pode significar que a velocidade era de 60KM/hora porque o “mais” nada significa.

Perguntava-se se a moto circulava a velocidade superior a 150Km/hora.

E pedia-se a reapreciação da resposta a esse quesito.

A Relação diz que a resposta em causa dada pela 1.ª instância só podia ser essa, argumentando que o facto de o ponteiro do mostrador de velocidade da moto se ter imobilizado nos 160Km/hora, após o acidente, não indica a velocidade a que ela circulava; que o barulho que fazia nada significava porque, segundo disse o mecânico que lhe adaptou o escape, tal barulho resultava desse escape de alto rendimento e também devido à dificuldade “em situar com rigor necessário o tempo que a moto levou a percorrer os 200 metros mencionados, ….”

Portanto, parece que o colectivo da Relação achou que a velocidade era superior a 60Km/hora e que não era possível determinar o tempo que a moto terá levado a percorrer 200 metros, distância a que podia ser visível, nem que o barulho que ela fazia era indício de velocidade superior nem que o facto de o ponteiro da velocidade se ter imobilizado nos 160Km/hora pudesse indiciar a velocidade a que a moto seguia antes do acidente.

Apesar desses hipotéticos indícios da alta velocidade a que seguiria a moto e de haver testemunhas que disseram que vinha a mais de 150/Kh e a fazer muito barulho, isso é matéria insindicável por este STJ tendo, por isso, que se dar como assente que a velocidade da moto era de apenas 60Km/hora, por o “mais“ não se poder quantificar em quilómetros, com relevância para o caso.

Mas vejamos o comportamento da condutora segura na R.

Ela pretendia entrar na Av. Fernão de Magalhães e tomar o sentido Sul/Norte.

Parou o veículo no cruzamento da Rua Nau Trindade com a Av. Fernão de Magalhães e como não havia trânsito na Av. Fernão de Magalhães, sentido Norte/Sul, portanto, à sua esquerda, avançou para a Avenida, atravessou duas faixas de rodagem – a dos transportes públicos, única no sentido Norte/Sul -, atravessou a faixa que “constitui a faixa central” e passou a rodar pela faixa à direita desta porque a faixa da direita (mais à sua direita) estava ocupada com carros estacionados.

E quando já havia circulado 6 a 8 metros nessa faixa de rodagem(2), foi embatida na traseira esquerda do seu veículo pela moto que, antes, ainda travou.

A moto foi de rastos, embateu no carro da polícia que estava estacionado no passeio do lado esquerdo, junto à via dos transportes públicos e ao posto da Galp, o qual, devido à “força do embate, recuou”.

Ora, a única transgressão que a condutora segura na R. terá cometido foi a de não ter verificado se havia trânsito pela Av. Fernão de Magalhães no sentido Sul/Norte, antes de entrar nessa via, porque não provou, apesar de ter alegado, que nesse sentido também não havia trânsito na referida Avenida.

Mas terá ela cometido tal infracção e, em caso afirmativo, será ela causal do acidente ?

A regra da prioridade vem estabelecida no art. 30.º do CE:

1. O condutor sobre o qual recaia o dever de ceder passagem deve abrandar a marcha, se necessário parar ou, em caso de cruzamento de veículos, recuar, por forma a permitir a passagem de outro veículo, sem alteração da velocidade ou direcção deste.

2. O condutor com prioridade deve observar as cautelas necessárias à segurança do trânsito”.

Também o art. 35.º, 1 refere que quem tiver que mudar de direcção só o pode fazer quando dessa manobra não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.

Como se vê, a regra da prioridade de passagem não é absoluta porque quem dela goza tem de observar as cautelas necessárias.

Além disso, a prioridade de passagem só existe em caso de simultaneidade(3)

Ora, a condutora do veículo seguro na recorrente, ao chegar ao cruzamento com a Avenida, parou o veículo; do seu lado esquerdo – Norte/Sul da Av. Fernão de Magalhães – não circulava, então, qualquer veículo; mudou de direcção à esquerda, atravessou parte da referida Avenida e passou a circular no sentido Sul/Norte, tomando a via de trânsito que se situa entre a via central e a via mais à direita que tinha carros estacionados.

Do exposto, resulta que a condutora do veículo seguro na R. deixou livres duas faixas de rodagem à sua esquerda: a central, no sentido Sul/Norte e a dos transportes públicos – via única da Avenida, no sentido Norte/Sul(4)”.

E quando já tinha percorrido cerca de 6 a 8 metros, após o local de intercepção do cruzamento das duas vias – rua Nau Trindade e Av. Fernão Magalhães - foi embatida na parte lateral esquerda traseira pela moto do sinistrado, que ainda travou.

Da factualidade descrita(5) vê-se bem que a moto chegou muito depois do veículo automóvel ao local da intercepção das trajectórias das duas vias.

E não vem demonstrado que, ao entrar na Avenida Fernão de Magalhães, a condutora do veículo não olhou para a direita para ver se vinha algum veículo tão perto que lhe impedisse efectuar a manobra de mudança de direcção sem perigo de colisão ou embaraço de trânsito.

Essa infracção – a do art. 35.º, 1 do CE – havia de ser demonstrada pelos lesados porque é a eles que compete a prova da culpa do autor da lesão(6).; não cabendo a este demonstrar que agiu sem culpa.

Mas mesmo que se demonstrasse que a condutora do veículo havia infringido a regra da prioridade, seria a vítima também a culpada exclusiva ou, pelo menos, a sua culpa seria muito próxima dos 100%.

Com efeito, subindo a Avenida e tendo livre a faixa da esquerda para poder ultrapassar o veículo, tendo necessariamente que avistar ainda longe o veículo a mudar de direcção e havendo uma passadeira para peões, a moto, para além do máximo de 50Km/hora a que podia circular, ainda devia abrandar a velocidade à aproximação do cruzamento e da passadeira para peões.

Por outro lado, pensamos que se viesse à velocidade permitida, nunca o embate se teria dado ou a ter-se dado, nunca ele teria tido as proporções que veio a ter, designadamente a da morte da vítima, nem a violência que os factos demonstram, como a circunstância de a moto, após o embate no veículo automóvel, ainda ir embater no carro da polícia que estava estacionado, mais à frente, do lado oposto, em cima do passeio, fazendo-o recuar.

Portanto, parece-nos que a culpa do acidente se deve integralmente à infeliz vítima que não regulou a velocidade da moto de forma a poder pará-la no espaço livre e visível à sua frente(7) não a reduziu, como devia(8)., nem agiu com a perícia de um condutor normal que, tendo uma faixa livre à sua esquerda e ainda a faixa dos transportes públicos por onde não circulava qualquer veículo, certamente evitaria o embate, ultrapassando o veículo automóvel.

Tem, por isso, que se revogar a decisão recorrida e absolver a R. do pedido por a culpa do acidente ser da inteira e exclusiva responsabilidade da vítima.

Decisão

Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se a decisão recorrida e absolvendo-se a R. do pedido.

Custas pelos AA.

Lisboa, 04 de Fevereiro de 2010

Custódio Montes (Relator)

Alberto Sobrinho

Maria Prazeres Pizarro Beleza

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(1) Também chamaram a intervir o Fundo de Garantia e CC que foram absolvidos do pedido, com trânsito em julgado.
(2) Depois de ter passado o cruzamento, claro.

(3) Acs do STJ de 4.112003, de 17.3.94, de 27.499, de 24.299, de 12.3.98, de 10.7.97, de 6.2.97 (“a questão da prioridade só se põe quando há possibilidade de intercepção das trajectórias no tempo e no espaço”), de 8.377, de 8.677, de 24.1.03, de 12.7.94, de 15.6.94, de 10.4.84, de 3.4.86, de 16.7.87, respectivamente no itij doc n.º SJ200311040034586; n.º convencional JSTJ00022356, n.º conv. Sj199904270001311, n.º jstj00035969, n.º sj19980312000112, n.º jstj00032283, n.º jstj00031442, n.º jstj00023658, n.º sj19770680663612, n.º jstj000023729, n.º jstj00024702, n.º jstj00024354, n.º jstj00015859, n.º jstj00014455, n.º jstj00011736.

(4) N.º 9 da matéria de facto: “e possui trânsito nos dois sentidos com quatro faixas de rodagem, sendo: uma descendente – sentido Norte/Sul – destinada ao trânsito de transportes públicos, e três ascendentes - sentido Sul/Norte – destinadas ao tráfego geral;…”
(5)Atento o percurso feito pela condutora do veículo seguro na R., que inclui a travessia de duas faixas de rodagem – a destinada aos transportes públicos e a primeira das três faixas de rodagem ascendentes, destinadas ao tráfego em geral, bem como a entrada na segunda destas três faixas de rodagem e ainda 6 a 8 metros nesta.
(6) Art. 487.º, 1 do CC.
(8) Art. 24.º, 1 e 27.º do CE.
(9) Art. 25.º, 1, a e f) do mesmo Códgio.