Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1464/11.2TBGRD-A.C1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
AVAL
LIVRANÇA EM BRANCO
ABUSO DO DIREITO
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
TEMPO
Data do Acordão: 11/12/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - CONTRATO DE SOCIEDADE - SOCIEDADES POR QUOTAS / TRANSMISSÃO DE QUOTAS.
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS.
Doutrina:
- Meneses Cordeiro, “Contrato Promessa – Art.º 410º, nº 3, do Código Civil – Abuso do Direito - Inalegabilidade Formal”, ROA, Julho de 1998, II, p. 964
- Paulo Mota Pinto, Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil, BFDUC, Volume Comemorativo (2003), pp. 276, 302, 305.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 364.º, N.º1, 817.º, N.º3.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 7.º, 228.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - 484.º, N.º1, 485.º, AL. D).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11/6/07, PROCESSO N.º 2960/07, EM WWW.DGSI.PT
-DE 12/2/09, PROCESSO N.º 4069/08.
Sumário :
I - A proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra na proibição do abuso do direito (art. 334.º do CC), nessa medida sendo de conhecimento oficioso; no entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório.

II - São pressupostos desta modalidade de abuso do direito – venire contra factum proprium – os seguintes: a existência dum comportamento anterior do agente susceptível de basear uma situação objectiva de confiança; a imputabilidade das duas condutas (anterior e actual) ao agente; a boa fé do lesado (confiante); a existência dum “investimento de confiança”, traduzido no desenvolvimento duma actividade com base no factum proprium; o nexo causal entre a situação objectiva de confiança e o “investimento” que nela assentou.

III - O princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; está presente, desde logo, na norma do art. 334.º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.

IV - Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que acciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 03-07-2002.

V - Perante estes dados de facto, verifica-se que os executados podiam fundadamente confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o banco não accionaria o aval que prestaram: é inadmissível e contrária à boa fé a conduta assumida pelo exequente, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

Através de requerimento executivo apresentado por via electrónica em 5/12/2011, AA, SA, promoveu contra BB, Ldª, CC, DD e EE uma execução para pagamento de quantia certa tendo em vista o pagamento de 33.778,29 €, acrescidos de juros de mora vencidos, no valor de 2.862,15 €, e vincendos, contados à taxa anual de 4%, até pagamento.

Alegou que na qualidade de tomador é portador de uma livrança de caução no valor de 33.778,29 €, emitida em 3/7/02 e com vencimento em 7/7/10, subscrita pela primeira executada e avalizada pelos restantes, que, apresentada a pagamento, não foi paga na data do vencimento nem posteriormente.

Os executados CC, DD e EE deduziram oposição, pedindo a extinção da execução relativamente a si com base, em resumo, nos seguintes fundamentos:

- Subjacente à subscrição da livrança e à prestação dos avais esteve um contrato de conta caucionada celebrado entre o exequente e a sociedade executada;

- Os oponentes prestaram o seu aval no pressuposto duma obrigação de curto prazo e porque eram sócios da sociedade subscritora, facto este do conhecimento do exequente, tendo cedido as suas quotas em 2003;

- A conta caucionada foi paga no momento da cessão ou pouco depois e a exequente deveria ter renovado as garantias quando renovou a conta caucionada, sob pena de tornar indeterminável a obrigação inerente ao aval;

- Os oponentes não teriam prestado aval se soubessem que este teria valor após a cessão das quotas e que a obrigação relativa à conta caucionada não seria de curto prazo;

- Quando renovou a conta caucionada a exequente sabia que os oponentes já se sentiam desobrigados e que lhe era bastante a garantia pessoal dos restantes avalistas;

- Em 2011 está prescrita a obrigação de garantia que deram através do aval prestado em 2002 para uma obrigação de curto prazo como é uma conta caucionada.

O exequente não contestou.

Foi proferida sentença nos termos do artº 817º, nº 3, com referência ao artº 484º, nº 2, do CPC, julgando improcedente a oposição.

Os oponentes apelaram.

Por acórdão de 21.5.13 a Relação de Coimbra, concedendo provimento ao recurso, julgou procedente a oposição e, consequentemente, declarou a redução da responsabilidade dos executados CC, DD e EE ao valor da dívida no momento em que deixaram de ter qualquer interesse na executada, BB, Ldª.

Agora é o exequente que, inconformado, pede revista, sustentando que a oposição à execução deve ser julgada improcedente com base nas seguintes e resumidas conclusões:

1ª - A alteração da matéria de facto decidida pela Relação é indevida porque se traduz em dar como assentes uma declaração de intenção e conclusões que os avalistas retiram de determinados factos;

2ª - Os factos que podem dar-se como provados, em obediência aos elementos que constam dos autos e às regras do ónus da prova, são os seguintes: os oponentes perderam o interesse na sociedade executada desde meados de 2003;  nesse período perguntaram junto do balcão da Guarda se a conta estava regularizada, o que lhes foi confirmado; e a conta foi paga em 2003 ou pouco tempo depois;

3ª - Os executados nunca manifestaram por qualquer meio a sua intenção de se desonerar da obrigação assumida, sendo certo que os avales foram prestados no interesse do exequente, e não dos próprios avalistas;

4ª - A informação recebida no balcão do exequente não implica a extinção  das obrigações de nenhum dos outorgantes do contrato ou seus garantes, mas apenas que, naquele momento, não se verificava o incumprimento dessas obrigações;

5ª - Ao decidir que o recorrente agiu com abuso do direito o acórdão recorrido violou o disposto no artº 334º do CC.

Os recorridos contra alegaram, defendendo a confirmação do julgado.

Tudo visto, cumpre decidir.

II. Fundamentação

a) Matéria de Facto:

1) A exequente apresentou, na acção executiva, como título executivo, um documento, cuja cópia consta a fls 5 da acção executiva, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, no qual constava o seguinte:

“Local e data de emissão – Guarda – 02.07-03 (ano-mês-dia) Importância - € 33.778,29 Vencimento (Ano-Mês-Dia) – 2010-01-07

No seu vencimento pagarei(emos) por esta única via de livrança ao AA, S.A. ou à sua ordem, a quantia de trinta e três mil setecentos e setenta e oito euros e vinte e nove cêntimos. Assinatura(s) do(s) subscritor(es) – BB, Lda.” (requerimento executivo).

2) No verso do documento referido em 1), os oponentes/executados colocaram as suas assinaturas após os dizeres “Dou o meu aval à firma subscritora” (requerimento executivo).

3) No dia 3/7/02 a exequente, a sociedade executada e os oponentes/executados declararam, por escrito, com a epígrafe “Proposta de concessão de uma abertura de crédito”, cuja cópia se mostra junta a fls 45 e 46, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, na qual consta, entre o mais, o seguinte: “4. DECLARAÇÃO Constituímo-nos fiadores dos proponentes pelo cumprimento das obrigações pecuniárias emergentes deste contrato, que assumimos como principais pagadores. Prestamos também o nosso aval na Livrança em branco que aqueles entregam nesta data ao AA, a quem conferimos o necessário mandato de preenchimento, nas mesmas condições dos proponentes. (…) Sem prejuízo de outras garantias eventualmente já constituídas e que se mantêm em vigor e para garantia do cumprimento de quaisquer obrigações emergentes deste contrato: a) entregamos nesta data ao Banco uma livrança em branco por nós subscrita e avalisada pelos fiadores acima referidos, mandatando, desde já, o AA para fins do seu preenchimento pelo valor das nossas responsabilidades, vencidas e em dívida, e nas datas que melhor lhe convier para a respectiva emissão e vencimento;” (artº 4º da petição inicial).

4) Quando os oponentes/executados colocaram as suas assinaturas no documento referido em 1) apenas se encontrava preenchido o campo relativo à data de preenchimento (artº 3º da petição inicial).

5) Foi no pressuposto do curto prazo que os oponentes/executados prestaram o seu aval (artº 5º da petição inicial).

6) Os oponentes/executados eram pessoas com interesse na sociedade executada e só nessa medida efectuaram as assinaturas referidas em 2) (artº 6º da petição inicial).

7) O facto referido em 6) era do conhecimento da exequente (artº 7º da petição inicial).

8) Desde meados de 2003 que os oponentes não têm qualquer interesse na executada (artº 9º da petição inicial).

9) Não teriam os oponentes/executados prestado o seu aval se imaginassem que iria durar para sempre (artº 22º da petição inicial).

10) Quando a exequente renovou o acordo referido em 3), depois de 2004, fê-lo sabendo que os oponentes/executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia pessoal dos restantes avalistas (artº 23º da petição inicial).

11) Ao mesmo tempo ou pouco tempo depois da data referida em 8) os executados tiveram o cuidado de perguntar junto do exequente se a situação da conta caucionada prestada à empresa estava regularizada, ao que os funcionários do balcão da Guarda responderam afirmativamente.

12) A conta referida em 11) foi paga em 2003, ou pouco tempo depois.

13) O exequente passou a conceder crédito à sociedade, mesmo após 2003.

b) Matéria de Direito

Apreciando o conjunto de questões postas pelos oponentes no recurso de apelação, a Relação decidiu - nesta parte com trânsito em julgado porquanto os executados não ampliaram o âmbito do recurso nos termos do artº 684º-A, nº 1, CPC  - o seguinte:

a) - No caso dos autos os recorrentes (avalistas) subscreveram o pacto de preenchimento do título dado à execução; não provaram, contudo, o preenchimento abusivo, isto é, que a livrança foi completada contrariamente aos acordos realizados( artº 10º da LULL);

b) - Não há lugar à anulação, por erro, da declaração cambiária de aval porquanto os factos apurados não mostram que recorrentes e recorrido tenham acordado quanto à essencialidade, para os recorrentes, dos motivos sobre que incidiu o erro e os determinaram à prestação do aval (artº 251º CC);

c) - O aval não é nulo por indeterminabilidade visto que foi prestado para garantia do cumprimento de quaisquer obrigações emergentes do contrato de abertura de crédito no valor de 30 mil €, o que quer dizer que o montante máximo da garantia ficou determinado logo no momento da emissão da livrança; tal montante, além disso, era perfeitamente determinável em face dos termos do contrato (artº 280º CC);

d) - O aval foi prestado sem qualquer restrição ou limites; por outro lado, não se demonstrou que os recorrentes tenham subscrito o título dado à execução na qualidade de sócios da avalizada, nem que, posteriormente, tenham cedido as suas quotas; por isso, em conformidade com a doutrina fixada pelo acórdão uniformizador de 11/12/13 (DR, I Serie, 21/1/13), segundo a qual “tendo o aval sido prestado por forma irrestrita e ilimitada, não é admissível a sua denúncia por parte do avalista, sócio de uma sociedade a favor de quem aquele foi prestado, em contrato em que a mesma é interessada, ainda que, entretanto, venha a ceder a sua participação social na sociedade avalizada”,  não é lícito aos recorrentes denunciar o aval (a denúncia é inadmissível).

Não obstante ter decidido as questões identificadas nas alíneas a) a d) nos termos que resumidamente se expuseram, o acórdão recorrido, depois de aditar à matéria de facto estabelecida na 1ª instância os factos 11), 12) e 13), julgou procedente a apelação: considerou, em suma,  que o exequente agiu com abuso do direito, facto este que, atingindo a exequibilidade intrínseca da prestação, impede a sua realização coactiva e determina, logicamente, a extinção da execução.

E são precisamente estas duas questões – licitude da alteração da matéria de facto e verificação do abuso de direito – que, como se vê do elenco das conclusões, constituem o objecto do presente recurso.

a) Quanto à primeira, o recorrente sustenta que os factos que a Relação adicionou à matéria de facto vinda da 1ª instância são conclusivos, não podendo, por isso, ser considerados no julgamento do litígio. Mas não tem razão. Não há qualquer dúvida que os pontos em questão de modo algum correspondem a conclusões que tenham de ser retiradas de factos articulados (ou não) pela parte interessada: são eles mesmos factos, factos concretos, por oposição, digamos assim, a matéria de direito, pois as realidades a que se referem são passíveis de apreensão e descrição pelos sentidos e intelecto de qualquer pessoa sem que para tal se torne necessário o recurso, implícito ou explícito, a um conceito ou princípio jurídico, ou ainda a uma norma de direito. Na verdade, é facto puro e simples, no sentido exposto, tudo o que se expressa nos referidos pontos 11), 12) e 13), a saber: a pergunta feita pelos executados ao exequente sobre a situação da conta caucionada e a resposta obtida (nº 11); o pagamento desta conta (nº 12);  e a concessão de crédito após 2003 (nº 13). E a sua inclusão no elenco da matéria de facto a considerar na decisão final encontra perfeita justificação na regra do artº 484º, nº 1, do CPC, que manda considerar confessados os factos articulados pelo autor quando o réu, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa, não conteste, e é aplicável à oposição à execução nos termos previstos no artº 817º, nº 3. Ora, foi justamente isto que sucedeu: o exequente não contestou a oposição, como acima se disse, e os três pontos de facto adicionados pelo acórdão recorrido correspondem a factos constantes da petição inicial. Certa ainda a decisão das instâncias no sentido de excluir do efeito cominatório associado à falta de contestação o facto, também alegado pelos recorridos, de terem sido sócios da executada e cedido as suas quotas: trata-se, na verdade, de factos que só documentalmente podem provar-se e que, como se afirma no acórdão recorrido, não encontram expressão na certidão do registo comercial adquirida para o processo; não podiam, por isso, ser considerados confessados em consequência da falta de contestação (artºs 7º e 228º do CSC; artº 364º, nº 1, do CC; artº 485º, d), do CPC).

b) O abuso do direito, nas suas várias modalidades, pressupõe sempre que “o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (artigo 334.º do CC). E como já tivemos oportunidade de dizer em acórdão desta conferência de 11/6/07 [1], a proibição do comportamento contraditório configura actualmente um instituto jurídico autonomizado, que se enquadra, justamente, na proibição do abuso do direito, nessa medida sendo de conhecimento oficioso. No entanto, não existe no direito civil um princípio geral de proibição do comportamento contraditório, ou, dito de outro modo, “uma regra geral de coerência do comportamento dos sujeitos jurídico-privados, juridicamente exigível” [2]. Assim, o indivíduo é livre de mudar de opinião e de conduta fora dos casos em que assumiu compromissos negociais. Daí que, em princípio, o mecanismo disponibilizado pela ordem jurídica para possibilitar a formação da confiança na palavra dada e, consequentemente, na conduta futura dos contraentes seja só o negócio jurídico. Sabido, porém, que uma das funções essenciais do direito é a tutela das expectativas das pessoas, facilmente se intui que por si só o negócio jurídico, sob pena de cometimento de flagrantes injustiças em muitas situações concretas, não pode constituir o único modo de protecção das expectativas dos sujeitos na não contradição da conduta da contraparte; casos há em que, ainda antes do limiar da vinculação contratual, o agente deve ser obrigado a honrar as expectativas que criou, podendo exigir-se-lhe, então, que actue de forma correspondente à confiança que despertou; casos, isto é, em que não pode venire contra factum proprium. A delimitação de tais casos obrigou a doutrina e a jurisprudência a terem que precisar com o máximo de rigor possível os pressupostos da proibição desta modalidade do abuso, desde logo por se ter a noção de que este instituto, construído, todo ele, a partir da cláusula geral da boa fé, apenas deve funcionar em situações limite, como verdadeira válvula de segurança e de escape do sistema, e não como uma tal ou qual panaceia de que se lança mão sempre que a aplicação das regras de direito estrito pareça ser insuficiente para assegurar a solução justa do caso. Importa evitar a todo o custo, como escreveu o autor atrás citado, “a utilização da boa fé como um “nevoeiro” que serve para tudo” [3].

Assim, há desde logo um primeiro e fundamental pressuposto a considerar: a existência de um comportamento anterior do agente (o factum proprium) que seja susceptível de fundar uma situação objectiva de confiança. Em segundo lugar exige-se que, quer a conduta anterior (factum proprium), quer a actual (em contradição com aquela) sejam imputáveis ao agente. Em terceiro lugar, que a pessoa atingida com o comportamento contraditório esteja de boa fé, vale por dizer, que tenha confiado na situação criada pelo acto anterior, ignorando sem culpa a eventual intenção contrária do agente. Em quarto lugar, que haja um “investimento de confiança”, traduzido no facto de o confiante ter desenvolvido uma actividade com base no factum proprium, de modo tal que a destruição dessa actividade pela conduta posterior, contraditória, do agente (o venire) traduzam uma injustiça clara, evidente [4]. Por último, exige-se que o referido “investimento de confiança” seja causado por uma confiança subjectiva objectivamente fundada; terá que existir, por conseguinte, causalidade entre, por um lado, a situação objectiva de confiança e a confiança da contraparte, e, por outro, entre esta e a “disposição” ou “investimento” levado a cabo que deu origem ao dano. Os pressupostos enumerados não podem em caso algum ser aplicados automaticamente pois, como observa o autor que vimos a acompanhar, o venire contra factum proprium é, em última análise, “uma técnica....que não dispensa, e antes pressupõe, um controlo da adequação material da solução, com uma valoração global de todos os elementos à luz do ponto de vista da tutela da confiança legítima” [5]; por isso, todos aqueles pressupostos “deverão ser globalmente ponderados, em concreto, para se averiguar se existe efectivamente uma “necessidade ético-jurídica” de impedir a conduta contraditória, designadamente, por não se poder evitar ou remover de outra forma o prejuízo do confiante, e por a situação conflituar com as exigências de conduta de uma contraparte leal, correcta e honesta – com os ditames da boa fé em sentido objectivo” [6]. Dentro desta mesma linha de pensamento, escreveu-se no acórdão do STJ de 12.2.09 (Revª 4069/08) que “no âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória (venire contra factum proprium), que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte em função do modo como antes actuara”. Assim tem de ser, acrescentamos nós, justamente porque o princípio da confiança é um princípio ético fundamental de que a ordem jurídica em momento algum se alheia; ele está presente, desde logo, na norma do artº 334º do CC, que, ao falar nos limites impostos pela boa fé ao exercício dos direitos, pretende por essa via assegurar a protecção da confiança legítima que o comportamento contraditório do titular do direito possa ter gerado na contraparte.

No caso dos autos, verifica-se isto: o exequente accionou a livrança que os recorrentes avalizaram em branco oito anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse; era do conhecimento do exequente que os recorrentes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora; na altura do afastamento (meados de 2003) a conta caucionada de que a sociedade subscritora era titular encontrava-se regularizada, facto que foi confirmado aos recorrentes por funcionários do exequente; e posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 3/7/02.

Perante estes dados de facto temos por certo que o comportamento do exequente, qualificado em termos jurídicos à luz do que acima se expôs, integra um venire contra factum pro­prium, proibido pelo artº 334º do CC: efectivamente, como bem se pondera no acórdão recorrido, “...uma pessoa normal, colocada na posição concreta dos recorrentes, podia objectivamente confiar que, estando a conta caucionada liquidada, no momento em que deixaram de ter interesse na sociedade, o exequente não lhes exigiria, 8 anos depois, que honrassem a garantia representada pelo aval, relativamente a crédito concedido ao avalizado em momento posterior em que deixaram de ter aquele interesse e se sentiam já desobrigados. Em boa verdade, o portador da livrança que, neste contexto, cria nos recorrentes aquela confiança, através da comunicação, em 2003, que a conta caucionada estava regularizada, mas 8 anos depois lhes exige coactivamente a realização da prestação pecuniária incorporada na livrança, emergente da concessão de crédito ao subscritor, posterior àquele momento – e para a qual era suficiente a garantia dos avales restantes - age contra facta propria e, por conseguinte, de forma abusiva. Havendo abuso, a inibição do exercício, contra os recorrentes, do direito cambiário é meramente consequencial” (fls 139).

Em resumo: os recorrentes podiam fundadamente confiar que, tanto tempo depois de se terem apartado da sociedade subscritora, o recorrido não accionaria o aval que prestaram: é inadmissível e, sem dúvida, contrária à boa fé a conduta por ele assumida, na exacta medida em que trai a confiança gerada nos executados pelo seu comportamento anterior, confiança essa objectivamente reforçada pelo decurso de um tão dilatado lapso de tempo.

Face ao exposto, improcedem as conclusões do recurso.

III. Decisão

Nega-se a revista.

Custas pelo recorrente.

Lisboa, 12 de Novembro de 2013

Nuno Cameira (Relator)

Sousa Leite

Salreta Pereira

_______________________
[1] Revª 2960/07, cujo texto completo está acessível em www.stj.pt.
[2] Paulo Mota Pinto, Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório (Venire Contra Factum Proprium) no Direito Civil, BFDUC, Volume Comemorativo (2003), pág. 276.
[3] Obra e loc. citados, pág. 302.
[4] Neste exacto sentido, Meneses Cordeiro, “Contrato Promessa – Art.º 410º, nº 3, do Código Civil – Abuso do Direito - Inalegabilidade Formal”, ROA, Julho de 1998, II, pág. 964 (que seguimos de muito perto no texto).
[5] Obra e loc. citados, pág. 302.

[6] Obra e loc. cit, pág. 305).