Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2918
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: DIVÓRCIO
EFEITOS
RETROACTIVIDADE
Nº do Documento: SJ200611070029181
Data do Acordão: 11/07/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : - O pedido de retroacção dos efeitos do divórcio a que alude o n.º 2 do art. 1789º C. Civil deve ser formulado no processo de divórcio antes da prolação da respectiva sentença, precludindo a possibilidade de exercício desse direito com o encerramento da discussão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - "AA" intentou contra sua ex-mulher BB acção de divórcio em que foi proferida sentença que decretou a dissolução do casamento, com culpa exclusiva da Ré.
Agora, mais de oito anos passados sobre o trânsito em julgado daquela decisão, requereu o A. a declaração de retroacção dos efeitos do divórcio à data de 25/7/94, fixada na sentença como data da cessação da coabitação dos cônjuges.

A pretensão foi indeferida, por havida como extemporânea, mas a Relação revogou o despacho da 1ª Instância e ordenou o conhecimento do requerido pelo A.-Agravante.

Agora, agrava a Ré para pedir a reposição do decidido no Tribunal da Comarca.
Para tanto, levou às conclusões da sua alegação:
A - Nunca ficou provado nos autos que a coabitação cessou nem ficou expressamente fixada a data em que cessou a coabitação;
Tal data só pode ser fixada na sentença que decretar o divórcio, não podendo ser fixada em momento posterior por via incidental ou noutra acção.
B - Além disso, no processo de divórcio tem que ser alegada e provada a violação do dever de coabitação como fundamento do divórcio ou, pelo menos, como fundamento da declaração de culpa;
O divórcio foi proferido com base na violação dos deveres de respeito e de cooperação e não com base no dever de cooperação.
C - O requerimento em que se formula o pedido de retroacção dos efeitos do divórcio não pode ter lugar posteriormente á sentença que decretar o divórcio, por ter ficado precludido esse direito;
Também pela razão complementar que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
D - Foi violado, por erro de interpretação e integração, o disposto no art. 1789º-2 C. Civil.

O Recorrido apresentou resposta em defesa da posição que sustentara.

2. - Porque, como já referido, a pretensão do Autor foi arredada com fundamento, exclusivamente processual, na preclusão do exercício do direito, por ter como limite temporal a prolação da sentença, não tendo conhecido do mérito da mesma, a questão a decidir é apenas a de saber se o pedido de retroacção dos efeitos do divórcio a que alude o n.º 2 do art. 1789º C. Civil pode ser formulado após a prolação da sentença que o decrete.

Consequentemente, na medida em que se referem ao concurso dos pressupostos substantivos da procedência do pedido, não interesse ao objecto deste recurso a matéria das conclusões da Recorrente enumeradas sob 1ª) a 9ª) e sintetizadas em A e B supra.

3. - A decisão impugnada assenta na factualidade seguinte:

A acção de divórcio correu na comarca de Cantanhede com o n.º 496/94;
A 5/11/1996 foi proferida sentença que decreto o divórcio, com culpa exclusiva da Ré:
Por acórdão de 14/01/1997 a Relação de Coimbra confirmou a decisão.
Nessa sentença ficou provado que, em 25/07/1994, o autor abandonou o lar conjugal que ambos haviam constituído no lugar de ...;
Em 25/07/1994 a ré realizou uma transferência de 20.257.480$00 da conta solidária de ambos, na Empresa-A para conta de que o Autor não é titular,
Correspondendo tal montante ao produto da actividade profissional exclusiva do Autor,
Ao mesmo tempo que procedia à transferência de Títulos de Tesouro Familiares, no valor de 400 contos, de uma conta de títulos de que eram titulares solidários, para uma conta de que o Autor não é titular.

4. - Depois de enunciar a regra de que os efeitos do divórcio se produzem a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, retroagindo os relativos às relações patrimoniais entre os cônjuges à data da instauração da acção, o art. 1789º do Código Civil prevê, no seu n.º 2, que quando "a falta de coabitação entre os cônjuges estiver provada no processo, qualquer deles pode requerer que os efeitos do divórcio retrotraiam à data, que a sentença fixará, em que a coabitação tenha cessado por culpa exclusiva ou predominante do outro".

Como nas decisões impugnadas se dá notícia a questão proposta tem obtido respostas diferentes.

Este Supremo Tribunal, porém, tanto quanto se conhece sobre os casos em que foi chamado a pronunciar-se sobre o tema, tem vindo a firmar jurisprudência no sentido de que o pedido de retroacção dos efeitos do divórcio deve ser feito antes da prolação da sentença que o decreta (Acs. de 11/07/89; de 22/1/97 e de 19/10/04, todos disponíveis pelo ITIJ).

Trata-se de uma pura questão de interpretação da lei - art. 9º-1 C. Civil.

Da leitura da norma que se transcreveu a impressão que imediatamente se colhe é a de que é a sentença que decreta o divórcio o lugar determinado pela mesma para declarar os efeitos retroactivos do divórcio nela decretado ao momento em que, sendo o caso, esteja demonstrada a cessação da coabitação. O requerimento contendo tal pedido poderá ser feito em qualquer momento anterior.

Porém, como propõe o legislador, no invocado art. 9º-1 do Código Civil, fornecendo princípios e métodos sobre a interpretação das normas jurídicas, esta actividade não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo em conta, designadamente, os denominados elementos histórico, racional e sistemático.

Assim, apesar de o elemento literal, dada a redacção da norma, indicar, de forma perfunctoriamente clara, para que tenha sido vontade do legislador impor a declaração daquele efeito retroactivo na sentença de divórcio, sempre será de testar esse sentido e alcance, confrontando-o com outros elementos convocáveis, em busca de eventual conflito susceptível de arredar o sentido que se colhe da letra do preceito.

As relações pessoais e patrimoniais entre os cônjuges cessam pelo divórcio, havendo lugar, designadamente, à partilha dos bens e liquidação do passivo (arts. 1688º e 1689º C. Civil).
Impõe a lei que se declare na sentença de divórcio a culpa dos cônjuges, havendo-a, e fixa o momento em que se produzem os efeitos da cessação daquelas relações pessoais e patrimoniais (arts. 1787º e 1789º-1).
O n.º 2 deste último preceito, prevê, verificados certos pressupostos (cessação da coabitação e culpa de um dos cônjuges), um afastamento do regime-regra, facultando ao cônjuge inocente ou menos culpado a obtenção da retroacção daqueles efeitos ao momento da ruptura de vida em comum.
Ora, não nos parece de todo indiferente, designadamente na perspectiva dos efeitos da cessação das relações patrimoniais, que na sentença de divórcio nada se diga a tal respeito, valendo assim a regra legal da data da instauração da acção, ou que, posteriormente, se venha a alterar esse efeito legal, mediante a fixação de uma data anterior que, ao fim e ao cabo, corresponde a uma alteração ou modificação do conteúdo da decisão.

Se é verdade que por via da estabelecida inoponibilidade desses efeitos a terceiros anteriormente à data do registo da sentença (n.º 3 do mesmo preceito) estes não serão, pelo menos directamente, prejudicados com a alteração/antecipação, já se nos afigura que a admissibilidade de um tal pedido após a sentença, pelos efeitos que produz, se reconduz, na falta de disposição que expressamente a preveja, a uma inadmissível alteração do pedido a determinar uma também inaceitável modificação da sentença, do sentido e efeito da decisão quanto à liquidação das relações patrimoniais entre os cônjuges litigantes, mantendo, por tempo indeterminado, a insegurança e incerteza sobre a eficácia da sentença, em violação das regras do caso julgado e da extinção da instância operada pelo julgamento (arts. 273º, 287º-a) e 671º e 673º C. Civil).

Em reforço deste elemento racional e sistemático, emergente da lei processual, poderá, no mesmo sentido, invocar-se um outro, agora da lei substantiva.

A norma em apreciação foi introduzida pela Reforma de 1977 (DL n.º 496/77, de 25/11), que alterou profundamente o regime legal do divórcio.
Contemporânea foi a introdução no C. Civil, pelo mesmo diploma, do art. 1677º-B que, dispondo sobre efeitos pessoais do divórcio quanto ao pedido de autorização de uso de apelidos do ex-cônjuge, permite a sua dedução "no processo de divórcio ou em processo próprio, mesmo depois de o divórcio ter sido decretado".
Tivesse o legislador querido consagrar idêntica especialidade ou desvio relativamente ao pedido de retroacção ou outros atinentes aos efeitos do divórcio e certamente não teria deixado de os consagrar.

Entende-se, assim, que, na fixação do sentido com que deve valer a norma em causa, não se encontra conflito entre o respectivo elemento literal e os elementos racional e sistemático, ou seja, que o legislador não disse coisa diferente daquilo que, efectivamente, queria dizer.

Conclui-se, pois, como nos aludidos acórdãos, ser necessário que o requerimento com a pretensão em causa seja formulado no processo de divórcio antes da prolação da respectiva sentença, desde a petição inicial até ao encerramento da discussão, com a produção das alegações, seja ou não a acção contestada, sob pena de preclusão (cfr. ac. citado de 19/10/04, em que foi relator o Exmo. Cons. aqui 1º Adjunto).

5. - Termos em que, no provimento do agravo, se revoga o acórdão impugnado, repondo a decisão da 1ª Instância, e se condena o Recorrido nas custas.

Lisboa, 7 de Novembro 2006
Alves Velho
Moreira Camilo
Urbano Dias