Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05B2385
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ÓNUS DA PROVA
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
TRÂNSITO DE PEÕES
CULPA
Nº do Documento: SJ200507120023857
Data do Acordão: 07/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 3388/04
Data: 02/15/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. Inverte-se o ónus de prova do contrato de seguro se o autor foi impossibilitado de a produzir por virtude da omissão pela ré seguradora da junção da cópia da respectiva apólice.
2. Deve ser envolvida de especiais cautelas a travessia das faixas de rodagem por peões nas passadeiras para o efeito existentes que se situem no limite do entroncamento de faixas de rodagem por onde transitem em mudança de direcção autocarros de passageiros.
3. Nesse quadro de dever objectivo de cuidado incumbe às pessoas, antes de operarem a referida travessia, a verificação da aproximação de veículos automóveis e a sua dimensão e velocidade, actuando em conformidade com a dinâmica envolvente.
4. Em termos de causalidade e de culpa, é exclusivamente imputável à vítima a colisão mortal entre ela e a porta traseira de um autocarro de passageiros, se a mesma se movimentou na passadeira pedonal depois da sua transposição pela frente daquela viatura e ao seu condutor já não era possível aperceber-se daquela travessia, para si inesperada.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I

"A" intentou, no dia 10 de Fevereiro de 2003, contra a Companhia de Seguros B, SA, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe € 60.000 e juros à taxa legal desde a data da citação, com fundamento no decesso de sua mãe, no dia 1 de Agosto de 2000, em acidente de viação ocorrido nesse dia, às 16.50 horas, na Rua Visconde da Coriscada, Covilhã, por via do seu atropelamento pela viatura automóvel pesada de passageiros com a matrícula nº HA, pertencente a C, conduzida por D, a este imputável a título de culpa, e no contrato de seguro de responsabilidade celebrado entre aquela sociedade e a ré.
A ré, em contestação, afirmou que o referido acidente foi exclusivamente imputável à própria vítima e serem exageradas as verbas pedidas pela autora a título de danos não patrimoniais.
Foi concedido à autora, no dia 18 de Janeiro de 2001, o apoio judiciário nas modalidades de dispensa do pagamento de taxa de justiça e dos demais encargos com o processo e de pagamento de honorários a advogado, e, no dia 7 de Janeiro de 2003, foi-lhe nomeado pela Ordem dos Advogados, para a patrocinar, o advogado E.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 31 de Março de 2004, por via da qual a ré foi absolvida do pedido, dela tendo a autora interposto recurso de apelação, e a Relação, por acórdão proferido no dia 15 de Fevereiro de 2005 negou-lhe provimento.

Interpôs a autora recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- não tendo a recorrida junto à acção a apólice do seguro, não obstante o solicitado pela recorrente, deve ser considerado provado o contrato de seguro nos termos dos artigos 344º do Código Civil e 519º, nº 2, do Código de Processo Civil;
- como a passadeira de peões se localizava numa curva no início da Rua Visconde da Coriscada, D realizou a manobra de forma imprudente e desatenta, sem atender à presença da vítima na passadeira de peões, podendo visualizá-la através do espelho retrovisor direito do veículo;
- D infringiu o disposto nos artigos 12º, 35º e 43º do Código da Estrada;
- o acidente determinou danos morais para a vítima e para a recorrente, cujo montante reclamado é justo e adequado;

- na eventualidade de se admitir ter a vítima sido também responsável pelo acidente, a sua culpa não pode ser considerada superior a dois sétimos;
- a entender-se não provada a culpa da vítima nem a de D, deve resolver-se a questão com base no risco, imputando-se àquela não mais de dois sétimos de contribuição para os danos;
- o acórdão recorrido aplicou incorrectamente os artigos 12º, 35º e 43º do Código da Estrada e 494º, 496º e 508º do Código Civil, 668º e 702º do Código de Processo Civil.

Respondeu a recorrida, B - Companhia de Seguros SA, sucessora da Companhia de Seguros .... SA, em síntese de alegação:
- o Supremo Tribunal de Justiça só conhece de matéria de direito e cumpre-lhe respeitar as ilações extraídas pela Relação em desenvolvimento da matéria de facto, desde que a não altere;
- está provado que D, após se ter apercebido do embate, de imediato imobilizou o veículo sobre a passadeira;
- a recorrente subverte nas alegações de recurso os factos declarados provados.


II
É a seguinte a factualidade declarada provada no tribunal recorrido:
1. A autora, nascida no dia 21 de Abril de 1945, é filha de F, falecido, e de G, única e universal herdeira desta última, que não deixou testamento ou outra disposição de última vontade.

2. No dia 1 de Agosto de 2000, cerca das 16.50 horas, com tempo seco, D conduzia o veículo automóvel pesado de passageiros com a matrícula nº HA na Rua Marquês d´Ávila e Bolama, no sentido Este/Oeste, no interesse e por conta de C, como funcionário daquela, ao seu serviço, a efectuar um transporte público de passageiros.

3. Ao chegar em frente do Restaurante Estrela, D teve que parar por o semáforo ali existente, junto ao entroncamento da Rua Marquês d´Ávila e Bolama a Rua Visconde de Coriscada, ter a cor vermelha.

4. No entroncamento da Rua Marquês d´Ávila e Bolama com a Rua Visconde de Coriscada, quando aquele semáforo passou à cor verde, retomou a marcha lentamente, iniciou a manobra de mudança de direcção para a sua direita, entrando na Rua Visconde da Coriscada, no sentido ascendente e, após descrever a curva, passou a circular nesta última artéria, em direcção ao centro da cidade.

5. A referida rua estava em bom estado de conservação, a faixa de rodagem tinha 11,7 metros de largura e a via de trânsito, atento o sentido do veículo sul-norte, tinha 5,5 metros de largura.

6. No início da Rua Visconde da Coriscada existe uma passadeira de peões em que está localizado, no lado esquerdo, segundo o sentido Sul-Norte, para a assinalar, um sinal luminoso, visível desde o momento em que se passa a circular nessa artéria, que passa a ter cor amarela intermitente sempre que o semáforo existente na Rua Marquês d´ Ávila e Bolama passa a cor verde.

7. G iniciou a travessia na passadeira de peões mencionada sob 6, sem que D se tivesse apercebido, de forma inesperada para ele, e embateu na parte direita da viatura, junto à porta traseira, dando-se o choque entre ela e a parte lateral direita daquela viatura, na passadeira de peões.

8. Só quando o autocarro tinha transposto, parcialmente, aquela passadeira, D ouviu um embate na parte lateral direita do autocarro, não se tendo apercebido de que G avançasse ou se precipitasse contra a parte lateral traseira do veículo.

9. Ao aperceber-se da presença de G a iniciar a travessia, uma passageira, que era transportada no veículo, gritou cuidado, e a primeira tombou no pavimento, ficando prostrada na passadeira entre a parte lateral direita traseira e o rodado lateral traseiro do veículo, a cerca de dois metros do passeio, ali tendo ficado vestígios de sangue devidos ao ferimento causado pelo choque.

10. D, após se ter apercebido do embate provocado pela referida viatura, imobilizou-a de imediato sobre a passadeira.

11. Em consequência do atropelamento, sofreu G factura do membro inferior com rotura da artéria femoral, do arco costal interior das 7ª a 9ª costelas, perfuração do pulmão direito e escoriações de grandes dimensões nos membros inferiores do lado direito, cuja gravidade implicou que ela fosse transportada de ambulância para o Hospital da Cova da Beira, na Covilhã.

12. Naquele Hospital, foi sujeita a tratamentos medicamentosos e radiológicos e a várias picadas de agulhas, os seus membros inferiores foram suturados com 57 pontos, o seu estado de saúde piorou, vindo a falecer cerca das 23:00 horas desse dia 1 de Agosto de 2000, cuja causa foi uma hemorragia grave que lhe provocou falência cardíaca devida à ruptura da artéria femoral do membro inferior direito.

13. Entre o acidente e a morte de G decorreram algumas horas, e teve dores físicas e sofreu moralmente em face do seu estado de saúde e da iminência da morte, tendo-se mantido consciente durante grande parte do tempo, apercebendo-se do seu estado, o que a deixou amargurada e débil em termos psíquicos.

14. À data do evento, G exercia as suas tarefas domésticas, sendo dedicada aos seus amigos e à autora, a sua morte provou nesta sofrimento, dor e desgosto, porque a amava e tinha por ela grande respeito e consideração, existindo entre ambas grande carinho e afecto, a qual e de forma regular a visitava e, desse modo, conviviam, tendo a sua morte implicado que a autora passasse momentos de grande tristeza e consternação, com transtornos de índole psicológica, sendo tal perda irreparável, ficando privada da sua companhia para seu amparo moral.

15. O referido evento deu origem a um processo de inquérito que terminou por despacho de arquivamento.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a recorrida deve ou não compensar a recorrente por virtude do dano não patrimonial decorrente do decesso de G, sua mãe.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação da recorrente e da recorrida, sem prejuízo de a solução a dar a uma prejudicar a solução a dar a outra ou a outras, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- deve ou não considerar-se provado o contrato de seguro celebrado entre C e a recorrida?
- síntese dos factos relativos à dinâmica o acidente;
- especificidade do local do acidente no confronto com os limites com os limites de circulação automóvel e o trânsito de peões;
- estrutura do conceito geral de culpa e distribuição do ónus de prova;
- o condutor da viatura infringiu alguma norma relativa à circulação rodoviária ou agiu com culpa no acto de condução em causa?
- a acção da vítima foi ou não causal do evento que a atingiu?
- têm ou não a recorrentes direito a exigir da recorrida o pagamento de € 60.000, e juros moratórios desde a citação?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela questão de saber se deve ou não considerar-se provado o contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel celebrado entre C e a recorrida.
A recorrente afirmou na petição inicial que C havia transferido para a Companhia de Seguros B, através da apólice nº 2-1-43-71148400, a responsabilidade civil por acidentes de viação com o veículo automóvel matriculado sob o nº HA, e dever a última juntar ao processo cópia da respectiva apólice.
A afirmação da recorrente mencionada em primeiro lugar, não obstante o disposto no artigo 646º, nº 4, do Código de Processo Civil, foi inserida na base instrutória com a menção de só ser susceptível de ser provada por documento.
No requerimento de produção de prova, apresentado no dia 9 de Julho de 2003, a recorrida expressou protestar apresentar a cópia da referida apólice, mas não a apresentou, razão pela qual o referido contrato de seguro não foi declarado provado nas instâncias.
A afirmação da existência do contrato de seguro nos termos em que a recorrente o fez é deficiente, porque tal contrato, como é natural, se reconduz às respectivas declarações negociais, e não à mera referência ao seu efeito jurídico (artigos 426º, nº 3º, do Código Comercial e 498º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Na realidade, como é natural, o que a recorrente pretendeu expressar foi que representantes da Companhia de Seguros B e de C declararam, por escrito consubstanciado na apólice nº 2-1-43-71148400, a primeira assumir, mediante prémio a pagar pela última, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo automóvel com a matrícula nº HA.
O ónus de alegação e de prova do referido contrato de seguro incumbe à recorrente (artigo 342º, nº 1, do Código Civil e 467º, nº 1, alínea d), do Código de Processo Civil).
A regra, porém, é no sentido de que só pode ser provado por via da apresentação do documento que legalmente o titula (artigos 426º, proémio, do Código Comercial e 364º, nº 1, do Código Civil).
A Companhia de Seguros B impossibilitou a recorrente de provar o mencionado contrato de seguro por via da sua omissão do cumprimento do seu dever de cooperação em geral no âmbito do processo (artigos 266º, nº 1, 519º, nº 1 e 528º do Código de Processo Civil).
A respectiva consequência legal é a de se considerar provado o referido contrato de seguro em termos de cobrir o valor do direito de crédito que a recorrente faz valer na acção no confronto da Companhia de Seguros B (artigo 519º, nº 2, do Código de Processo Civil).

2.
Atentemos agora na síntese do núcleo de facto essencialmente relevante concernente aos elementos estáticos e dinâmicos do evento estradal em causa.
No dia 1 de Agosto de 2000, cerca das 16.50 horas, D conduzia o autocarro de transporte público de passageiros com a matrícula nº HA, pertencente a C, no sentido Este/Oeste da Rua Marquês d´Ávila e Bolama, na Covilhã, efectuando um transporte público de passageiros, no interesse e por conta daquela sociedade, ao seu serviço, na qualidade de funcionário dela.
A Rua Marquês d´Ávila e Bolama entroncava na Rua Visconde da Coriscada, onde existia uma passadeira para peões assinalada, no lado esquerdo, sentido Sul Norte, por um sinal luminoso, visível após a circulação nessa artéria.
O referido semáforo emite luz amarela intermitente sempre que o semáforo existente na Rua Marquês d´Ávila e Bolama emita a cor verde, e D parou o autocarro ao sinal vermelho do último dos referidos semáforos, implantado junto ao entroncamento da Rua Marquês d´Ávila e Bolama com a Rua Visconde da Coriscada.
Assinalada a cor verde pelo referido semáforo, D retomou lentamente a marcha do autocarro, iniciou a manobra de mudança de direcção para a sua direita, entrando na Rua Visconde da Coriscada, no sentido ascendente, com destino ao centro da cidade da Covilhã.
G iniciou a travessia na passadeira de peões sem que D disso se tivesse apercebido ou de que ela avançasse ou se precipitasse contra o autocarro.
Naquela passadeira, de forma inesperada para D, G embateu na parte direita do autocarro junto à porta traseira, e o primeiro só ouviu o embate quando o autocarro já tinha transposto parcialmente a passadeira, imobilizando-o de imediato sobre ela.
Ela tombou no pavimento, ficando prostrada na passadeira entre a parte lateral direita traseira e o rodado lateral traseiro do autocarro, a cerca de dois metros do passeio.
Ao aperceber-se do início da travessia da passadeira por G, uma passageira, que era transportada no autocarro, gritou cuidado.
A Relação, naturalmente por via presunção judicial, considerou que G atravessou a passadeira no momento em que a frente do autocarro já a tinha transposto e que nesse momento já não era possível ao seu condutor aperceber-se daquela travessia.

Trata-se de ilação de facto, da competência das instâncias, que este Tribunal, dada a sua competência funcional, não pode sindicar (artigo 729º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

3.
Atentemos agora no regime legal específico da circulação rodoviária aplicável no caso vertente.
Como o evento estradal em causa ocorreu no dia 1 de Agosto de 2000, tendo em conta o disposto no artigo 12º, nº 1, do Código Civil, é aplicável no caso vertente a primitiva versão do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto-Lei nº 114/94, com as alterações decorrentes do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro.
A especificidade do evento em causa decorre do facto de se ter localizado na faixa de rodagem de uma estrada, entre um veículo automóvel que nela rodava e um peão que nela caminhava.
O princípio básico da lei estradal, aplicável à condução automóvel e aos peões, é no sentido de as pessoas deverem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias (artigo 3º, nº 2, do Código da Estrada).
Impedem ou embaraçam o trânsito, por exemplo, os actos que originem a obstrução da via ou impliquem a sua utilização para fins diversos da circulação, e comprometem a segurança ou a comodidade dos utentes, por exemplo, os actos envolvidos por condução imprudente, desrespeitadora das normas estradais, geradora de perigo.
No que concerne aos condutores de veículos automóveis, expressa a lei que não devem iniciar ou retomar a marcha sem assinalarem com a necessária antecedência a sua intenção e sem adoptarem as precauções necessárias para evitar qualquer acidente (artigo 12º, nº 1, do Código da Estrada).
Trata-se do dever geral de qualquer condutor de veículo automóvel quando inicie ou retome a marcha, ou seja, na transposição de uma situação estática para uma situação dinâmica, por via da expressão sinalizadora em tempo útil da respectiva manobra em relação aos restantes utentes das vias e de outras cautelas adequadas, designadamente através da escolha da oportunidade da manobra.
Os condutores só podem efectuar manobras de mudança de direcção, que pressupõe irem ocupar uma via confluente daquela em que seguiam, em local e por forma a que da sua utilização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito (artigo 35º, nº 1, do Código da Estrada).
A propósito da mudança de direcção para a direita, expressa lei que os condutores que a pretendam operar devem aproximar-se, com a necessária antecedência e quanto possível do limite direito da faixa de rodagem e efectuarem a manobra no trajecto mais curto (artigo 43º,do Código da Estrada).
Devem, pois, aproximar-se do limite direito da faixa de rodagem em termos de percurso de menor distância, assinalando com a necessária antecedência a sua intenção por meio de adequado sinal, mantendo-o enquanto efectuam a manobra e anulando-o logo que ela esteja concluída.

Especificamente quanto aos peões, a regra é no sentido de que devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinadas ou, na sua falta, pelas bermas (artigo 99º, nº 1, do Código da Estrada).

A excepção à referida regra é no sentido de que os peões podem transitar pela faixa de rodagem, com prudência e de forma a não prejudicar o trânsito de veículos, além do mais que aqui não releva, quando efectuem o seu atravessamento ou no caso de falta dos elementos acima mencionados ou de impossibilidade da sua utilização (artigo 99º, nº 2, alíneas a) e b), do Código da Estrada).
Mas os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente e, caso o possam, devem fazê-lo o mais rápido possível (artigo 101º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada).
E só o podem fazer nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando não existam a menos de 50 metros, perpendicularmente ao eixo da via (artigo 101º, n.º 3, do Código da Estrada).

4.
Vejamos, ora, o conceito de culpa ou censura ético jurídica em aproximação ao supracitado quadro de facto.
A culpa lato sensu exprime um juízo de reprovação pessoal da acção ou da omissão do agente que podia e devia ter agido de outro modo e é susceptível de assumir as vertentes do dolo ou da mera negligência.
A culpa stricto sensu ou mera negligência traduz-se, grosso modo, na omissão pelo agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, por seu turno, a vertente consciente ou inconsciente.
No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação; no segundo, o agente, embora o pudesse e devesse prever, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil).
O critério legal de apreciação da culpa é, pois, abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal.
O ónus de prova dos factos integrantes da culpa no quadro da responsabilidade civil extracontratual, se não houver presunção legal da sua existência, cabe a quem com base nela faz valer o seu direito (artigos 342º, n.º 1 e 487º, n.º 1, do Código Civil).
Todavia, a actividade de condução automóvel empreendida por D que está em causa enquadra-se, em relação ao seu empregador, C, no conceito de comissão a que alude o artigo 500º, nº 1, do Código Civil.
Nesse quadro, a lei prescreve que a pessoa que conduzir um veículo automóvel por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar não ter havido culpa da sua parte (artigo 503º, nº 3, do Código Civil)
Assim, estamos, no caso vertente, perante uma presunção de culpa na eclosão do evento estradal em análise, com a consequência de se inverter o ónus de prova dos factos relativos à culpa (artigos 350º e 487º, nº 1, do Código Civil).

5.
Vejamos agora se D infringiu alguma norma relativa a circulação rodoviária ou agiu com culpa efectiva ou presumida no acto de condução automóvel em causa que vitimou G.
A conclusão sobre a culpa na produção do evento em análise há-de resultar da dinâmica envolvida pelo autocarro e pela vítima no quadro da realidade estática onde ela ocorreu.
D não se apercebeu da travessia da zona passadeira de peões por G e, ao aperceber-se da colisão entre ela e a parte lateral direita do autocarro que conduzia, imobilizou-o de imediato sobre a zona de passadeira de peões.
A circunstância de D não se ter apercebido da travessia da faixa de rodagem por G, apesar de uma passageira do autocarro, ao constatá-la haver expressado a palavra cuidado, não permite a conclusão de que ele não concentrava a sua inteligência e atenção na condução que fazia, porque, além do mais, se ignora se ele ouviu o referido alerta ou se, tendo-o ouvido, se travasse o andamento daquela viatura de imediato, poderia evitar a colisão que ocorreu.

O facto de a colisão ter ocorrido num ponto da passadeira de peões a cerca de dois metros do passeio não permite a conclusão por presunção de que entre ela e o aludido alerta mediou o tempo em que D devia imobilizar o veículo.
Ignora-se se D visualizou ou não o espaço envolvente na entrada na Rua Visconde da Coriscada através dos espelhos exteriores, bem como se, tendo operado essa visualização, avistaria ou não G de modo a evitar a aludida colisão.

Com efeito, inexiste fundamento legal para infirmar a conclusão de facto a que a Relação chegou no sentido de se não concluir que a vítima fosse visível para D porque a visão traseira através de espelhos laterais comporta ângulos mortos em que as imagens não são perceptíveis.
Ademais, está assente que G atravessou a passadeira no momento em que a frente do autocarro já a tinha transposto e que nesse momento já não era possível ao seu condutor aperceber-se daquela travessia.

Assim, não permite o quadro de facto disponível a conclusão de que D infringiu alguma das normas estradais referidas pela recorrente na actividade de condução automóvel que empreendeu ao manobrar em mudança de direcção em curva para a direita e ao entrar na Rua Visconde da Coriscada sobre a zona de passagem de peões que lá existia.
Acresce, perante o mencionado quadro de facto, não se pode concluir que D tenha omitido, no referido acto de condução implicante do decesso de G, em termos de censura, à luz do disposto no artigo 487º, nº 2, do Código Civil, o seu dever objectivo de cuidado ou que tenha agido com imperícia, imprevidência ou falta de atenção.

6.
Atentemos agora sobre se a acção G foi ou não causal do evento que a atingiu.
Incidia sobre G o especial cuidado na travessia da faixa de rodagem, não obstante o fazer em zona de passagem de peões designada de passadeira, agravado pela circunstância de a mesma se situar na envolvência de entroncamento de vias de circulação automóvel.
Incumbia-lhe, antes de iniciar a travessia da faixa de rodagem, verificar a aproximação de veículos automóveis e a velocidade respectiva, só operando a travessia depois de se certificar de o poder fazer sem perigo de embate ou colisão.
Todavia, ela movimentou-se na travessia da referida passadeira no momento em que a frente do autocarro já a tinha transposto e na altura em que a D já não era possível aperceber-se daquela travessia e, de forma inesperada para ele, embateu na parte direita do autocarro junto à sua porta traseira.
Não tomou, pois, as precauções que se impunham antes de iniciar a travessia da referida passadeira, certo que não ponderou ou avaliou o perigo ou o risco de colisão que gerava ao interferir com a marcha do autocarro conduzido por D.
Com efeito, ao iniciar a travessia faixa de rodagem da estrada nas circunstâncias em que o fez e ao surgir na linha de andamento do autocarro conduzido por D, ela infringiu o disposto no artigo 101º, nº 1, do Código da Estrada, agiu com culpa inconsciente e foi, em suma, a exclusiva causadora do evento em que foi vitimada.
Excluída está, pois, a culpa presumida de D na eclosão do evento legal em análise.

7.
Vejamos agora a sub-questão enunciada em quinto lugar, ou seja, se a recorrente têm ou não direito a exigir da recorrida o pagamento de € 60.000 e juros moratórios desde a citação.
Não é posta em causa no recurso a assunção pela recorrida, por via de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, da obrigação de indemnização resultante do evento letal em análise (artigos 426º do Código Comercial e 5º, proémio, alínea a), 6º, n.º 1 e 8º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro).
Mas o reconhecimento judicial do direito da recorrente a indemnização, no confronto com a recorrida, por virtude da perda do direito à vida por G, dependia de tal resultado haver decorrido, em termos de causalidade adequada, de acção ou omissão imputável a D a título de culpa ou de risco, neste caso se o evento não fosse imputável à vítima (artigos 483º, nº 1, 499º, 503º, nº 1, 505º, 562º e 563º do Código Civil).
Como está excluída a imputação a D do evento em que faleceu G e definida a sua imputação a culpa exclusiva desta última, prejudicada ficou a análise do dano não patrimonial da vítima e da recorrente e do valor da compensação a atribuir à última (artigos 660º, nº 2, 713º, nº 2, e 726º do Código de Processo Civil).

6.
Vejamos, finalmente, a síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados, da dinâmica processual envolvente e da lei.
D não infringiu alguma norma relativa a circulação rodoviária nem agiu com culpa no acto de condução automóvel em causa.
O evento em que pereceu G não lhe é imputável a título de culpa, efectiva ou presumida, ou de risco, mas exclusivamente imputável à primeira, pelo que a recorrente não têm direito a exigir da recorrida a compensação que pediu em juízo no seu confronto.
Ao invés do que a recorrente alegou, a Relação não infringiu o disposto nos artigos 12º, 35º e 43º do Código da Estrada, 494º, 496º e 508º do Código Civil, 668º e 702º do Código de Processo Civil ou em qualquer outro normativo.

Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de dever manter-se o acórdão recorrido.
Vencida no recurso, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como ela beneficia do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, considerando o disposto nos artigos 15º, n.º 1, alínea a), 37º, n.º 1 e 54º, n.ºs 1 e 3, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nºs 1 e 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, inexiste fundamento legal para que seja condenada no pagamento das custas do recurso.
Como o advogado E, nomeado à recorrente no quadro do apoio judiciário, apresentou as alegações no recurso de revista, tem direito a que lhe sejam fixados honorários a suportar pelo Cofre Geral dos Tribunais (artigos 3º, nº 1, 15º, nº 1, 48º, nº 1, 57º, nº 2, da Lei nº 30-E/2000, de 20 de Dezembro, e 51º, nºs 1 e 2, da Lei nº 34/2004, de 29 de Julho.
O quantitativo que lhe é devido corresponde, conforme está fixado na lei, independentemente da simplicidade do recurso, ao valor correspondente a 2,25 unidades de conta (1.3.1. da Portaria nº 1386/2004, 10 de Novembro).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, e fixam-se os honorários devidos ao advogado E no montante de duzentos euros e vinte e cinco cêntimos.

Lisboa, 12 de Julho de 2005
Salvador da Costa,
Ferreira de Sousa,
Armindo Luís.