Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5470/09.9TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: NUNES RIBEIRO
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
TRANSMISSÃO DE DIREITO REAL
EFICÁCIA REAL
CONSTITUTO POSSESSÓRIO
FALTA DE ENTREGA
INVESTIDURA NA POSSE
POSSE
DESOCUPAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 01/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Doutrina:
- ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 7.ª ed, 527 e ss.
- ANTUNES VARELA, Das obrigações em Geral, 10.ª ed. vol. I, 620/621.
- CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, vol. II, 174.
- PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito das Obrigações - Contratos, 34.
- PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, “Código Civil” Anotado vol. II, 172.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 408.º, N.º 1, 879.º, AL. B), 1264.º, N.ºS 1 E 2, 1305.º, 1311.º, 1316.º, 1317.º, AL. A).
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 576.º, N.º 2, 577.º, AL. E).
Sumário :
I - O direito de propriedade adquire-se, designadamente, por contrato (art. 1316.º do CC). E tratando-se do normal contrato real quoad effectum a propriedade transfere-se/adquire-se como efeito imediato do negócio jurídico, como resulta dos arts. 408.º, n.º 1 e 1317.º, al. a), do CC.

II - A entrega da coisa objecto de um contrato de compra e venda ou a investidura do comprador na sua posse efectiva não ocorre só pela tradição material ou simbólica da mesma. Esta investidura pode fazer-se também através do constituto possessório.

III - É ao proprietário que a lei atribui de modo pleno e exclusivo os direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (art. 1305.º do CC). Sendo, pois, ele quem, em conformidade com o disposto no art. 1311.º do CC, pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição dela.

IV - Só ao proprietário, enquanto titular do direito violado – e já não ao transmitente que consentiu a permanência de terceiro no imóvel por mera tolerância – cabe pedir a reposição do imóvel no estado em que se encontrava à data da respectiva aquisição ou o crédito por eventuais indemnizações pela violação desse direito, nomeadamente, por prejuízos decorrentes da tardia desocupação do prédio.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

 AA, L.da, com sede na Rua ....., nº ....., bloco ..., freguesia de Venteira - Amadora, intentou acção declarativa comum contra BB ".........", L.da, com sede na Rua Dr. ............, nº............ Aquiparque, Miraflores, Algés, pedindo a condenação desta:

a) - a entregar o imóvel descrito na petição inicial, com o pagamento de € 45.000,00 por cada mês, desde 30.06.2008 até à efectiva desocupação do mesmo, sendo que na data da instauração da acção se encontra em dívida a quantia total de € 598.181,93;

b) - a pagar-lhe € 45.000,00 por cada mês, desde 01.07.2008 até à efectiva desocupação do imóvel, pelos prejuízos causados pela ré, por vir inviabilizando o cumprimento do contratualmente estabelecido entre a autora e a CC, que na data da instauração da ação ascendem a € 598.181,93;

c) - a repor integralmente o imóvel no estado em que o mesmo se encontrava na data da sua alienação à autora, suportando todos os encargos com a reposição dos materiais, na execução do projecto e respectivo licenciamento, com a reposição dos materiais, a execução das obras e com a fiscalização das mesmas por perito a indicar por ela, autora, tudo a liquidar em sede de execução de sentença;

d) - ou, em alternativa ao referido na alínea anterior, no pagamento do montante necessário à reposição dos materiais em ordem a repor o imóvel nas mesmas condições e estado de conservação em que se encontrava à data da celebração da escritura de compra e venda, o que se estima em € 783.451,90, dos quais € 433.451,90 pela reposição do interior e exterior dos edifícios, e € 350.000,00 pela reposição do pavilhão desmontado, e ainda todos os encargos com a execução do projecto e respectivo licenciamento, com a execução das obras e a fiscalização das mesmas por perito a indicar por ela, autora, a liquidar em sede de execução de sentença;

e) - a pagar € 45.000,00 por cada mês até a conclusão das obras necessárias à reposição integral da situação existente à data da celebração da escritura pública de aquisição, a liquidar também em sede de execução de sentença;

f) - a pagar uma indemnização em montante não inferior a € 25.000,00 pela violação dolosa dos deveres de manutenção e conservação.

 Alegou, para tanto, em síntese, que é uma sociedade que tem por objecto, designadamente a actividade de compra e venda de imóveis, tendo, no exercício dessa actividade, adquirido à ré, por escritura pública de compra e venda, de 07 de Dezembro de 2006, o prédio urbano sito na Av. ..............., lote ......, em Santa Maria do Olivais, Lisboa; que tal prédio constitui um complexo fabril, com diversas edificações e todo murado; que nos termos da referida escritura, autorizou a agora ré a permanecer no prédio até 30 de Junho de 2008, tendo ainda sido acordado que, a partir dessa data, a ré ficava obrigada a pagar-lhe € 45.000,00 por cada mês de atraso na desocupação do imóvel; que a ré assumiu expressamente "as responsabilidades de manutenção e conservação do imóvel durante a ocupação do mesmo"; que, apesar de instada a tal, a ré não procedeu à desocupação do prédio; e beneficiando da ocupação abusiva do mesmo, procedeu, no início do ano de 2008, à demolição parcial de alguns edifícios nele existentes e, no que respeita ao interior dos edifícios, procedeu à retirada, em proveito próprio, de diversos materiais e objectos, bem como à destruição de outros; que por escritura pública de compra e venda de 27 de Dezembro de 2007, ela, autora, vendeu o supracitado prédio a CC - Fundo de Investimento DD, tendo sido acordado que a entrega teria lugar até 1 de Julho de 2008 e que, caso o prédio não fosse entregue nessa data de 1 de Julho de 2008, a autora se constituiria na obrigação de pagar a esta compradora € 45.000,00 por cada mês de atraso; que a ré ainda ocupa indevidamente o prédio inviabilizando que ela, autora possa cumprir o contratualmente estabelecido com a  CC.

   A ré contestou, excepcionando a ilegitimidade da autora e impugnando parcialmente os factos por ela alegados.

 A autora replicou, pedindo ainda a condenação da ré como litigante de má fé.

No saneador, foi conhecida a arguida excepção, que foi julgada improcedente.

 Prosseguindo os autos seus ulteriores termos, foi proferida sentença julgando a acção totalmente improcedente, com a consequente absolvição da ré dos pedidos.

Apelou a autora, mas o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 08 de Março de 2016, confirmou a decisão da 1ª instância.

Ainda inconformada, a autora interpôs recurso de revista excepcional para este Supremo, invocando a alínea a) do n.º 1 do artigo 672.° do C. P. Civil, recurso este que veio a ser admitido, com esse fundamento, pela Formação aludida no nº 3 do mesmo artigo.

Na sua alegação, a recorrente concluiu do seguinte modo:

1- Constitui questão de indiscutível relevo jurídico, claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, para efeitos do disposto no art. 672.º, n.° 1, al. a), do NCPC (2013), saber se no contrato de compra e venda de bem imóvel, sendo convencionada a entrega do bem para momento futuro, o comprador perde legitimidade substantiva para exigir o cumprimento da prestação de entrega (artigo 817.° do Código Civil), se antes do termo acordado transmitir a propriedade a terceiro diferindo também a entrega para futuro.

2. No contrato de compra e venda, a entrega da coisa é uma obrigação a cargo do contraente vendedor, atribuindo ao outro contraente (o comprador) um direito de crédito à prestação de entrega da coisa, pelo que, tendo a Recorrente vendido à Recorrida o complexo fabril, mas diferindo por acordo a sua entrega para data posterior (cerca de ano e meio depois), assumindo "as responsabilidades de manutenção e conservação do imóvel durante a ocupação do mesmo" (v. alíneas E) e G) dos factos assentes), a Recorrente é titular de legitimidade substantiva para exigir o cumprimento de tais obrigações e peticionar os direitos de indemnização conexos, sendo patente a natureza obrigacional e bilateral da relação constituída no que concerne ao uso transitório do complexo fabril e respetivas condições ajustadas.

3. Em resultado do princípio da relatividade do contrato (v. artigo 406.°, nº 2 do Código Civil) é aos sujeitos contraentes, credores e devedores, que cabe assegurar o cumprimento e responder e efetivar os inerentes direitos de indemnização (v. artigos 798.°, 801.°, 804.° e 562.º e segts. do Código Civil), o que, estando em causa a obrigação de entrega ou restituição de um bem confiado por um sujeito à detenção de outro, não se altera com a transmissão da propriedade desse bem, exceto se for transmitido o crédito o que seria um facto extintivo que não se verifica e também não se provou- v.g. Luís MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I, 11ª Ed. 2014, p. 99, ou Acs. do STJ, de 29-06-2005, no Proc. n.º 0562072 (caso de comodato) e de 03-03-1998, no Proc. nº 98B703 (caso de depósito), in www.dgsi.pt.

4. Ao decidir a improcedência da ação por "ilegitimidade substantiva" da ora Recorrente para peticionar judicialmente a prestação da entrega do bem ou seu valor de reposição, fundando-se na circunstância de que esta deixou de ser proprietária do imóvel, o acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação dos artigos 879º, alínea a), 798º, 801º, 804.°, 817º e 562º do Código Civil.

5. Estando provado que a Recorrida se obrigou contratualmente perante a Recorrente a entregar-lhe o complexo fabril cuja detenção lhe fora confiada até ao dia 30.06.2008 e que a partir de então "ficava obrigada a pagar à autora a quantia de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) por cada mês de atraso na desocupação do imóvel" (v. alíneas E) e F) dos factos assentes), tendo a ocupação durado até ao dia 31.07.2008 (alínea H) dos factos assentes), é líquido que ficou sujeita à cláusula penal fixada para o atraso e por essa via é devedora à Recorrente (e não à proprietária que nenhuma cláusula penal convencionou) da respetiva indemnização aí prevista, em valor nunca inferior a € 45.000,00 pelo atraso na desocupação.

6. Estando a Recorrida obrigada a entregar à Recorrente um complexo fabril e pretendendo entregar-lhe o imóvel desmantelado e destruído (em estado que inviabilizava o uso que dele era passível de ser retirado), a prestação em débito poderia ter sido recusada pela Recorrente - como foi -, pois o devedor só "cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado" (v. art. 762.º) e "a prestação deve ser realizada integralmente e não por partes" (v. art. 763.º).

7. Ao decidir não ter a Recorrente legitimidade substantiva para peticionar da Recorrida uma indemnização pelo não cumprimento da obrigação de entrega do imóvel na data prevista (no caso, pré-estabelecida pela convenção de uma cláusula penal), o acórdão recorrido viola por errada interpretação e aplicação os artigos 397.°, 406.°, n.° 1, e 562.° e segts., 798.°, 801.°, 804.°, 817.° e 810.° e segts. do Código Civil, normativos que imporiam a condenação da Recorrida ao pagamento de indemnização à Recorrente.

8. Estando provado que a Recorrida se obrigou perante a Recorrente a entregar a esta o imóvel cuja detenção temporária lhe fora confiada, no mesmo estado em que o mesmo se encontrava ao momento de tal convenção, mas que, pelo contrário, "do interior dos edifícios, a ré procedeu à retirada, em proveito próprio, de diversos materiais e objetos, bem como à destruição de outros" (v. facto apurado na resposta ao ponto 5) da BI e, com detalhe os factos apurados nas respostas aos pontos 6 a 21), cuja reposição implica uma quantia não inferior a € 433.451,90 (v. pontos 22) e 23) da BI), é líquido que a Recorrida faltou com culpa às obrigações a que se encontrava adstrita para com a Recorrente causando-lhe prejuízo que deve reparar.

9. Ao decidir não ter a Recorrente legitimidade substantiva para peticionar da Recorrida uma indemnização pelo não cumprimento da obrigação de entrega do complexo fabril no estado em que o mesmo lhe foi confiado, a decisão recorrida viola por errada interpretação e aplicação os artigos 397º, 406.°, n.° 1, e  562.° segts, 798.°,  801.°,  804.°,  817.° e 879.°, alínea a) do Código Civil, normativos que imporiam a condenação da Recorrida ao pagamento à Recorrente do valor indemnizatório que se mostra apurado.

Nestes termos, contando com o douto suprimento deste Venerando Supremo Tribunal, deve a presente revista excecional ser admitida, devendo o recurso ser julgado provado e procedente, com as legais consequências. Assim se decidindo será cumprido o direito e feita justiça!

A recorrida contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso e, a ser admitido, pela sua improcedência.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

                                                 **

Objecto do recurso

Como é sabido, são as conclusões da alegação que delimitam o objecto do recurso [art.ºs 635º n.º 4, 639º n.ºs 1 e 3 e 641º nº 2 al. b) todos do novo C.P. Civil], não podendo o tribunal conhecer de questões nelas não compreendidas, salvo tratando-se de questões de conhecimento oficioso.

Assim, é uma única a questão a apreciar e decidir: saber se a autora recorrente, não sendo a actual proprietária do imóvel descrito nos autos, tem legitimidade material ou substancial para pedir em juízo a entrega ou restituição do mesmo, e para pedir uma indemnização pela sua detenção não consentida para além do prazo estipulado, a reposição do imóvel no estado em que o mesmo se encontrava à data da sua alienação pela ré ou, em alternativa, uma indemnização pelas deteriorações nele causadas pela detentora.

                                                   **

Fundamentação

De facto:

As instâncias deram como provados os seguintes factos:

1. No âmbito da sua actividade, a autora adquiriu à ré, por escritura pública de compra e venda celebrada em 7 de Dezembro de 2006, o prédio urbano sito na Avenida ..............., lote....., tornejando para o arruamento ao longo do Canal do ......, freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrito na 8.ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o número ....., da dita freguesia, e inscrito na respectiva matriz sob o artigo 1481. [alínea A) dos factos assentes].

2. O referido imóvel constitui um complexo fabril, com diversas edificações, todo murado, [alínea B) dos factos assentes].

3. O preço acordado para a venda foi de € 4.750.000,00 (quatro milhões setecentos e cinquenta mil euros), [alínea C) dos factos assentes].

4. Sendo que tal preço foi integralmente liquidado logo até à outorga da escritura pública, [alínea D) dos factos assentes].

5. Nos termos da referida escritura, o imóvel foi vendido livre de quaisquer ónus ou encargos, tendo a autora autorizado a ré a permanecer nele até 30 de Junho de 2008. [alínea E) dos factos assentes].

6. Foi estabelecido que a partir de 30 de Junho de 2008 a ré ficava obrigada a pagar à autora a quantia de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) por cada mês de atraso na desocupação do imóvel, a ser paga até ao oitavo dia do mês a que dissesse respeito, [alínea F) dos factos assentes].

7. A ré assumiu expressamente "as responsabilidades de manutenção e conservação do imóvel durante a ocupação do mesmo". [alínea G) dos factos assentes].

8. A ré ocupou o imóvel até 31 de Julho de 2008. [alínea H) dos factos assentes].

9. A autora, por escritura pública de compra e venda de 27 de Dezembro de 2007, vendeu o prédio ao CC - Fundo de Investimento DD, ficando acordado entre a ora autora e o CC que o imóvel em causa seria entregue a este até ao dia 1 de Julho de 2008 "totalmente devoluto e livre de pessoas e bens", e nas condições em que se encontrava à data da celebração da escritura". [alínea I) dos factos assentes].

10. Ficou também assente entre a autora e o CC que caso o imóvel não fosse entregue até 1 de Julho de 2008, a primeira pagaria à segunda € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros) por cada mês de atraso na desocupação do imóvel, até ao oitavo dia do mês a que dissesse respeito. [alínea J) dos factos assentes].

11. A ré desocupou o imóvel até 31 de Julho de 2008. [resposta ao ponto 2) da BI].

12. No final do mês de Julho de 2008 e em 13 de Agosto de 2008, a ré, por intermédio da sua advogada, pretendeu entregar as chaves do prédio ao gerente da autora, DD, tendo este recusado receber as chaves ao constatar que as construções nele existentes tinham sido danificadas, [resposta ao ponto 3) da BI].

13. Do interior dos edifícios, a ré procedeu à retirada, em proveito próprio, de diversos materiais e objectos, bem como à destruição de outros. [resposta ao ponto 5) da BI],

14. Na zona de escritórios, a ré retirou a alcatifa colocada no pavimento, assim como os tectos falsos existentes, uma divisória, uma porta de vidro, lavatórios e sanitas, as condutas de AVAC, os quadros eléctricos, os fios e cabos eléctricos, a tubagem da rede de águas das duas sanitas e ainda os estores interiores, [resposta ao ponto 6) da BI].

15. No que respeita à zona da cozinha, refeitório e salas anexas, a ré retirou um tecto falso, pelo menos duas unidades de ar condicionado, os fios e cabos eléctricos e armaduras de iluminação, [resposta ao ponto 7) da BI].

16. Na zona fabril, entre a loja e o corredor exterior, a ré retirou o teto falso, os portões interiores de ferro, as portas de madeira, o caixilho da copa e danificou os sanitários, tendo ainda sido retiradas as respetivas torneiras. [resposta ao ponto 8) da BI].

17. Da zona fabril, depois do corredor exterior, a ré retirou os portões de ferro, bem como os caixilhos de uma porta e esta última, [resposta ao ponto 9) da BI],

18. Dos sanitários/balneários gerais a ré retirou e/ou danificou as sanitas, as bancadas e respectivos lavatórios, bem como retirou o conjunto de divisórias das sanitas, a conduta de AVAC, a rede exterior de águas, as torneiras e chuveiros colectivos, os fios e cabos eléctricos e armaduras de iluminação, [resposta ao ponto 10) da BI].

19. A ré retirou os diversos caixilhos, portas e portões exteriores em todos os edifícios, [resposta ao ponto 11) da BI].

20. Tendo sido também destruída a fachada em cortina envidraçada no edifício de escritórios, [resposta ao ponto 12) da BI].

21. Foi ainda retirada pela ré uma escada exterior metálica de acesso aos escritórios, bem como um painel superior da fachada cortina e uma chapa curva na cobertura do mesmo edifício de escritórios, [resposta aos pontos 13), 14) e 15) da BI],

22. Foram ainda retiradas pela ré as chapas na cobertura dos alpendres e respectiva estrutura de suporte, [resposta ao ponto 16) da BI].

23. Foi também retirado pela ré um conjunto de sete depósitos cilíndricos e respectivo equipamento de apoio, esclarecendo-se que estes depósitos e o referido equipamento de apoio são utilizados pela ré na sua actividade industrial para a armazenagem de gases industriais para posterior venda, [resposta ao ponto 17) da BI].

24. Foram retirados pela ré painéis que existiam sobre o muro do alçado posterior e respectivos prumos de apoio, bem como as barreiras basculantes da entrada principal e respectivos acessórios, [resposta aos pontos 18) e 19) da BI],

25. Foram retirados pela ré tampas metálicas de caixas de pavimento e o equipamento e cablagens do posto de transformação, [resposta aos pontos 20) e 21) da BI].

26. A reposição do indicado material em falta e inerente custo da mão-de-obra, no interior e exterior dos edifícios, implica despender uma quantia não inferior a € 433.451,90. [resposta aos pontos 22) e 23) da BI].

27. Os alpendres referidos na resposta ao ponto 16) tinham uma área de cerca de 1000 m2 cuja reposição tem um custo de cerca de € 150 por m2. [resposta aos pontos 25) e 26) da BI].

28. O prédio não era susceptível de ser licenciado para a actividade que a ré desenvolvia, [resposta ao ponto 27) da BI].

29. A autora sabia que o prédio, com excepção de 1102 m2 destinados a escritórios, não se encontrava licenciado para qualquer uso. [resposta ao ponto 28) da BI].

                                             *

         De direito:


Como acima se disse, é uma só a questão suscitada no recurso: saber se a autora recorrente, não sendo a actual proprietária do imóvel aludido nos autos, possui legitimidade material ou substantiva para pedir em juízo, contra a detentora do mesmo, a sua entrega ou restituição e, ainda, o demais peticionado.
As instâncias entenderam que, não sendo a autora já proprietária do imóvel adquirido à ora ré - por, logo, em 27 de Dezembro de 2007, o ter vendido, por sua vez, a terceiro, concretamente a CC - Fundo de Investimento DD - não possuía legitimidade substantiva para nenhum dos pedidos formulados nos autos, por radicarem em direitos que se inscrevem na esfera jurídica do respectivo proprietário.
Ao invés, a recorrente argumenta e insiste que «No contrato de compra e venda, a entrega da coisa é uma obrigação a cargo do contraente vendedor, atribuindo ao outro contraente (o comprador) um direito de crédito à prestação de entrega da coisa, pelo que, tendo (…) vendido à Recorrida o complexo fabril, mas diferindo por acordo a sua entrega para data posterior (cerca de ano e meio depois), assumindo "as responsabilidades de manutenção e conservação do imóvel durante a ocupação do mesmo" (v. alíneas E) e G) dos factos assentes), (…) é titular de legitimidade substantiva para exigir o cumprimento de tais obrigações e peticionar os direitos de indemnização conexos, sendo patente a natureza obrigacional e bilateral da relação constituída no que concerne ao uso transitório do complexo fabril e respetivas condições ajustadas».
Mas não tem razão, adiante-se já.
A legitimidade substancial ou material - como ensinava o Prof. CASTRO MENDES, in Direito Processual Civil, vol. II, pag 174 - é «o complexo de qualidades que representam pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que invoque». Ou, como afirma mais adiante, «as condições subjectivas da titularidade do direito». E exemplificava: «(…)se B invoca a existência dum direito de crédito a uma indemnização de perdas e danos por prejuízo causado por C na coisa x, pressuposto da sua titularidade desse direito de crédito é que ele seja proprietário de x (ou, claro, titular doutro direito relevante sobre o mesmo x). Se não for proprietário, falta-lhe uma condição subjectiva necessária para adquirir, por prejuízos causados à coisa, crédito à indemnização desses prejuízos».
Deste modo, quando o tribunal conclui por tal ilegitimidade entra no conhecimento do mérito da causa e, consequentemente, terá de absolver do pedido. Diferentemente do que sucederia perante uma ilegitimidade processual, em que a decisão apropriada é a absolvição da instância, em face do estatuído nas disposições combinadas dos art.ºs 576 nº 2 e 577º al. e) ambos do C. P. Civil.
 Ora, é indiscutível que uma das obrigações a cargo do contraente vendedor, de harmonia com o disposto no artº 879 al. b) do C. Civil, é - como refere a recorrente - a obrigação de entregar a coisa. Ou dito de outro modo, o dever de investir o comprador na posse efectiva (posse e detenção) da coisa, para que o adquirente a possa fruir.  
 A argumentação da recorrente, não obstante, assenta num pressuposto errado: o de que a entrega da coisa inerente ao contrato de compra e venda, que celebrou com a ora recorrida, em 07 de Dezembro de 2006, não se consumou com a celebração do negócio; que foi «convencionada a entrega do bem para momento futuro», para «cerca de ano e meio depois». E isto porque, no caso, confunde, salvo o devido respeito, duas obrigações distintas: a obrigação de entrega do prédio inerente ao negócio de compra e venda, com a obrigação de restituição que incumbia à ré terminado o prazo concedido - até 30 de Junho de 2008 - para nele permanecer a título de mera tolerância (vide nº 5 dos factos supra provados).
Ora, a entrega da coisa objecto de um contrato de compra e venda ou a investidura do comprador na sua posse efectiva não ocorre só pela tradição material ou simbólica da mesma. Essa investidura pode fazer-se também através do constituto possessório.
 Como comentam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, in Código Civil Anotado vol. II, pag 172: «A obrigação, por parte do vendedor, de entregar a coisa está expressa na alínea b) do artigo 879.° Importa para o vendedor o dever de investir o comprador na posse efectiva (ou seja, na posse e detenção) dos direitos transmitidos para que o adquirente os possa fruir plenamente. Normalmente, a investidura do comprador assumirá a forma de uma tradição material ou simplesmente simbólica ou virtual (cfr. al. b) do art. 1263.°) — material, em regra, na venda de coisas móveis; simbólica ou virtual, na venda de coisas imóveis ou de direitos imateriais (entrega da chave, dos títulos, etc.). Mas bem pode verificar-se, se o comprador é já detentor da coisa, como se é locatário dela, ou se, por qualquer título, um terceiro tem e continua a ter a sua detenção, o constituto possessório (cfr. art. 1264.°). O constituto é, ainda, uma das formas de transmitir e adquirir a posse e, consequentemente, um meio de cumprir a obrigação de entregar, embora a entrega tenha ainda, neste caso, natureza simbólica».
O constituto possessório, em particular no que respeita à compra e venda - como assinala, por sua vez, PEDRO ROMANO MARTINEZ, in Direito das Obrigações - Contratos, pag. 34 - é o meio de fazer acompanhar a posse sobre a coisa da titularidade  do direito alienado.
Efectivamente, prescreve, o artº 1264º nº 1 do C. Civil que «se o titular do direito real, que está na posse da coisa, transmitir esse direito a outrem, não deixa de considerar-se transferida a posse para o adquirente, ainda que, por qualquer causa, aquele continue a deter a coisa».
 E o nº 2 do preceito acrescenta: «Se o detentor da coisa, à data do negócio translativo do direito, for um terceiro, não deixa de considerar-se igualmente transferida a posse, ainda que essa detenção haja de continuar».
Assim, com o negócio de compra e venda celebrado entre autora e ré, em 7 de Dezembro de 2006, transferiu-se para a autora tanto a propriedade do prédio descrito nos autos como a sua posse, não obstante a ré ora recorrida nele ter permanecido a título de mera tolerância, em conformidade com o também simultaneamente acordado entre elas.
  E o facto de a ré permanecer ainda no prédio como mera detentora quando a ora autora o vendeu, por sua vez, a CC - Fundo de Investimento DD, também de modo algum obstou ou impediu a transferência da propriedade e da posse do mesmo para esse seu actual proprietário.
Transmissões essas que ocorreram, de imediato, por mero efeito do contrato respectivo, e não apenas «cerca de ano e meio depois», como afirma a recorrente. 
 É que o direito de propriedade adquire-se, designadamente por contrato (art.º 1316º do C. Civil). E tratando-se do normal contrato real quoad effectum, como no caso, a propriedade transfere-se/adquire-se como efeito imediato do negócio jurídico, como resulta dos art.ºs 408º nº 1 e 1317º al. a) do C. Civil.
 Ora, é ao proprietário que a lei atribui de modo pleno e exclusivo os direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem (art.º 1305º do C. Civil.  Sendo, pois, ele que, em conformidade com o disposto no artº 1311º do mesmo Código, pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor  da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição  dela.
E, do mesmo modo, também só a ele, enquanto titular do direito violado, cabia pedir a sua reposição no estado em que se encontrava à data da respectiva aquisição, ou o crédito a eventuais indemnizações pela violação do direito, nomeadamente, no caso, por prejuízos decorrentes da tardia desocupação do prédio. A menos que, neste último caso, a autora, por virtude do acordado sob o nº 10 da factualidade apurada, se tivesse visto coagida a ressarcir o actual dono do prédio; o que contudo, nos autos, se não prova ter ocorrido.
Na verdade - como explica ALMEIDA COSTA, in Direito das Obrigações, 7ª ed. pags 527 e segs - a titularidade do direito à reparação dos danos resultantes do facto ilícito cabe, em princípio, à pessoa ou pessoas a quem pertence o direito ou interesse juridicamente protegido que a conduta ilícita violou.
 Ou - como ensinava ANTUNES VARELA, in Das obrigações em Geral, 10ª ed. vol. I, pag. 620/621 - «Tem direito à indemnização o titular do direito violado ou do interesse imediatamente lesado com a violação da disposição legal, não o terceiro que só reflexa ou indirectamente seja prejudicado».
Só em situações excepcionais, outras pessoas, que não o ofendido, têm direito a exigir a indemnização, como sucede nos casos previstos nos art.ºs 495º e 496º do C. Civil.
Deste modo, provando-se, como se provou, que a autora ora recorrente não é proprietária do imóvel, desde 27 de Dezembro de 2007, data em que o vendeu a CC - Fundo de Investimento DD, não sendo, consequentemente, titular do direito de propriedade do imóvel nem de algum dos demais direitos pretensamente violados, no caso, pela ré, obviamente que não possui, como bem decidiram as instâncias, legitimidade material para o efeito.
É, pois, de confirmar o acórdão recorrido, que não violou qualquer das disposições legais invocadas pela recorrente.


Decisão


Nos termos expostos, acordam em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa, 19 de Janeiro de 2017


Nunes Ribeiro (Relator)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Salazar Casanova