Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06B514
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
APRECIAÇÃO DA PROVA
RELAÇÃO
ARRENDAMENTO
INDEMNIZAÇÃO
MORA
OBRAS
Nº do Documento: SJ200603020005147
Data do Acordão: 03/02/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : 1. Como se não integra na excepção à proibição da admissibilidade de recurso a que se reporta o nº 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil, não pode o Supremo Tribunal de Justiça conhecer no recurso de revista do segmento decisório da Relação que decidiu manter a condenação do recorrente por litigância de má fé.
2. O erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.
3. O Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar no recurso de revista a decisão da Relação, sob aplicação do disposto no nº 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil, de não anular a decisão da matéria de facto por considerar inexistir nela contradição, ou de não ordenar a sua ampliação por não a considerar necessária.
4. A ampliação da matéria de facto a que se reporta o artigo 729º, nº 3, do Código de Processo Civil só pode ocorrer no que concerne a factos envolvidos de essencialidade para a definição da base jurídica do pleito articulados pelas partes ou que ao tribunal seja lícito conhecer nos termos do artigo 264º do Código de Processo Civil.
5. O artigo 1045º do Código Civil, que se reporta a indemnização pelo atraso da entrega do locado limitada ao valor das rendas, é motivado pela ideia de prolongamento de facto do contrato, ou seja, de projecção do pretérito para o presente da respectiva situação contratual e da consideração de que a renda praticada corresponderá ao prejuízo derivado da indisponibilidade pelo senhorio do prédio locado.
6. Apesar da entrega do locado ter ocorrido depois da data em que operou a revogação do contrato de arrendamento de duração limitada por iniciativa do locatário, mas ainda no limite temporal decorrente da intimação do locador, no quadro de realização de obras por este exigidas àquele, a situação não é qualificável de mora para efeito do disposto no artigo 1045º, nº 2, do Código Civil.
7. A prudente utilização do locado é a que é envolvida de zelo e cuidado normais na espécie de coisas em causa, como é o caso dos pequenos estragos, por exemplo, a afixação de anúncios ou reclamos da actividade do locatário, a abertura de algum orifício nas paredes para instalação de ar condicionado, a colocação de suportes nas paredes para estantes, quadros, imagens ou candeeiros.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I

Empresa-A intentou, no dia 21 de Novembro de 2001, contra o Empresa-B, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a pagar-lhe 4 681 910$ e juros de mora desde a citação, com fundamento no mau estado de conservação, de limpeza e de operacionalidade, no termo de contrato de arrendamento, de andares, no dispêndio por causa disso de 1 421 910$ e no atraso na sua entrega de um mês e respectiva privação do recebimento da renda no montante de 800 000$.
A ré, em contestação, afirmou que os andares não lhe foram entregues em bom estado, tê-los entregado na data convencionada e que, na data da restituição, apenas apresentavam deteriorações inerentes a uma prudente utilização e, em reconvenção, pediu a condenação da autora no pagamento de 2 510 000$ correspondentes ao valor das obras de conservação ordinária que neles efectuou, e a autora replicou, negando a realização de quaisquer obras durante a vigência do contrato de arrendamento.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 7 de Junho de 2004, por via da qual a autora foi absolvida do pedido reconvencional e a ré condenada a pagar-lhe € 15 845,92 e juros moratórios à taxa legal deste a data da citação e juros compulsórios à taxa anual de 5% desde a data do trânsito em julgado da sentença e, por litigância de má fé, no pagamento da multa de € 445 e indemnização, fixada no dia 30 de Setembro de 2004 no montante de € 2000.
Apelou a ré, englobando no recurso de apelação a condenação por litigância de má fé, e a Relação, por acórdão proferido no dia 27 de Setembro de 2005, negou provimento ao recurso.

Interpôs a apelante recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- não foi feita prova de questões relevantes para a decisão da causa, como saber o estado do locado no dia da entrega, se as suas deteriorações resultaram de utilização imprudente, se a recorrida já foi reembolsada das despesas incorridas pela sua seguradora ou se não procedeu às amortizações fiscais do locado e dos seus equipamentos;
- há contradição entre os factos mencionados sob 37 e os referidos sob 41, 44 a 46 porque não existiam em finais de Agosto os mesmos defeitos no locado encontrados em Junho e porque realizou, em Julho e Agosto, obras de reparação avultadas e as reparações feitas pela recorrida em Setembro já não se referem à quase totalidade dos citados defeitos de Junho;
- foi violado o artigo 1044º do Código Civil por ter sido dado como provado que o estado do locado em finais de Agosto, antes da conclusão das obras pela recorrente e da sua entrega, era igual ao existente na data da entrega;
- não pode dar-se como provado que todas as deteriorações do locado eventualmente existentes na data da entrega eram ilícitas em resultado de utilização imprudente;
- não incorreu em mora na entrega dos andares, pelo que a Relação violou o artigo 1045º do Código Civil;
- foram violados o artigo 120º do Regime do Arrendamento Urbano e a cláusula 6ª do contrato de arrendamento por não ter sido reconhecido o seu direito à indemnização pelas obras realizadas, das quais não beneficiou, na medida do enriquecimento da recorrida, e aplicaram-se indevidamente o 1046º do Código Civil e a cláusula 5ª do contrato;
- não litigou de má-fé, pelo que o tribunal violou o artigo 456º do Código de Processo Civil;
- deve revogar-se o acórdão por violação da lei substantiva, absolver-se a recorrente do pedido, da condenação por litigância de má fé e condenar-se a recorrida no pedido reconvencional ou devolver-se o processo ao tribunal recorrido para ampliar a matéria de facto ou dirimir a sua contradição.


II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. No dia 3 de Abril de 1997, representantes da autora e da ré declararam, por escrito, a primeira dar de arrendamento à segunda, por cinco anos, mediante o pagamento de 750 000$ mensais, o primeiro andar esquerdo e direito e o rés-do-chão esquerdo do prédio sito na Avenida Praia da Vitória, nºs. 5 e 5 A, em Lisboa, destinados à instalação dos escritórios da última, incluindo todo o mobiliário e equipamento neles existente, e ainda o que consta das seguintes cláusulas:
- quinta: no local arrendado não poderão fazer-se quaisquer obras sem a autorização escrita da senhoria, nos mesmos termos da anterior cláusula terceira, e as que se fizerem com essa autorização serão por ela fiscalizadas e não poderão ser demolidas, pois ficarão desde logo pertença dos locais arrendados, sem que possa alegar-se direito de retenção ou exigir-se indemnização por benfeitorias;
- sexta: a inquilina obriga-se, sob pena de indemnização, a proceder de sua conta a todas as limpezas e reparações interiores nos locais arrendados, incluindo a colocação de vidros nas janelas, reparações das canalizações de água, luz, esgotos e seus pertences, salvo as decorrentes do seu uso normal e prudente;
- sétima: durante o período de vigência deste contrato, a inquilina é a única responsável pelas despesas de utilização de energia eléctrica, água, gás e telefone e do aluguer dos respectivos contadores ou assinatura mensal;
- oitava: o arrendamento inclui o mobiliário e equipamento constantes do Anexo 1 deste contrato, do qual faz parte integrante;
- nona: findo o arrendamento, a inquilina obriga-se a entregar os locais arrendados em bom estado de conservação e limpeza, com todo o mobiliário, equipamento e pertences em bom estado e a funcionar na sua plenitude, sob pena de ter de indemnizar a senhoria ou repor os mesmos na situação existente na presente data;
- décima: a inquilina reconhece que os locais arrendados, no estado em que se encontram, realizam cabalmente o fim que se destinam e não carecem de qualidades necessárias a esse fim ou assegurados pela senhoria, e os locais arrendados, desde data anterior a 1980, são utilizados para fins não habitacionais.
2. Até então, os andares locados vinham sendo utilizados como escritórios de uma sociedade de advogados, tendo ficado ligados entre si, por forma a constituírem uma única unidade, um único escritório, estética e funcionalmente homogéneo, tendo todos os andares e respectivas divisões assoalhadas ficado equipados com sistema de alarme, iluminação especial, sistema sonoro, rede telefónica e aparelhos de ar condicionado.
3. O soalho tradicional dos corredores e halls dos três andares, em madeira, foi substituído por granito polido e equipados com o referido mobiliário de escritório, as instalações sanitárias do primeiro andar esquerdo e direito foram revestidas a mármore, equipadas com lavatórios, sanitas e autoclismos novos e, após a realização das obras, os andares tinham aspecto impecável, especificamente concebidos para escritórios vocacionadas para empresas que lidam com clientela numerosa e de grau sócio-económico elevado, a pintura das paredes, o chão de granito e as alcatifas dos diferentes compartimentos estavam em bom estado, não exigindo intervenção, não havia nenhum mobiliário danificado e o sistema de alarme e de som e o ar condicionado e a rede telefónica estavam a funcionar na sua plenitude, situação em que estavam na data da sua entrega à ré.
4. No dia 11 de Abril de 2000, a ré comunicou à autora, por escrito: "vimos, por este meio, nos termos e para os efeitos do disposto no Artigo 117º, nº 2, com remissão para o artigo 100º, nº 4, ambos do Regime do Arrendamento Urbano, revogar o citado contrato, o qual cessará no próximo dia 11 de Julho do corrente ano".
5. No dia 27 de Abril de 2000, a autora comunicou à ré, por escrito, além do mais: "considerando que a revogação do contrato de arrendamento em epígrafe produzirá os seus efeitos úteis a partir de 11 de Julho de 2000, considerando também que o arrendamento em apreço envolveu a cedência à vossa empresa de uma série de equipamento e outros materiais, inventariados, aliás, em documento anexo ao mesmo contrato de arrendamento, solicita-se a Vossas Excias. se dignem comunicar qual a data e hora que, entre os dias 1 e 11 de Julho, reputam mais conveniente para que a senhoria proceda à fiscalização do locado despejando".
6. Em Junho de 2000, as paredes estavam sujas e com buracos, no gabinete principal a alcatifa estava manchada, havia posters colados nas paredes, as instalações sanitárias estavam sujas, um espelho, um lavatório e um autoclismo estavam partidos, havia lixo diverso espalhado pelos andares, armários partidos, prateleiras amolgadas, as calhas das estantes não funcionavam bem, o sistema de alarme deixara de funcionar por completo, os aparelhos de ar condicionado estavam repletos de pó e a funcionar deficientemente, o sistema de som não funcionava por completo, havia fios de telefone arrancados e lâmpadas fundidas, faltavam dois comandos de ar condicionado e havia tomadas de electricidade e interruptores arrancados e desactivados.
7. No dia 28 de Junho de 2000, a autora enviou à ré uma carta, expressando: "venho pela presente solicitar a V. Exªs. que, até ao dia 11 de Julho de 2000, se dignem proceder a tudo o que entenderem por conveniente e adequado à reposição do espaço e mobiliário locados nas condições de limpeza, conservação e operacionalidade idênticas às existentes à data em que os mesmos vos foram entregues".
8. A ré comprometeu-se a restituir os andares nas condições iniciais em que os recebeu, não procedeu à sua entrega e do mobiliário e equipamento no dia 11 de Julho de 2000, e, posto isto, a autora colocou os três andares no mercado, sendo imediatamente contactada por uma sociedade de advogados, interessada em arrendá-los a partir do mês de Agosto de 2000.
9. No dia 29 de Agosto de 2000, a autora, através de mandatária, enviou à ré um fax, expressando: "Como é do Vosso conhecimento o locado em epígrafe ainda não se encontra nas condições em que o mesmo devia ter sido entregue à nossa constituinte no passado dia 11 de Julho. E a promessa assumida por Vossas Excias. de, até ao final do mês de Agosto, colocar o locado nas condições em que o mesmo vos fora entregue, está longe de estar integralmente cumprida. Acresce que nos termos contratualmente definidos com os novos inquilinos, estes têm o direito a ocupar o espaço em questão, nas mesmas condições em que estes vos foram entregues no passado, a partir do próximo dia 1 de Setembro. Neste contexto, fácil se torna perceber que a situação de incumprimento em que se encontram Vossas Excias. agrava bastante os prejuízos já sofridos pela nossa constituinte. Pelo exposto, e considerando a cordialidade das relações existentes entre ambas as partes, vimos pela presente solicitar a Vossas Excias. se dignem proceder à entrega do locado à nossa constituinte até ao próximo dia 2 de Setembro de 2000, nas condições exigidas e de acordo com as instruções daquela. Caso contrário, ficarão Vossas Excias. inequivocamente responsáveis por todos os prejuízos emergentes desta desagradável situação".
10. A ré realizou no locado, iniciadas em Julho, não tendo usufruído das mesmas, as seguintes obras: pintura do tecto e paredes, pintura de portas, janelas, ombreiras e rodapés, que importaram em quantia superior a 2 510 000$, que a ré pagou.
11. A ré prometeu à autora que, até ao final do mês de Agosto de 2000, lhe restituía os andares nas condições iniciais em que os recebeu, e só em 2 de Setembro de 2000 lhos entregou, bem como o mobiliário e o equipamento.
12. No final do mês de Agosto persistia a situação descrita sob 6, e a autora viu-se forçada não só a levar a cabo todas as reparações necessárias à reposição do estado anterior dos andares, mobiliário e restante equipamento locados e a suportar os respectivos custos, como ficou igualmente impossibilitada de cumprir pontualmente as obrigações assumidas perante a nova inquilina dos andares.
13. A autora teve de efectuar as seguintes reparações e trabalhos, correspondendo 102 141$ à limpeza e rectificação dos aparelhos de ar condicionado, 158 535$ à recuperação de alguns dos armários locados e à substituição dos equipamentos sanitários danificados - espelho de wc, sanita com autoclismo em loiça e lavatório - 391 950$ à revisão e reparação do sistema eléctrico dos andares locados, e 157 365$ aos trabalhos de remoção do lixo deixado pela ré e à limpeza dos andares locados, iniciadas em Julho.
14. A nova inquilina apenas pôde entrar na plena fruição dos andares no dia 16 de Setembro de 2000, ficando a autora privada de meio mês de renda.

III
A questões essenciais decidendas são as de saber se a recorrente deve ou não ser absolvida do pedido e a recorrida condenada no pedido formulado pela primeira ou anular-se o acórdão recorrido a fim de a Relação ampliar a matéria de facto ou suprir a sua eventual contradição.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões formuladas pela recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- pode ou não sindicar-se no recurso de revista o acórdão recorrido na parte que manteve a condenação da recorrente por litigância de má fé?
- pode ou não sindicar-se no recurso de revista o acórdão recorrido na parte relativa à decisão da matéria de facto?
- há ou não fundamento legal para a anulação oficiosa do acórdão recorrido para a ampliação da matéria de facto ou supressão de alguma contradição entre os factos provados?
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida;
- tem ou não a recorrida direito a exigir da recorrente indemnização correspondente ao dobro da renda por virtude da não entrega atempada do locado?
- tem ou não a recorrida direito a exigir da recorrente o que despendeu na realização de obras nas fracções prediais?
- tem ou não a recorrente direito a exigir da recorrida o que despendeu na realização de obras nas fracções prediais?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos pela análise da questão de saber se este Tribunal pode ou não conhecer da legalidade ou não do acórdão da Relação que manteve a condenação da recorrente no tribunal da 1ª instância por litigância de má fé no pagamento da multa de € 445 e da indemnização de € 2000.
A referida decisão assentou na circunstância de ter ficado provado que no momento da restituição o locado não apresentar apenas deteriorações inerentes a uma prudente utilização em conformidade com o fim do contrato e de a recorrente ter alterado a verdade quanto a factos que eram do seu conhecimento pessoal em contestação cuja falta de fundamento não devia ignorar.
O recurso próprio da decisão sobre a matéria de litigância de má fé é, naturalmente, de agravo, além do mais, porque só pode estar em causa a violação da lei de processo (artigos 691º, 733º e 740º, nº 2, alínea a), do Código de Processo Civil).
Como estamos no caso vertente perante um segundo grau de recurso, é inaplicável na espécie o disposto no nº 3 do artigo 456º do Código de Processo Civil, segundo o qual, relativamente à decisão que condene por litigância de má fé, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível um grau de recurso.
Expressa a lei que, sendo o recurso de revista o próprio, pode o recorrente alegar, além da violação da lei substantiva, a violação da lei de processo, quando desta for admitido recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil, de modo a interpor do mesmo acórdão um mesmo recurso (artigo 722º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Trata-se do princípio designado da unidade ou absorção, em que o recurso de revista, em razão do seu objecto essencial relativo à violação de normas jurídicas substantivas, arrasta para a sua órbita o conhecimento da violação de normas jurídicas adjectivas, próprio do recurso de agravo.
Todavia, para o efeito, exige a lei, como condição do conhecimento da violação de normas jurídicas processuais, que a decisão da Relação sobre essa matéria seja impugnável nos termos do n.º 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
A este propósito, estabelece a lei, por um lado, ser admissível recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação de que seja admissível recurso, salvo nos casos em que couber revista ou apelação (artigo 754º, nº 1, do Código de Processo Civil).
E, por outro, não ser admissível recurso de agravo do acórdão da Relação sobre decisão da 1ª instância, salvo se estiver em oposição com outro, proferido no domínio da mesma legislação pelo Supremo Tribunal de Justiça ou por qualquer Relação, e não houver sido fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos dos artigos 732º-A e 732º-B, jurisprudência com ele conforme (artigo 754º, nº 2, do Código de Processo Civil).
Ora, estamos no caso vertente perante um segmento decisório de um acórdão da Relação que conheceu de um segmento decisório da sentença proferida no tribunal da 1ª instância que condenou a recorrente em multa e indemnização à recorrida por litigância de má fé.
O referido segmento decisório não se integra na excepção à proibição da admissibilidade de recurso a que se reporta o nº 2 do artigo 754º do Código de Processo Civil.
Em consequência, não pode este Tribunal, no recurso de revista, em matéria de natureza processual, conhecer da parte da decisão proferida pela Relação de manutenção da parte da sentença proferida no tribunal da 1ª instância relativa à condenação da recorrente no pagamento de multa e indemnização por litigância de má fé.

2.
Atentemos agora na sub-questão de saber se pode ou não sindicar-se no recurso de revista o acórdão recorrido na parte relativa à decisão da matéria de facto.
A recorrente invocou, no recurso de revista, a falta de prova relativa à subsistência de deficiências do locado em Setembro de 2000, a errada apreciação das provas no que concerne ao facto de o mesmo, aquando da sua entrega, extravasava os danos decorrentes de uma prudente utilização, não terem sido objecto de selecção alguns factos que articulara na contestação e a contradição entre factos provados.
A recorrente invocou no recurso de apelação as mesmas questões relativas à decisão da matéria de facto proferida no tribunal da 1ª instância, e a Relação julgou-as improcedentes.
Salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro -LOFTJ).
Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Excepcionalmente, no recurso de revista, pode o Supremo Tribunal de Justiça sindicar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722º, n.º 2 e 729º, n.º 2, do Código Civil).
Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova sobre a matéria de facto formado pela Relação quando esta deu como provado um facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência, ou quando ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no nosso ordenamento jurídico de origem interna ou externa.
Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.
Acresce que o Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar no recurso de revista a decisão da Relação de não anular a decisão da matéria de facto por contradição ou de não ordenar a sua ampliação, isto é, com base no não uso ou no uso indevido dos poderes que lhe confere o nº 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil.
Com efeito, dessa matéria não permite a lei o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça da decisão proferida pela Relação (artigo 712º, nº 6, do Código de Processo Civil).
Por isso, e ainda porque, no restante, a decisão da matéria de facto em causa proferida pelo tribunal da 1ª instância, confirmada pela Relação, foi baseada em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgador, não pode este Tribunal sindicá-la no recurso de revista em toda a sua amplitude positiva e negativa.

3.
Vejamos, ora, se há ou não fundamento legal para a anulação oficiosa do acórdão recorrido para a ampliação da matéria de facto ou supressão de alguma contradição entre os factos provados.
Expressa a lei, a propósito do recurso de revista, que o processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito (artigo 729º, nº 3, do Código de Processo Civil).
Trata-se uma faculdade de ampliação da matéria de facto quando as instâncias a seleccionaram imperfeitamente, amputando-a de elementos que consideraram dispensáveis, mas na realidade indispensáveis para que o Supremo Tribunal de Justiça defina o direito aplicável ao caso espécie que deva apreciar.
A referida ampliação só pode, porém, efectivar-se no que concerne a factos articulados pelas partes, ou que ao tribunal seja lícito conhecer nos termos do artigo 264º do Código de Processo Civil, envolvidos de essencialidade para a definição da base jurídica do pleito.
O normativo que prevê a remessa do processo ao tribunal recorrido no caso de contradição na decisão da matéria de facto que inviabilize a decisão jurídica da causa constitui, de algum modo, corolário do normativo que o precede relativo à insuficiência da matéria de facto, sendo que a própria ampliação pode tornar-se necessária à supressão da contradição.
Tendo em conta a factualidade provada e o objecto do litígio, este considerado no confronto dos pedidos e da causa de pedir que lhes inere, a conclusão é no sentido de que se não verificam os pressupostos de anulação do acórdão recorrido a que se reporta o artigo 729º, nº 3, do Código de Processo Civil.

4.
Atentemos agora na natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida.
O contrato de locação consubstancia declarações negociais por via das quais uma das partes se vincula a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa e esta a pagar àquela determinada remuneração, r é qualificado de contrato de arrendamento quando o seu objecto mediato for uma coisa imóvel (artigos 1022º e 1023º do Código Civil).
O contrato de arrendamento urbano é aquele pelo qual uma das partes concede à outra o gozo temporário de um prédio urbano, no todo ou em parte, mediante remuneração (artigo 1º do Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pelo Decreto-Lei nº 321-B/90, de 15 de Outubro - RAU).
E é considerado realizado para comércio ou indústria o contrato de arrendamento de prédios urbanos ou de parte destes, além do mais, os destinados a fins directamente relacionados com a actividade comercial ou industrial (artigo 110º do RAU).
As partes podem estipular prazo não inferior a cinco anos para a duração efectiva dos contratos de arrendamento urbanos para a habitação ou outros fins (artigos 98º, nºs 1 e 2, e 117º do RAU).
O contrato de arrendamento celebrado entre duas sociedades comerciais com vista ao exercício de uma actividade industrial é de natureza comercial (artigos 2º e 13º, nº 2, do Código Comercial).
Tendo em conta as declarações negociais dos representantes estatutários da recorrente e da recorrida mencionadas sob II 1, tal como foram interpretadas nas instâncias, estamos perante um contrato de arrendamento de natureza comercial de prazo limitado e objecto mediato alargado pela inclusão de mobiliário e equipamento.
Do referido contrato resultaram para a recorrente e a recorrida, além do mais que aqui não releva, fora aquelas que constam das cláusulas quinta a nona acima referidas, para a última a obrigação de facultar à primeira o gozo do locado para o fim a que se destinava, e para esta a obrigação de pagar àquela a renda convencionada e de lhe restituir do locado findo o contrato (artigos 406º, nº 1,1031º e 1038º, alienas a) e i), do Código Civil).

5.
Vejamos agora a sub-questão de saber se a recorrida tem ou não direito a exigir da recorrente a indemnização correspondente ao dobro da renda por virtude da não entrega atempada da parte do imóvel em causa.
A Relação, em confirmação do decidido na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, assim considerou, fixando a indemnização correspondente ao período compreendido entre 11 de Julho e 2 de Setembro de 2000, em que a recorrida esteve privada do gozo do locado, com base na renda mensal de 806 874$, no montante de € 11 805,70.
A recorrente entende, porém, que só deve indemnizar a recorrida com base no valor da renda em singelo, sob o argumento de se não haver constituído na situação de mora a que se refere o nº 2 do artigo 1045º do Código Civil.
Os contratos de arrendamento de duração limitada renovam-se automaticamente no fim do prazo e por períodos mínimos de três anos, se outro não estiver especialmente previsto, quando não sejam denunciados por qualquer das partes (artigo 100º, nº 1, do RAU).
O arrendatário pode denunciar o contrato de arrendamento nos termos acima referidos ou revogá-lo a todo o tempo mediante comunicação escrita a enviar ao senhorio com a antecedência mínima de 90 dias sobre a data em que se operam os seus efeitos (artigo 100º, nº 4, do RAU).
A referida revogação do contrato de arrendamento, que em rigor o não é por não derivar de acordo entre o senhorio e o arrendatário, traduz-se na cessação dos seus efeitos por via de declaração unilateral do arrendatário geradora dos pertinentes efeitos na data da sua recepção pelo senhorio (artigo 224º, nº 1, do Código Civil).
Tendo em linha de conta a factualidade mencionada sob II 4, a comunicação que a recorrente dirigiu ao recorrido no dia 11 de Abril de 2000 produziu os efeitos de cessação do contrato de arrendamento em causa no dia 11 de Julho seguinte.
Entre as obrigações do arrendatário em geral conta-se a de restituir a coisa locada findo o contrato de arrendamento, em regra no estado em que o recebeu (artigos 1023º, 1038º, alínea i) e 1043º do Código Civil).
Como o contrato de arrendamento em causa cessou, por iniciativa da recorrente, no dia 11 de Julho de 2000, certo é que, nessa data, em princípio, ela devia entregar o locado à recorrida, o que não aconteceu.
Todavia, treze dias antes da referida data, a recorrida solicitou à recorrente que até ao seu termo procedesse ao que entendesse conveniente e adequado à reposição do locado, incluindo o mobiliário, nas condições de limpeza, conservação e operacionalidade idênticas às existentes à data da entrega.
Resulta, pois, da mencionada comunicação que a recorrida pretendia a entrega do locado nas condições de limpeza, conservação e operacionalidade idênticas às existentes à data do arrendamento, o que implicava, tendo em conta a globalidade dos factos provados, a necessidade de realização nele de obras pela recorrente.
Acresce que, um mês e dezoito dias depois da referida data, a recorrida expressou à recorrente, por um lado, não se encontrar o locado nas condições em que deveria ter sido entregue e que a promessa por ela assumida de o entregar até ao fim de Agosto nas condições em que lhe fora entregue não havia sido cumprida, e que os novos inquilinos tinham direito de ocupar o locado a partir de 1 de Setembro de 2000 nas mesmas condições em que a recorrente o ocupou.
E, por outro, que a situação de incumprimento da recorrente agravava bastante os prejuízos já sofridos, e que, considerando cordialidade das relações existentes entre ambas as partes, lhe solicitava que procedesse à entrega do locado até ao dia 2 de Setembro de 2000, nas condições exigidas, de acordo com as suas instruções e que, no caso contrário, ficaria responsável por todos os prejuízos emergentes da desagradável situação em causa.
E a recorrente depois de realizar as obras que realizou, entregou os andares à recorrida no referido dia 2 de Setembro de 2000.
Expressa a lei, por um lado, que se a coisa locada não for restituída, por qualquer causa, logo que finde o contrato, o locatário é obrigado, a título de indemnização, a pagar ao locador, até ao momento da restituição, a renda que as partes tenham estipulado, excepto se houver fundamento para consignar em depósito a coisa devida (artigo 1045º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, para a hipótese de o locatário se constituir em mora, que a referida indemnização é a correspondente ao dobro do montante da aludida renda (artigo 1045º do Código Civil).
Assim, independentemente, da causa da não entrega do locado pelo locatário ao locador findo o contrato, quer este finde por revogação, por denúncia, resolução ou caducidade, o último está legalmente vinculado a indemnizar o locador nos termos do nº 1 do referido artigo normativo, salvo se o primeiro tiver, no confronto com este último, fundamento de consignação em depósito.
Há fundamento para a consignação em depósito, por exemplo, no caso de mora do locador, ou porque o locatário não pôde realizar-lhe a entrega do locado, ou porque não a pôde realizar em segurança por motivo relativo à pessoa daquele (artigo 841º, nº 1, do Código Civil).
É uma indemnização pelo atraso da entrega do locado limitada ao valor das rendas, sob motivação de prolongamento de facto do contrato, ou seja, de projecção do pretérito para o presente da respectiva situação contratual e da consideração de que a renda praticada corresponderia ao prejuízo derivado da indisponibilidade pelo senhorio do prédio locado.
Tendo em conta o que se prescreve no nº 1 do artigo 1045º do Código Civil, no confronto com o disposto no seu nº 2, o vencimento da obrigação da entrega da coisa locada não ocorre no momento em que termina o contrato, mas no momento em que o locatário é interpelado pelo a fim de proceder à respectiva entrega (artigo 805º, nº 1, do Código Civil).
A propósito da mora, expressa a lei que o devedor nela se considera constituído quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido (artigo 804º, nº 2, do Código Civil).
Assim, a situação de mora envolve não só o acto ilícito, ou seja, a inexecução da obrigação no vencimento, como também a culpa do devedor, isto é, que aquela lhe seja censurável do ponto de vista ético jurídico.
Entre a data em que cessou o contrato de arrendamento e aquela em que a recorrente entregou os andares à recorrida mediaram um mês e vinte e um dias; mas a recorrida pretendia, não a sua entrega pura e simples, mas a sua entrega precedida das necessárias reparações que, pela sua extensão, se não conformava com a desejada rapidez.
Daí que a recorrida, para que a recorrente lhe entregasse os andares no estado próximo daquele em que os recebera aquando da celebração do contrato de arrendamento, lhe tivesse solicitado, referenciando cordiais relações entre ambas, que procedesse à referida entrega até ao dia 2 de Setembro de 2000, sob pena de ser responsável pelos prejuízos decorrentes.
Ora como a aludida entrega dos andares ocorreu na data limite fixada pela recorrida, no referido quadro de realização de obras nas aludidas fracções prediais, por ela exigidas, tendo em conta os elementos do conceito de mora a que acima se fez referência, a conclusão é no sentido de que a recorrente, para o efeito previsto no artigo 1045º, nº 2, do Código Civil, nela não incorreu.
Em consequência, não tem a recorrida o direito de exigir à recorrente a indemnização corresponde ao dobro do montante da renda pelo atraso de restituição das referidas fracções prediais, apenas lhe podendo exigir a indemnização a que alude o artigo 1045º, nº 1, do Código Civil.

6.
Atentemos agora se a recorrida tem ou não direito a exigir da recorrente o pagamento da quantia de € 4 040, 20 por ela despendida nas reparações realizadas no locado após a sua entrega.
A recorrente negou esse direito invocado pela recorrida, afirmando que, aquando da restituição do locado, este só apresentava deteriorações inerentes a uma prudente utilização na conformidade com o fim do contrato.
As partes convencionaram, ao abrigo do disposto no artigo 405º, nº 1, naturalmente com sujeição à vinculação que decorre do artigo 406º, nº 1, ambos do Código Civil, que, findo o arrendamento, a recorrente se obrigava a entregar os locais arrendados em bom estado de conservação e limpeza, com todo o mobiliário, equipamento e pertences em bom estado e a funcionar na sua plenitude, sob pena de ter de indemnizar a recorrida ou repor os mesmos a situação existente na data do arrendamento.
A propósito, expressa a lei, por um lado, que, na falta de convenção em contrário, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvadas as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato (artigo 1043º, nº 1, do Código Civil).
E, por outro, presumir-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção, quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega (artigo 1043º, nº 2, do Código Civil).
A prudente utilização do locado é a que é envolvida de zelo e cuidado normais na espécie de coisas em causa, considerando-se como tal, como foi referido na sentença proferida no tribunal da 1ª instância, os pequenos estragos, por exemplo, a afixação de anúncios ou reclamos da actividade do locatário no prédio, a abertura de algum orifício nas paredes para instalação de ar condicionado, a colocação de suportes nas paredes para estantes, quadros, imagens ou candeeiros.
Em consequência da referida presunção, não tendo sido descrito o estado do locado ao tempo da celebração do contrato de arrendamento, o ónus de prova de que o locado lhe foi entregue em mau estado de conservação incumbe ao locatário (artigo 350º do Código Civil).
Ora, no caso vertente, a recorrente não ilidiu a mencionada presunção e, ao invés, reconheceu em cláusula inserida no texto do contrato de arrendamento, que o locado, no estado em que se encontrava, realizava cabalmente o fim que se destinava e que não carecia de qualidades necessárias a esse fim ou assegurados pela recorrida.
A conclusão é, por isso, no sentido de que a recorrente recebeu o objecto mediato do contrato de arrendamento em causa em bom estado de manutenção.
É lícito ao arrendatário realizar pequenas deteriorações no prédio arrendado, quando elas se tornem necessárias para assegurar o seu conforto ou comodidade, as quais, salvo estipulação em contrário, devem ser reparadas antes da restituição do prédio, salvo estipulação em contrário (artigo 4º do RAU).
Tendo em conta a factualidade mencionada sob II 6 e 13, primeira parte, a conclusão, tal como foi considerado no acórdão recorrido ao subscrever a sentença proferida no tribunal da 1ª instância, o estado do locado e do respectivo mobiliário, funcionalmente destinados a escritórios da recorrente, extravasava do dano ou estrago correspondente a uma prudente utilização.
O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não exceptuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela (artigo 1044º do Código Civil).
A recorrente, no fim do contrato, mais precisamente no dia 2 de Setembro de 2000, apesar das obras de pintura que realizou nas fracções prediais, entregou à recorrida o locado e o mobiliário em mau estado de conservação e de limpeza, o que motivou a última a proceder à sua reparação e limpeza, com o que despendeu a quantia de 809 991$.
Trata-se de deteriorações ilícitas e culposas imputáveis à recorrente, pelo que ela responde no confronto da recorrida, nos termos do artigo 1044º do Código Civil, pelo dano que lhe causou e que se cifrou, considerando a espécie de moeda de então, no montante de 809 991$.
Em consequência, tem a recorrida o direito de exigir da recorrente a indemnização correspondente ao referido dispêndio na restituição das fracções prediais em causa ao estado de manutenção que a última devia ter assegurado e não assegurou.

7.
Vejamos agora se a recorrente tem ou não direito a exigir da recorrida o que despendeu na realização de obras nas fracções prediais.
A recorrente realizou no locado obras de pintura do tecto e paredes, pintura de portas, janelas, ombreiras e rodapés, iniciadas durante o mês de Julho de 2000, no que despendeu não mais de 2 510 000$, e pretende que a recorrida seja condenada a pagar-lhe a referida quantia, afirmando tratar-se de obras de conservação ordinária de que não beneficiara.
Afirmou ter o acórdão recorrido infringido o artigo 120º do Regime do Arrendamento Urbano e a cláusula sexta do contrato de arrendamento celebrado com a recorrida.
Vejamos em primeiro lugar o que resulta da lei. Nos prédios urbanos, para efeito do regime de arrendamento urbano, podem ter lugar obras de conservação ordinária ou extraordinária e de beneficiação (artigo 11º, nº 1, do RAU).
As obras de conservação ordinária são as concernentes à limpeza do prédio e suas dependências, as impostas pela Administração Pública, nos termos da lei geral aplicável e que visem conferir ao prédio as características apresentadas aquando da concessão da licença de utilização e, em geral, as destinadas a manter o prédio nas condições requeridas pelo fim do contrato e existentes à data da sua celebração (artigo 11º, nº 2, do RAU).
As obras de conservação extraordinária são, por seu turno, as ocasionadas por defeito de construção do prédio ou por caso fortuito ou de força maior e, em geral, as que não sendo imputáveis a acções ou omissões ilícitas perpetradas pelos senhorio, ultrapassem, no ano em que se tornem necessárias, dois terços do rendimento líquido desse mesmo ano (artigo 11º, nº 3, do RAU).
Finalmente, as obras de beneficiação são as que não sejam de qualificar como ordinárias ou extraordinárias (artigo 11º, nº 4, do RAU).
No caso de contratos de arrendamento para o exercício da indústria ou do comércio, as partes podem convencionar, por escrito, que quaisquer das referidas obras fiquem total ou parcialmente a cargo do arrendatário (artigo 120º, nº 1, do RAU).
Nesse caso, salvo cláusula em contrário, quando o arrendatário suporte o custo das aludidas obras, deve o senhorio, no termo do contrato, indemnizá-lo, de acordo com as regras do enriquecimento sem causa (artigo 120º, nº 2, do RAU).
Todavia, a recorrente e a recorrida convencionaram, sob a cláusula sexta, que a primeira se obrigava, sob pena de indemnização, a proceder de sua conta a todas as limpezas e reparações interiores nos locais arrendados, incluindo a colocação de vidros nas janelas, reparações das canalizações de água, luz, esgotos e seus pertences, salvo as decorrentes do seu uso normal e prudente.
O artigo 120º do Regime do Arrendamento Urbano e a cláusula sexta do contrato de arrendamento reportam-se a obras de conservação ordinária a realizar durante o vigência do contrato de arrendamento, que a recorrente não realizou, certo que as que empreendeu ocorreram depois do termo daquele contrato e com vista ao cumprimento, além do mais, da cláusula nona daquele contrato.
É irrelevante a circunstância de a recorrente não haver beneficiado das obras que realizou, certo que delas não podia beneficiar, porque quando as empreendeu já estava extinto o contrato de arrendamento no âmbito do qual se vinculou à sua realização.
Com efeito, a recorrente ficou vinculada, por via da referida cláusula a entregar os andares em bom estado de conservação e limpeza, com todo o mobiliário, equipamento e pertences em bom estado e a funcionar na sua plenitude, sob pena de ter de indemnizar a recorrida ou repor os mesmos a situação existente na data do contrato.
Na realidade, as obras que a recorrente empreendeu nas fracções prediais visaram a reposição das condições de utilização normal, em conformidade com a vinculação a que estava sujeita, à margem do regime legal próprio das benfeitorias.
Em consequência, não tem a recorrente o direito de exigir da recorrida indemnização em razão das obras que realizou na área do prédio urbano que havia constituído o objecto mediato do contrato de arrendamento em causa.

8.
Atentemos, finalmente, na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
Não pode este Tribunal sindicar no recurso de revista o acórdão recorrido na parte que manteve a condenação da recorrente por litigância de má fé, nem na parte relativa à decisão da matéria de facto.
Não há fundamento legal para a anulação oficiosa do acórdão recorrido para a ampliação da matéria de facto ou supressão de alguma contradição entre os factos provados.
A recorrente e a recorrida celebraram um contrato de arrendamento de natureza comercial cujo objecto mediato se destinou ao exercício de uma actividade industrial.
A recorrida só tem direito a exigir da recorrente, pelo atraso na restituição das fracções prediais em causa, indemnização correspondente ao valor da renda praticada no termo do contrato de arrendamento a que se reporta o artigo 1045º, nº 1, do Código Civil.
A recorrida tem direito a exigir da recorrente o que despendeu na realização de obras nas fracções prediais, mas a recorrente não tem direito a exigir da recorrida o que despendeu na realização das obras que nelas empreendeu.

Em consequência, procede parcialmente o recurso, ou seja, apenas no que concerne à redução do objecto da condenação da recorrente no valor de € 5 902, 70, mantendo-se no restante o conteúdo do acórdão recorrido.
Parcialmente vencidas no recurso, são a recorrente e a recorrida responsáveis pelo pagamento das custas respectivas, na proporção do vencimento (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).


IV
Pelo exposto, revoga-se o acórdão recorrido no que concerne ao segmento que condenou a recorrente a pagar à recorrida a quantia de onze mil e oitocentos e cinco euros e setenta cêntimos, e condena-se aquela, em sua substituição, no pagamento à recorrida da quantia de cinco mil e novecentos e dois euros e oitenta e cinco cêntimos, mantendo-se no mais o conteúdo do acórdão recorrido, e condenam-se a recorrente e recorrida no pagamento das custas dos recursos e da acção na proporção do referido vencimento.

Lisboa, 2 de Março de 2006.
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Armindo Luís