Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1157
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: URBANO DIAS
Descritores: CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
Nº do Documento: SJ200605180011571
Data do Acordão: 05/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Sumário : Tendo a A. peticionado numa outra acção uma indemnização contra a ora R. com base no incumprimento defeituoso do contrato de empreitada que ambas celebraram, e tendo esta sido julgada improcedente porque não foi respeitado o iter legal respeitante à invocação de defeitos no âmbito de tal contrato, não ofende o julgado anterior a propositura de uma outra acção com base em factos integradores do instituto do enriquecimento sem causa.
Com efeito, se uma acção for julgada improcedente há que distinguir: a causa de pedir só será considerada a mesma se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo; não o sendo assim, só terá constituído causa de pedir a respeitante à norma ou normas identificadas, sendo admissível acção em que se aleguem os elementos em falta.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I -

Empresa-A intentou acção ordinária contra Empresa-B, pretendendo ver declarado que o custo total que suportou com as reparações dos defeitos deixados pela R. Empresa-B numa obra que lhe realizou ascendeu ao montante de 209.832.653$76, declarada a compensação entre um crédito que a R. Empresa-B tem sobre si, de 75.607.862$00, respeitante ao mesmo contrato, e esse montante de 209.832.653$76, e que se condene a R. a restituir-lhe a quantia de 134.224.791$76, acrescida de juros a contar da data da citação.
Em suma, alegou que
- Em 1992, por contrato de empreitada, adjudicou à R. a construção de um edifício na Granja, V.N. Gaia, pelo preço de 538.699.000$00, a qual, no entanto, nem terminou a obra no prazo previsto, nem chegou mesmo a ultimar os trabalhos.
- Em contrapartida, alega que ela própria só não pagou 63.633.240$00 do preço previsto e 11.974.622$00 dos trabalhos "a mais" efectuados no âmbito da mesma empreitada.
- Em razão desse incumprimento contratual da Empresa-B, refere tê-la demandando em acção judicial, onde pediu a respectiva condenação no pagamento de várias quantias correspondentes a atraso na execução das empreitadas; encargos financeiros suportados perante instituições bancárias; custos suportados com reparações e execução de trabalhos em falta, alargados a outros trabalhos que foram efectuados já na pendência da acção judicial e trazidos à acção por ampliação do pedido inicial e a indemnização a liquidar ulteriormente pelos danos causados no seu bom nome comercial e outros prejuízos que pudessem vir a ocorrer.
- Nessa mesma acção, dirigiu-lhe a R. um pedido reconvencional pedindo a sua condenação a pagar-lhe 75.607 contos respeitantes a trabalhos facturados e não pagos, 163.222 contos a título de indemnização por danos, e juros, e uma indemnização a liquidar ulteriormente pelos danos causados no seu bom nome comercial.
- Tal acção veio a ser definitivamente decidida no STJ, que, confirmando o Ac. do T.R.P., condenou a A. Empresa-A no pagamento à R. Empresa-B da quantia que se viesse a apurar em execução de sentença, correspondente à diferença entre o valor peticionado pela R. Empresa-B excluindo os juros - quantia correspondente ao custo dos trabalhos executados pela Empresa-B e não paga pela Empresa-A - e o quantitativo necessário para suprir os defeitos que a R. deixou nas obras por si feitas.
- Tal quantitativo ascendia, no momento do encerramento da discussão em primeira instância, a 209.694.354$00, conforme facturas que juntou.
- Ainda nos termos de tal decisão, a necessidade de descontar, no valor que permanecia em crédito para a Empresa-B, o quantitativo gasto pela Empresa-A para reparar todos os defeitos que ficaram na obra e fossem imputáveis à Empresa-B seria uma exigência de prevenir o locupletamento indevido desta.
Entende a A. que, para realizar esse interesse de impedir o enriquecimento ilegítimo da Empresa-B à sua custa, tem direito a operar a pretendida compensação, bem como a ver restituídas, das quantias que já pagou, aquelas que foram necessárias para custear as reparações dos defeitos imputáveis à R., na medida em que a existência destes defeitos tornaram aqueles pagamentos indevidos, para o que concluiu ser adequada esta acção.

A R. contestou e, inter alia, arguiu a excepção do caso julgado, alegando que a pretensão que a Empresa-A aqui deduz já foi deduzida e improcedeu na acção cuja decisão final ela agora invoca e interpreta parcialmente. Com efeito, já nessa acção havia sido decidido que a Empresa-A não tinha direito às despesas com as obras de reparação dos defeitos que realizou em vez da Empresa-B, direito que ela agora pretende discutir novamente. E além de serem idênticos, naquela e nesta acções, as partes e os pedidos, também o é a causa de pedir (descrita como a responsabilidade contratual decorrente do contrato de empreitada celebrado entre as partes), não podendo a Empresa-A recorrer, mesmo de forma subsidiária, ao regime do enriquecimento sem causa para ver satisfeita a sua pretensão. Assim, e interpretando a decisão proferida na referida acção, jamais poderá a Empresa-A obter o reembolso de quaisquer quantias pagas, já que essa pretensão indemnizatória lhe foi ali expressamente indeferida.
Por outro lado, só em incidente prévio de liquidação em execução de sentença, poderia a Empresa-A obter a realização do direito que a decisão final do STJ lhe reconheceu.

Na réplica, a A. contrariou a defesa excepcional da R..

Em sede de saneador, a excepção de caso julgado foi julgada improcedente com o argumento de as causas de pedir de uma e outra acções serem diferentes.
Aí foi dito, em abono de tal posição, que na primeira acção não foram alegados os factos integradores das normas que disciplinam o enriquecimento sem causa, "como sejam «os factos integradores do enriquecimento do R. e do seu próprio empobrecimento» (...), e os factos que foram alegados naquela e nesta acção - defeitos na obra e custo da reparação dos mesmos - não o foram sob o mesmo enfoque funcional."
E, já depois de ter sido julgada improcedente a arguida excepção de caso julgado, em jeito de comentário sobre a situação emergente do julgado na primeira acção, o Mº juiz não deixou de notar que aí se reconheceu que só com apelo ao instituto do enriquecimento sem causa se alcançaria a justa composição do litígio.
Assim, de acordo com a decisão proferida na primeira acção, a referida composição do litígio "só se alcançaria pelo reconhecimento à A. do direito de ver descontado naquilo que teria que pagar à R. Empresa-B o quantitativo necessário para suprir os defeitos que a Ré deixou nas obras por si feitas, ..., sob pena desta alcançar um injusto locupletamento à custa da A.."

Desta decisão, recorreu de agravo a R., recurso que subiu com os interpostos da sentença.

O Tribunal da Relação do Porto, conhecendo em 1º lugar o mérito do agravo, revogou o saneador, julgando existir ofensa de caso julgado e, consequentemente, julgou prejudicada a apreciação das apelações.

Com esta decisão não se conformou a A. que apresentou recurso de agravo para este Supremo Tribunal, pedindo a revogação do julgado pela Relação, tendo, para o efeito, apresentado as respectivas alegações que concluiu do seguinte modo:
- Discute-se nos presentes autos se é procedente a excepção dilatória de preterição de caso julgado, com referência às decisões proferidas numa acção proposta pela Empresa-A em 1994 contra a Empresa-B;
- A resposta do acórdão da Relação do Porto agora impugnado foi no sentido de procedência dessa excepção deduzida pela R. Empresa-B, sendo absolvida esta da instância;
- A ora Agravante discorda do acórdão e da sua fundamentação, a qual decorre de uma certa interpretação do acórdão da Relação do Porto proferido na primeira acção e no entendimento de que há repetição de acção por serem os mesmos os factos integradores da causa de pedir nas duas acções;
- A verdade é que o raciocínio do acórdão ora impugnado está afectado por uma incongruência patente com a realidade porque supõe, erroneamente que o anterior acórdão da Relação do Porto de 1998 limitara o desconto da menos-valia ao valor das facturas da Empresa-B por ela ajuizadas aos defeitos nas obras correspondentes aos trabalhos a que se referiam tais facturas;
- A verdade é que a Relação do Porto teve ocasião de esclarecer, em acórdão que incidiu sobre um pedido de aclaração formulado pela Empresa-B, que o desconto da menos-valia abrangia não só os defeitos nas obras já executadas e cujas facturas haviam sido pagas pela Empresa-A como ainda os defeitos nos trabalhos cujas facturas estavam por pagar;
- Não só devido a este erro de base causador da incongruência com a realidade, mas também por causa da restante fundamentação dele constante, este acórdão não pode subsistir e deve ser revogado em segunda instância;
- Embora tendo como referência normas de direito substantivo, a causa de pedir não é um somatório de factos abstractos, mas a súmula de factos concretos invocados pela demandante, susceptíveis de produzir o efeito jurídico esperado;
- Não se confunde uma acção destinada a obter a condenação do demandado na indemnização por danos causados pela contraparte na execução de um contrato de empreitada, seja por incumprimento parcial, seja por cumprimento defeituoso, com uma acção em que não se invoca já a subsistência do contrato, mas a desistência do dono da obra, e o enriquecimento do empreiteiro por poupança das despesas que deveria ter feito para reparar os defeitos por si deixados nas obras realizadas;
- Num caso, o complexo fáctico invocado pelo autor deve abranger necessariamente o acto ilícito do contraente, os danos provocados e o nexo de causalidade que liga os danos a esse acto; no caso de uma acção de enriquecimento sem causa, são outros os factos que têm de ser invocados como causa de pedir: o enriquecimento duma pessoa, a injustificação desse enriquecimento, e a correlação do enriquecimento como o empobrecimento. O único elemento comum com a primeira acção é o dano, o qual será menos amplo no caso do enriquecimento visto que o mesmo se reduz ao empobrecimento do afectado;
- No caso sub judice, a Empresa-A pretende, para além do desconto da menos-valia até ao limite do valor das facturas (o qual a Relação do Porto, na primeira acção, entendeu não poder fixar, por não poder condenar a R./reconvinte), que seja descontado aos pagamentos por si feitos à Empresa-B os montantes dos gastos com a eliminação de todos os defeitos, tal como foi o entendimento daquele tribunal;
- A causa de pedir na primeira acção circunscreveu-se à pretensão de indemnização por violação contratual, mas não se estendeu à pretensão de indemnização com base no enriquecimento da Empresa-B, após a desistência unilateral da empreitada pela Empresa-A;
- Não pode, por isso, subsistir a ideia constante do acórdão sob impugnação de que não se verifica o pressuposto de subsidiariedade constante do art. 474.° CC;
- A Empresa-A não pretende, assim, nesta segunda acção "maquilhar" a nova causa de pedir que seria a mesma da anterior acção;
- Não há, pois, ofensa do anterior caso julgado;
- O acórdão sob impugnação é ilegal, mostrando-se violado o n.° 4 do art. 498.° CPC, atendendo à interpretação e aplicação do mesmo feita neste acórdão;
- O mesmo acórdão é ainda ilegal porque assenta a sua fundamentação na mencionada incongruência com a realidade.
- Aliás, o art. 498.°, n.° 4, CPC, na interpretação acolhida pelo acórdão recorrido, viola a garantia constitucional do acesso aos tribunais (art. 20.°, n.° l, da Constituição) da parte que pretende obter a condenação da outra com base no ressarcimento do enriquecimento sem causa desta última, uma vez que o caso julgado formado na primeira acção se estende a factos diversos alegados pela primeira vez na segunda acção.

A agravada, por sua vez, contra-alegou, defendendo a manutenção do acórdão impugnado.

II -

Com vista à decisão proferida relativamente à excepção do caso julgado, foram considerados os factos constantes da petição, em conjugação com os seguintes outros referentes à acção anterior:
- A A. demandou a R., a Empresa-C, Empresa-D e o Empresa-E, numa acção declarativa de condenação com processo ordinário, que correu termos pelo Tribunal Judicial de Círculo de Santa Maria da Feira sob o número 819/94;
- Nessa acção judicial, a A. pediu a condenação da R. no pagamento 381.771.124$00 (trezentos e oitenta e um milhões, setecentos e setenta e um mil, cento e vinte e quatro escudos), sendo
- 124.110.770$00 (cento e vinte e quatro milhões, cento e dez mil, setecentos e setenta escudos) a título de indemnização pelo atraso na execução das empreitadas;
- 47.966.000$00 (quarenta e sete milhões, novecentos e sessenta e seis mil escudos) por encargos financeiros suportados perante instituições bancárias causados pelo recebimento tardio das quantias referentes ao preço das fracções que a A. havia prometido vender devido ao atraso na conclusão das obras, quantias essas que ascendiam aos 200.320.000$00 (duzentos milhões e trezentos e vinte mil escudos);
- 59.126.99 J $00 (cinquenta e nove milhões, cento e vinte e seis mil, novecentos e noventa e um escudos) por reparações e execução de trabalhos em falta que a A. teve que despender, pagando a outros empreiteiros;
- 150.567.363$16 (cento e cinquenta milhões, quinhentos e sessenta e sete mil, trezentos e sessenta e três escudos e dezasseis centavos), por reparações e execução de trabalhos em falta que foram efectuados já na pendência da acção judicial e objecto de ampliação do pedido formulado na acção referida em h) e i);
- quantia, à data da propositura da acção não liquidada, que viesse a apurar-se em execução de sentença e que era devida pela R. à A. a título de reparação dos danos causados no bom nome comercial da A. seriamente afectado por culpa da R., por trabalhos em falta e reparações de trabalhos feitos pela R. ainda por realizar e outros danos que havia sofrido e que àquela data não eram passíveis de liquidação, bem como prejuízos que continuava a sofrer e que viesse a sofrer como consequência da conduta da R.;
- A R. contestou e deduziu reconvenção, peticionando:
- 75.60 7.862$00 (setenta e cinco milhões, seiscentos e sete mil, oitocentos e sessenta e dois escudos), montante correspondente ao valor das facturas emitidas e em dívida, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos;
- 163.322.511$00 (cento e sessenta e três milhões, trezentos e vinte e dois mil, quinhentos e onze escudos) a título de indemnização por danos liquidados causados pela A. à R. acrescidos de juros de mora;
- quantia não apurada à data da contestação da acção devida pela A. a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos em virtude da afectação da imagem comercial da R., cuja liquidação se relegou para execução de sentença;
- Tanto a R. Empresa-B como a A. Empresa-A foram absolvidas dos pedidos na primeira instância;
- A fundamentação do acórdão foi, em síntese, a seguinte:

Quanto ao pedido da A. Empresa-A:
-A A., lesada com a deficiente execução da obra por parte da R. Empresa-B, para se ressarcir dos seus prejuízos, deveria ter respeitado a ordem estabelecida pelos artigos 1221. ° a 1223. ° do Código Civil - o que, na opinião do colectivo de Juízes do Tribunal de Círculo de Santa Maria da Feira, não aconteceu, já que em lugar de ter fixado um prazo razoável à R. para que esta eliminasse os defeitos, em 13 de Janeiro de 1994, por sua iniciativa, impediu-a de continuar a obra;
- Ao avançar para a sua reparação, a A. Empresa-A agiu por sua iniciativa, com os riscos daí inerentes;
-A A. Empresa-A limitou-se a pedir uma indemnização - assim sendo, o pedido indemnizatório por ela formulado improcede na totalidade.

Quanto ao pedido reconvencional:
- Entendeu o colectivo de Juízes que não fora feita qualquer prova no que dizia respeito à afectação da imagem comercial da R. Empresa-B, não sendo atribuída qualquer indemnização nessa matéria;
- No que concerne e às quantias em dívida pela A. Empresa-A, estas correspondem a trabalhos mal executados pela R. empreiteira;
- Acresce que a R. Empresa-B deveria ter provado que o não cumprimento do prazo contratual da empreitada teria sido unicamente imputável à A. Empresa-A, o que não aconteceu;
- À luz do preceituado no artigo 428.°, n. ° l do Código Civil, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe - de modo algum a R. Empresa-B efectuou o que lhe competia, podendo a A. Empresa-A recusar, por isso, o pagamento;
- Não se conformando com a decisão proferida, tanto a A. Empresa-A como a R. Empresa-B apresentaram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, cujo acórdão de 3 de Dezembro de 1998 alterou, em parte, a decisão recorrida, tendo determinado a procedência parcial do recurso apresentado pela R., de acordo com conclusões que se transcrevem:
A R. pretende ter cumprido o contrato (o que não corresponde à matéria provadas; só em parte assim é). (...)
(...) embora a saída da obra e suspensão dos trabalhos só à A. seja imputável, o certo é que a R. executou com defeito variadíssimos trabalhos, conforme extensa numeração feita (...).
Porém, nenhuma incompatibilidade existe entre a possibilidade de o dono da obra abandonar a todo o tempo o projecto da sua execução para o futuro (ou pretender mudar de empreiteiro, ou de executar a obra por si) e a validade das obrigações antecipadas, bem como das sanções convencionadas pelas partes - ao abrigo do princípio básico da liberdade contratual (artigo 405°, n° l e 406° ambos do Código Civil) -para as faltas negociais cometidas por qualquer dos contraentes antes que o autor da encomenda, no ; o uso da faculdade excepcional que a lei lhe confere, dela tenha desistido - (...).
Temos, assim, que não se pode deixar de considerar a realidade subjacente, ou seja, que entre A. e R. foi celebrado um contrato de empreitada, aliás vultoso (de montante superior a meio milhão de contos), para a execução de cinquenta apartamentos, e que no âmbito de tal contrato foram feitas muitas e valiosas prestações mútuas, e outras, de montante igualmente elevado, ficaram por fazer, devendo dar-se uma solução ao litígio que tenha em conta a realidade factual apurada, no respeito pêlos interesses da vida, de que o Direito é mero instrumento, atendendo-se, na medida do possível, às prestações ainda não feitas ou só parcial ou deficientemente executadas por aquelas A. e R. entre si, em ordem ajusta composição do litígio, e com observância da letra e do espírito da lei - cfr. Artigo 9. °, maxime n. ° 3 do C.C..
Assim, devendo a A. pagar à R. Empresa-B, como referido, os gastos, trabalho e proveito que tiraria da obra (tendo em conta o alegado e pedido - artigo 661. °, n. °s l e 2 do Código do Processo Civil), também haverá de lhe ser descontado a menos valia decorrente do cumprimento defeituoso, como assinalado, sob pena de, assim não se decidindo, se verificar um locupletamento indevido da R. Empresa-B, ou, inviabilizando-se as pretensões de ambas as partes, cair-se-ia num inadequado non liquet proibido por lei e ofensivo da justa composição do litígio - cfr. artigo 8. ° do Código Civil e 156. °do Código do Processo Civil.
Não são de fixar juros de mora, devido ao facto de a obrigação ser ainda ilíquida, mercê dos defeitos da obra, não sendo exigível da A. o seu pagamento integral - cfr. artigo 805. °, n.° 2 do Código Civil. (...)
(...) Decisão:
l ° Absolver a R. Empresa-B do pedido, mantendo-se a absolvição das demais Rés garantes;
2°- Condenar a A. no pagamento à R. da quantia que se vier a apurar em execução da sentença, correspondente à diferença entre o aqui peticionado, em sede de recurso, excluindo os juros, e o quantitativo necessário para suprir os defeitos que a Ré deixou nas obras por si feitas, acima descritos, absolvendo-a do demais pedido.";
- Ao pedido de aclaração da R. Empresa-B, o Tribunal da Relação do Porto decidiu:
(...) "E claro que não se trata, aqui, apenas dos defeitos reportados ao n° 142 da matéria apurada.
O acórdão refere-se aos defeitos que a Ré deixou nas obras por si feitas, (não a alguns defeitos, mas sim a todos), alguns deles, aliás, já reparados pela Autora, outros não (v. designadamente, n°s 21) a 54) e, ainda, 55), 56), 57), 58) e 142) da matéria apurada).
Só considerando todos os defeitos da obra imputáveis à Ré, é que se obtém o equilíbrio das prestações possível (dentro das contingências do processo) propugnado no acórdão. " (...)- Doc. de fls. 541 a 544 dos autos;
- Do acórdão da Relação do Porto foi interposto recurso para o S.T.J., restrito ao ponto n° 1 da condenação, que todavia o julgou improcedente, aí se argumentando designadamente que:
Como bem entendeu o acórdão recorrido, o procedimento da A. no sentido de não continuar ligada à Ré, deve entender-se como a desistência da empreitada que, a todo o tempo, é uma faculdade que assiste ao dono da obra, nos termos do artigo 1229°, do que resultam as consequências jurídicas previstas na referida norma, que, não impugnadas no âmbito do presente recurso, foram, todavia, objecto de análise pelo acórdão da Relação.
Resulta do exposto que improcede o recurso quanto à pretendida condenação da Recorrida em indemnização resultante do cumprimento defeituoso da empreitada.

III -

Resulta das conclusões da agravante que a verdadeira questão que é colocada à nossa consideração é somente a de saber se com a propositura da presente acção há ou não ofensa de caso julgado.
A questão está apenas restringida a saber se nas duas acções - ou seja na que a A. intentou em Santa Maria da Feira e ora nesta - há ou não identidade da causa de pedir.
Com efeito, não se discute, antes se aceita, que tanto numa como noutra acções há identidade de pedidos e de partes.

Antes de respondermos à questão delicada de saber se há uma verdadeira identidade de causa de pedir entre a 1ª acção proposta pela A. contra a R. e a presente acção, importa, como é óbvio, analisar os verdadeiros termos em que as duas acções assentaram.

Na 1ª acção, a A. pediu a condenação da R. no pagamento de uma importância correspondente à indemnização a que se julgava com direito por via do cumprimento defeituoso do contrato de empreitada que com esta tinha celebrado.
A A. não logrou obter ganho de causa pela singela razão de não ter seguido o iter legal que a regulamentação do contrato de empreitada, tal como está definido nos arts. 1220º e ss. do C. Civil, exige.
Mas, neste outra acção a A. pretende obter o pagamento do quantitativo correspondente ao que a R. acabou por ganhar por força de não ter cumprido o contrato, acabando por ser ela a empobrecida na justa medida em que teve de reparar o que de mau ficou feito na obra.
Ou seja, nesta 2ª acção, a A. apelou para o instituto de enriquecimento sem causa previsto no art. 473º do C. Civil, fazendo corresponder a medida do enriquecimento da R. com o seu empobrecimento pelo facto de esta não ter honrado o compromisso assumido.

Balizados, em termos mui sintéticos, os fundamentos de uma e outra acções, bem se poderia, desde já, dizer que se nos afigura que não se pode falar em identidade de causas de pedir.
Mas, antes de emitirmos um juízo final sobre tal problemática, imperioso se torna recorrer aos princípios informadores do caso julgado e, concretamente, da causa de pedir, para, então sim, estarmos habilitados a decidir com toda a segurança possível.

Alberto dos Reis, citando Baudry e Barde, ensina-nos que "a causa de pedir é o facto jurídico que constitui o fundamento legal do benefício ou do direito, objecto do pedido; é o princípio gerador do direito, a sua causa eficiente, a origo petionis."
E, desde logo adverte, apoiando-se em Chiovenda, que "há que repelir, antes de mais nada, a ideia de a que a causa petendi seja a norma de lei invocada pela parte. A acção identifica-se e individualiza-se, não pela norma abstracta da lei, mas pelos elementos de facto que converteram em concreto a vontade legal" (in Código de Processo Civil anotado, Volume III, pág. 121).

Anselmo de Castro, depois de reconhecer que a nossa lei - art. 498º, nº 4 do C.P.C. - consagra a chamada teoria da substanciação, de salientar que a lei consagra diversos conceitos de causa de pedir, acaba por reconhecer que para efeitos de caso julgado a noção consagrada é a que está referida ao acontecimento concreto ("aqui, a noção de causa de pedir está referida ao acontecimento concreto"), ao passo que, por exemplo, no que toca à alteração superveniente da causa de pedir e litispendência a causa de pedir é referida a categorias abstractas (in Direito Processual Civil Declaratório, Vol. I, pág. 207 e ss.) (Lebre de Freitas diverge neste ponto concreto a proclamar que - "A inclusão desta definição numa norma sobre a litispendência e o caso julgado não lhe retira o alcance geral: a causa de pedir a que se refere o art. 498º-4 do C.P.C. serve tanto à delimitação do âmbito do caso julgado (...) e da litispendência como à configuração do objecto do processo" - apud A Confissão no Direito Probatório, pág. 39, nota 35).

Aqui chegados, podemos dizer que os factos concretos alegados pela A. são diferentes numa e noutra acções, impedindo, deste modo, o efeito do caso julgado.
A esta mesma conclusão chega Miguel Teixeira de Sousa, ao analisar as chamadas relações de concurso:
"...
Se, contudo, os factos forem distintos - isto é, se as causas de pedir se referirem a factos diferentes -, a excepção de caso julgado não pode operar", havendo, contudo que distinguir entre as hipóteses em que a improcedência da acção obstou a que se tenha produzido o efeito pretendido pelo autor e aquelas em que da procedência da acção já resultou a produção desse efeito", sendo que "na eventualidade de a acção relativa ao objecto concorrente ter sido improcedente, não existe, em princípio, qualquer obstáculo à admissibilidade de uma segunda acção" (assim, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 576 e 577).
Em perfeita sintonia, podemos ler em Lebre de Freitas e Outros, ao referirem-se concretamente ao concurso aparente de normas:
Mas, sendo a acção improcedente, há que distinguir: a causa de pedir só será considerada a mesma se o núcleo essencial dos factos integradores da previsão das várias normas concorrentes tiver sido alegado no primeiro processo; não o sendo assim, só terá constituído causa de pedir a respeitante à norma ou normas identificadas, sendo admissível acção em que se aleguem os elementos em falta".
E, dando exemplos, importa-nos respigar um em particular:
"Se o autor tiver perdido a acção de responsabilidade civil, contratual ou extracontratual, poderá pedir a condenação do mesmo réu na restituição do que lhe for devido a título de enriquecimento sem causa, desde que, naquela acção, não haja invocado os factos integradores do enriquecimento do réu e do seu próprio empobrecimento" (in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, pág. 324 e ss.).

Ainda a este respeito, é importante realçar a posição de Mariana França Gouveia:
"A causa de pedir, para efeito de excepção de caso julgado é, ..., definida através dos factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada".
E, mais à frente, precisa:
"...para o caso julgado, na sua vertente de excepção, a causa de pedir é definida através do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada. Uma acção posterior será barrada pela excepção do caso julgado quando os mesmos factos reconhecidos como provados são os únicos alegados, mesmo que a norma invocada seja diferente. Estes factos principais enquadram apenas os que servem de fundamentação ao pedido, o que tem como consequência que, propondo o réu acção de sentido contrário, basta a identidade de factos constitutivos do direito do autor que o réu alega (para logo de seguida invocar a excepção) para que haja identidade de causa de pedir.
Na sua vertente de autoridade, a causa de pedir define-se exactamente da mesma forma, ou seja, enquadra todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente, que possam ser aplicadas em conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada. O que significa que as decisões sobre estes factos constitutivos terão autoridade de caso julgado em acções posteriores com objectos diferentes" (in A Causa de Pedir na Acção Declarativa, pág. 493 e 509).

Isto posto, podemos já dizer que merece inteira concordância nossa a tese defendida pela agravante.
Na verdade, "não se confunde uma acção destinada a obter a condenação do demandado na indemnização por danos causados à contraparte na execução de um contrato de empreitada, seja por incumprimento parcial, seja por cumprimento defeituoso, com uma acção em que não se invoca já a subsistência do contrato, mas a desistência do dono da obra, e o enriquecimento do empreiteiro por poupança das despesas que deveria ter feito para reparar os defeitos por si deixados nas obras realizadas" (conclusão 8ª).

Não podemos, pois, deixar de manifestar a nossa discordância com a posição defendida e adoptada pelo Tribunal da Relação do Porto.
Com efeito, no aresto sob censura, escreveu-se, além do mais o seguinte para justificar a consagração do caso julgado ao caso concreto em análise:
"..., a autora deixou já fazer valer em anterior acção os mesmos direitos aqui reclamados, invocando o mesmo circunstancialismo concreto, o cumprimento defeituoso do contrato de empreitada celebrado com a ré. E as regras próprias desse contrato específico permitiam-lhe alcançar a sua pretensão, permitindo-lhe ser ressarcida dos prejuízos sofridos. Só que foi negada essa pretensão por carência de suporte jurídico".
Ou seja, para a Relação do Porto, invocado o contrato de empreitada uma vez que seja, não mais é permitido invocá-lo em juízo com vista a obter, ainda que por motivos diferentes, o reconhecimento de um direito.
Um exemplo comezinho permite-nos demonstrar a falência de tal teoria.
Pense-se, desde logo, nas acções de divórcio. Caso o A. (ou o R. em via reconvencional) não obtivesse ganho de causa, não mais poderia obter a desvinculação do seu cônjuge porque o seu pedido tinha sido já indeferido e com base, naturalmente, no contrato de casamento.
E, mais:
Levando a consagração da tese defendida no aresto sob censura às últimas consequências, não faria sentido a al. a) do nº 1 do art. 274º do C.P.C. - "quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção" -, pois, é aí flagrante que a uma única causa de pedir (os mesmo fundamentos de facto) podem sustentar dois pedidos, o principal e o reconvencional
Não pode ser!
Di-lo, de forma bem clara, Alberto dos Reis:
"Temos várias vezes acentuado que a causa de pedir nada tem a ver com a qualificação jurídica do facto ou factos submetidos à apreciação do tribunal; a causa de pedir está no facto oferecido pela parte, e não na valoração jurídica que ela entenda atribuir-lhe".
E, mais à frente, citando Chiovenda:
"A causa petendi não é a norma abstracta de lei invocada pela parte, mas o facto que se alega como expressão da vontade concreta da regra legal; "quando se muda somente o ponto de vista jurídico, não se evita a excepção do caso julgado" (obra citada, pág. 127).
Isto mesmo também é sublinhado por Lebre de Freitas e Outros:
"A qualificação jurídica dada aos factos na primeira acção nunca é elemento identificador do caso julgado, estando vedada nova acção em que aos mesmos factos se atribua uma nova qualificação" (obra citada, pág. 325).
In casu, não se mudou com a presente acção o ponto de vista jurídico, nem a simples qualificação jurídica. Não, invocou-se, pelo contrário, o locupletamento do empreiteiro à custa do dono da obra - daí que não se possa falar em caso julgado: os factos alegados são, ora, outros, a causa de pedir é diferente.
Por isso mesmo, não se pode falar em ofensa do caso julgado com a instauração da presente acção.

Mas, algo há mais a dizer.
Se esta 2ª acção intentada pela A. contra a R. não briga com o caso julgado, como já vimos que não, à luz das considerações supra expostas, o certo é que, in casu, há boas razões para chegar a tal conclusão seguindo um outro caminho.
Na verdade, lendo bem o acórdão da Relação do Porto, proferido na 1ª acção, na parte transitada em julgado, fácil é de concluir que a A. nada mais fez do que seguir o caminho aí apontado.
É que, naquela outra acção, a aqui R. deduziu pedido reconvencional, pedindo o pagamento do montante correspondente a facturas ainda não pagas.
E muito embora, tal pedido tenha sido julgado improcedente em 1ª Instância, o certo é que a Relação deu guarida ao mesmo na medida em que condenou a A. no pagamento da quantia a apurar em liquidação de sentença, correspondente à diferença entre o então peticionado e o quantitativo necessário para suprir os defeitos que a R. deixou nas obras por si feitas, sendo que, a pedido de esclarecimento deste última, aquela instância, aclarou o alcance do julgado, dizendo que só considerando todos os defeitos da obra imputáveis à R. é que se obtém o equilíbrio das prestações.
Traduzido o alcance do 1º julgado, por outras palavras, forçoso é concluir que a Relação do Porto reconheceu que, malgrado as portas se terem fechado à A. em relação à sua pretensão de indemnização, por se ter verificado que houve desistência da sua parte no contrato ajuizado, uma outra via lhe restava, qual fosse a da invocação do instituto do enriquecimento sem causa e por modo a evitar o desequilíbrio das prestações de ambas as partes.
Teremos, deste modo, de reconhecer que a A., ao intentar esta 2ª acção, nada mais fez do que respeitar o julgado anterior.

Ora, foi isso que, efectivamente, aconteceu: a presente acção teve por base a alegação de factos integradores do instituto do enriquecimento sem causa.
Esta acção nada tem a ver com a primeira, onde a A. pretendeu ver consagrado o direito a uma indemnização pelo cumprimento defeituoso do contrato, ou seja, pelo chamado interesse contratual positivo, mas viu essa pretensão ser-lhe negada por não ter seguida a via própria do contrato de empreitada no tocante à invocação de defeitos na obra e suas consequências.
Aqui, a A. veio dizer que, com o estado em que a obra ficou, a R. acabou por enriquecer à sua custa e na medida em que teve se suportar despesas resultantes do estado em que esta deixou a obra.

Argumentou, ainda, a Relação, em abono da sua posição de repúdio da pretensão da A., que esta invocava o instituto do enriquecimento sem causa e que este instituto tem natureza residual.
É um facto que o enriquecimento sem causa nos surge como uma solução de último recurso: o art. 474º do C. Civil é bem claro a este respeito
"Não há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido um outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento".
Mas - pergunta-se - que outros meios tem a A. ao seu alcance com vista a equilibrar a situação criada pela desistência da empreitada, sob pena de ela não ficar empobrecida precisamente porque, correlativamente, a R. se enriqueceu?
Sinceramente, não vemos outro meio.
Também este argumento não procede.
Mas, mesmo que procedesse, sempre se poderia - e deveria dizer - que o mesmo nada tem a ver com o instituto do caso julgado.
O caso julgado é, como se sabe, uma excepção dilatória e a mesma verifica-se desde que haja identidade de sujeitos, de causas de pedir e de pedidos (cfr. art. 494º, nº 1, al. i) e 498º do C.P.C.), não estando sujeita, naturalmente, à natureza dos institutos que servem de base às pretensões em confronto, seja ela subsidiária ou não.

Em conclusão:
Tendo a A. peticionado numa outra acção uma indemnização contra a ora R. com base no incumprimento defeituoso do contrato de empreitada que ambas celebraram, e tendo esta sido julgada improcedente porque não foi respeitado o iter legal respeitante à invocação de defeitos no âmbito de tal contrato, não ofende o julgado anterior a propositura de uma outra acção com base em factos integradores do instituto do enriquecimento sem causa.

Procede na totalidade a tese trazida à nossa consideração pela agravante.


IV -

Em conformidade com o exposto, decide-se, no provimento do agravo, revogar a decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, ordenando a baixa dos autos àquela instância com vista à apreciação do mérito das apelações.
Custas pela agravada.

Lisboa, 18 de Maio de 2006
Urbano Dias
Paulo Sá
Borges Soeiro