Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
153/22.7T8WD.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO CURA MARIANO
Descritores: ARRENDAMENTO URBANO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
CÔNJUGE
DESCENDENTE
REGIME TRANSITÓRIO
REGIME APLICÁVEL
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 03/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A aplicação do disposto especificamente no artigo 57.º do NRAU aos contratos de arrendamento pretéritos constitui a previsão de um direito transitório material que disciplina especificamente situações jurídicas transitórias, prescrevendo uma solução concreta para elas, distinta da que resulta da aplicação da lei nova ou da lei antiga.

II. Não é inconstitucional a norma extraída do proémio do n.º 1, do artigo 57.º do NRAU, na versão resultante da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, no sentido de excluir que o arrendamento celebrado antes da entrada em vigor do RAU e transmitido ao cônjuge do primitivo arrendatário antes da entrada em vigor do NRAU se transmita de novo, por morte do cônjuge sobrevivo, ocorrida na vigência do NRAU, na versão decorrente da referida Lei, para a descendente de ambos.

Decisão Texto Integral:

Autores: AA

BB,

na qualidade de herdeiros da herança Indivisa de CC

Réus: DD

EE


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I - Relatório

Os Autores propuseram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum, contra os Réus, pedindo a condenação daqueles a reconhecerem que aquela é a única titular do direito de propriedade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 270/19871106 - freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art.º 995, bem como a entregarem-lhe esse prédio, livre e devoluto de pessoas e bens, e a disponibilizarem-lhe as respetivas chaves.

Alegaram para o efeito, em síntese o seguinte:

- a herança da qual são herdeiros é dona e legítima proprietária do referido prédio, o qual foi dado de arrendamento, pela sua avó, FF, na década de 1950, ao pai da Ré, GG, o qual se transmitiu, por morte daquele arrendatário, ao seu cônjuge, HH, que entretanto veio a falecer no dia 31 de janeiro de 2019, tendo o arrendamento caducado por morte da mesma;

- os Autores permitiram, no entanto, que os Réus continuassem a habitar o prédio em regime de mero favor, gratuitamente, a partir de 01 de agosto de 2019, por um curto período de tempo, a fim de poderem encontrar um outro imóvel destinado à sua habitação, com a obrigação de o restituírem no prazo máximo de um mês, após interpelação para esse efeito.

- os Réus não entregaram o prédio na data acordada, pelo que os representantes da autora os notificaram formalmente, para procederem à desocupação do prédio, até ao dia 31 de janeiro de 2022, o que estes também não fizeram, continuando a residir ali até à presente data.

Os Réus deduziram contestação, defendendo que o arrendamento se transmitiu à Ré mulher, por morte da sua mãe, HH, concluindo pela improcedência da ação, e consequente absolvição do pedido.

Deduziram ainda reconvenção, peticionando, para a hipótese de a ação ser julgada procedente, a condenação da Herança lhes pagar-lhes a quantia de € 47.707,86, correspondente ao valor das benfeitorias que realizaram no prédio, bem como a reconhecer-lhes o direito de retenção sobre o mesmo prédio, enquanto não for pago aquele valor.

Os Autores apresentaram Réplica, alegando a inadmissibilidade da reconvenção, a qual foi, no entanto, admitida na audiência prévia.

Realizada audiência de julgamento foi proferida a seguinte decisão:

“…Termos em que, e face ao exposto, o Tribunal julga a ação procedente, por provada, condenando os réus DD e EE a reconhecerem que a autora Herança Ilíquida e Indivisa de CC é a única titular do direito de propriedade do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 270/19871106- freguesia ..., inscrito na respetiva matriz sob o art.º 995, e a entregarem de imediato este prédio livre e devoluto de pessoas e bens (à A), bem como a disponibilizarem as respetivas chaves.

O Tribunal julga improcedente, por não provada, a reconvenção, absolvendo a autora/reconvinda do pedido.

Os Réus interpuseram recurso de apelação desta decisão, tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente o recurso e confirmado a sentença proferida na 1.ª instância.

Desta decisão os Réus voltaram a interpor recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, por referência ao disposto no artigo 672.º, n.º 1, a), do Código de Processo Civil, e alegando que oarrendamento é uma questão particularmente relevante em termos sociais. Aliás, bem patente na crise de arrendamento que o país vive e, por isso, merecedora de sindicância superior.

Acrescentou que mesmo que assim não se entenda, também a fundamentação constante do Acórdão da Relação da Relação de Guimarães é substancialmente diferente da fundamentação da decisão proferida em 1ª instância, nomeadamente, quanto à apreciação das inconstitucionalidades suscitadas.

Concluiu as suas alegações do seguinte modo:

A) O presente recurso deve ser admitido por questões de relevância social e, assim não se entendendo, por fundamentação substancialmente diferente da decisão de 1ª instância.

B) A aplicação do art.º 57.ºdo NRAU ao presente contrato é inconstitucional por violação do:

• Princípio do Estado de Direito;

• Princípio da Igualdade 13.º- n.º 2 da CRP; e

• Princípio da Confiança 18.º - n.º 3 da CRP.

C) Igualmente, é violado o princípio da aplicação no tempo ínsito no n.º 1 do art.º 12.º do Código Civil;

D) Nunca foi solicitada a transição para o NRAU;

E) Essa transição não é automática devido à idade que a mãe da Recorrente tinha na altura da aprovação do NRAU;

F) Dúvidas não podem restar quanto à inaplicabilidade do art.º 57 do NRAU ao presente caso;

Ainda que tal não se admita,

F) Então sempre o pedido reconvencional deveria ter provimento.

G) Devendo ser arbitrada liquidação de sentença

Os Autores apresentaram resposta, pronunciando-se pela inadmissibilidade quer do recurso de revista excecional, quer do recurso de revista normal.


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II – Da admissibilidade do recurso.

O recurso de revista excecional apenas é admissível quando o recurso de revista normal não o é, por o acórdão da Relação confirmar, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida na 1.ª instância (artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

A fundamentação do acórdão recorrido dedica-se sobretudo a apreciar a questão da constitucionalidade da norma transitória do artigo 57.º do NRAU, a qual não foi abordada na sentença da 1.ª instância, uma vez que ela só foi colocada nas alegações do recurso de apelação, pelo que não é possível afirmar que as fundamentações das duas decisões não sejam essencialmente diferentes.

Por essa razão não estamos perante uma situação em que o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça apenas se possa fazer através do recurso de revista excecional, nos termos do artigo 672.º do Código de Processo Civil, devendo antes ser conhecido como recurso de revista normal, dado não se verificar o obstáculo previsto no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.


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III – Do objeto do recurso

Tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida cumpre apreciar as seguintes questões:

- a inaplicabilidade das normas do NRAU ao contrato de arrendamento suja subsistência se discute na presente ação;

- a violação das regras gerais de aplicação da lei no tempo previstas no artigo 12.º do Código Civil;

- a constitucionalidade do artigo 57.º do NRAU;

- a titularidade pelos Réus do direito a uma indemnização pelas benfeitorias realizadas no arrendado.


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IV – Os factos

Neste processo encontram-se provados os seguintes factos:

1. Os Autores são os únicos e universais herdeiros do seu pai, CC, falecido no dia ........2018, no estado de viúvo de II.

2. O património da herança indivisa deixada por óbito de CC é constituído, entre o demais, por um prédio urbano, composto de casa de habitação, sito na rua dos ..., n.º 21, freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 270/19871106-freguesia de ..., inscrito na matriz respetiva sob o art. 995º.

3. A propriedade daquele prédio foi adquirida pelo autor da herança - casado sob o regime de comunhão geral com II – através de sucessão hereditária por óbito da sua sogra, FF, falecida em ... de ... de 1982, e por partilha efetuada por óbito do seu cônjuge ocorrido em ... de ... de 1988.

4. A propriedade do prédio tinha sido adquirida por FF por sucessão hereditária dos seus antecessores.

5. Desde há mais de trinta, cinquenta e sessenta anos, a referida Herança, bem como, antes dela, os antepossuidores, exercem a gestão do prédio identificado em 2, recebem as respetivas rendas e procedem à liquidação dos impostos, ininterruptamente, à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém, na convicção de que exercem os poderes correspondente ao direito de propriedade, praticando todos os atos derivados do exercício desse direito.

6. Na década de 1950, a avó dos Autores, FF, deu de arrendamento o prédio identificado em 2 ao pai da Ré, GG.

7. O contrato de arrendamento celebrado entre FF e GG não foi reduzido a escrito.

8. À data da celebração do contrato de arrendamento, o chão da casa edificada no prédio identificado em 2 era em terra.

9. A Ré nasceu no prédio identificado em 2 no ano de 1955.

10. E aí sempre habitou com os pais e com o Réu após o seu casamento e nascimento dos filhos.

11. No dia ... de ... de 1982 faleceu FF, transmitindo-se a posição de senhorio no contrato de arrendamento, fruto da transmissão por sucessão da propriedade do dito prédio, para os pais dos Autores, II e CC.

12. No dia ... de ... de 1988, faleceu II, ocorrência que originou que a sua parte na propriedade do prédio descrito em 2 fosse adjudicada, por partilha, ao cônjuge sobrevivo que, desse modo, passou a ser o único senhorio do contrato verbal de arrendamento.

13. Durante o período de vida dos pais da Ré, foram realizadas obras no prédio identificado em 2, ao nível do pavimento e telhado, aumentado o número de quartos, construída casa de banho, instalada eletricidade, água e saneamento.

14. As obras indicadas em 13 foram autorizadas por CC.

15. E o seu custo nunca foi reclamado ao CC.

16. No dia ... de ... de 1989, faleceu GG.

17. A posição de arrendatário foi transmitida ao seu cônjuge sobrevivo, HH, mãe da Ré.

18. No dia 31 de janeiro de 2019, a HH faleceu.

19. A Ré enviou uma carta datada de 27 de março de 2019 ao Autor AA, a comunicar a “transmissão do arrendamento” por óbito da sua mãe e a solicitar informações sobre como proceder relativamente ao pagamento da renda.

20. Os Autores enviaram à Ré uma carta datada de 08 de abril de 2019, comunicando-lhe a extinção, por caducidade, do contrato de arrendamento à data do óbito de HH.

21. E concederam-lhe o prazo de seis meses, a contar da verificação da caducidade, ou seja, até 31 de julho de 2019, para que procedesse à entrega do locado, livre e devoluto de pessoas e bens.

22. Na sequência da carta aludida em 20, a Ré transmitiu aos Autores que careceria de mais algum tempo para arranjar uma nova habitação, instando-os a concederem-lhe um prazo mais alargado para abandonar o prédio.

23. Os Autores e os Réus acordaram que estes manteriam o uso e habitação do prédio, por cedência em regime de favor e a título gratuito, por um período reduzido de tempo, até lograrem encontrar um outro imóvel para instalar a sua habitação.

24. Os Réus subscreveram, de livre vontade e convenientemente elucidados quanto ao seu teor, uma declaração datada de 31 de julho de 2019, na qual se refere que os réus “vão instalar-se no prédio urbano situado na rua dos ... n.º 21, 4730-473, da freguesia da ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 995, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 270, por cedência, em regime de favor e a título gratuito, dos proprietários…Em função da natureza exclusivamente precária desta cedência, os declarantes comprometem-se a devolver o prédio aos proprietários, sem qualquer tipo de contrapartida, no prazo máximo de um mês, contado a partir da data de conhecimento – provado pela assinatura dos dois declarantes – da comunicação escrita, entregue em mão, para ser efetuada essa entrega, que lhes for apresentada por qualquer dos proprietários ou por quem os represente”.

25. Os Réus não entregaram o prédio na data acordada.

26. Os Autores notificaram os Réus, por carta datada de 14 de dezembro de 2021, com vista à desocupação do prédio, concedendo-lhes o prazo até 31 de janeiro de 2022, para o devolverem livre e devoluto de pessoas e bens.

27. Apesar de terem rececionado a carta identificada em 26, no dia 15 de dezembro de 2021, os Réus mantêm a ocupação do prédio até à presente data.

28. O valor patrimonial do prédio identificado em 2, determinado no ano de 2021, é de € 8.515,85.

29. O valor da última renda paga pelos réus (dezembro de 2018) ascendeu a € 9,88.

E foram julgados como não provados os seguintes factos:

30. As obras aludidas em 13 foram realizadas pelos réus.

31. E o seu custo cifrou-se em € 47.707,86.

32. Os réus são pessoas simples e de muito poucos estudos.

33. E assinaram a declaração indicada em 24 sem se aperceberem que teriam que desocupar o prédio.

34. Os Autores pretendem demolir a casa edificada no prédio identificado em 2 e não arrendar esse imóvel.


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V – O direito aplicável

1. O litígio

Está em causa neste recurso a cessação de um contrato de arrendamento para habitação celebrado na década de 1950.

O primitivo arrendatário foi GG, pai da Ré.

No dia ... de ... de 1989 faleceu GG, tendo-se transmitido a posição de arrendatário para o seu cônjuge sobrevivo, HH, mãe da Ré.

E em ........2019 faleceu HH,

A Ré sempre viveu no arrendado, primeiro com os seus pais e, após o seu casamento com o Réu, também com este.

O litígio que divide as partes centra-se em saber se o arrendamento caducou com a morte de HH ou se transmitiu para a Ré.

2. A aplicabilidade do NRAU

Em ... de ... de 2019, na data da morte de HH, mãe da Ré, para quem se havia transmitido em 1989 a posição de arrendatária do imóvel aqui em causa, estava em vigor o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, com entrada em vigor em 27.08.2006, e que sofreu várias alterações, sendo a redação vigente à data da morte da arrendatária HH, a aprovada pela Lei n.º 43/2017, de 14 de junho.

O NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, nas suas normas finais, no artigo 59.º, n.º 1, dispôs que o novo regime por si implantado se aplicava aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor (27 de Junho de 2006), bem como às relações contratuais que subsistam nessa data, sem prejuízo, contudo, do estabelecido nas normas provisórias.

Ora, nestas últimas normas, o artigo 26.º, n.º 2, determina que, relativamente aos contratos celebrados durante a vigência do RAU, se aplica o disposto no artigo 57.º, que regula a transmissão por morte do arrendamento para habitação, o qual também é aplicável aos contratos de arrendamento celebrados anteriormente à vigência do RAU, por força do disposto no artigo 28.º.

Assim, relativamente ao regime da transmissão da posição contratual do arrendatário habitacional, por morte deste, o NRAU consagrou uma solução aplicável aos arrendamentos celebrados após a sua entrada em vigor, introduzida no artigo 1106.º, do Código Civil, e outra aplicável aos arrendamentos celebrados anteriormente à sua entrada em vigor, constante do seu artigo 57.º.

Por força destas disposições transitórias, o disposto neste último preceito passou, pois, a reger as transmissões das relações locatícias pretéritas por morte do arrendatário, independentemente destas transitarem ou não para o regime do NRAU.

Dispõe o referido artigo 57.º, n.º 1, do NRAU, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 43/2017, de 14 de junho, em vigor à data da morte de HH:

O arrendamento para habitação não caduca por morte do primitivo arrendatário (sublinhado nosso) quando lhe sobreviva:

a) Cônjuge com residência no locado;

b) Pessoa que com ele vivesse em união de facto há mais de dois anos, com residência no locado há mais de um ano;

c) Ascendente em 1.º grau que com ele convivesse há mais de um ano;

d) Filho ou enteado com menos de 1 ano de idade ou que com ele convivesse há mais de 1 ano e seja menor de idade ou, tendo idade inferior a 26 anos, frequente o 11.º ou o 12.º ano de escolaridade ou estabelecimento de ensino médio ou superior;

e) Filho ou enteado, que com ele convivesse há mais de um ano, com deficiência com grau comprovado de incapacidade igual ou superior a 60 por cento.

Não sendo já a HH a primitiva arrendatária, com a sua morte a sua posição contratual não se transmitiu para a Ré, atento o disposto no referido artigo 57.º, n.º 1, do NRAU, aplicável às situações de morte dos arrendatários de contratos celebrados antes da entrada em vigor deste diploma.

2. Da violação das regras gerais de aplicação da lei no tempo

A aplicação do disposto especificamente no artigo 57.º do NRAU aos contratos de arrendamento pretéritos constitui a previsão de um direito transitório material que disciplina especificamente situações jurídicas transitórias, prescrevendo uma solução concreta para elas, distinta da que resulta da aplicação da lei nova ou da lei antiga 1.

Retomando as palavras escritas, por coincidência, por este mesmo Relator, no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 196/2010, o regime transitório do artigo 57.º, do NRAU, visou sobretudo aperfeiçoar, na ótica do novo legislador, as regras de transmissão do arrendamento, no âmbito do cariz vinculístico da grande maioria dos contratos a que era aplicável, diminuindo em algumas circunstâncias a possibilidade de transmissão do arrendamento e facilitando-a noutras (vide, com apreciações globais não inteiramente coincidentes sobre o sentido geral deste regime transitório, relativamente ao regime do RAU, SOUSA RIBEIRO, em “O novo regime do arrendamento urbano: contributos para uma análise”, em “Estudos jurídicos em homenagem ao Prof. Dr. António Mota Veiga, pág. 770-771, da ed. de da Almedina, MENEZES LEITÃO, em “Arrendamento Urbano”, pág. 122, da ed. de 2006, da Almedina, e RITA LOBO XAVIER, em “Concentração ou transmissão do direito ao arrendamento habitacional em caso de divórcio ou morte”, em “Estudos em honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão”, vol. II, pág. 1046, da ed. de 2008, da Almedina).

Trata-se de uma norma excecional que afasta a aplicação das regras gerais de aplicação da lei no tempo, previstas no artigo 12.º do Código Civil, não sendo estas aplicáveis à presente situação, pelo que carece de fundamento a alegação dos Recorrentes que a aplicação do disposto no artigo 57.º do NRAU viola essas regras gerais.

3. Da constitucionalidade da aplicação do artigo 57.º do NRAU aos contratos pretéritos

Os Réus invocam a inconstitucionalidade da aplicação do disposto no artigo 57.º do NRAU aos contratos pretéritos, por violação do modelo do Estado de Direito Democrático, na dimensão da irretroatividade das leis restritivas de direitos fundamentais, e ainda dos princípios da igualdade e da proteção da confiança.

Tais questões de constitucionalidade já foram apreciadas pelo Tribunal Constitucional nos seus acórdãos n.º 196/2010, de 12.05.2010, n.º 385/10 de 12.10.2010, n.º 346/11 de 07.07.2011, n.º 581/11, de 29.11.2011 e n.º 502/2023 de 11.07.2023, tendo todos eles negado que a aplicação da solução transitória prevista no artigo 57.º do NRAU para os contratos pretéritos viole a proibição da retroatividade das leis restritivas de direitos fundamentais e ainda dos princípios da igualdade e da proteção da confiança, tendo expressamente o último destes acórdãos decidido não julgar inconstitucional a norma extraída do proémio do n.º 1 do artigo 57.º do NRAU, na versão resultante da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, no sentido de excluir que o arrendamento celebrado antes da entrada em vigor do RAU e transmitido ao cônjuge do primitivo arrendatário antes da entrada em vigor do NRAU se transmita de novo, por morte do cônjuge sobrevivo, ocorrida na vigência do NRAU, na versão decorrente da referida Lei, para o descendente de ambos.

Do mesmo modo, também o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão 04.12.2018, Proc. 6371/15 se pronunciou em igual sentido.

Assim, remetendo-se para as razões explicadas no já referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 196/2010, que também foram reproduzidas no acórdão recorrido, as quais nos dispensamos de voltar a transcrever, não se considera violador de qualquer princípio constitucional a aplicação do regime previsto no artigo 57.º do NRAU aos contratos pretéritos a este diploma, designadamente ao contrato sub iudicio, improcedendo igualmente este fundamento do recurso.

4. Da indemnização por benfeitorias

Os Réus, para a hipótese de se considerar cessado o contrato de arrendamento, deduziram pedido de indemnização por benfeitorias realizadas no arrendado.

Outra das normas transitórias criadas pelo NRAU aplicáveis aos contratos de arrendamento pretéritos, foi a do artigo 29.º, n.º 1, do NRAU, onde se estipula que salvo disposição em contrário, a cessação do contrato dá ao arrendatário o direito a compensação pelas obras licitamente feitas, nos termos aplicáveis às benfeitorias realizadas por possuidor de boa-fé, sendo a compensação pelas benfeitorias regida, em termos gerais, pelos artigos 1273.º a 1275.º do Código Civil.

Este direito de compensação é atribuído ao arrendatário que efetuou ou custeou as obras de melhoramento do arrendado.

Provou-se que a Ré DD nasceu no prédio arrendado e sempre aí habitou com os pais, e com o Réu após o seu casamento e nascimento dos filhos, e que, durante o período de vida dos seus pais, foram realizadas obras no prédio arrendado, ao nível do pavimento e telhado, aumentando o número de quartos, construída casa de banho, instalada eletricidade, água e saneamento, obras essas autorizadas por CC, antigo senhorio.

Ora, conforme decidiram as instâncias, apesar de se ter provado que tais obras foram realizadas quando os pais da Ré eram os arrendatários, não ficou, no entanto, demonstrado quem realizou ou custeou essas obras, sendo certo que os Réus nunca foram arrendatários do prédio, pelo que não é possível neste processo reconhecer-lhes o direito a serem compensados pela realização das referidas benfeitorias, improcedendo também este fundamento do recurso.


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Decisão

Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso interposto pelos Réus, confirmando-se o acórdão recorrido.


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Custas pelos Réus

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Notifique.

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Lisboa, 14 de março de 2024

João Cura Mariano

Afonso Henrique

Ana Paula Lobo

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1. Pedro Romano Martinez, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL, 2021, p. 365.