Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
97P1175
Nº Convencional: JSTJ00033437
Relator: ANDRADE SARAIVA
Descritores: ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
BURLA
REPARAÇÃO DO PREJUÍZO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
SENTENÇA PENAL
FACTOS ESSENCIAIS
RECURSO PENAL
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
ACÇÃO CÍVEL CONEXA COM A ACÇÃO PENAL
REENVIO DO PROCESSO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Nº do Documento: SJ199802110011753
Data do Acordão: 02/11/1998
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL. MANDADA AMPLIAR A MATÉRIA DE FACTO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
DIR PROC PENAL - RECURSOS.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 301 ARTIGO 313 N1 N2 ARTIGO 314 C.
CP95 ARTIGO 206 ARTIGO 217 N1 ARTIGO 218 N2 N3.
CPP87 ARTIGO 72 N1 C ARTIGO 82 N2 ARTIGO 374 N2 ARTIGO 401 N1 B C ARTIGO 410 N2 A.
Sumário : I - São requisitos do crime de burla: a- Que o agente tenha a intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo; b. Que com tal objectivo, intencionalmente induza um erro ou engano o ofendido, sobre os factos; c. Assim determinnado o mesmo ofendido à prática de actos que causem a este, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais.
II - Quer no CP de 1982 - artigo 313 n. 2 - quer no CP de 1995
- artigo 218 n. 3 - a reparação do prejuízo causado relega para efeitos da determinação da pena, atenuando-a.
III - Tendo o arguido requerido a junção de documentos segundo os quais teria reparado o dano provocado pela burla que lhe era imputada e não constando do acórdão recorrido qualquer referência a esse facto, nem na factualidade provada nem na não provada, e como é indispensável para a boa decisão da causa, por poder influir na medida concreta da pena, podendo até alterar a medida abstracta, sofre a decisão recorrida do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão - artigo 410 n. 2, alínea a), do CPP.
IV - Não existe violação do n. 2 do artigo 374 do CPP por nem todos os factos constantes da acusação/pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar dessa enumeração.
V - O arguido em processo crime no qual houve enxerto de acção cível para efeitos indemnizatórios, tendo o tribunal decidido remeter nesta parte os interessados para os meios comuns, como o permite o artigo 82 do CPP, não tem legitimidade, para recorrer de tal decisão por não se poder considerar a mesma contra si proferida - artigo 401 n. 1, alíneas b) e c), do CPP - designadamente se tal recurso se encontrar devidamente fundamentado.
Decisão Texto Integral: Acordam os juizes que compõem a secção criminal - 1. subsecção - do Supremo Tribunal de Justiça:
No processo comum colectivo 141/95, do Tribunal de Círculo de Coimbra, por douto acórdão proferido em 9 de Abril de 1997 o Tribunal Colectivo decidiu: a) condenar o Arguido A, casado, gerente comercial, nascido a 29 de Junho de 1958 em Coimbra, como autor de um crime de burla, na forma continuada, dos artigos 217, 218, n. 2, alínea a), 30, n. 2 e 79, do Código Penal de 1995, na pena de seis anos de prisão; b) declarar perdoado um ano de prisão nos termos do artigo 14, n. 1, alínea b) da lei 23/91, de 4 de Julho; c) declarar perdoado um ano de prisão nos termos do artigo 8, n. 1, alínea d) da lei 15/94, de 11 de Maio, sob a condição resolutiva do seu artigo 11.
Inconformado interpôs recurso o Arguido que motivou concluindo: a) sempre que o Tribunal dá como provado prejuízo patrimonial e o considera relevante, é porque encontrou valores mínimos; dizer que não se sabe se o prejuízo subsiste quando: - há declaração atribuída a um representante da lesada e que, notificada esta, não a impugnou - o ilustre Mandatário, a intervir, apesar de ter renunciado ao mandato, não se opõe à declaração de que se constata não ter havido prejuízo efectivo, é violar o regime dos artigos 374 e 376 ns. 1 e 2 do Código Civil; b) relegar para os Tribunais civis a questão da indemnização face ao quadro acima, e com a alegação de que se estava face a questões que "inviabilizavam uma decisão rigorosa" sem precisar quais! - é ofender a regra dos artigos 7, 340 e 82 do Código de Processo Penal até por violação do dever de fundamentação - artigo 97 n. 4, do Código de Processo Penal; c) se da omissão de conhecimento da reparabilidade resulta a não consideração do elemento atenuativo - ou integrador do tipo tem o Arguido condenado legitimidade para suscitar o erro de julgamento; c1) demais que, traduzindo-se me matéria de facto relativa a elemento integrador do tipo e a considerar como agravante na medida da pena, reporta-se ao ónus da prova e aí funciona o princípio "in dubio pro reo" (ns. 4 a 8 da motivação); violar-se-ia, pois, também, o regime do artigo 18, n. 2 da Constituição da República; d) enumerar os meios de prova, sem dizer em que medida eles foram relevantes para a decisão, é repetir a forma "tabelar", repudiada pela jurisprudência e doutrina, "provada com base nas testemunhas ouvidas, que mostraram conhecimento da matéria". d1) a razão do preceito, tal como decorre dos conceitos expendidos em 9 é exactamente permitir um controlo imediato sobre a correcção do juízo do julgador... em função das regras da experiência, para apurar se não haverá contradição ou erro notório; d2) não preenche os requisitos do artigo 374, n. 2, pelo que ferida de nulidade - artigo 379 do Código de
Processo Penal - a decisão em matéria de facto em que se enumeram todas as testemunhas se se remete para a prova documental junta aos autos, quando quanto àquelas se limita a enumerar a razão de ciência, e quanto à prova documental a mesma colide com a decisão tomada quanto a matéria de facto. Caso exemplar é o facto de se ter dado como provada a matéria dos ns. 27, 28 e 29 da douta sentença, como matéria provada, quando o contrário resulta exactamente de dois dos elementos de prova em que o tribunal se fundamenta (um relatório do Doutor Gavina e o depoimento deste como testemunha ouvida em audiência e que sobre o assunto se pronunciara já a folha 1112);
d3) viola o regime legal relativo ao P.O.C. - Decreto-Lei 410/89, de 21 de Novembro - e gera contraditoriedade insanável dar como provado - n. 28 da douta decisão - que uma dada entrada de dinheiro atribuível a um sócio poderia ter sido contabilizada simultaneamente na conta "2551" - que é passivo - e relativa a "dívidas a terceiros - accionistas" e na conta "264" - que é activo - e se refere a "dívidas de terceiros - subscritores de capital". Ficar sem se saber se uma ou outra, porque a simultaneidade que decorre da copulativa "e" não pode ocorrer por imperativo legal, demais quando se dá como provado que a contabilidade nunca esteve minimamente organizada, e, apesar disso, imputar o facto ao Arguido é violar a regra do artigo 127 do Código de Processo Penal -
"livre convicção" - entendida esta como a correcta - segundo os padrões de experiência comum - das razões do "pro sobre as do contra", na saborosa expressão de Carnelutti;
e) viola o regime do artigo 368, n. 2 e n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal a decisão que não conhece de factos alegados na contestação relevantes para a culpabilidade;
e1) a matéria dos pontos VIII, VIII, 3 da contestação era relevante para os fins das alíneas a) e c) do artigo 368 do Código de Processo Penal, tal como se explicou em 101 e 102, desta motivação, e se repete na conclusão g2), incorreu pois em vício de omissão de pronúncia;
f) relativamente aos factos constantes da acusação há que tomar posição indicando os provados e não provados, sob pena de se violar o regime dos artigos 368, n. 2 e 374, n. 2 do Código de Processo Penal;
f1) face à matéria da acusação e pronúncia, por um lado e à douta decisão, verifica-se que enquanto no n. 29 da douta pronúncia se fala em devolução de 18000000 escudos, através de 3 cheques, no ponto 25 da douta decisão fala-se só em 2, na matéria provada, nada se dizendo quanto ao 3. Porquê? Omissão, erro de escrita é que não...! tal facto tem relevo até para um dos considerandos da medida da pena, na tese do douto acórdão - a gravidade do engano. Violou-se, pois, o comando acima, pelo que se verifica a nulidade do artigo 379 do Código de Processo Penal, a determinar insuficiência de elementos para a decisão conscienciosa sobre a medida da pena, ao menos;
f2) há erro notório, fundamentador de reenvio - artigo 410, n. 2 e 416 do Código de Processo Penal, quando se dá como provado aquilo que, qualquer cidadão, pelas regras da experiência, considera improvável; f2.1) incorre nesse vício o douto acórdão quando, nos ns. 26 e 27 da sua fundamentação, dá como emitidos em 23 de Agosto de 1990, cheques que se diz terem sido depositados em 22 de Agosto, ou seja no dia imediatamente anterior;
g) o artigo 217 actual e 313 (na redacção do Código Penal até 1995) exigem empobrecimento injustificado; por acto do enganado - "acto positivo de assentimento"; enriquecimento ilegítimo do Arguido; não podendo considerar-se consumado o crime senão se houver o "prejuízo patrimonial do lesado" loc. citado em 13.2.1; exige-se pois, um duplo nexo de causalidade entre o estado de erro e a prática dos actos prejudiciais para o património e, entre o nexo enganoso e o estado de erro ou engano, sendo que o processo causal faz parte do tipo;
g1) viola esse normativo uma decisão em que, como nos casos "FF - H - realização do capital social" e "C" a B não ficou empobrecida, por tais valores não terem saído do seu património - ns. 13 a 15 da motivação, ou quando
g2) dá como provado um empobrecimento, apesar de reconhecer que a B pagou ao menos parte do que devia e não se diz que tal factura tivesse ficado por liquidar, como no caso "Secção de Reprografia", independentemente da omissão referida na conclusão e1) ou seja, tendo compensado com um pagamento que, em nome da B tinha feito à Interlog; g2.1) isto independentemente de se dever considerar a subsidariedade do regime do artigo 509 do C.S.C. se estivéssemos face a uma falsa realização de capital social;
g3) viola o mesmo normativo a douta decisão quando dá como assente prejuízo no caso "Consultrade - Northwest", se, como se refere no ponto 15.5 acima, está assente na documentação junta aos autos e referida na fundamentação que, no período em que prestou serviço a tal organização... deixou de receber ordenado e encargos sociais pelas contas da B... embora continuasse a trabalhar ao serviço desta...!
h) viola o regime do mesmo artigo e do artigo 14 do Código Penal (dolo específico), uma decisão em que se declara a existência de um facto, mas cuja autoria não se imputa ao Arguido, como decorre dos pontos 27, 28 e 29, do douto acórdão em comparação com o que se escreveu em 24, 33, 38, 42 e 56 da mesma peça - cfr. ns. 16 a 18, desta motivação;
i) viola o regime do artigo 40, n. 2 do Código Penal, uma condenação em que num quadro de "diminuição considerável de culpa" (sic), com base em razões de prevenção geral, se fixa a pena "ligeiramente acima do ponto médio" - ns. 19 a 24 desta motivação;
j) viola o regime do artigo 72 do Código Penal e o princípio da proibição da dupla valoração considerar como circunstâncias que depõem contra o Arguido: a intensidade do dolo directo, num crime que exige ou pressupõe para sua verificação dolo específico, como, num crime contra o património, em que elemento do tipo é o enriquecimento, valorar a intenção lucrativa - ns. 26.1 e 3 da motivação;
l) viola o regime do artigo 72 do Código Penal, não considerar o alto valor de confissão, mesmo da materialidade, quando a mesma foi relevante, quer para matéria dada como provada, quer a dada como não provada; "esforços por ele desenvolvidos para a composição com o lesado", face aos elementos carreados a folhas 1934 e seguintes - n. 23 desta motivação;
m) viola o regime do artigo 40 do Código Penal sublinhar o valor da prevenção geral, de modo a fazê-lo ter maior peso específico que a "diminuição considerável da culpa", num caso de crime continuado, em que não se revelaram os elementos da criminalidade de "colarinho branco" - ns. 26.4 e 26.4.1 -, quando o facto ocorreu há mais de seis anos e a censura foi antecipadamente assegurada pela imprensa, em dois momentos anteriores ao julgamento e com a publicidade de que Coimbra não desgosta...! - n. 30 desta motivação;
n) viola o princípio da igualdade e da proporcionalidade, e, consequentemente a ideia de "administração da Justiça", como acto em nome do povo, punir de forma díspar situações semelhantes. Choca esse sentimento de justiça distributiva e retributiva, confrontar esta situação com a do "badalado" caso "Zézé Beleza/Costa Freire", onde o primeiro, por burla, de dinheiros alheios - nem sequer de sociedade de que ele tivesse a quase totalidade do capital, como era o caso do recorrente -, em montante mais elevado, foi punido com prisão por 3 anos, e o segundo, por ser mais censurável a sua conduta, pela burla foi condenado em 4 anos, e ver que ao recorrente foi aplicada pena de 6 anos;
o) pelo quadro descrito, mesmo que se considerassem verificados os elementos do crime de burla em alguma das condutas dadas como provadas, após a análise a operar neste recurso, violaria o regime do artigo 50, n. 1 (como o do anterior artigo 48, n. 1) do Código Penal e o princípio da necessidade - artigo 18 da Constituição da República -, demais que não se detectaram anómalias da personalidade do Arguido a exigir particular cuidado na prevenção especial e não se verificam nenhuns dos contra-motivos que se apontaram citados na anotação crítica feita a esse referido acórdão, digo, referido aresto de 29 de
Fevereiro de 1996, não aplicar o regime de suspensão da execução da pena.
Deve ser revogada a douta decisão.
O recurso foi admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Respondeu o Ministério Público, concluindo "tendo em consideração o que fica exposto, entendo não merecer provimento o recurso interposto pelo Arguido A devendo confirmar-se o douto acórdão recorrido".
O Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer.
Após exame preliminar foram colhidos os vistos e, realizada a audiência, cumpre decidir:
Factos provados pelo Tribunal Colectivo:
1 - a sociedade comercial por quotas denominada B, foi constituída por escritura pública datada de 24 de Março de 1983, com um capital social de 3000000 escudos, aumentado para 20000000 escudos, por escritura de 27 de Outubro de 1985, ficando o Arguido que era seu sócio-gerente, com uma participação de 18524000 escudos, correspondente a 92,62 por cento do capital social;
2 - por escritura de 23 de Maio de 1990 foi a mesma transformada em sociedade anónima, sendo presidente do conselho de administração o Arguido A, passando também o capital social, que era de vinte milhões de escudos, para cem milhões e continuando o Arguido como sócio largamente maioritário, com 90,964 por cento do capital social;
3 - foram ainda admitidos para a sociedade quatro novos sócios C, D, E e F, todos eles sócios minoritários;
4 - a B nunca teve uma contabilidade minimamente organizada mudando os contabilistas com frequência;
5 - devido à sua situação largamente maioritária - detinha 90964000 escudos do capital social, com 90964 acções - o Arguido geria e administrava a sociedade como bem entendia, sem qualquer controle, já que nomeava alguns dos membros da administração sem lhes dar conhecimento de tal, não tomando os mesmos posse, o mesmo se passando com o Conselho Fiscal;
6 - em 1988 a B adquiriu um prédio sito no Largo da Cruz de Celas, na cidade de Coimbra pelo preço de 35000000 escudos, através de um contrato de locação financeira celebrado com a firma FF, com sede na
Avenida da República, em Lisboa;
7 - nos termos deste contrato a B obrigou-se ao pagamento, durante um período de dez anos, de rendas semestrais no montante de 3421191 escudos cada uma;
8 - como o edifício necessitasse de obras, foi celebrado um contrato com a firma de construção "G, com sede na cidade de Coimbra, nos termos do qual esta procederia a obras de transformação e restauro do imóvel;
9 - tais obras foram efectuadas em 1988, 1989 e 1990, sendo o seu custo total sido de 17907497 escudos;
10 - fora combinado com o Arguido que as facturas relativas ao custo da obra seriam emitidas à medida que a obra se fosse executando e deveriam ser pagas a trinta dias, a partir da data de apresentação;
11 - em virtude de não ter sido incluído, aquando da celebração do contrato de leasing com a FF, o custo relativo a tais obras, pretendeu o Arguido alargar o contrato, de maneira a que o custo de tais obras fosse também abrangido pelo leasing;
12 - a FF, no entanto, para celebrar tal contrato e porque as obras já estavam terminadas, exigiu uma factura comprovativa do montante em que tais obras teriam ficado;
13 - pediu então o Arguido à firma G a passagem de uma factura relativa ao custo da obra, solicitando ainda que o valor a indicar o fosse pelo dobro do custo efectivo da obra;
14 - aquela firma, no entanto, recusou satisfazer o pedido do Arguido, não só porque tal não correspondia à verdade, mas também porque fora emitindo, à medida que as obras se iam realizando, facturas que foram entrando na contabilidade da firma, impossibilitando tal facto a passagem de uma só factura, que causaria sérios transtornos a nível contabilístico e fiscal;
15 - perante isso decidiu o Arguido mesmo assim, conseguir uma factura que lhe permitisse acesso ao leasing;
16 - para tanto, por modo que não foi possível apurar em concreto, obteve o Arguido uma factura da firma H, com sede em Aveiro, no montante total de 30817200 escudos relativa a obras de restauro no edifício - sede da B - em Coimbra, factura essa que nunca foi contabilizada pela B;
17 - Tal factura, com o n. 35, não foi emitida pela firma H, que desconhecia não só a sua existência como a da firma B, nunca tendo efectuado para esta quaisquer obras;
18 - na firma H as facturas são numeradas por ordem sequencial, independentemente do ano em que são passadas, pelo que a factura n. 35 efectivamente emitida pela H é datada de 13 de Novembro de 1986;
19 - a folhas 49 encontra-se junta a cópia de uma carta dirigida à FF e pretensamente assinada pelo sócio gerente da H, I, e na qual esta firma informa ter a B liquidado o montante relativo à factura referida no n. 18, sendo certo não ter sido tal carta subscrita pelo I;
20 - de posse de tal factura e efectuada que foi, pela FF, numa vistoria à sede da B, no sentido de confirmar se efectivamente, as obras tinham sido efectuadas, emitiu a FF um cheque, datado de 6 de Agosto de 1990, à ordem da B, no montante de 30817800 escudos, ficando esta com o encargo de pagar semestralmente à FF, para além do montante relativo à aquisição do edifício, e já referido em 9, à quantia de 3310130 escudos relativo às obras;
21 - a entrega das facturas e cartas referidas foram determinantes para a concessão e consequente emissão do cheque;
22 - através de uma carta sem qualquer referência, já que não se destina a figurar nos registos da B, autorizou o Arguido a entrega do cheque referido a J, empregada da B nos escritórios em Lisboa, que, por sua vez, o remeteu para a sede em Coimbra, no dia 7 de Agosto de 1990, ao cuidado de A, não constando esta carta também nos registos da B;
23 - recebido o cheque pelo Arguido o mesmo, valendo-se da sua qualidade de sócio-gerente da B, apôs no verso a sua assinatura e depositou-o na sua conta pessoal n. 6501038, deste modo se locupletando com a referida quantia em prejuízo da B;
24 - com tal actuação pretendeu e conseguiu o Arguido provisionar a sua conta de modo a permitir-lhe realizar parte do capital social que, como se referiu, não o fora na data da escritura;
25 - de facto, no dia 14 de Agosto de 1990 emitiu, sobre a sua conta do B.C.P. referida no n. 25, os seguintes cheques n. 81549744, no montante de 3000000 escudos, descontado em 14 de Agosto de 1990, n. 82042795, no montante de 8000000 escudos descontados em 17 de Agosto de 1990;
26 - no dia 23 de Agosto de 1990, o Arguido emitiu, sobre a mesma conta, os cheques ns. 82042986 e 82042985, nos montantes respectivamente de 6000000 escudos e 9000000 escudos;
27 - estes dois cheques, depositados tal como os restantes na conta da B n. 25024, do Banco Pinto e Sotto Mayor, em 22 de Agosto de 1990, não foram, nesta altura, ao contrário dos restantes, descontados na conta do Arguido. Mais tarde, no entanto, em 29 de Agosto de 1990, foram novamente depositados na conta da B. Dado que na contabilidade não foi feito o estorno respectivo aquando da devolução acima referida,
15000000 escudos, serviram para contabilizar 30000000 escudos;
28 - estes depósitos foram todos efectuados na conta da B n. 25024 e tiveram como finalidade a quitação do capital subscrito pelo Arguido, como resulta dos movimentos contabilísticos que passaram pelas contas do Plano Oficial da Contabilidade da B ns. 25511 - restantes accionistas - A e 264221 - outros devedores e credores - A. 29 - em 29 de Abril de 1990 tinham já sido movimentadas tais contas pelo montante de 47079000 escudos, com origem em contrapartidas na conta caixa, ou seja, no mesmo dia entrou e saiu da caixa a referida quantia, tendo tal movimento sido puramente contabilístico, já que naquele dia não entrou em caixa tal quantia;
30 - deste modo sem qualquer dispêndio pessoal, satisfez o Arguido, em parte, o seu capital social na firma ainda que de uma forma fictícia fruto dos expedientes contabilísticos referidos em prejuízo desta;
31 - a B só em parte pagou à firma G, ficando a dever
6000000 escudos, tendo em consequência sido a B accionada civilmente correndo pelo Tribunal Cível da cidade de Coimbra o respectivo processo com o n. 258/90 a correr termos pelo 1. Juízo, 1. secção;
32 - deixou a B de pagar também as prestações relativas ao contrato de Leasing celebrado com a FF pois em Junho de 1991, não estavam pagas as rendas de Novembro de 1990 e de Março de 1991;
33 - ao fazer uso da factura e da carta referidas que sabia falsificadas, conseguiu o Arguido induzir em erro a FF, levando-a à concessão do empréstimo, emitindo o cheque que o Arguido depositou na sua conta pessoal em prejuízo da B;
34 - bem sabia o Arguido ao actuar do modo descrito, que tal conduta lhe não era permitida e que consequentemente incorria em responsabilidade criminal;
35 - em 1988 e 1989 adquiriu o Arguido através do cartão unibanco de que era titular a B e como se constata da conta n. 633331 - deslocações e estadas, que se destinaram a custear deslocações do Arguido ao estrangeiro;
36 - em Março de 1988 foi celebrado entre a B e a Secção de Patinagem da Associação K um protocolo de cooperação entregando em contrapartida a B a quantia de 5000000 escudos. Assim emite a B o cheque n. 509499 sobre a sua conta do BPSM da cidade de
Coimbra que o Arguido em 3 de Janeiro de 1989 deposita na sua conta pessoal do BPSM n. 38002 (folhas 392 a 393) da referida Secção de Patinagem recebeu a referida quantia;
37 - em finais de 1988 o Arguido solicitou a ArturTrindade Ribeiro na altura chefe da secção de Reprografia da Associação K, a emissão de uma factura no montante de 1494550 escudos.
Dado que a B não devia à referida Reprografia a totalidade de tal montante, mas como era um bom cliente, foi emitida uma factura pro-forma (396) por não poder ser contabilizada;
38 - emitiu então a B o cheque n. 383252 sobre a sua conta do BPSM, já indicada, que o Arguido mais uma vez depositou na sua conta pessoal da mesma instituição bancária (folha 393);
39 - também no que toca aos cheques ns. 3383733 e 3383732 nos montantes respectivamente de 2411202 escudos e 1214661 escudos, emitidos sobre a sua conta já referida, foram os mesmos depositados em 29 de Junho de 1989 na conta pessoal do Arguido, naquela instituição bancária (folhas 397 a 400);
40 - deste modo provisionou o Arguido a sua conta pessoal do BPSM da agência de Coimbra, no ano de 1989 - o primeiro depósito data de 3 de Janeiro de 1989 e o último de 29 de Junho de 1989 - no montante de 10120413 escudos;
41 - relativamente à realização do capital social por parte do accionista C entregou este no dia 16 de Julho de 1990 ao Arguido A o cheque cuja cópia se encontra a folha 445 que aqui se dá por reproduzido, para a realização do seu capital social uma parte - 2500000 escudos - destinando-se a outra metade à compra de acções que o Arguido verbalmente prometeu vender;
42 - o Arguido, no entanto depositou o cheque na sua conta pessoal n. 65010380 (folha 445). No entanto contabilisticamente mandou o Arguido registar 2500000 escudos na posição societária do C e 2500000 escudos na sua posição, sendo certo embora que de facto, nenhum capital deu entrada na B, tendo sido tão só e apenas efectuado, um mero movimento contabilístico, apropriando-se o Arguido de tal quantia;
43 - em Outubro de 1990, o Arguido, acompanhado deM efectua uma viagem ao Reino Unido aí entrando em contacto com os representantes da firma Northwest Trust Limitada com sede em 26 Atlvol Street, Douglas, Ilha de Man com o objectivo de esta firma constituir uma outra, a Consultrade Limited, sociedade comercial de responsabilidade limitada destinada a prestação de serviços de consultadoria informática e que teria como sede a Ilha de Man e mais concretamente a sede da já referida Northwest Trust;
44 - regressado a Portugal iniciou-se então uma troca de correspondência entre a B e a Northwest Trust, entre o Arguido A e aquela firma e fruto dos contactos que tinham sido efectuados (174 a 191);
45 - em 8 de Novembro de 1990, via fax, a B solicita à Northwest a emissão de várias facturas totalizando 2000 libras, especificando que cada uma delas não deverá ultrapassar as 387 libras, já que para além de tal montante torna-se necessário a autorização do Banco de
Portugal (folha 174 com tradução a folha 247 - que aqui se dão por reproduzidas);
46 - em 7 de Janeiro de 1991 em resposta ao solicitado a Northwest Trust envia à B as facturas - cujas cópias se encontram juntas a folhas 199 a 209, que aqui se dão por reproduzidas - descriminadas a folha 197 (tradução a folha 268) no montante total de 2000 libras;
47 - foram então enviadas cartas ao BCP solicitando a emissão de cheques sobre o estrangeiro, que foram emitidos, tendo o Arguido ordenado o seu depósito numa conta n. 40269190 da Consultrade Limited, no Barclays Bank na Ilha de Man;
48 - na mesma altura em 8 de Novembro de 1990 o Arguido, na carta dirigida à Northwest e que acima se faz referência (folha 174 traduzida a folhas 247 e 248 que aqui se dá por reproduzida) confirmou o seu pedido de constituição da Consultrade, fornecendo os elementos identificativos da B);
49 - em 7 de Dezembro de 1990 o Arguido, em nome da B, solicitou a emissão de uma factura no montante de 3500 libras, referente a serviços de consultadoria e software, a emitir pela Consultrade;
50 - na sequência deste pedido é emitida e enviada a factura com o n. 1001, no valor de 3500 libras;
51 - em 28 de Dezembro de 1990 o Arguido, em nome da B, solicitou ao Banco Comercial Português que procedesse à emissão de cheque sobre o estrangeiro com a factura referida em 50;
52 - emitido tal cheque remeteu-o à Northwest Trust com a carta de folha 184, solicitando a abertura de uma conta no Barclays Bank, que foi efectuada (folha 185);
53 - em 4 de Fevereiro de 1991 o Arguido deu uma ordem para que, das 3500 libras, 3450 sejam transferidas para a sua conta pessoal n. 00177911100807 do Barclays Bank em Salamanca, Espanha;
54 - a folhas 832 a 834 encontram-se juntas cópias de facturas emitidas pela Consultrade Limited, facturas essas sobre as quais foram emitidos cheques ao estrangeiro, levantados da conta da B do BCP como resulta de folhas 903 a 908;
55 - todas estas facturas são emitidas pretensamente para pagamento de serviços de consultadoria prestados quer pela Northwest quer pela Consultrade. No que a esta diz respeito solicitou o Arguido A elaboração de um contrato de prestação de serviços de consultadoria (cópia junta a folha 180 traduzida a folha 259) contrato esse que foi efectivamente elaborado e enviado em 10 de Janeiro de 1991 (folha 193) com tradução a folhas 246 e 196 traduzida a folha 267 - e cuja cópia se encontra junta a folhas 210 e seguintes com tradução a folhas 277 e seguintes;
56 - com tal estratagema conseguiu o Arguido levantar da conta da B (um montante de 2211280 escudos) quantias depositadas na conta da firma Consultrade, cuja constituição ordenara com o fim de servir de capa
às suas actividades, eram depois transferidos para a sua conta do Barclays Bank, em Salamanca;
57 - o Arguido nunca prestou quaisquer serviços de consultadoria pelos quais tivesse de ser remunerado, assim como a Northwest também nunca prestou quaisquer serviços. Aliás todos os cheques emitidos para pagamento de facturas emitidas por aquela firma destinavam-se todos a ser depositados na conta do Arguido do Barclays Bank em Salamanca;
58 - em meados de 1990 o Arguido contactou a firma HM - Consultores, Limitada, com sede em Aveiro (esta firma dedica-se à consultadoria económico-financeira, elaborando projectos e pareceres de natureza económica, reorganização de empresas, etc) a cujo sócio-gerente fora apresentado algum tempo antes e mais concretamente, N, com a finalidade desta firma elaborar um dossier para financiamento, projecto que no entanto não se concretizou;
59 - tendo sido referido ao N que o Arguido era possuidor da mais importante firma de computadores e software de Coimbra e gozando a B de algum prejuízo, veio a H a solicitar os seus serviços ao Arguido A, no sentido de lhe ser fornecido software, assistência técnica e formação;
60 - quando ainda tinham sido fornecidas apenas os serviços mencionados na factura de folha 566 o Arguido em data que não foi possível apurar, mas em finais de 1990, dirigiu-se à sede da HM, munido dos recibos cujas cópias se encontram juntas a folhas 779 a 781, solicitando o pagamento desses mesmos recibos;
61 - tais recibos encontram-se todos datados de 31 de Dezembro de 1990 e foram emitidos na B por O, à data responsável pela facturação e serviços de clientes, que os fez corresponder às facturas cujas cópias se encontram juntas a folhas 560 a 566, por ordem do Arguido, que referiu que tratava pessoalmente do assunto. O referido O como o dinheiro ainda não dera entrada, escreveu nos recibos tratar-se de recibo provisório sendo os definitivos passados apenas quando o dinheiro desse entrada na B. Foi anotado nestes recibos (pago em dinheiro);
62 - em 20 de Maio de 1991, quando o Arguido vendera, já a sua posição naquela firma, ele solicitou à HM o pagamento das facturas no montante de 16034850 escudos.
Em resposta a este pedido de pagamento informou a HM não ser devedora de qualquer quantia a B e só, por mero lapso estaria a ser exigido tal pagamento;
63 - em 21 de Janeiro de 1991 a B celebra com a Sociedade Portuguesa de Leasing S.A. um contrato de locação financeira - cuja cópia se encontra junta a folhas 746 e seguintes - nos termos do qual é acordado a aquisição de equipamento informático, Macintosh, para ser utilizado na firma no valor de 18461430 escudos com o pagamento de 24 prestações mensais, no montante cada uma de 962959 escudos, com o valor residual de 393580 escudos mais IVA à taxa em vigor;
64 - tal material, no entanto já se encontrava na B tendo sido adquirido à firma Interlog - Informática, S.A.;
65 - nessa altura já a B se encontrava devidamente apetrechada com equipamento - a maioria IBM - não tendo sido adquirido Software que pudesse ser utilizado em equipamento Macintosh;
66 - todo o equipamento fornecido pela Interlog e abrangido pelo contrato de leasing supra referido - vide folha 1107 - deu entrada em fichas de stock em 1990, como resulta de folhas 548 a 557. A B encontrava-se totalmente equipada com um sistema operativo diferente da Macintosh, ou seja IBM. Este material destinava-se à venda no ano de 1990;
67 - o contrato de leasing efectuado sobre tal material posteriormente transforma tal equipamento em material adquirido para utilização própria, alugado pelo sistema de leasing;
68 - o cheque passado pela Sociedade Portuguesa de Leasing S.A. é emitido à ordem da Interlog (folha 789) e por esta recebido e não a B, firma com a qual foi celebrado o contrato de leasing;
69 - parte desse material foi vendido pela B como de um produto de venda normal se tratasse, quando é certo que como material alugado em leasing, nunca podia ser alienado ou vendido porque não era propriedade da empresa;
70 - quando já procedera à venda da B - em 8 de Maio transaccionara o Arguido todas as suas acções - assim na sua qualidade de legal representante da B sete cheques no montante total de 4500000 escudos, datados de 4 de Fevereiro de 1991 e outros de 14 de Maio de 1991 e
depositou-os na sua conta pessoal n. 5934752 do BCP em 15 de Maio de 1991 - folhas 599 e 771 a 777;
71 - estes cheques destinavam-se a pagar créditos que o Arguido tinha sobre a B;
72 - ao actuar do modo descrito fazendo uso de subterfúgios, valendo-se da sua condição de sócio maioritário da firma, com o objectivo de obter, como obteve, vantagens patrimoniais em prejuízo daquela, bem sabia o Arguido que tais condutas lhe não eram permitidas e que incorria em responsabilidade criminal;
73 - o Arguido neste momento, segundo declarou, aufere um vencimento mensal de 65000 escudos. A esposa advogada no início de carreira após o parto de uma filha de 9 meses de idade ainda não conseguiu colocação estável. Viveu em casa emprestada por um cunhado.
Confessou alguma materialidade, mas nunca a intenção.
Do seu certificado de registo criminal não constam condenações. Tem tido bom comportamento anterior. É de boa condição social.
Factos não provados que em Maio de 1995 o Arguido tivesse formulado o desígnio de, servindo-se da sua situação de sócio largamente maioritário e presidente do Conselho de Administração, vir a utilizar tal situação para obtenção de vantagens patrimoniais através de expedientes contabilísticos; que o aumento do capital social de 20000000 escudos para 100000000 escudos, aparentemente sinónimo de prosperidade e credibilidade da firma, não tinha qualquer tradução prática, sendo certo também que o Arguido nunca esteve interessado nessa prosperidade e credibilidade, mas apenas em que exteriormente, se reflectisse tal imagem, a fim de mais facilmente poder levar a cabo os seus objectivos; que sintomático disso o facto de o Arguido nunca, ter realizado integralmente o seu capital social e no prazo estipulado na escritura de aumento do capital; que não tivesse apresentado os respectivos comprovantes de despesas referentes ao cartão unibanco (35); que tivesse havido prejuízo para a B no que se refere aos depósitos referenciados em 40; que face ao pedido do Arguido A, porque já fora fornecido o material constante da factura junta a folha 566, e porque o Arguido lhe fora indicado como pessoa de bem, o gerente da HM pagou na integra o valor dos recibos o que fez a solicitação daquele, em numerário; que o Arguido tivesse recebido o dinheiro da HM; que se tivesse apropriado, em prejuízo da B, do montante de 4500000 escudos referido no ponto 70, que fez seu e ao qual deu destino que bem entendeu, bem sabendo que o mesmo lhe não pertencia a que não estava autorizado a tal.
O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa, sem prejuízo do despacho nos ns. 2 e 3 do artigo 410 do Código de Processo Penal, exclusivamente o reexame da matéria de direito.
A delimitação do âmbito do recurso é feito pelas conclusões da motivação do recorrente, não podendo o Tribunal de recurso conhecer de matéria nelas não incluída, salvo se o seu conhecimento for oficioso.
Questões a decidir.
Nulidades do douto acórdão - violação do regime dos artigos 82, n. 3, 97, n. 4 e 374, n. 2 do Código de Processo Penal.
Qualificação jurídica dos factos.
Medida da pena.
Suspensão da execução da pena.
O Arguido - recorrente foi condenado como autor material de um crime de burla, na forma continuada, sendo quatro as condutas que preenchem a continuação, as relativas a FF-H, à secção de reprografia da
Associação K, à realização do capital social de C e à Northwest Trust, Limitada - Consultrade Limited.
Em primeiro lugar interessa saber se estas condutas integram a continuação do crime de burla, isto é, se cada uma delas preenche os requisitos deste tipo legal de crime. Se a resposta for negativa, perdem interesse as restantes questões suscitadas, quanto à matéria penal.
São requisitos do crime de burla:
1) o agente tenha a intenção de obter para si, ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo;
2) com tal objectivo, astuciosamente, induza em erro ou engano o ofendido sobre factos;
3) assim determinando o mesmo ofendido à prática de actos que causem a este, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais.
Face a esta descrição o burlado-ofendido nas condutas do Arguido atrás referidas seriam: a) a FF; b) a B; c) C; e d) a B
No entanto face aos factos provados entendemos que as condutas referidas não preenchem todos os requisitos do crime de burla.
Vejamos.
Relativamente à FF, estão preenchidos todos os requisitos do crime de burla. Na verdade o Arguido querendo enriquecer o seu património à custa do da sociedade B de que era sócio gerente, solicitou a ofendida FF um empréstimo para a B para pagamento de obras que tinham sido por esta mandado fazer no prédio que havia adquirido. em Coimbra, e para tal apresentou uma factura no montante de 30817800 escudos da firma H - com sede em Aveiro, que obteve por forma não apurada, e relativa às obras efectuadas, e uma carta dirigida à FF pretensamente assinada pelo sócio-gerente da H, I, no qual se informava ter a B liquidado o montante da factura. A FF fez uma vistoria ao prédio em causa e confirmadas as obras, concedeu à B o empréstimo de 30817800 escudos, emitindo em nome desta o respectivo cheque, o que fez devido à factura e carta e a confirmação das obras, sendo o artifício querido pelo Arguido a factura e a carta que não correspondiam à verdade, e com elas enganando a FF. O crime de burla é um crime de resultado, tendo pois de haver prejuízo causado com a conduta criminosa ou ao burlado ou a terceiro. No caso em apreço o prejuízo foi causado à B que face ao empréstimo efectuado teria de ver aumentado o seu património no montante daquele e não viu pois este entrou sim no património do Arguido, com ele tendo pago o aumento de capital social que havia subscrito.
Quanto à secção de reprografia da Associação K não se verificam os requisitos do crime de burla. O Arguido pediu ao chefe da secção de reprografia a emissão de uma factura no montante de 1494550 escudos. A B não devia àquela secção tal montante, porém por ser um bom cliente, emitiu o chefe da secção uma factura pro-forma daquele montante, tendo a B emitido o respectivo cheque que o Arguido depositou na sua conta pessoal do BPSM. O chefe da secção de reprografia emitiu voluntariamente a factura pro-forma, não o tendo feito por induzido em erro ou engano por parte do Arguido. Quanto à B só se deu como provado que emitiu o cheque, não se tendo provado que essa emissão o foi por erro ou engano astuciosamente provocado pelo Arguido, o que era essencial para o crime de burla.
O mesmo sucede quanto à realização do capital social por parte do accionista C. Este entregou ao Arguido o cheque do montante de 5000000 escudos, sendo 2500000 escudos para a realização do seu capital social, e 2500000 escudos para pagamento de acções que o Arguido verbalmente prometeu vender. O Arguido, contabilisticamente, mandou registar 2500000 escudos na posição societária do C, e 2500000 escudos na sua posição, não tendo nenhum capital dado entrada na B, tendo o Arguido depositado o cheque na sua conta pessoal. Daqui resulta que só 2500000 escudos tinham de entrar na B por destinados à realização do capital social do C. Os outros dos 2500 contos destinavam-na a pagar acções que o Arguido lhe tinha prometido vender, pertencendo aquele e não à B. O cheque foi entregue voluntariamente pelo C e sem a utilização por parte do Arguido de qualquer artifício tendente a enganar aquele.
Quanto às firmas Northwest Trust, Limitada e Consultrade Limited sucede o mesmo, não preenchendo a conduta do Arguido o crime de burla. As facturas eram passadas por estas firmas a pedido do Arguido na qualidade de sócio-gerente da B, não sendo induzidas em erro ou engano pelo Arguido. Os cheques relativos às facturas eram depois emitidas pela B e os seus montantes apropriados pelo Arguido, mas não se diz que a emissão dos cheques pela B o foi por erro ou engano em que foi induzido astuciosamente pelo Arguido. De acordo com o que ficou descrito o Arguido cometeu, em autoria material, o crime de burla agravada, na forma consumada, então previsto e punido pelos artigos 313, n. 1 e 314 alínea c) do Código Penal de 1982 e actualmente previsto e punido pelos artigos 217, n. 1 e 218, n. 2 alínea a) do Código Penal de 1995.
Impõe-se agora ver se sofre o douto acórdão das nulidades invocadas.
Quanto ao pedido cível o Tribunal Colectivo decidiu:
"Assim considerando o teor do requerimento, a posição do demandante, o teor do pedido cível com interligação com algumas das variadissímas acções que correram e correm neste Tribunal, e a complexidade das mesmas, parece-nos não ser possível proferir uma decisão rigorosa pelo que nos termos dos artigos 82, n. 3 e 72, n. 1 alínea c) do Código de Processo Penal se remetem as partes para os meios comuns". Entende que existe violação dos artigos 7, 340 e 82 do Código de Processo
Penal. Não em nosso entender o Arguido - demandado legitimidade para recorrer desta decisão, pois não estamos perante decisão contra ele proferida - artigo 401, n. 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
No entanto sempre se dirá que o reenvio para os tribunais civis obedece ao disposto no n. 3 do artigo 82 do Código de Processo Penal e encontra-se devidamente fundamentado.
Entende o recorrente que foi violado o disposto no n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal quanto à indicação dos meios de prova, alegando que se deveria dizer em que medida eles foram relevantes para a decisão. No douto acórdão consta que a convicção para considerar provados os factos se fundamentou nas declarações e confissão parcial da materialidade, no depoimento das testemunhas que identifica, e também algumas com a razão de ciência, no certificado do registo criminal e nos documentos juntos aos autos.
Aquele dispositivo legal refere que a fundamentação da sentença termina com a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Tal indicação tem em vista habilitar o tribunal de recurso a verificar se os meios de prova que serviram para formar a convicção são ou não permitidos de acordo com os artigos 355 e seguintes do Código de Processo penal.
Conforme artigos 128 e seguintes deste Código os meios de prova são - prova testemunhal; declarações do Arguido, do assistente e das partes civis; por acareação; por reconhecimento; reconstituição do facto pericial; documental - pelo que a indicação referida no n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal é suficiente quando se refere tão só aos meios de prova em si, sem qualquer justificação porque se lhe deu crédito. De outro modo, tal como é pretensão do recorrente, ficaria o Tribunal de recurso a sindicar o uso feito pelo Tribunal recorrido do princípio da livre apreciação da prova, mesmo nos casos em que as declarações orais prestadas em audiência não são documentadas. Não se verifica a apresentada nulidade.
Não existe nos autos qualquer prova com força probatória plena - prova documental nos termos do artigo 169 do Código de Processo Penal e prova pericial nos termos do artigo 163 do mesmo Código - pelo que não viola qualquer preceito legal o ter-se dado como provado facto divergente do constante de documento sem aquela força probatória, uma vez que em audiência outra prova também foi produzida - prova testemunhal e declarações do Arguido.
Também não existe violação do n. 2 do artigo 374 do Código de Processo Penal por nem todos os factos constantes da acusação / pronúncia e da contestação terem sido enumerados como provados ou não provados. Só os factos essenciais para a decisão da causa têm de constar dessa enumeração e lendo aquelas peças processuais e o douto acórdão verifica-se que dela constam todos os factos essenciais para a decisão da causa.
Refere ainda o recorrente haver erro notório na apreciação da prova quando o douto acórdão nos ns. 26 e 27 da factualidade provada dá como provado terem sido emitidos em 23 de Agosto de 1990 cheques que se diz terem sido depositados em 22 de Agosto de 1990. Na verdade o Tribunal Colectivo deu como provado "No dia 23 de Agosto de 1990, o Arguido emitiu, sobre a mesma conta, os cheques ns. 82042986 e 82042985, nos montantes respectivamente de 6000000 escudos e 9000000 escudos" e "Estes dois cheques, depositados tal como os restantes, na conta da B n. 25024, do Banco Pinto e Sotto Mayor, em 22 de Agosto de 1990,...". Estas datas constavam já da pronúncia - folhas 1482 e seguintes sob os ns. 28 e 29). O facto em si não é de estranhar, pois a serem correctas as datas de emissão constante dos dois cheques estariamos perante cheques pré-datados. No entanto pode ter havido lapso de escrita que, a existir, é passível de rectificação, por não suportar modificação essencial (artigo 380, n. 1 alínea b) do Código de Processo Penal). No entanto essa correcção, se ela tem de ser feita por existir lapso de escrita, não o pode ser no Supremo Tribunal de Justiça, pela simples razão de que esse lapso não resulta do texto da decisão e para verificar a sua existência tem de se ter acesso à prova produzida, o que está fora dos poderes de cognição deste tribunal de recurso. A correcção em causa só pode ser efectuada no tribunal recorrido pela razão apresentada.
Finalmente teria de se entrar na determinação da medida da pena quanto ao crime cometido pelo Arguido - crime de burla agravada.
Quer no Código Penal de 1982 - artigo 313, n. 2, quer no Código Penal de 1995 - artigo 218, n. 3, a reparação do prejuízo causado releva para efeitos da determinação da medida da pena.
Segundo o Código Penal de 1982 havendo reparação integral os limites da pena serão reduzidos a metade, e sendo a reparação parcial será tomada em conta na respectiva proporção (artigo 301), tendo a reparação no entanto de ter lugar antes de ser instaurado o procedimento criminal.
Segundo o Código Penal de 1995 havendo reparação integral a pena é especialmente atenuada, e sendo a reparação parcial a pena pode ser especialmente atenuada (artigo 206), tendo a reparação de ter lugar até ao início da audiência de julgamento.
No entanto em qualquer dos casos sempre a reparação mesmo depois daqueles prazos teria de ser tomada em conta na medida da pena.
Sucede que o Arguido a folha 1934 veio expor e requerer a junção de documentos segundo os quais terá reparado o dano.
No douto acórdão recorrido não consta qualquer referência a esse facto, nem na factualidade provada nem na não provada, e como é indispensável para a boa decisão da causa, por poder influir na determinação da medida concreta da pena, podendo até alterar a moldura abstracta, sofre o douto acórdão do vício da alínea a) do n. 2 do artigo 410 do Código de Processo Penal - insuficiência da matéria de facto provada para a decisão - o que acarreta o reenvio do processo para novo julgamento quanto ao ponto factual referido, já que não é possível decidir sem esse vício ser suprido, o que só pode suceder na 1. instância por depender da produção de prova.
Conclusão:
Concede-se provimento parcial ao recurso interposto pelo Arguido A e, em consequência, decide-se:
a) as condutas do Arguido relativamente à Secção de Reprografia da Associação K, à realização do capital social por parte do accionista C e às firmas Northwest Trust, Limitada e Consultrade, Limited não preenchem os requisitos constitutivos do crime de burla;
b) cometeu o Arguido em autoria material, na forma consumada, o crime de burla agravada previsto e punido na altura pelos artigos 313, n. 1 e 314 alínea c) do Código Penal de 1982 e actualmente previsto e punido pelos artigos 217, n. 1 e 218, n. 2 alínea a) do Código Penal de 1995;
c) decretar o reenvio do processo para novo julgamento nos termos do artigo 436 do Código de Processo Penal relativamente a averiguar se o Arguido reparou integral ou parcialmente a lesada B, e em que data, do prejuízo causado com o acto praticado pela ofendida FF.
Por ter decaido parcialmente no recurso condena-se o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 ucs e a procuradoria em 1/4.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 1998
Andrade Saraiva
Lopes Rocha
Augusto Alves
Martins Ramires
Decisão impugnada:
3. Juízo do Tribunal de Círculo de Coimbra, Processo n.141/95.