Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B3970
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: DOCUMENTOS PASSADOS EM PAÍS ESTRANGEIRO
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: SJ200212050039702
Data do Acordão: 12/05/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 555/02
Data: 04/18/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário :
I - A legalização de documentos passados em país estrangeiro não é hoje requisito da sua autenticidade, a qual só se torna necessária quando se levantarem fundadas dúvidas sobre essa autenticidade.
II - Apenas o declaratário pode invocar o documento como prova plena contra o declarante que emitiu uma declaração contrária aos seus interesses; mas, nas relações com terceiros, essa declaração valerá como
elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal, tal como sucede relativamente à confissão extrajudicial.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Nos autos de inventário para separação de meações subsequente a divórcio em que são partes A e B, a correr termos na comarca de S. João da Madeira, veio a requerida agravar do despacho de 15-6-00 que fixou a matéria de facto relativa ao apuramento do passivo, a requerimento do interessado - com base na audição de testemunhas, cujos depoimentos foram gravados oficiosamente e depois transcritos pela interessada, sem oposição - e na análise de vários documentos.
E também apelar, sob a alegação de que o mapa da partilha não terá sido correctamente elaborado, de harmonia com as disposições legais aplicáveis, e de que as verbas não licitadas não foram devidamente sorteadas como o deviam ter sido face à lei.
2. Por acórdão de 18-4-02, o Tribunal da Relação do Porto negou provimento, quer ao agravo, quer à apelação.
3. Inconformada com tal aresto, dele veio a interessada B recorrer de revista para este Supremo Tribunal, em cuja alegação formou as seguintes conclusões:
1ª- Foram erradamente dados como provados e confirmados pelo acórdão Relação do Porto os factos constantes dos nºs 7 a 11 do despacho de fls 368 a 369;
2ª- Quanto aos factos dos pontos 7 a 11 do despacho de fls 368 a 369, a única prova atendida para tais factos serem dados como provados foram os documentos de fls 340 a 341, 352 a 356, meros documentos particulares que por si sós não fazem prova, e, por outro lado, nenhuma testemunha se referiu a nenhum dos elementos constantes desses documentos. Assim sendo, dos autos não constava qualquer elemento de prova que permitisse, com certeza e segurança, dar como provados tais factos;
3ª- Ao serem incluídas no acervo do interessado, ora recorrido, as verbas constantes dos pontos 7 a 11 de despacho de fls. 368 a 369, jamais se deveriam incluir verbas de períodos em que os encargos eram comuns, ou seja pelo menos até Fevereiro de 2000, data da propositura da acção de divórcio, pois se os encargos, em pelo menos parte desses espaços de tempo, eram comuns, então o interessado ora recorrido não os pagou a título - individual -, como se concluiu quanto às verbas descritas nos documentos de fls 352 e 356, pois não podia, com segurança, pelo exame dos documentos juntos, assim decidir-se e confirmar-se;
4ª- Para além de tudo o já alegado quanto ao valor probatório dos documentos, não se pode aceitar que, para se conseguir obter o valor de certos anos, se divida sem mais o valor global apresentado, sem cuidar de saber se o valor dos eventuais impostos é ou não igual em todos os anos, quando aliás existem nalguns dos documentos em que o Sr. Juiz a quo se baseou, elementos que provam exactamente o contrário (conferir o que se disse a esse respeito no artº 20º das presentes alegações);
5ª- Assim... foram violados os artigos 540º, 653º, 1354º, 1355º e 1356º do CPC e os artigos 365º a 376º do C. Civil que, a terem sido devida e correctamente aplicados, deviam ter levado a uma outra decisão no acórdão da Relação do Porto; ao decidir-se, tal deveria ser feito apreciando as provas que lhe são apresentadas de acordo com o estipulado na lei e segundo as regras do ónus da prova, que neste caso impendem sobre o interessado, ora recorrido, pois foi ele quem relacionou a falta de bens e a ele lhe competia fazer a prova do por si alegado;
6ª- A Relação não tinha pois prova alguma para decidir como decidiu, e tendo em conta que se deu o registo magnético da prova, e que o recurso se baseia também ou até essencialmente em documentos juntos aos autos, impugna-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no artº 690-A do CPC tendo-se já, nos artigos 1º a 21º das presentes alegações, para onde remetemos, enumerado os concretos pontos que consideramos terem sido incorrectamente julgados e confirmados e quais os concretos meios probatórios constantes do processo que impunham decisão diversa;
7ª- Assim, tendo o presente recurso provimento, devem os pontos constantes dos pontos 7, 8 a 11 do despacho de fls 368 a 369 ser considerados como tendo sido mal julgados e confirmados, por deficiente apreciação do valor probatório dos documentos juntos aos autos e da restante prova, e, em consequência, serem eliminados do referido despacho e não serem as verbas neles referidas incluídas no acervo do interessado ora recorrido.
4. Contra-alegou a requerente do inventário A sustentando a correcção do julgado, para o que formulou as seguintes conclusões:
A)- O presente recurso apenas poderá ser visto como o legítimo direito à indignação da recorrente;
B)- No entanto, a douta decisão proferida e aqui objecto de recurso não merece qualquer reparo ou censura;
C)- Não logrando a recorrente produzir qualquer alegação que contrarie tal facto;
D)- Na verdade, fundamenta a recorrente o seu recurso numa eventual má apreciação da prova produzida;
E)- Não lhe assistindo qualquer razão, porquanto foi feita uma correcta apreciação de tal prova;
F)- Com efeito, há que atender, antes de tudo, ao princípio da livre apreciação da prova, prerrogativa do juiz;
G)- Havendo que atender também ao facto de as questões levantadas pela recorrente quanto a alguns dos elementos da prova documental não poderem produzir efeitos úteis;
H)- De facto, quanto à valoração dos documentos passados em país estrangeiro, a legalização não é hoje requisito da autenticidade do documento, pois só se torna necessária quando se levantarem fundadas dúvidas sobre a sua autenticidade, e sendo Portugal parte na Convenção Suprimindo a Exigência de Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros, tal legalização torna-se desnecessária;
I)- Aliás, não foram levantadas fundadas dúvidas quanto à autenticidade de tais documentos, apenas tendo estes sido impugnados quanto ao seu teor e alcance face à posição da recorrente;
J)- Já quanto aos documentos particulares, de facto a subscrição é requisito essencial do documento particular, sendo a assinatura que lhe emprestara a sua força probatória, no entanto, essa assinatura, nos títulos emitidos em grande número e nos casos em que os usos o admitem, pode deixar de se autografada e consistir num processo de reprodução mecânica;
K)- Ora, tal sucede no caso dos documentos apresentados, saltando à vista tratar-se de documentos informáticos que serão emitidos pelo seu autor em quantidades consideráveis, não esquecendo que alguns estão devidamente assinados e que todos eles possuem um elemento identificativo aceite por todos, como é o código de barras deles constante;
L)- Consubstanciando tais documentos recibos de quitação do pagamento de quantias devidas pelo condomínio, que assinados por quem recebeu as quantias neles referidas são documentos particulares com força probatória plena quanto às declarações atribuídas ao respectivo autor, que as não impugne nos termos do artº 374º nº 2, do Cód Civil;
M)- Provando tais documentos que quem assine fez as declarações neles constantes de que foram recebidas tais quantias;
N)- De forma que a decisão recorrida não violou qualquer disposição legal e, designadamente, as normas vertidas sob os artºs 540º, 653º, 1354º a 1356º e 365º a 376º do C. Civil.
5. Colhidos os vistos legais, e nada obstando, cumpre apreciar e decidir.
6. Em matéria de facto relevante, deu a Relação como assentes - por mera remissão para a decisão de 1ª instância - os seguintes pontos:
1º- O interessado A liquidou por meio de dinheiro que lhe foi emprestado pelo seu pai, as amortizações trimestrais relativas ao imóvel descrito sob a verba n° I, no montante respectivamente de 129.543$00 (cento e vinte e nove mil e quinhentos e quarenta e três escudos) nas seguintes datas: 16/08/1993, 16/11/1993, 16/02/1994, 16/05/1994, 16/08/1994, 16/11/1994, 16/02/1995, 16/05/1995, 16/08/1995, 16/11/1995, 16/02/1996 e 31/05/1996;
2º- As prestações relativas à amortização desse empréstimo efectuadas em 16/02/1992, 16/05/1992, 16/11/1992, 16/02/1993 e 16/05/1993, foram realizadas mediante ordem do Sr. C com quantias monetárias pertencentes a pessoas indeterminadas;
3º- O interessado entregou ao seu pai, até à data, a quantia de 800.000$00 (oitocentos mil escudos) para pagamento, além do mais, dos referidos empréstimos;
4º- A interessada liquidou, a título de contribuição autárquica, relativamente ao ano de 1997, e referente ao imóvel descrito sob a verba n° 1, a quantia de 28.175$00;
5º- A interessada liquidou, a título de contribuição autárquica relativamente ao ano de 1998 e referente ao imóvel descrito sob a verba n° 1, a quantia de 28.175$00,
6º- A interessada liquidou a título de contribuição autárquica relativa a 1999 e referente ao imóvel descrito sob a verba n° 1 a quantia de 28.175$00;
7º- O interessado despendeu, a título de prestações de condomínio em relação ao imóvel descrito sob a verba n° 2, as quantias discriminadas nos documentos de fls. 340 a 341, nos respectivos valores e datas, cujo teor se dá por reproduzido;
8º- A pagou, a título de imposto predial territorial urbano no que respeita ao imóvel descrito sob a verba n° 3, a quantia de 4,2030 UFM (o valor da UFM é de 72,31 reais ), conforme documento de fls. 352, cujo restante teor se dá por reproduzido
9º- A pagou, a título de imposto predial territorial urbano no que respeita ao imóvel descrito sob a verba n° 3, a quantia de 4,2020 UFM, conforme documento de fls. 353, cujo restante teor se dá por reproduzido;
10º - A pagou, a título de imposto territorial urbano de 1994 no que respeita ao imóvel descrito sob a verba n° 3, a quantia de 58, 450 UFM, conforme documento de fls. 354, cujo teor se dá por reproduzido;
10º- O interessado A pagou a quantia de 3.111,87 reais relativamente ao imposto predial e territorial urbano dos anos de 1991 a 1995, respeitante à importância descrita sob a verba n° 5, cujo restante teor se dá por reproduzido.
Passemos ao direito aplicável.
7. Insiste a recorrente em pôr em crise o acórdão da Relação - confirmativo da decisão de 1ª instância - na parte em que (erradamente em seu entender) foram dados como provados os factos constantes dos nºs 7 a 11 do despacho de fls 368 a 369.
E quanto a este específico ponto se confinam as conclusões da respectiva alegação de revista.
A Relação havia já recusado, ao abrigo do disposto na al. a) do nº 1 do artº 712º do CPC a alteração/modificação da decisão de facto operada pela 1ª instância, alteração/modificação essa que lhe havia sido proposta pela ora recorrente.
Renova agora a recorrente a sua pretensão de questionar o assentamento dos factos efectuado pelas instâncias.
Ora, é sabido que o STJ, como tribunal de revista que é, só conhece, em princípio, de matéria de direito, limitando-se a aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido - artº 26º da LOFTJ 99 aprovada pela L 3/99 de 13/1 e 729º nº 1 do CPC; daí que o eventual erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto pelo tribunal recorrido só poderá ser objecto do recurso de revista quando haja ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art.ºs 729, n.º 2 e 722º, n.º 2 do CPC) - violação das regras de direito probatório material -, excepções esta últimas que claramente não ocorrem.
Também - contra o que parecem sugerir os recorrentes -, não cabe nos poderes do Supremo Tribunal de Justiça censurar o não uso pela Relação da faculdade de alterar as respostas dadas aos quesitos pelo Tribunal Colectivo. É, de resto, também corrente a jurisprudência em tal sentido.
O que o Supremo poderia sindicar, isso sim, era o bom ou mau uso dos poderes de alteração/modificação da decisão de facto que à Relação são conferidos nas restritas hipóteses contempladas nas três alíneas do nº 1 do artº 712º do CPC; como a Relação não exercitou tal faculdade, a factualidade dada por si como assente - assim confirmando a já elencada como provada pelo tribunal de 1ª instância - terá de permanecer agora como incontroversa - conf., neste sentido, v.g., o Ac desta Secção de 23-10-01, in Proc 3223/01.
É, de resto, aplicável aos fundamentos do recurso de agravo o disposto no nº 2 do artº 722º do CPC, aplicável " ex-vi" do nº 2 do artº 755º do mesmo diploma,
No fundo, o que a recorrente sustenta é que alguns dos elementos da prova documental não poderão surtir efeitos úteis, o que sucederia por ex. com a não legalização dos documentos passados em país estrangeiro.
Ora, é sabido que Portugal foi parte signatária da - Convenção Suprimindo a Exigência de Legalização dos Actos Públicos Estrangeiros, concluída em Haia em 5 de Outubro de 1961, aprovada para ratificação pelo Decreto nº 99/82 de 26/8, tendo depositado o respectivo instrumento de ratificação em 13-12-82 (Aviso in DR 1ª série de 19-1-83). A legalização não é hoje requisito da autenticidade do documento, a qual só se torna necessária quando se levantarem fundadas dúvidas sobre essa autenticidade, o que não é o caso dos autos.
O que a recorrente fez foi impugnar, como era seu direito, o conteúdo, isto é o seu sentido e alcance desses documentos, sendo que a - força probatória do documento escrito a que falte algum dos requisitos exigidos por lei é apreciada livremente pelo tribunal - (conf. artº 366º do C. Civil).
No que tange aos documentos particulares apresentados, sem embargo de a respectiva subscrição constituir, em princípio, requisito essencial da sua força probatória, não poderá todavia olvidar-se que as necessidades da vida moderna implicam cada vez mais a emissão massiva de títulos/recibos através dos meios de reprografia mecânica ou informática, casos em que seria, na prática, impossível ou muito difícil, as respectivas subscrição pessoal e autografia. De resto - as reproduções mecânicas de factos ou de coisas fazem prova plena dos factos e das coisas que representam, se a parte contra quem os documentos são apresentados não impugnar a sua exactidão - ( conf. artº 368º do C. Civil).
Alguns desses documentos apresentados foram precisamente emitidos por via informática, encontrando-se, porém, alguns deles devidamente assinados, e possuindo todos eles, como elemento identificativo e geralmente aceite, o chamado -código de barras -.
Tal como bem observa o recorrido, - consubstanciando tais documentos recibos de quitação do pagamento de quantias devidas pelo condomínio, assinados por quem recebeu as quantias neles referidas, são documentos particulares com força probatória plena quanto às declarações atribuídas ao respectivo autor, que as não impugne nos termos do artº 374º nº 2, do Cód Civil.
É certo que apenas o declaratário pode invocar o documento como prova plena contra o declarante que emitiu uma declaração contrária aos seus interesses; mas nas relações com terceiros essa declaração valerá como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal, tal como sucede relativamente à confissão extrajudicial - conf. Ac do STJ de 301-1-01, in Proc 3948/1ª Sec.
8. Assim havendo decidido neste pendor, e havendo-se movido com escrupulosa observância do princípio da liberdade da apreciação das provas (liberdade de julgamento) genericamente contemplado no artº 655º do CPC, não merece o acórdão recorrido qualquer censura.
9. Decisão:
Em face do exposto, decidem:
- negar a revista;
- confirmar, em consequência, o acórdão revidendo.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 5 de Dezembro de 2002
Ferreira de Almeida (Relator)
Abílio Vasconcelos
Duarte Soares