Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1114/21.9T8BJA.E1-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: DUPLA CONFORME
FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE
NOTIFICAÇÃO AO MANDATÁRIO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
RECLAMAÇÃO
DOLO
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: ACLARAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :

I Verifica-se uma situação de dupla conformidade, decisória e de fundamentação, se o Tribunal da Relação, para além de confirmar integralmente e sem voto de vencido, a sentença, se limitou, nos seus fundamentos, a afirmar que o apelante nada invocou que possa infirmar o decidido na sentença, aceitando a fundamentação por esta desenvolvida.

II A falta de notificação de peça processual entre mandatários e apresentação de peça processual, em que são transcritas alegações de uma peça anterior, são condutas que, só por si e desprovidas de elementos factuais adicionais, não constituem litigância de má fé, por falta de dolo ou de negligência grosseira.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA (réu e recorrente), veio apresentar reclamação para a Conferência do despacho singular da Relatora, que não admitiu o recurso de revista por si interposto, confirmando o despacho do Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões:

«1) A presente Reclamação é interposta do Douto Despacho do Ex.mo Juiz Desembargador Relator do Tribunal da Relação de Évora (1ª Secção Cível) proferido em 21-10-2023, despacho esse que não admitiu recurso de revista interposto do Douto Acórdão, proferido por este Tribunal em conferencia e datado de 15-06-2023, nos termos dos artigos 641º, nº 2 alínea a) e 671º nº 3 ambos do CPC.

2) Com todo o respeito pelo entendimento sufragado no Douto Despacho, diverge o reclamante do mesmo.

3) Desde logo porque, o Tribunal “a Quo” aceita como verdadeiro e provado, nomeadamente através da prova documental, toda o alegado pelo reclamante.

4) Ficou claramente provado, pelo o Tribunal “a Quo”, que o reclamante era o proprietário da herdade até a meados do ano de 2020.

5) Tendo sido, só no decorrer do ano de 2020, que a Autora registou a herdade em seu nome, bem como procedeu à inscrição desta no parcelário.

6) Pelo que, não pode o Tribunal “a Quo” condenar o reclamante a seu belo prazer, na medida em que o Tribunal “a Quo” deu por provado todo o alegado pelo reclamante.

7) Ao proceder desta forma está o Tribunal “a Quo” a não observar a lei vigente,

8) Daí que, salvo devido respeito pelo Tribunal “a Quo”, não podia decidir como decidiu, assim a ser significa coatar os direitos que o reclamante possui.

9) Tal como provado, o reclamante, em 3 de Maio de 2019, acordou com a sociedade A... Unipessoal, Lda., a venda de material lenhoso em pé existente na Herdade ..., prevendo que a madeira fosse cortada até 31 de Dezembro de 2021.

10) Sendo certo e provado, que no decorrer do ano de 2019, o reclamante era o legitimo proprietário da herdade, prova essa documental e junta, pelo que o reclamante à data poderia celebrar os contratos a seu belo prazer. 11) Pelo que não existem fundamentos para a condenação do reclamante na presente ação.

12) Ora, não pode efetivamente a reclamante concordar com o douto Acórdão, desde logo porque, foi provado a sua legitimidade até ao ano de 2020,

13) Salvo devido respeito pelo Tribunal “a Quo”, andou mal este tribunal ao decidir conforme decidiu,

14) Assim, ao decidir da forma supra descrita errou na apreciação dos factos, não se mostrando assim que o Tribunal “a Quo” tenha sido suficientemente exigente na formação da sua convicção,

15) Sendo certo que, que o Tribunal “a Quo” deu como provada o alegado com base e suporte na prova documental,

16) Todas estas circunstâncias supra elencadas só poderiam conduzir a um resultado distinto, ou seja, na absolvição do reclamante, resultado distinto daquele que veio a ser considerado pelo Tribunal “a Quo”,

17) Daí que, salvo devido respeito pelo Tribunal “a Quo”, não podia decidir como decidiu, ao proceder deste modo significa coatar os direitos que o reclamante possui.

18) Assim, ao decidir da forma supra descrita errou na apreciação dos factos e na prova documental, não se mostrando assim que o Tribunal “a Quo” tenha sido suficientemente exigente na formação da sua convicção,

19) Sendo certo que, deu como provada a prova documental, nomeadamente da legitimidade como proprietário do reclamante.

20) Existe uma oposição entre a fundamentação e a decisão sendo causa de Nulidade do Acórdão segundo o disposto no artigo 615 alínea c) do nº 1 do CPC.

21) O Tribunal “a Quo” violou assim o disposto nos artigos 615 nº 1 c) do Código de Processo Civil e dos artigos 483º, 487º, 473º, 474º e 479º todos do Código Civil.

22) Mais, será de aplicar o art. 671.º, n.º 3, do NCPC (2013), que, salvo os casos em que o recurso é sempre admissível, a regra da dupla conforme impera a não ser que haja fundamentação essencialmente diferente.

23) Todas estas circunstâncias supra elencadas só poderiam conduzir a um resultado distinto daquele que veio a ser considerado pelo Tribunal “a Quo”,

24) Igualmente, perante o supra exposto, e porquanto não resulta da motivação da sentença, não se percebe de que forma é que o Tribunal “a Quo” formou uma certeza absoluta relativamente à decisão proferida.

25) Assim, deverá ser revogado o despacho proferido e substituído por outro que admita o recurso.

TERMOS EM QUE, SEMPRE SEM PRESCINDIR DO DOUTO SUPRIMENTO DE VEXA., DEVE A PRESENTE RECLAMAÇÃO SER ATENDIDA E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REPARADO O DOUTO DESPACHO DO SENHOR JUIZ CONSELHEIRO RELATOR DO STJ E, EM CONSEQUÊNCIA, SER O RECURSO JULGADO EM CONFERÊNCIA, SENDO, A FINAL OBTIDO PROVIMENTO, POIS É DA MAIS ELEMENTAR JUSTIÇA».

2. A reclamada, N..., S.A. (autora e recorrida), respondeu à reclamação, terminando a sua alegação do seguinte modo:

«Nestes termos e nos demais de Direito que

V. Exas. doutamente suprirão, deve:

I) O Recorrente ser condenado por litigância de má-fé, com base no artigo

542.º, n.º 2, al. c) e d) do CPC, e

II) A decisão Singular do Juiz Conselheiro Relator, de 29.11.2023, de considerar o recurso de revista inadmissível, ser mantida.»

Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

Importa decidir duas questões: A) a questão da admissibilidade do recurso de revista e B) a questão da condenação por litigância de má fé suscitada pela reclamada.

A) Admissibilidade do recurso de revista

1. O teor da decisão singular da Relatora, que confirmou o despacho do Tribunal da Relação que não admitiu o recurso de revista, foi o seguinte:

«Consultado o acórdão recorrido e os termos em que desenvolve os seus fundamentos, deteta-se que, na verdade, o Tribunal da Relação aplicou as mesmas normas jurídicas aplicadas pelo tribunal de 1.ª instância sem que resulte qualquer inovação interpretativa ou recurso a outros institutos jurídicos. A ação baseou-se no instituto da responsabilidade civil por perdas e danos (artigos 483.º e seguintes do Código Civil) e é ao abrigo desse grupo de normas de direito civil que ambas as instâncias dirimem o litígio entre as partes, pelo que entendo verificada a dupla conformidade impeditiva do recurso de revista normal. Não tendo sido pedida revista excecional, ao abrigo do artigo 672.º do CPC, nada mais resta senão confirmar o despacho reclamado».

2. O reclamante, na reclamação apresentada, após esgrimir argumentos apenas relevantes para o mérito das questões suscitadas no recurso de revista (conclusões n.º 1 a 21), parece sustentar, interpretando as conclusões juntamente com as alegações, que o recurso deve ser admissível por não se verificar uma situação de dupla conformidade, ao abrigo do artigo 671.º, n.º 3, do CPC (conclusão n.º 22), sem, contudo, alegar os motivos em que baseia a sua pretensão e sem comparar a fundamentação da sentença e do acórdão da Relação.

3. Apreciando.

Constata-se que o Acórdão da Relação não teve qualquer voto de vencido, que confirmou integralmente a sentença do tribunal de 1.ª instância, e que se limitou, nos seus fundamentos, a afirmar que o apelante nada invocou que possa infirmar o decidido na sentença, aceitando a fundamentação por esta desenvolvida.

Foram estas as palavras do acórdão recorrido, referindo-se às alegações apelante:

«- Não basta afirmarem, sem mais, que o tribunal aceitou como verdadeira toda a versão da autora, posto que nada impede o tribunal de o fazer se de tanto estiver convencido;

- Não basta afirmarem, sem mais, que o tribunal foi pouco exigente na formação da sua convicção, quando não se impugna a decisão sobre a matéria de facto;

- Não basta afirmarem, sem mais, que os apelantes provaram o que alegaram nas contestações apresentadas, já que, ainda que assim fosse, tal não significaria necessariamente o insucesso das pretensões da autora.

- Não basta ao apelante repetir, sem mais, que, quando celebrou o contrato com a 3ª ré, a propriedade da Herdade se achava registada a seu favor, ignorando por completo as razões constantes da sentença (a saber, o conhecimento, pelo apelante, da qualidade de proprietária da autora mercê do sucesso da acção de preferência e, bem assim, a natureza constitutiva do registo).

E não basta à apelante afirmar, sem mais, que não houve qualquer enriquecimento sem causa da sua parte, quando a sentença considerou que ela tinha visto o seu património enriquecido, na medida da cortiça extraída, à custa do património da autora e sem causa que justificasse tal deslocação patrimonial.”

Termina o acórdão recorrido, referindo que “Não pode, pois, esta Relação deixar de secundar a decisão recorrida.”

4. Neste contexto, não se pode, pois, sequer, considerar existir uma fundamentação diversa, na medida em que o acórdão recorrido aceitou a fundamentação aduzida na sentença, que não foi corretamente impugnada pelo apelante, que se limitou a exprimir a discordância com a mesma, sem entrar em debate sobre as questões de facto e de direito relevantes.

5. Tem, pois, de se concluir que existe dupla conforme decisória e de fundamentação, dado que é manifesto que não foi introduzida pelo acórdão recorrido qualquer inovação interpretativa ou instituto jurídico diverso.

5. Assim, mantém-se, nos seus exatos termos, a decisão singular da Relatora que não admitiu o recurso de revista.

B - Condenação do reclamante por litigância de má fé

6. Entende a reclamada que o reclamante deve ser condenado como litigante de má fé, pelo incumprimento do dever de notificar eletronicamente, à parte contrária, as alegações de recurso de revista e a presente reclamação, conduta que consubstancia, no seu entendimento, uma violação do dever de cooperação previsto no artigo 542.º, n.º 1, al. c), do CPC.

Para o caso de assim não se entender, alega que o reclamante deve ser condenado, ao abrigo da al. d) do n.º 1 do artigo 542.º do CPC, invocando que a reclamação para o Supremo Tribunal de Justiça contra o despacho do Tribunal da Relação que não admitiu o recurso de revista, visou “entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.”. Para fundamentar esta conclusão, argumenta que o reclamante apenas tece, na reclamação, considerações genéricas sobre a dupla conformidade, sem nada dizer que possa fundamentar a ausência da mesma, revelando ter consciência da manifesta improcedência da reclamação que apresentou. Mais alega que após ser notificado da decisão singular da Relatora, apresentou reclamação para a Conferência, com um teor exatamente igual à reclamação apresentada para este Supremo do despacho do Relator no Tribunal da Relação.

Quid iuris?

7. Tendo o processo natureza eletrónica, nos termos do artigo 132.º, n.º 1, do CPC, a tramitação dos processos, incluindo a prática de atos escritos, é efetuada no sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais (artigo 132.º, n.º 2 do CPC), nos termos definidos pela Portaria n.º 280/2013, de 26-08.

Nos termos do n.º 1 do artigo 221.º do Código de Processo Civil (Notificações entre os mandatários das partes), «Nos processos em que as partes tenham constituído mandatário judicial, os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes após a notificação da contestação do réu ao autor são notificados pelo mandatário judicial do apresentante ao mandatário judicial da contraparte através do sistema de informação de suporte à atividade dos tribunais, nos termos previstos no artigo 255.º»

O artigo 255º do Código de Processo Civil prevê que as “notificações entre os mandatários judiciais das partes são realizadas pelos meios previstos no nº 1 do artigo 132º e nos termos definidos na portaria aí referida, devendo o sistema informático certificar a data da elaboração da notificação, presumindo-se esta feita no 3º dia posterior ao da elaboração, ou no 1º dia útil seguinte a esse, quando o não seja.”

De acordo com o disposto no nº 1 do artigo 26º da Portaria nº 280/2013, o “sistema informático de suporte à atividade dos tribunais assegura, mediante indicação do mandatário notificante, a notificação por transmissão eletrónica de dados automaticamente após a apresentação de qualquer peça processual ou documentos através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais.”

Omitindo o mandatário de uma das partes a notificação ao mandatário da outra, a peça processual, logo que apresentada no sistema informático fica visível automaticamente no citius para o mandatário da outra parte. De qualquer modo, esta inércia do mandatário sempre será suprida pela secretaria do tribunal para o efeito de contagem do prazo de resposta.

A ausência de notificação de peça processual, nas relações entre mandatários, não impede, pois, que, apresentada a peça ao tribunal, a notificação ao mandatário se faça, oficiosamente, através do tribunal. Pelo que, vindo a outra parte a ser, de qualquer modo, notificada pelo tribunal, não se considera esta omissão do mandatário uma forma de pôr em causa os direitos de defesa da parte contrária.

Esta conduta, apesar de constituir uma violação de deveres de cooperação, correção e lealdade entre advogados, suscetível de ter relevância disciplinar a apreciar pelo Conselho Deontológico da Ordem dos Advogados, não é suficiente, só por si, para indiciar dolo ou negligência grosseira com a intensidade necessária para configurar litigância de má fé, nem para constituir um uso anómalo do processo.

8. Relativamente à apresentação de uma peça processual com fundamentação genérica e que transcreve alegações anteriormente apresentadas, também não se pode afirmar, sem mais, que tenha por base uma intenção de entorpecer a justiça ou de adiar o trânsito em julgado, já que, na falta de elementos adicionais demonstrativos de dolo ou de culpa grave, pode tratar-se apenas de uma imperícia técnica ou de falta de diligência do mandatário, não censurável como litigância de má fé. A aplicação de uma multa por litigância de má fé deve ser aplicada quando a parte faz, de forma consciente e intencional, um uso anómalo e patológico das formas processuais, não sendo adequada para casos de mera imprudência.

9. Para se justificar uma condenação por litigância de mé fé «Terá que haver uma apreciação casuística, não cabendo a análise do dolo ou da negligência grave no processo civil em estereótipos rígidos» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11-04-2000 (processo n.º 00A212). No caso vertente, não foram demonstrados factos ou atuações que implicassem um juízo de censurabilidade intenso como aquele que é exigido pela norma do artigo 542.º do CPC, ou seja, não nos encontramos perante «(…)uma intenção maliciosa ou uma negligência de tal modo grave ou grosseira que, aproximando-a da atuação dolosa, justifica um elevado grau de reprovação e idêntica reação punitiva» (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-11-2020, proc. n.º 279/17.9T8MNC-A.G1.S1).

10. Absolve-se, assim, o reclamante do pedido de condenação como litigante de má fé apresentado pela reclamada.

11. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:

I – Verifica-se uma situação de dupla conformidade, decisória e de fundamentação, se o Tribunal da Relação, para além de confirmar integralmente e sem voto de vencido, a sentença, se limitou, nos seus fundamentos, a afirmar que o apelante nada invocou que possa infirmar o decidido na sentença, aceitando a fundamentação por esta desenvolvida.

II – A falta de notificação de peça processual entre mandatários e apresentação de peça processual, em que são transcritas alegações de uma peça anterior, são condutas que, só por si e desprovidas de elementos factuais adicionais, não constituem litigância de má fé, por falta de dolo ou de negligência grosseira.

III - Decisão

Pelo exposto, decide-se, em Conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

a) Indeferir a reclamação e confirmar o despacho da Relatora, que não admitiu o recurso de revista;

b) Absolver o reclamante do pedido de condenação por litigância de má fé;

c) Condenar o reclamante nas custas da reclamação;

d) Condenar a reclamada nas custas do incidente de litigância de má fé.

Lisboa, 23 de janeiro de 2024

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Jorge Arcanjo (2.º Adjunto)