Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4925/07.4TBGMR.G1.S1
Nº Convencional: 1.º SECÇÃO
Relator: URBANO DIAS
Descritores: EXPROPRIAÇÃO
DECISÃO ARBITRAL
CASO JULGADO
Nº do Documento: SJ
Apenso:
Data do Acordão: 10/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Doutrina: - Lebre de Freitas, Revista da Ordem dos Advogados, nº 66, Dezembro 2006, página 1514.
- Mariana França Gouveia, A Causa de Pedir na Acção Declarativa, páginas 392 a 433, em especial 413.
- Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, página 577 e seguintes.
Legislação Nacional: CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES: - ARTIGOS 23.º, N.º 4, 38.º, N.º1, 49.º, NºS 1, 2 E 3, 51.º, 61.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 678.º, N.º 2, 1525.º E SS..
Sumário : I- A decisão arbitral é uma verdadeira decisão.
II- Interposto recurso da decisão arbitral, por discordância com os valores encontrados para a determinação da justa indemnização, é também posta em crise a sua própria fundamentação.
III- De qualquer forma, admitido o recurso, não se pode falar em ofensa de caso julgado da decisão arbitral, no caso de não atendimento dos valores consagrados nos respectivos laudos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.
Relatório
A expropriada AA- T... de Guimarães - Transportes Públicos, L.da recorreu do acórdão arbitral que fixou a indemnização devida a pagar pela expropriante, Estradas de Portugal, E.P.E. em 95.130,72 €, pedindo que a mesmo fosse fixada em 211.255,20 €.

Seguiu-se a normal tramitação e, em sentença, a indemnização devida foi fixada em 145.613,92.

Inconformada, apelou a expropriante, mas em vão, porquanto o Tribunal da Relação de Guimarães confirmou na íntegra o julgado.

Continuando irresignada, pede, ora, revista do acórdão proferido, a coberto da seguinte síntese conclusiva com que fechou a sua minuta:
1. A decisão arbitral, como se afirmou na fundamentação do Assento do STJ de 24/7/79, é um verdadeiro julgamento — e não um simples arbitramento — integrando o primeiro dos três graus de jurisdição no sistema geral de recursos.
2. Por outro lado, o artigo 660°, nº 2, do Código de Processo Civil impõe ao juiz o dever de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, sendo certo que, nos termos do artigo 673º do mesmo diploma, a sentença constitui caso julgado, nos precisos limites e termos em que julga.
3. A expropriada defendeu para a localização e qualidade ambiental, a percentagem de 10% (artigos 26º e 33º do recurso), valor esse inferior ao definido no laudo arbitral (de 11%), e para custo da construção, o valor unitário de 325,00 euros/m2 (artigos 22º e 33º do recurso), correspondente ao valor definido no laudo arbitral.
4. O acórdão recorrido aderiu à concepção vertida na decisão proferida pela primeira instância, no sentido de que o recurso da decisão arbitral, ao discordar do valor do solo, englobou na sua discordância todos os parâmetros de cálculo de tal valor, mesmo aqueles com os quais concordou ou daqueles que ela considerou excessivos.
5. Ao determinar a indemnização do valor do solo de acordo com o laudo pericial maioritário na parte em que estabeleceu o montante de 350,00 €/m2, a título do custo de construção, e de 12%, a título de localização, superiores aos fixados no laudo arbitral que, nessa parte, não se encontra abrangido pelas razões de discordância invocadas pela expropriada, o acórdão recorrido violou a força de caso julgado de que a decisão jurisdicional arbitral se reveste e, designadamente, o disposto nos artigos 671°, nº 1 e 673° do Código de Processo Civil, 341º do Código Civil e no artigo 38º do Código das Expropriações.
6. O acórdão recorrido deve, pois, ser revogado e substituído por outro que, por força da observância do caso julgado arbitral, determine que a indemnização devida aos expropriados é de 127.829,20 €.

A Recorrida respondeu, em contra-alegações, defendendo a manutenção do acórdão impugnado.

2.
As instâncias deram como provados os seguintes factos:
1 – O Secretário de Estado das Obras Públicas, através de despacho de 10 de Fevereiro de 2003, declarou a utilidade pública e atribuiu carácter urgente às expropriações necessárias à construção da Concessão Norte – A 7 – IC 5 – lanço Guimarães-Fafe – sublanço Selho-Calvos (quilómetro 0+000 ao quilómetro 6+819), em cuja planta parcelar se inclui a parcela identificada no projecto de expropriações aprovado como parcela nº 49, com a área total de 2.928 m2.
2 – A parcela expropriada nestes autos é destacada do prédio rústico, com a área de 8.700 m2, sito no lugar de Sezim, na freguesia de Candoso (São Tiago), do Concelho de Guimarães, inscrito na matriz respectiva, sob o artigo 382, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães, sob o nº 00257/101192, inscrito a favor da Expropriada.
3 – A parcela confronta a Norte com restante prédio, a Sul com Estrada Municipal, a Nascente com restante prédio e a Poente com Estrada Municipal.
4 – A parcela expropriada tem um formato aproximadamente trapezoidal e o terreno é ligeiramente acidentado e apresenta alguns socalcos.
5 – A ponta SW, com a forma triangular e com uma área aproximada de 500m2, encontra-se classificada, pelo P.D.M. do Concelho de Guimarães, em “zona não urbanizável”.
6 – O restante terreno encontra-se inserido, pelo P.D.M. do concelho de Guimarães, em “zona de concentração industrial e armazenagem”.
7 – O acesso à propriedade faz-se por estrada pavimentada com pedra à fiada e caminho de servidão, também pavimentado em semi-penetração betuminosa.
8 – No local existe rede de distribuição de energia eléctrica, rede de abastecimento de água, rede de saneamento e telefone.
9 – À data da vistoria ad perpetuam rei memoriam existia, na parcela, uma vedação por rede em arame de 1,20 m de altura, apoiada em prumos de ferro em “T”, numa extensão de 120 metros.
10 – Por escrito, datado de 8 de Janeiro de 2008, a Expropriada prometeu vender e Morais & Matos, Indústria de Malhas, S.A. prometeu comprar-lhe a parte do prédio não abrangida pela expropriação, pelo preço de € 65,00/m2.
11 – É normal e frequente que os edifícios industriais disponham de um piso de rés-do-chão para as actividades industriais e um andar para serviços ou complementos da actividade produtiva primeira.
12 – Em muitos casos, quando o terreno tem um perfil variado, como é a situação dos presentes autos, ainda se aproveitam os desníveis para implantar uma cave para actividades complementares ou armazém de matérias-primas.
13 – A parcela de terreno encontra-se a uma distância de cerca de 3/4 Kms do centro da cidade, onde dispõe de todos os serviços sociais, de ensino a todos os níveis, de saúde, desporto e administrativos, além de se situar muito próxima de entradas e acessos às auto-estradas.
14 – No local e nas proximidades não existem focos de agressão ambiental, sendo predominante a área verde e arborizada na envolvência das áreas construídas e da parcela expropriada.

3.
Quid iuris?
Sob a capa de violação do caso julgado – violação, in casu, do julgado pelo tribunal arbitral – interpôs a entidade expropriante o presente recurso, ciente, certamente, de que, não fora isso, o mesmo seria, rejeitado, ao abrigo do disposto no artigo 66º, nº 5, do Código das Expropriações.
Com efeito, o nº 2 do artigo 678º do Código de Processo Civil permite a interposição de recurso para este Supremo Tribunal sempre que haja, da parte recorrente, a invocação de violação de caso julgado.
Deste modo, a questão que se nos coloca, com toda a premência, é a de sabermos se, efectivamente, a decisão do tribunal arbitral transitou em julgado, havendo, por isso, violação do mesmo, por parte das instâncias de recurso (tribunal de 1ª instância, em 1º lugar, e, de seguida, Tribunal da Relação).

No entendimento da Recorrente, frisado já em sede de apelação, o recurso interposto pela Expropriada circunscreve-se às razões de discordância e já não às de concordância com a decisão arbitral, transitando estas, por isso mesmo, em julgado.
Em consonância com essa ideia, defende que, o acórdão recorrido, aderindo à concepção vertida na decisão da 1ª instância, no sentido de que o recurso da decisão arbitral, ao discordar do valor do solo, englobou todos os elementos do cálculo que determinaram tal valor, mesmo aqueles com os quais concordou ou aqueles que ela considerou excessivos (conclusão 4ª), ao determinar a indemnização do valor do solo de acordo com o laudo pericial maioritário na parte em que estabeleceu o montante de 350,00 €/m2, a título de custo da construção, e de 12% a título de localização, superiores aos fixados no laudo arbitral, que, nessa parte não se encontra abrangido pelas razões invocadas pela expropriada, violou a força do caso julgado de que a decisão arbitral se reveste (conclusão 5ª).

Que dizer desta argumentação?
Antes de mais, importa precisar o alcance do caso julgado.
De acordo com o artigo 673º do Código de Processo Civil, “a sentença constitui caso julgado nos precisos termos em que julga: …”.
Como sabemos, o caso julgado material pode ser configurado como excepção ou como autoridade: ali implica uma não decisão sobre nova acção e pressupõe uma total identidade entre as duas; aqui briga com a aceitação de uma acção anterior, decisão esta que se insere, quanto ao seu objecto, no objecto da segunda acção, enquanto questão prejudicial.
Como sublinha Mariana França Gouveia, “a autoridade do caso julgado pode dividir-se entre a autoridade da própria decisão final da acção e a autoridade das decisões intermédias ou dos fundamentos”, correspondendo a primeira ao pedido e a segunda à causa de pedir, certo que “consistindo a causa de pedir na fundamentação do pedido, …, a autoridade do caso julgado só pode relacionar-se com a causa de pedir que diz respeito a decisão sobre fundamentos” (A Causa de Pedir na Acção Declarativa, páginas 392 a 433, em especial 413).
Ponto de difícil solução é, porém, saber, ao certo, o que é causa de pedir para efeito de relevância da autoridade do caso julgado. Problema que nos levaria a debater o que se considera instrumental e o que é essencial e que a Processualista citada dá conta da grande dificuldade que isso representa, concluindo que “a causa de pedir identifica-se com os factos essenciais, factos que são determinados e separados de todos os outros pela lei aplicável”, não sendo esta referência à norma suficiente, pois “os factos essenciais são os factos concretos, ou seja, temporal e espacialmente localizados”.
Lebre de Freitas, ressalvados casos muito excepcionais, defende claramente que o caso julgado se forma apenas no âmbito da parte decisória, não extravasando para os fundamentos dela (assim, por exemplo, Revista da Ordem dos Advogados, nº 66, Dezembro 2006, página 1514).
Para Miguel Teixeira de Sousa, “não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo” já que “o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
Por tal razão, se justifica que os “os fundamentos de facto não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”.
Isto, por regra que comporta, naturalmente, excepções – v.g. casos de prejudicialidade entre objectos e as relações sinalagmáticas entre prestações.
Este mesmo A., porém, não deixa de fazer notar que a fundamentação jurídica da decisão não forma caso julgado, mesmo quando os fundamentos de facto ficam englobados nesse caso julgado. Excepção a esta regra encontramo-la, por exemplo, nas previsões dos artigos 729º, nº 3 e 730º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil através das quais o Supremo, no caso de anulação com vista a ampliação da matéria de facto, fixa, desde logo, o regime jurídico aplicável ao caso, certo que as instâncias devem obediência plena a tal injunção por força do que está determinado no artigo 4º, nº 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Estudos Sobre O Novo Processo Civil, página 577 e seguintes).
Expostas estas breves, mas concisas, ideias, forçoso se torna concluir pelo não acolhimento da tese sufragada pela Recorrente.
A primeira nota (evidente nota) que cumpre lembrar, é que a decisão arbitral é uma verdadeira sentença de um tribunal arbitral necessário (artigo 1525º e ss. do Código de Processo Civil) (estamos, neste ponto, perfeitamente de acordo com o exposto pela Recorrente), pelo que, interposto recurso da mesma, não se forma caso julgado sobre a relação jurídica expropriativa que teve por objecto, quer quanto à decisão final, quer quanto aos fundamentos em que a mesma se alicerçou.
Perpassando os olhos sobre os artigos que regulam a tramitação o recurso à arbitragem, fácil é verificar que a decisão arbitral é proferida em conferência, devendo ser devidamente fundamentada e tomada por maioria, certo de que não se obtendo unanimidade, vale como tal a soma aritmética dos laudos que mais se aproximarem ou o laudo intermédio, se as diferenças entre ele e cada um dos restantes forem iguais. Estes laudos são juntos ao acórdão e devem ser devidamente justificados e conter as respostas aos quesitos que serviram de base ao cálculo da indemnização proposta, bem como a justificação dos critérios de cálculo adoptados e a sua conformidade com disposto no nº 4 do artigo 23º (o valor do cálculo deve corresponder ao valor real e corrente dos mesmos, numa situação de mercado normal) (artigo 49º, nºs 1, 2 e 3, do Código das Expropriações).
Tudo isto a permitir a conclusão de que os laudos dos árbitros constituem, se não toda, pelo menos, a parte substancial da fundamentação da decisão arbitral.
No caso em análise, houve, efectivamente uma decisão arbitral, visando determinar, à falta de acordo sobre o valor da indemnização (artigo 38º, nº 1, do supra citado Código), a qual, atempadamente, foi posta em crise, através do recurso interposto pela Expropriada, para o tribunal de comarca (artigo 51º).
Os fundamentos constantes dessa mesma decisão, como dito, não formam, por si só, caso julgado.
Neste particular aspecto do caso julgado, o que está verdadeiramente em causa é a decisão. Se esta, eventualmente, é posta em crise, por via de recurso, automaticamente que os seus fundamentos também o são, naturalmente.
Estes, como é bem salientado por Miguel Teixeira de Sousa, “não adquirem, quando autonomizados da decisão de que são pressuposto, valor de caso julgado”.
O que – repete-se – foi posto em crise com o recurso interposto da decisão arbitral foi a própria decisão que, no entender da parte Recorrente, não consagrou a indemnização justa, atento o que consagra, a este propósito, o artigo 23º do Código das Expropriações, arrastando consigo a própria fundamentação, para reapreciação.

Posta em crise a decisão arbitral, incumbe ao tribunal de comarca promover as diligências de prova com vista a poder habilitar-se a emitir pronúncia sobre a bondade daquela decisão.
De entre a prova que pode ser produzida, avulta, como obrigatória a avaliação (artigo 61º), devendo o juiz, em apreciação livre, decidir, fundamentando o veredicto.
Desta forma, nada impede o tribunal de 1ª instância de, na ânsia de encontrar o conteúdo justo da indemnização devida, ponderando todas as provas realizadas, fundar a sua decisão numa qualquer delas, desde que, como é evidente, motive devidamente a sua opção, nomeadamente ao nível da aceitação ou não do teor dos respectivos laudos, consagrando aquele ou aqueles que maiores garantias de justiça lhe ofereçam.

Antes de terminar, não parece despiciendo lembrar que, em sede de recurso, os laudos dos peritos surgem como verdadeiros meios de prova, ao passo que a decisão arbitral, tomada nos termos já assinalados, é uma verdadeira decisão e não um arbitramento.

Perante o que fica dito, ainda que de forma sinóptica, como defender que houve ofensa do julgado no acórdão arbitral, certo que o mesmo, como referido, foi posto em crise, pela entidade expropriada, recorrendo do seu teor (decisão e, consequentemente, fundamentos postos em crise, no seu conjunto) para o tribunal de comarca?

Ilegítima e incompreensível, portanto, a defesa da tese segundo a qual as instâncias de recurso – primeiro, o juiz de comarca e, depois, o Tribunal da Relação – estavam amarradas aos valores que serviram de fundamento à prolação da decisão arbitral: precisamente porque o valor encontrado, como sendo o correspondente à justa indemnização, não estava de acordo com a pretensão da expropriada, é que esta recorreu.

Ao contrário do defendido pela Recorrente não houve, pois, qualquer ofensa ao julgado pelo tribunal arbitral.
Queda, assim, sem qualquer sentido, a sua pretensão revogatória.

4.
Decisão:
Em conformidade, decide-se negar a revista e colocar o pagamento das custas devidas a cargo da Recorrente.


§§§


Supremo Tribunal de Justiça, aos 12 de Outubro de 2010.
Urbano Dias (Relator)
Paulo Sá
Mário Cruz