Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3374/07.9TBGMR-C.G2.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
HIPOTECA
CONSUMIDOR
PESSOA SINGULAR
ARRENDAMENTO
Data do Acordão: 05/24/2016
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
DIREITO FALIMENTAR - PROCESSO DE INSOLVÊNCIA / RECURSOS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Vendas de Bens de Consumo, Comentário, 3.ª edição, Almedina, 44.
- Carlos Ferreira de Almeida, Direito do Consumo, Almedina, 2005, 50.
- Pestana de Vasconcelos, nos Cadernos de Direito Privado, n.º 33, 3 e ss, em especial nota n.º 25 (p. 8); Direito das Garantias, Almedina, 2015, 2.ª edição, 376.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 755.º, N.º1, AL. F).
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 14.º, N.º1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º1, 671.º, N.º3.
DEC.-LEI N.º 24/2014, DE 14.2, QUE TRANSPÔS A DIRECTIVA Nº 2011/83/UE DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO, DE 25/10/11, RELATIVA AOS DIREITOS DOS CONSUMIDORES.
LEI N.º 24/96 (LEI DE DEFESA DOS CONSUMIDORES): - ARTIGO 2.º, N.º 1,
LEI N.º 41/2013, DE 26-6: - ARTIGO 7.º, N.º1.
LEI N.º 62/2013, DE 26-08: - ARTIGOS 54.º, N.º 2, 128.º.
PROVIMENTO N.º 15/2014, DE 4-9, DO PRESIDENTE DO S.T.J..
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 29/5/2014, PROC.º N.º 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1;
-DE 10/10/2015, PROC.º N.º 19994/10.1T2SNT.L1.S1;
-DE 16/2/2016, PROC.º N.º 135/12.7TBMSF.G1.S1.

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-DE 20/03/2014, ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA (AUJ) N.º 4/2014, PUBLICADO NO D.R., I SÉRIE, DE 19/05/2014.
Sumário :
I - Os acórdãos de uniformização de jurisprudência (AUJ), apesar de não terem força obrigatória geral, criam um precedente qualificado de carácter persuasivo, a desconsiderar apenas com fundamento em fortes razões ou especiais circunstâncias que não tenham sido suficientemente ponderadas.    

II - O AUJ n.º 4/2014, de 20-03-2014, não incluiu no segmento uniformizador o conceito de consumidor.

III - O conceito de consumidor constante da fundamentação do AUJ, ou seja, de utilizador final, com o significo comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda, corresponde ao conceito estrito adoptado pelo ordenamento jurídico português.

IV - Tendo-se provado, no caso dos autos, (i) que os recorridos, promitentes-compradores, são pessoas singulares que adquiriram a fracção fora do âmbito da sua actividade profissional; (ii) que o arrendamento para habitação celebrado foi um acto isolado (não se provaram arrendamentos de outros imóveis seus); (iii) que não exercem com carácter profissional actividade económica lucrativa; e (iv) que ao prometerem comprar a fracção à sociedade insolvente não a destinaram a uma actividade profissional, nem agiram no âmbito de uma actividade dessa natureza, é de concluir que são consumidores, na acepção que o AUJ teve em vista e adoptou ao interpretar o disposto no art. 755.º, n.º1, al. f), do CC.

V - Em consequência, estando verificados os outros requisitos do direito de retenção e uma vez que são consumidores, deve o crédito dos recorridos ser graduado antes do crédito da recorrente, credora hipotecária, confirmando-se o acórdão recorrido, ainda que com fundamentos parcialmente diversos.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Síntese dos termos essenciais da causa e do recurso

1.1. Por sentença proferida a 12/10/07, transitada em julgado, foi decretada a insolvência de AA, Ldª, pedida por BB - Comércio de Produtos Siderúrgicos, SA, fixando-se o prazo de 30 dias para a reclamação de créditos.

O Administrador da Insolvência juntou ao processo a lista dos créditos reconhecidos, nos termos do artº 129° do CIRE e, notificado das impugnações, uma nova lista (fls 525/529).

Houve uma tentativa de conciliação, na qual as partes transigiram parcialmente, e  depois a instância esteve suspensa até ao trânsito em julgado da decisão proferida no âmbito da ação ordinária apensa sob a letra “I” (fls 1917 a 1918).

No despacho saneador o crédito de CC e sua mulher DD (reclamação de fls 199 a 204) – único que, como resulta do que segue, nesta fase interessa destacar - foi julgado reconhecido no montante de 143.622 €, face ao acordo expresso na acta de fls 1877, onde ficou consignado que “os impugnantes mantêm a qualificação como privilegiado, por entenderem beneficiar do direito de retenção e pelo senhor administrador e membros da comissão de credores foi dito relegam para apreciação do tribunal a natureza do crédito reconhecido, embora não contestando ter havido tradição da coisa prometida vender”.

Realizado o julgamento (já na vigência do NCPC - versão introduzida pela Lei 41/2013, de 26/06), foi proferida sentença de graduação de créditos (fls 2265/2390 e 2390/2409, rectificada a fls 2573/2574 e 2625), da qual apelaram, entre outros, a credora EE - Consultores de Gestão, Ldª.

1.2. Por decisão sumária de 27/5/15 (fls 2677/2678) a Relação de Guimarães anulou a sentença, ao abrigo do artº 662º, nº 2, c), CPC, por entender “...que é necessário ampliar a matéria de facto relativamente à questão de saber se certos credores devem ou não ser considerados consumidores, no âmbito do contrato do qual se entendeu resultar o privilégio do respectivo crédito”.

1.3. Efectuado novo julgamento (fls 2138/2140), foi proferida em 7/8/15 sentença dando como assentes os seguintes pontos de facto:

1) Entre a insolvente e CC e DD foi celebrado o acordo denominado de contrato promessa, em 2/12/02, relativo ao apartamento do tipo T2, no módulo B, 3º andar, cabendo-lhe ainda a garagem, integrante do edifício situado na rua …, que a primeira prometeu vender aos segundos, a quem a entregou;

2) O impugnante celebrou com FF um acordo, pelo qual lhe cedeu, para habitação, pelo prazo de 5 (cinco) anos, com início em 1/4/05 e termo em 31/3/11, prorrogável por períodos iguais sucessivos, a fracção 1820-AQ (conforme esclarecimento posterior) – (artºs 8º e 9º da petição de reclamação);

3) FF e mulher celebraram com a Câmara Municipal o acordo de fornecimento de água e pagam as despesas do condomínio – (artº 27° da petição de reclamação);

4) Desde 2006 que os impugnantes fazem constar da sua declaração de rendimentos as rendas que recebem nos termos do acordo mencionado em 2)- (artº 28° da petição de reclamação).

5) Os impugnantes são professores (facto instrumental resultante da discussão da causa).

Com base nestes factos, decidiu-se assim (parte dispositiva da sentença):

“Em face do exposto, deve proceder-se ao pagamento do crédito reconhecido aos impugnantes CC e GG, através do produto resultante da liquidação do bem imóvel apreendido sob a verba nº 13, do auto de fls. 35 a 36, do apenso respetivo, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …02-AQ/Caldelas, pela seguinte ordem:

1.° - As dívidas da massa insolvente saem precípuas, na devida proporção, do produto da venda dos bens;

2.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito de CC e DD, por beneficiarem de direito de retenção;

3.º - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito da Autoridade Tributária e Aduaneira a título de IMI, de natureza privilegiada s créditos por IMI, de natureza privilegiada (relativo a este imóvel, a apurar, através de competente certificação, pelo Sr. AI);

4.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito hipotecário titulado pela EE - Consultores de Gestão, SA (habilitada no apenso M), até ao limite do capital máximo assegurado;

5.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento aos créditos privilegiados do Instituto da Segurança Social, IP (na parte em que têm essa natureza);

6.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento ao crédito privilegiado da Autoridade Tributária e Aduaneira a título de IRS e de IRC;

7.° - Do remanescente, dar-se-á pagamento rateado aos créditos enumerados como comuns, em par de igualdade, na lista de créditos homologada;

8º - Do remanescente, dar-se-á pagamento rateado aos créditos enumerados como subordinados (aos juros de créditos não subordinado constituídos após a declaração de insolvência, com exceção dos abrangidos por garantia real ou por privilégios, até ao valor do bem respetivo).

Custas pela massa insolvente - artigo 304°, do CIRE”.

1.4. A credora EE - Consultores de Gestão, Ldª, apelou, tendo a Relação, primeiro através de decisão sumária do relator e depois por acórdão da conferência de 14/1/16, julgado o recurso improcedente, “ainda que não, totalmente, pelos mesmos fundamentos” (fls 3055).

A fundamentação jurídica do acórdão da 2ª instância é a seguinte (que parcialmente se reproduz):

“....

ii) A decisão de direito:

É discutida pela recorrente, que pretende ver o seu crédito graduado à frente do daqueles CC e esposa, visto que estes, porque têm o prédio em questão arrendado, como senhorios, não terão direito à protecção decorrente do disposto no artº755.º, nº1, f), do CC, cujo “regime legal prendeu-se com a necessidade de tutelar os particulares, maxime o direito à habitação, constitucionalmente consagrado (…), prevalecendo o direito de retenção, ainda perante hipoteca registada em data anterior, (…), numa lógica de defesa do consumidor.”.

Que dizer?

A alínea f) do nº1 do dito artº 755º foi, como se sabe, introduzida pelo DL 379/86, de 11-11, e, literalmente, nem fala em consumidores, nem em particulares, nem em direito à habitação, referindo-se apenas ao “beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º.”.

A interpretação do inciso suscitou, porém, decisões díspares, vindo a ser prolatado o douto acórdão de uniformização de jurisprudência (AUJ) nº4/2014, de 20-03-2014, cujo sumário se vê na conclusão 15 do recurso.

Ressalvado o devido respeito, não acompanhamos a tese que fez vencimento neste aresto, revendo-nos, antes, nos vários votos de vencido que entendem não haver razão plausível para restringir, a aplicação do preceito em questão, aos consumidores.

.....

Não pode aceitar-se que, sendo o pensamento legislativo aquele que, no AUJ, se fixou, ele tenha sido tão deficitariamente transcrito para aquela alínea f), redigida em termos o mais amplos possíveis. Nem a um observador não particularmente atento escaparia que, com a redacção adoptada, qualquer pessoa, particular ou não, consumidora ou não, iria invocar a lei a seu favor.

Saber se, deste modo, com esta redacção do preceito, se afronta algum princípio constitucional, designadamente os da igualdade e/ou da proporcionalidade, quando se compare o estatuto assim fixado para os beneficiários referidos na norma e os credores titulares de hipotecas sobre o imóvel em questão, é, obviamente, outra questão, que aqui não importa dilucidar.

Mas, ainda que nos situemos no plano em que a questão está colocada nos autos, ou seja, no de fazer depender, o direito dos recorridos, da sua qualidade de consumidores, chegaremos à mesma conclusão.

Com efeito, atendo-nos à definição de consumidor, constante do artº 2º, nº 1, da Lei 24/96, de 31-07, e tendo em conta ter-se demonstrado que os recorridos são professores (ponto 5 do probatório), concluiremos que a aquisição por estes feita, do imóvel em questão, se destinou a uso não profissional, não colhendo, assim, a argumentação, expendida pela recorrente, no sentido de fazer depender, a qualificação de consumidor, da prova de que o imóvel se destinou à instalação da habitação dos recorridos.

E se fosse destinada a casa de férias ou a oferecer a um filho? Estaríamos, por isso, fora do âmbito de aplicação da norma?

Entendemos que não, porque, ainda que, e apenas, no dito preâmbulo, se fale em direito à habitação, a definição de consumidor, a que, consensualmente, haverá que recorrer, não o faz.

A decisão recorrida não merece, pois, censura.

Em síntese:

O recurso improcede, porque, com o devido respeito, não se acompanha o douto acórdão de uniformização de jurisprudência nº4/2014, revendo-nos, antes, nos diversos votos de vencido, a ele apendiculados, no sentido de que a alínea f) do nº1 do artº 755º do CC não é aplicável apenas aos consumidores, acrescendo que, mesmo na óptica em que a questão se mostra abordada nos autos, não sendo impugnada a decisão de facto, desta resulta, por consideração da noção de consumidor a ter em conta, que os recorridos actuaram como tal, ao prometerem comprar o imóvel em questão.

.....

Em conferência, o tribunal revê-se na decisão vinda de transcrever, que, por isso, avoca e, por inteiro, faz sua, com o que julga a apelação improcedente e confirma a decisão recorrida, ainda que não, totalmente, pelos mesmos fundamentos”.

1.5. Mantendo-se inconformada, a apelante interpôs recurso de revista excepcional, pedindo a revogação do acórdão da 2ª instância com base  nas seguintes – e resumidas - conclusões:

1ª) O presente recurso de revista excepcional é interposto nos termos do artº 14.°, n° 1, 2ª parte, do CIRE, e dos arts. 671.°, nº 1, 672.°, nº 1, al c), e nº 2, al. c), ambos do CPC, aplicáveis ex vi do art. 17º do CIRE;

2ª) O acórdão recorrido está em contradição com o do STJ, de 20-3-14, aqui acórdão fundamento, proferido no âmbito do processo nº 92/05.6TYVNG, já transitado em julgado, que se debruçou, precisamente, sobre a problemática da graduação do crédito de um promitente-comprador de uma fracção autónoma, com direito de retenção reconhecido, e a sua prevalência sobre o crédito reconhecido ao credor hipotecário, no âmbito de um processo de insolvência de pessoa colectiva, e que uniformizou jurisprudência no sentido de que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”;

3ª) A decisão recorrida foi adoptada no âmbito do quadro legal actualmente em vigor, quer no âmbito civil - arts. 442.°, nº 2 e nº 3 (regime do sinal), 755.°, nº 1, al. f) (direito de retenção), 759º, nº 2 (retenção de coisas imóveis), 827º (execução específica), 830º (contrato-promessa), todos do Código Civil (CC), - quer no âmbito da insolvência – artºs. 102º (negócios ainda não cumpridos), 104º, nº 1 e nº 5 (venda com reserva de propriedade e operações semelhantes), 106º, nº 2 (promessa de contrato), todos do CIRE, sendo que nenhuma das mencionadas normas foi objecto de qualquer alteração legislativa;

4ª) O Tribunal de lª instância e o Tribunal a quo adoptaram um conceito amplo de consumidor e classificaram os recorridos como beneficiários do direito de retenção previsto pelo artº 755º, nº 1, al. f), do CC, desviando-se em absoluto do AUJ nº 4/2014, de 20.03.2014, aqui acórdão fundamento, que veio fixar jurisprudência, perfilhando um entendimento restritivo da mencionada protecção legal;

5ª) O direito de retenção do promitente-comprador, introduzido no código civil pelo Decreto-Lei 236/80, de 18 de Julho, através do nº 3, teve como propósito a necessidade de tutelar os particulares, maxime o direito à habitação, constitucionalmente consagrado pelos artºs. 65º, 70º e 72.° da Lei Fundamental;

6ª) O legislador atribuiu preferência aos beneficiários das promessas de venda em face dos direitos decorrentes da hipoteca, prevalecendo o direito de retenção face a hipoteca registada em data anterior, nos termos do artº 759, nº 2, do CC, numa lógica da defesa do consumidor enquanto pessoa humana, que goza da protecção constitucional atribuída ao direito à habitação;

7ª) O AUJ 4/2014, de 20.3.14, aqui acórdão fundamento, veio pôr fim às querelas jurisprudenciais existentes, perfilhando uma interpretação restritiva do artº 755, nº, 1, do CC, completamente afastada pelo tribunal a quo no acórdão recorrido;

8ª) Ora, os Recorridos não habitam o imóvel objecto do contrato-promessa, mantendo-o arrendado e encontrando-se a usufruir das respectivas rendas retirando, portanto rendimentos que, por direito, são propriedade da massa insolvente, factualidade que se encontra provada nos autos;

9ª) Correspondendo, portanto, a fracção em causa, a uma fonte de rendimento, e não à habitação dos recorridos e correlativo direito protegido pela Constituição da República Portuguesa;

10ª) Os recorridos não se enquadram na noção de consumidor perfilhada e protegida pelo mencionando Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, acórdão fundamento, razão pela qual não gozam da protecção atribuída pelo direito de retenção, prevista no art. 755.°, nº 1, al. f), do CC;

11ª) Em situações como a presente, a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca deixa de ter qualquer fundamento de proporcionalidade, equidade ou justiça, e extravasa por completo a lógica com que o direito de retenção atribuído ao promitente-comprador foi introduzido no nosso ordenamento jurídico.

12ª) O acórdão recorrido, assim, não deveria ter mantido a graduação efectuada pelo tribunal de 1ª instância, ignorando e afastando por completo o AUJ nº 4/2014, de 20/3/14, acórdão fundamento;

13ª) O crédito hipotecário da recorrente, por consequência, deve ser graduado em 2.° lugar, para ser pago logo a seguir às dívidas da massa, no que respeita à graduação especial relativa ao produto resultante da liquidação da verba 13 do respectivo auto, correspondente à fracção autónoma designada pelas letras “AQ”, pertencente ao prédio urbano sito na freguesia de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº …02.

Os recorridos contra alegaram, sustentando, por um lado, que não existe a contradição jurisprudencial defendida pela recorrente e, por outro, que devem ser considerados consumidores, vistos os factos provados, de harmonia com o conceito fixado no AUJ 4/2014, razão pela qual a revista deve ser julgada improcedente.

1.6. Neste STJ, distribuídos os autos à formação do artº 672º, nº 3, do CPC, foi ordenada a sua remessa à distribuição como revista normal por se ter considerado inaplicável o regime da dupla conforme e, consequentemente, da revista excepcional, atendendo a que o processo foi iniciado em data anterior a 1/1/08 (artºs 5º e 7º da Lei 41/2013, de 26 de Junho).

Tudo visto, cumpre decidir.

2. Fundamentação  

2.1. Como a formação decidiu, é inaplicável ao caso o regime da dupla conforme, introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo DL 303/07, de 24 de Agosto.

Com efeito, o  artº 7º, nº 1, da Lei 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o NCPC, dispõe que “aos recursos interpostos de decisões proferidas a partir da entrada em vigor da presente lei em acções instauradas antes de 1 de Janeiro de 2008 aplica-se o regime de recursos decorrente do Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, com as alterações agora introduzidas, com ex­cepção do disposto no nº 3 do artº 671º do Código de Processo Civil, aprovado em anexo à presente lei”.

Uma vez que o acórdão recorrido é posterior a 1/9/13, data da entrada em vigor do NCPC, aplica-se no caso presente o regime de recursos fixado neste diploma; mas porque a acção foi proposta antes de 1/1/08, há que ter em consideração a ressalva estabelecida quanto ao artº 671º, nº 3 que acima se destacou. Isto quer dizer que a restrição ao recurso de revista decorrente da situação de dupla conformidade, inexistente na lei que vigorava antes da reforma introduzida pelo DL 303/07, de 24/8, não tem aplicação; na verdade, podendo a parte nisso interessada, na data em que a acção foi instaurada, contar com o recurso de harmonia com o regime então em vigor, foi clara intenção do legislador ao estabelecer a indicada ressalva não a privar desse direito, quando existente.

Na hipótese dos autos, portanto, a dupla conforme -  que sem qualquer dúvida ocorre, pois o acórdão recorrido confirmou a sentença da 1ª instância sem fundamentação essencialmente diferente - não impede o recurso nos termos gerais para o Supremo Tribunal, certo que, por outro lado, o valor da causa e da sucumbência respeitam os limites impostos pelo artº 629º, nº 1, do CPC, não constituindo, por isso, obstáculo à sua admissão.

Importa também sublinhar que não tem aqui aplicação, contrariamente ao alegado pela recorrente, o regime do artº 14º, nº 1, do CIRE, que condiciona a admissão do recurso à verificação da oposição jurisprudencial nele definida relativamente à mesma questão fundamental de direito resolvida nos arestos em confronto; e isto porque, como tem sido orientação constante desta secção do STJ (à qual são sempre atribuídos os processos mencionados no artº 128º da Lei 62/2013, de 26/08, conforme se determina no artº 54º, nº 2, do mesmo diploma – cfr. provimento nº 15/2014, de 4/9/14, do presidente do STJ), a limitação do recurso para este tribunal estabelecida naquele preceito legal abrange somente o processo de insolvência e os embargos opostos à sentença declaratória da insolvência, dela se excluindo todos os apensos que não os embargos. Esta solução surge claramente reforçada pondo em confronto o nº 1 com o nº 2 do citado artº 14º, onde, a respeito do decurso do prazo de alegações, a lei fala “em todos os recursos interpostos no processo ou em qualquer dos seus apensos”.

Decorre do exposto que se torna desnecessário verificar se a oposição de acórdãos invocada pela recorrente está ou não efectivamente demonstrada, uma vez que os recursos de revista interpostos da sentença de graduação de créditos, no apenso de reclamação de créditos, são admissíveis nos termos do artº 629º, nº 1, do CPC, independentemente da existência de oposição sobre a mesma questão fundamental de direito com outros acórdãos das relações ou do STJ.

2.2. A única questão colocada na presente revista é a de saber se o crédito dos recorridos deve ou não ser graduado à frente do crédito da recorrente, credora hipotecária, por gozar do direito de retenção estabelecido no artº 755º, nº 1, f), do CC.

Segundo este preceito, goza do direito de retenção “O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º”.

Interpretando restritivamente esta norma, o Acórdão do STJ de 20/03/2014 (Acórdão nº 4/2014, publicado no DR, I Série, de 19/05/2014) uniformizou jurisprudência nos seguintes termos: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755º nº 1 alínea f) do Código Civil”.

Ora, como acima se viu (supra 1.4), o acórdão recorrido discordou da doutrina estabelecida neste AUJ e, declarando expressamente aderir à posição de vários dos juízes vencidos (entre os quais se contam, justamente, os três que subscrevem o presente aresto), confirmou a sentença da 1ª instância por considerar que aquela disposição legal não exige como requisito da titularidade do direito de retenção que o beneficiário da promessa de transmissão seja um consumidor.

Só que, como bem se refere no acórdão deste STJ de 10/10/15 (Procº nº 19994/10.1T2SNT.L1.S1), que julgou um caso de contornos idênticos ao presente, “Apesar de não ter força obrigatória geral, como tinham os anteriores assentos (com a revogação do art. 2º do CC), nem natureza vinculativa para os outros tribunais, o acórdão de uniformização constitui um precedente qualificado, de carácter persuasivo, a merecer especial ponderação, que se julgou suficiente para assegurar a desejável unidade da jurisprudência[1].

Daí que os tribunais só devam afastar-se da jurisprudência uniformizada em "decisões fundamentadas que ponham convincentemente em causa a doutrina fixada"[2].

Como refere Abrantes Geraldes, "só razões muito ponderosas poderão justificar desvios de interpretação das normas jurídicas em causa (…). Ademais, a discordância deve ser antecedida de fundamentação convincente, baseada em critérios rigorosos, em alguma diferença relevante entre as situações de facto, em contributos da doutrina, em novos argumentos trazidos pelas partes e numa profunda e serena reflexão interior (…). Em suma, para contrariar a doutrina uniformizada pelo Supremo devem valer fortes razões ou outras especiais circunstâncias que porventura ainda não tenham sido suficientemente ponderadas".

Como se diz no Acórdão deste Tribunal de 14.05.2009[3], "a decisão uniformizada, não sendo estrita e rigorosamente vinculativa, cria uma jurisprudência qualificada, mais persuasiva e, portanto, a merecer uma maior ponderação".

Não basta, pois, não concordar com o entendimento adoptado no acórdão uniformizador, sob pena de a uniformização se revelar um instituto sem utilidade, por subsistir, nos mesmos termos, a controvérsia jurisprudencial. A desconsideração desse acórdão tem de resultar de fundadas razões ou de argumentos jurídicos novos ou que não foram aí "convincentemente rebatidos"[4].

Será aqui de referir que, como é evidente, não se pretende, por esta via, impor aos outros tribunais as condições em que se podem afastar da jurisprudência uniformizada; tal não seria conciliável com a natureza meramente persuasiva e não vinculativa desta.

Do que se trata é, tão só, estabelecer critérios que permitam ao Supremo aferir se é aceitável e justificada a divergência em relação a tal jurisprudência.

No caso, como se disse, o acórdão recorrido assume um entendimento diferente do preconizado no AUJ nº 4/2014, no que toca à interpretação do art. 755º, nº 1, al. f) do CC, defendendo que esta norma não exige que o beneficiário da promessa tenha de ter a qualidade de consumidor.

Argumenta-se que é nesse sentido que se manifesta o "pensamento do legislador", sendo esse também o sentido objectivo da lei, apoiando-se em vários votos de vencido ao aludido Acórdão.

Estas razões não saem do âmbito em que a questão foi discutida nesse Acórdão, nada acrescentando de novo e ponderoso a tal discussão, acolhendo apenas, no fundo, a tese que foi aí vencida.

Não vemos, pois, razões para afastar a jurisprudência do referido Acórdão uniformizador”.

De igual modo, no acórdão do STJ de 29/5/14 (Procº 1092/10.0TBLSD-G.P1.S1), que também apreciou questão praticamente idêntica à aqui discutida, escreveu-se o seguinte:

“ Resta a questão de o crédito reconhecido a este reclamante gozar ou não do direito de retenção sobre a fracção objecto do contrato-promessa.

Já transitou em julgado o Acórdão de 20.3.2014, proferido em Plenário das Secções Cíveis no qual, por maioria, se uniformizou jurisprudência nos seguintes termos:

.....

Os três subscritores do presente acórdão votaram ali vencidos, porque discordaram da inserção do consumidor. Ou seja, no seu modo de ver, o direito de retenção teria lugar mesmo que o promitente-comprador não fosse consumidor.

Os Acórdãos proferidos em revista ampliada, nos termos do artigo 732.º -A, não vinculam o Supremo Tribunal de Justiça. Mas dispõe o nº 3 deste artigo (agora nº 3 do artigo 686.º do NCPC) que:

O relator, ou qualquer dos adjuntos, propõe obrigatoriamente o julgamento ampliado da revista quando verifique a possibilidade de vencimento de solução jurídica que esteja em oposição com jurisprudência uniformizada, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

Não poderíamos nós, pois, levar por diante o entendimento constante dos nossos votos de vencidos, proferindo um acórdão apenas por nós subscrito, se ele conduzisse a solução antagónica do pleito neste ponto. Teríamos antes de propor ao Presidente a prolação de acórdão com intervenção do pleno das secções cíveis.

Por isso, só em casos em que é legítimo pensar que se operou evolução no entendimento do pleno se justifica o afastamento da posição por este subscrita. 

Mesmo no caso de a solução não diferir, tendo lugar só divergência nítida no capítulo da fundamentação (cessando a obrigatoriedade de proposta ao Presidente), entendemos dever seguir-se o mesmo raciocínio. É o que resulta, a nosso ver, do princípio que está na base da prolação dos Acórdãos em revista ampliada e até do princípio que subjaz ao artigo 8.º n.º3 do Código Civil.

Daqui emerge que, para que goze do direito de retenção que pretende ver reconhecido no presente recurso, o recorrente CC terá de ser incluído no conceito de consumidor”.

Assim, por não estar posta em causa neste recurso, como se  retira das conclusões enunciadas, a verificação de todos os outros requisitos de que o artº 755º, nº 1, f), do CC faz depender o reconhecimento do direito de retenção isto é, a existência de um crédito resultante de promessa de transmissão ou constituição de um direito real; entrega ou tradição da coisa objecto do contrato promessa; e incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor - resta somente decidir se os recorridos devem ou não ser considerados consumidores.

A este respeito, não pode negar-se que os factos concretos apurados, mesmo depois da anulação da sentença decretada pela Relação em ordem à ampliação da matéria de facto (supra 1.3), são relativamente escassos, tornando a correcta resolução da questão algo duvidosa; mas isso, como se sabe, não dispensa o tribunal de tomar posição.

Importa sublinhar, em primeiro lugar, que o conceito de consumidor não foi incluído no segmento uniformizador do AUJ nº 4/2014; adianta-se, todavia, na nota de rodapé nº 10 do aresto que “...o promitente comprador é, in casu, um consumidor no sentido de ser um utilizador final, com o significado comum do termo, que utiliza os andares para seu uso próprio e não com escopo de revenda”. Este entendimento expressa a noção de consumidor em sentido estrito, que de acordo com a grande maioria, se não a totalidade da doutrina, é a adoptada no nosso ordenamento jurídico. Tal o caso, por exemplo, de Calvão da Silva, para quem consumidor é a “pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado – uso pessoal, familiar ou doméstico...mas não já aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa [5], e de Carlos Ferreira de Almeida, que a dado passo conclui: “... parece, em princípio, mais ajustado que, quando se adopte um conceito genérico e supletivo de consumidor, ele se contenha em limites restritos, relacionados apenas com o uso pessoal ou familiar de bens fornecidos (ou disponíveis para fornecer) por quem exerça uma actividade profissional” [6]. É assim que a Lei nº 24/96 (Lei de Defesa dos Consumidores) define no artigo 2º, nº 1, consumidor como “todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios.” E o Dec-Lei n.º 24/2014, de 14.2, que transpôs a Directiva nº 2011/83/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25/10/11, relativa aos direitos dos consumidores, define consumidor, para efeitos desta norma, como “a pessoa singular que actue com fins que não se integrem no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”.

Em segundo lugar cabe pôr em relevo que a inclusão do consumidor no texto do AUJ 4/2014 e, mais precisamente, no respectivo segmento uniformizador, assim restringindo a amplitude e o alcance do direito de retenção a que alude o artº 755º, nº 1, f), do CC apoiou-se claramente, como se infere da respectiva da fundamentação, no ensinamento do Prof. Pestana de Vasconcelos, que nos Cadernos de Direito Privado, nº 33, pág. 3 e segs, referindo-se à definição de consumidor, escreve na nota nº 25 (pág. 8), que a resultante dos artigos 10º, nº 1 e 11º, nº s 1 e 2 do Anteprojeto do Código do Consumidor, segundo a qual é “consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional”, se mostra “ponderada e equilibrada”, devendo “orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito, dando inteiro cumprimento, no caso concreto, à ratio da disposição, o que vale dizer, só tutelando quem efectivamente é carente de tutela”. Na sua obra Direito das Garantias (Almedina, 2015, 2ª edição – pág. 376) este mesmo Autor ensina que o artº 755º, nº 1, f), do CC, é “…materialmente uma norma de tutela do consumidor” e que “…embora a letra da lei não faça essa precisão, o recurso aos outros elementos hermenêuticos permite reconstruir a ratio – que é, claro, o aspecto decisivo – e restringir, nessa medida, o alcance da norma: o direito de retenção do art. 755.º, n.º 1, al. f) só beneficia o consumidor. Nos outros casos, ou seja, quando o promitente-adquirente não seja um consumidor, não há qualquer tutela particular”.

Em terceiro lugar interessa mencionar na jurisprudência, entre outros,  o acórdão do STJ de 29/5/14, já acima citado, que, depois de analisar a fundamentação do AUJ 4/2014 e os textos legais mais relevantes no domínio do direito do consumo, concluiu “... que do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis”; e deve ainda mencionar-se, por último, o acórdão de 16/2/16 (Procº 135/12.7TBMSF.G1.S1) onde, feita uma análise resumida da ainda escassa jurisprudência deste tribunal sobre o assunto, acabou por se concluir “que a noção de consumidor até agora adoptada neste Supremo Tribunal acentua a qualidade de sujeito final na transacção do bem, excluindo apenas os comerciantes e aqueles que destinam o imóvel a revenda para obtenção de lucro”, aderindo-se a este entendimento.

À luz do exposto, e tendo em consideração que no caso dos autos os recorridos, promitentes compradores, são pessoas singulares que adquiriram a fracção fora do âmbito da sua actividade profissional; que o arrendamento para habitação celebrado foi, tudo o indica, um acto isolado (pois não se provou que tenham dado de arrendamento e aufiram rendas de outros imóveis de que sejam titulares); que não exercem com carácter profissional actividade económica lucrativa; e que ao prometer comprar a fracção à sociedade declarada insolvente não a destinaram a uma actividade profissional nem, além disso, agiram no âmbito duma actividade dessa natureza, concluímos que são consumidores, na acepção que o AUJ 4/2014 teve em vista e, aparentemente, adoptou ao interpretar o artº 755º, nº 1, f), do CC nos termos em que o fez. E sendo inquestionável que na base da doutrina nele adoptada esteve o relevo e significado prático que se quis conferir ao princípio da protecção do consumidor como parte mais débil e desprotegida nos contratos promessa identificados naquele preceito legal, não pode deixar de considerar-se, olhando com atenção para a situação concreta em causa no presente processo, que não foi a circunstância de os recorridos terem arrendado a fracção em data anterior à insolvência da promitente vendedora que, reequilibrando a relação contratual com ela estabelecida, tornou dispensável (desnecessária) a garantia do direito de retenção que as instâncias decidiram reconhecer-lhes.

Improcedem, portanto, ou mostram-se deslocadas as conclusões do recurso.

3. Decisão

 Nos termos expostos acorda-se em negar a revista, mantendo, ainda que com fundamentos parcialmente diversos, o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.


Lisboa,  24/05/2016

Nuno Cameira (Relator)

Salreta Pereira

João Camilo (com voto vencido)

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Voto de Vencido

Tal como decidiu o antecedente acórdão, por força da doutrina aprovada pelo acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2014, de 20/03/2014, o credor reclamante num processo de insolvência, para beneficiar de um direito de retenção, previsto no art. 755º, n1, al. f) do Cód. Civil, com o fundamento em o crédito reclamado decorrer de um contato promessa não cumprido, celebrado como promitente comprador com a agora insolvente, como promitente vendedora, tem de ser considerado consumidor.

Porém, no caso em apreço, os credores reclamantes não provaram revestir, em nossa opinião, essa qualidade.

Com efeito, segundo o disposto no art. 342º, nº 1 do Cód. Civil, incumbia aos credores reclamantes a prova de preencherem esse conceito.

Dos factos provados apenas resulta que os reclamantes são pessoas singulares, que celebraram o contrato promessa de um apartamento com garagem, como promitentes compradores, com a ora insolvente, como promitente vendedora.

Mais se provou que logo receberam desta promitente vendedora o imóvel, que o credor reclamante cedeu em arrendamento para habitação pelo período de cinco anos a terceiro.

Os reclamantes são professores e fizeram constar da sua declaração fiscal as rendas que recebem do mesmo arrendamento.

Parece-nos, assim, que tendo os credores reclamantes destinado o imóvel prometido adquirir a um fim de lucro, se não podem considerar como consumidores, na conduta de aquisição do imóvel em causa.

Tal como ensina o Prof. Calvão da Silva, citado no acórdão, é consumidor a pessoa que adquire um bem ou um serviço para uso privado  – uso pessoal, familiar ou doméstico -… mas já não aquele que obtém ou utiliza bens e serviços para satisfação das necessidades da sua profissão ou empresa.

Ora tendo os credores reclamantes destinado o imóvel prometido adquirido a um fim ou escopo de lucro, mesmo não fazendo dessa atividade profissão habitual – ou pelo menos tal não resulta provado -, estão a exercer uma atividade, mesmo eventualmente esporádica,  de lucro, o que nos parece incompatível com a proteção atribuída a um consumidor  decorrente de um ato pessoal, familiar ou doméstico.

Por isso, concederia a revista pedida pela recorrente, e revogando o acórdão recorrido, graduaríamos o crédito da recorrente Consulteam Lda., garantido pela hipoteca, em segundo lugar, antes do crédito dos recorridos Mário  Agostinho Araújo Gomes e mulher, por estes não provarem beneficiar do direito de retenção em causa.

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[1] Sem produzir o enquistamento ou cristalização das posições tomadas pelo Supremo – preâmbulo do DL 329-A/95, de 12/12.

[2] Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil – Reforma de 2007, 171.

[3] Em www.dgsi.pt.

[4] Cfr. a enumeração feita por Abrantes Geraldes Ob. Cit., 381; no mesmo sentido, o Acórdão deste Tribunal de 11.09.2014, em www.dgsi.pt.

[5]  Vendas de Bens de Consumo, Comentário, 3ª edição, Almedina, pág. 44.

[6] Direito do Consumo, Almedina, 2005, pág. 50.