Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
103355/17.8YIPRT.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO SAMÕES
Descritores: PRINCÍPIO DISPOSITIVO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ALTERAÇÃO DA CAUSA DE PEDIR
NULIDADE DA DECISÃO
Data do Acordão: 09/08/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Por força do princípio do dispositivo, a sentença e o acórdão devem conter-se dentro dos limites objectivo e subjectivo da pretensão deduzida, não sendo lícito ao juiz desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.

II - O tribunal pode proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, dentro da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito jurídico pretendido, mas está processualmente vedado atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração, bens ou direitos substancialmente diversos dos que o autor procurava obter através da pretensão que efectivamente formulou.

III - Deve ser mantido o acórdão que declare nula a sentença que conheça de causas de pedir não invocadas ou que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, não observe os limites impostos pelo art.º 609.º, n.º 1, do CPC.
Decisão Texto Integral:
Processo n.º 103355/17.8YIPRT.P1.S1 Do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 1.
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Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção Relator: Fernando Samões
1.º Adjunto: Juíza Conselheira Dr.ª Maria João Vaz Tomé
2.º Adjunto: Juiz Conselheiro Dr. António Magalhães

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I. Relatório

Rosas – S.G.P.S., S.A., requereu procedimento de injunção contra M. Couto Alves, S.A., ambas melhor identificadas no respectivo requerimento, pedindo a condenação desta a pagar-lhe:
a) a quantia de 317.205,30 €, a título de capital;
b) 31.808,64 € de juros de mora vencidos;
c) 40,00 €, a título de indemnização com a cobrança da dívida;
d) 153,00 € de taxa de justiça.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
Em 4/11/2015, Rosas – SGPS, S.A., RCM – …., S.A., MCA – ..., S.A., Rosas – Construtores, S.A., e M. Couto Alves, S.A., celebraram um “Acordo de Pagamento”, nos termos do qual a autora declarou que aceitava receber o montante de 3.000.000 USD para pagamento das máquinas e equipamentos que vendeu à RCM – …, S.A..
A RCM – … , S.A., obrigou-se a pagar a quantia de 3.000.000 USD da seguinte forma: 1.000.000 USD até 31/12/2015 e 2.000.000 USD até 31/03/2016, quantia esta sobre a qual serão devidos juros à taxa de 15% ao ano, contados desde 01/01/2016 até à data do efectivo pagamento.
Por seu turno, a ré declarou-se e constituiu-se como garante do cumprimento integral e tempestivo da obrigação de pagamento da RCM, tendo-se obrigado a substituir esta no caso de incumprimento de qualquer uma das obrigações.
Apesar de interpelada para pagamento do valor em dívida, a RCM não o efectuou, pelo que a ré substituiu a devedora no cumprimento das obrigações.
A autora recebeu da ré: 300.000,00 €, a 3/2/2016; 300.000,00 €, a 4/2/2016; 160.000,00 €, a 8/6/2016; 110.000,00 €, a 2/7/2016;160.000,00 €, a 8/7/2016; 100.000,00 €, a 28/9/2016; 99.999,99 €, a 30/9/2016; 755.000,00 €, a 16/11/2016; 600.000,00 €, a 23/12/2016; e 160.000,00 €, a 10/4/2017.
O acordo de pagamento não foi cumprido, quer no que respeita à data de vencimento de cada uma das prestações, quer no que concerne ao pagamento dos juros vencidos.
A autora deduziu os montantes percebidos nas datas em que se realizaram os pagamentos, nos termos do art.º 785.º do C. Civil, e contabilizou juros à taxa convencionada (15%) acrescida da sobretaxa de mora de 4%, desde a data do respectivo incumprimento.
Tendo em consideração os pagamentos que foram feitos, o capital relativo à primeira prestação, bem como os juros devidos, foram integralmente liquidados aquando do pagamento realizado a 8/7/2016.
Do montante pago a 8/7/2016 (160.000,00 €) foi afecta a quantia de 39.693,17 € à liquidação da segunda prestação.
No que diz respeito à segunda e última prestação devida e vencida a 31/3/2016, no último pagamento realizado (10/4/2017) foi liquidada a totalidade do montante devido a título de juros, sendo que ficou por liquidar o montante de 317.205,30 €, a título de capital.
A este valor acrescem, ainda, os juros vencidos à taxa convencionada de 15%, acrescida da sobretaxa de mora de 4%, que à data da entrada da acção em juízo se cifravam em 31.808,64 €.

A ré contestou, excepcionando: a) o cumprimento da obrigação, uma vez que na cláusula 3.ª do acordo firmado entre as partes ficou estipulado que, com o pagamento da quantia de 3.000.000,00 USD, a autora dava pagamento desse valor, nada mais tendo a reclamar da ré; b) a existência de um acordo não escrito entre autora e ré a estabelecer que os pagamentos fossem imputados primeiramente no capital, conforme resulta das cartas que a autora elaborou e enviou à ré; c) a extinção da garantia da cláusula 2ª do “Acordo de Pagamento” que diz ser “prima facie” uma garantia inominada, tendo a ré prestado a garantia de, em caso de incumprimento por parte da devedora, pagar directamente à autora, e na totalidade, a quantia de 3.000.000,00 USD; d) o abuso de direito, na forma de venire in factum proprium, na medida em que, nos contactos havidos entre autora e ré, designadamente epistolares, nunca reclamou qualquer quantia a título de juros, tendo dado quitação do pagamento integral do capital.
Termina pedindo a condenação da autora como litigante de má-fé.

Apresentados os autos à distribuição e distribuídos como acção de processo comum, foi a autora notificada para responder à matéria das excepções, o que fez mantendo que o acordo de pagamento não foi cumprido, quer no que respeita à data de vencimento de cada uma das prestações, quer no que concerne ao pagamento dos juros devidos nos termos convencionados. E pronunciou-se pelo indeferimento do pedido de litigância de má-fé.

Na audiência prévia realizada, foi proferido despacho saneador, onde se conheceu da questão da qualificação da garantia prestada na cláusula 2.ª do “Acordo de Pagamento”, tendo sido decidido que a mesma contém uma assunção cumulativa da dívida e, ainda, que, não havendo garantia inominada ou outra, mas assunção de dívida, aquela (garantia) não pode considerar-se extinta com a entrega dos montantes à ora autora. Decidiu-se, ainda, que os juros previstos na cláusula 1.ª, 2-ii) são juros (convencionais) remuneratórios, que não valem para a prestação de 1.000.000 USD, por falta de previsão pelo que, quanto a essa prestação são devidos apenas juros moratórios, à taxa legal comercial.
Relegou-se para a sentença o conhecimento das excepções de cumprimento da obrigação, da existência de acordo não escrito entre autora e ré a estabelecer que os pagamentos fossem imputados primeiramente no capital, de extinção da garantia da cláusula 2.ª do “Acordo de Pagamento” e do abuso de direito.
E foram enunciados os temas de prova.

Teve lugar a audiência de discussão e julgamento, após o que foi proferida sentença, em 26/6/2019, onde o tribunal de 1.ª instância julgou parcialmente procedente a acção e, em consequência, condenou a ré a pagar à autora:
“1.º os juros de mora que se vierem a liquidar, à taxa comercial legal vigente à data, desde 01/01/2016 até o recebimento de cada uma das parcelas entregues que perfizeram a primeira prestação de 1.000.000 USD;
2.º - os juros convencionados de 15% ao ano, desde 01/01/2016 até pagamento de cada uma das parcelas que perfizeram a segunda prestação de 2.000.000 USD.
No mais, foi a ré absolvida do pedido.
Considerou-se aí, em síntese, no que se refere à imputação dos pagamentos parciais efetuados, não ser de seguir a regra supletiva do art.º 785.º do CC, por ter havido acordo tácito no sentido de que a autora imputou esses pagamentos parciais ao capital em dívida.
Acabou, assim, por concluir que o capital ficou integralmente liquidado no seguimento desses pagamentos parciais, havendo, contudo, que liquidar os juros de mora que decorreram entre o fim do prazo acordado para pagamento de cada prestação e o momento em que foi liquidado o capital, bem como os juros à taxa convencional de 15% que seriam apenas devidos quanto ao capital da 2.ª prestação por nada ter sido acordado quanto à 1.ª prestação em relação à qual se vencem supletivamente juros de mora à taxa de juros comerciais.

Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação que o Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 10/2/2020, apreciou e decidiu, julgando-o parcialmente procedente, deliberando:
a)- Julgar nula a sentença recorrida na parte em que na mesma é a Ré condenada ao pagamento a favor da Autora de juros de mora sobre as quantias de 1.000.000 USD e 2.000.000 USD (ponto 1º e 2º do dispositivo), ficando sem efeito essa condenação;
b)- Manter, em tudo o mais, o decidido pelo Tribunal de 1ª instância.
A Relação, após enunciar as diversas questões objecto do recurso, decidiu parte delas, e, no que agora interessa, entendeu verificar-se a nulidade de condenação por objecto diverso e montante superior ao do pedido, em violação do princípio do pedido, nos termos do art.º 615.º, n.º 1, al. e), do CPC, pelo que julgou nula a sentença recorrida na parte em que condenou a ré no pagamento dos juros sobre as quantias objecto das prestações, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
Entendeu, em síntese, o acórdão recorrido que, uma vez que a autora no requerimento de injunção peticionou uma dívida de capital em falta e respectivos juros de mora e que se provou afinal, fruto da imputação diversa realizada na sentença, que já não haveria capital a liquidar, violou a sentença o principio do pedido ao condenar nos “juros intermédios”, o que consubstancia uma nulidade por condenação em objecto diverso e montante superior ao pedido.

Não conformada, agora, a autora interpôs recurso de revista e apresentou as correspondentes alegações que terminou com as seguintes conclusões:
“1. O que se coloca à consideração dos ilustres egrégios é se, tendo em conta a imputação dada como provada pela sentença da primeira instância, atento o pedido e o julgado, se existe harmonização entre ambos.
2. A causa de pedir nos presentes autos é a celebração de um contrato em que ambas as partes intervêm e, bem assim, o incumprimento das obrigações contratuais por parte da recorrida em virtude do pagamento (parcial na ótica da recorrente) muito além dos prazos acordados; o pedido, por sua vez, consubstancia-se na condenação da recorrida no pagamento dos valores em dívida à recorrente, decorrente do incumprimento daquele contrato; o julgado é a condenação da recorrida no pagamento de juros em virtude do reembolso do capital muito além do acordado.
3. A fundamentação para a condenação em termos diferentes daqueles que foram peticionados resulta da própria defesa da recorrida e da consideração pelo tribunal de primeira instância de que o incumprimento se verificou em momento anterior, mas que em nada colide com a causa de pedir ou o pedido.
4. A sentença da primeira instância considera que existe a obrigação de juros e que esta não foi cumprida, na medida em que imana do incumprimento atempado da obrigação de reembolso do capital e do clausulado contratual, onde se impõe à recorrida o pagamento dos juros à taxa de 15% sobre a segunda prestação entre uma determinada data e o seu reembolso efetivo; nascendo a obrigação de juros, ganha autonomia e é independente da obrigação de reembolso do capital e, ainda que este seja integralmente pago (em data posterior), ela subsiste, só se extinguindo com o seu cumprimento ou com advento que as partes tenham previsto.
EM FACE DE TODO O EXPOSTO DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, CONSEQUÊNCIA, MANTER-SE NA ÍNTEGRA A SENTENÇA PROFERIDA PELA PRIMEIRA INSTÂNCIA,
ASSIM SE FAZENDO A COSTUMADA J U S T I Ç A!”

A ré contra-alegou pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.
Subsidiariamente, requereu a ampliação do objecto do recurso, formulando, para este efeito, as seguintes conclusões:
“…
15- Subsidiariamente, para a hipótese que a Recorrida entende, com toda a modéstia, ser meramente académica, a de o presente recurso ser julgado procedente, requer a ampliação do objecto do recurso ao abrigo do preceituado no artigo 636º do CPC.
16- Na Oposição que a ora Recorrida ofereceu a estes autos, nos artigos 59º a 74º, a então Requerida invocou uma excepção que denominou de “d) extinção da garantia”, usando a terminologia utilizada na redacção daquele acordo, onde a Requerida é tida como garante do pagamento.
17- E aí invocou-se que a responsabilidade da Requerida estava limitada a 3.000.000 USD de acordo com o texto da Cláusula 2ª nº1 daquele acordo. No exercício do direito ao contraditório por parte da então Autora, esta não se pronunciou sobre tal matéria.
18- E no despacho saneador, o Tribunal de 1ª instância apreciou ou qualificou a dita garantia prestada na Cláusula 2ª do Acordo de Pagamento, entendendo que não se tratava de uma garantia mas sim de uma assunção de dívida mas não foi essa excepção julgada improcedente.
19- Na sentença essa excepção não foi objecto de apreciação, já que em ponto algum da sentença se decide sobre a mesma.
20- Inconformada com essa omissão, a Recorrida e então Apelante, incluiu essa questão no recurso que interpôs sob a epígrafe “IV- Da falta de conhecimento da excepção”. Porém, o Tribunal a quo não chegou, porém, a apreciar este concreto fundamento de recurso, nos termos do artigo 608º nº2 do CPC, por considerar prejudicado o seu conhecimento por inutilidade.
21- Contudo, se por hipótese o presente recurso fosse julgado procedente, então nesse caso não pode deixar de ser conhecida esta excepção, o que expressamente se requer, em sede de ampliação do objecto do recurso.
22- Na Cláusula 2ª do Acordo de Pagamento celebrado entre as partes, a Recorrida constituiu-se como garante do pagamento devido pela sociedade RCM – …. S.A. à aqui Recorrente, “obrigando-se a substituir-se à Segunda Outorgante, no caso de incumprimento de qualquer uma das prestações referidas na cláusula 1ª.”, garantia esta na sequência da qual ficava obrigada “a liquidar directamente à Primeira ou Quarta Outorgantes e na totalidade, a quantia de 3.000.000USD.”.
23- Aquilo que a Recorrida assumiu naquele acordo, foi que em caso de incumprimento por parte da devedora, esta obrigava-se a pagar directamente à Recorrente, e na totalidade, a quantia de 3.000.000USD.
24- Pagamento esse que, como resulta da matéria de facto provada, foi efectuado pela Recorrida.
25- Aquilo que as partes expressamente acordaram e denominaram de garantia tinha assim um tecto, um limite de 3.000.000USD.
26- Por isso, seja o que for que eventualmente seja devido pela sociedade RCM – … S.A. à Recorrente, na medida em que esses valores ultrapassam já o limite da “garantia” prestada pela Recorrida, não lhe podem por isso ser exigidos.
27- Esta excepção deveria assim ter sido conhecida na sentença, nos termos do artigo 608º nº2 do CPC e no caso de o presente recurso ser julgado procedente então não deverá deixar de ser conhecida nesta instância, por via da ampliação do recurso, sob pena de ferir a decisão de nulidade.
28- Nestes termos e nos mais de direito, requer-se a Vas.Exas. que se dignem julgar totalmente improcedente o recurso interposto, sem prejuízo de conhecerem do objecto da ampliação do recurso em caso de procedência do mesmo, só assim se fazendo a mais sã e elementar JUSTIÇA”.

O recurso foi admitido como de revista, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, modo de subida e efeito que foram mantidos pelo actual Relator.

Observados os vistos legais, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso.
Sabido que o seu objecto e âmbito estão delimitados pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excepcionais de conhecimento oficioso, e tendo presente que se apreciam questões e não razões, a única questão que importa dirimir consiste em saber se a distinta qualificação e subsunção que a sentença fez a respeito da imputação dos pagamentos parciais efectuados pela ré, implicou, ou não, uma condenação em violação do princípio do pedido, não se verificando a nulidade por condenação em objecto diverso e em montante superior ao pedido verificada pela Relação.
Subsidiariamente, inexistindo a aludida nulidade, se pode/deve conhecer-se da excepção da “extinção da garantia”, invocada pela ré, ora recorrida.

II. Fundamentação

1. De facto

No acórdão recorrido (tal como já o havia feita a 1.ª instância na sentença), foram dados como provados os seguintes factos:
1 - A 4 de Novembro de 2015, Rosas – SGPS, S.A., RCM – …, S.A., MCA – ..., S.A., Rosas – Construtores, S.A., e M. Couto Alves, S.A., respectivamente, como 1ª, 2ª, 3ª, 4ª e 5ª Outorgantes, celebraram o “Acordo de Pagamento” de fls. 54/58, nos termos e com as seguintes cláusulas, ao que nos interessa:
Cláusula 1ª:
1. Pelo presente Acordo, e para pagamento integral do crédito detido sobre a Segunda Outorgante (RCM – …, S.A.), correspondente a € 5.064.419,61, a Primeira Outorgante (Rosas – SGPS, S.A.) aceita receber o montante de 3.000.000 USD (três milhões de dólares norte americanos).
2. A Segunda Outorgante (RCM – …, S.A.) obriga-se a pagar esta quantia de 3.000.000 USD da seguinte forma:
i) A quantia de 1.000.000 USD até 31 de Dezembro de 2015;
ii) A quantia remanescente de 2.000.000 USD até 31 de Março de 2016, quantia sobre a qual serão devidos juros à taxa de 15% ao ano, contados desde 1 de Janeiro de 2016 até à data do efectivo pagamento.
Cláusula 2ª:
1. Para garantir o cumprimento integral e tempestivo da obrigação de pagamento que impende sobre a RCM – …, S.A., emergente do presente Acordo, a sociedade M. Couto Alves, S.A., aceita, declara-se e constitui-se como garante no respectivo pagamento, obrigando-se a substituir-se à RCM – …, S.A., no caso de incumprimento de qualquer uma das prestações referidas na Cláusula 1ª, e a liquidar directamente à Primeira (Rosas – SGPS, S.A.) ou Quarta (Rosas – Construtores, S.A.) Outorgantes e na sua totalidade, a quantia de 3.000.000 USD.
2. Caso a RCM – …, S.A., não efectue o pagamento da primeira prestação até ao dia 31/12/2015, a Primeira Outorgante poderá notificar a Quinta Outorgante (M. Couto Alves, S.A.) para efectuar o pagamento daquela prestação, no prazo máximo de 10 dias úteis, sob pena de, não o fazendo, poder considerar automaticamente vencidas todas as obrigações assumidas pela Segunda Outorgante – e garantidas pela Quinta Outorgante – ao abrigo do presente acordo.
Cláusula 3ª:
Com o pagamento da Segunda Outorgante (RCM – …, S.A.) à Primeira Outorgante (ou à Quarta Outorgante) da referida quantia de 3.000.000 USD, as Primeira e Quarta Outorgantes declaram que nada mais têm a receber da Segunda Outorgante (ou da Quinta Outorgante) pelo crédito de € 5.064.419,61 identificado no Considerando A), ou a qualquer outro título.
(…)
Cláusula 5ª:
1. As partes declaram e reconhecem que o presente documento tem força executiva “e que na falta de pagamento de qualquer uma das prestações poderá a Primeira Outorgante (Rosas – SGPS, S.A.) mover a respectiva execução exigindo da Quinta Outorgante (M. Couto Alves, S.A.) a quantia em débito, renunciando aquela a qualquer prazo de prescrição que a lei porventura lhe conceda enquanto decorrerem os prazos de pagamento acima previstos.
2 - A 11/02/2016, Rosas – SGPS, S.A., remeteu à ora Ré M. Couto Alves, S.A., a carta de fls. 30 do seguinte teor:
Fazemos referência ao Acordo de Pagamento celebrado a 4 de Novembro de 2015 entre V. Exas. e as sociedades Rosas – SGPS, S.A., RCM – .., S.A., MCA – ..., S.A., e Rosas – Construtores, S.A., nas qualidades, respectivamente, de Garante, Credora, Devedora, Accionista e Credora Originária.
Nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 da cláusula 2ª (“Garantia”) do referido acordo vimos pela presente informar V. Exas., na supra citada qualidade de Garante da sociedade Devedora RCM – Engenharia, S.A., do incumprimento por parte desta da obrigação por V. Exas. garantida de pagamento do montante de USD 1.000.000 (um milhão de dólares), referente à primeira prestação do acordo e cuja data de limite de pagamento ocorreu no passado dia 31 de Dezembro de 2015.
Mais informamos V. Exas. que a referida primeira prestação do acordo celebrado, no montante global de USD 1.000.000 (um milhão de dólares) e vencida no supra mencionado dia 31 de Dezembro de 2015, foi parcialmente liquidada pelas transferências bancárias efectuadas a 3 de Fevereiro de 2016, no valor de USD 327.990 (trezentos e vinte e sete mil novecentos e noventa dólares), correspondente a € 300.000,00 (trezentos mil euros) e a 4 de Fevereiro de 2016, no valor de USD 336.180 (trezentos e trinta e seis mil cento e oitenta dólares), correspondente a € 300.000,00 (trezentos mil euros), encontrando-se ainda por liquidar o remanescente no valor de USD 335.830 (trezentos e trinta e cinco mil oitocentos e trinta dólares)”.
3 - A 26/04/2016, Rosas – SGPS, S.A., remeteu à ora Ré M. Couto Alves, S.A., a carta de fls. 32/33 do seguinte teor:
Fazemos referência ao Acordo de Pagamento celebrado a 4 de Novembro de 2015 entre V. Exas. e as sociedades Rosas – SGPS, S.A., RCM – …, S.A., MCA – ..., S.A., e Rosas – Construtores, S.A., nas qualidades, respectivamente, de Garante, Credora, Devedora, Accionista e Credora Originária.
Como é do v/conhecimento, a 11/02/2016, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 cláusula 2ª (“Garantia”) do referido acordo celebrado, viemos informar V. Exas., na supra citada qualidade de Garante da sociedade Devedora RCM – …, S.A., do incumprimento por parte desta da obrigação por V. Exas. garantida de pagamento do montante de USD 1.000.000 (um milhão de dólares), referente à primeira prestação do acordo e cuja data de limite de pagamento havia ocorrido no passado dia 31 de Dezembro de 2015.
Em resposta à nossa comunicação apresentaram V. Exas., na refira qualidade de Garante, duas letras de câmbio, cada uma do montante de € 160.000,00 (cento e sessenta mil euros), com datas de vencimento a 8 de Junho e 8 de Julho, respectivamente.
Sucede que a quantia remanescente de 2.000.000 USD, correspondente ao valor da segunda prestação do acordo celebrado e cujo pagamento, de acordo com o ponto ii) do nº 2 da cláusula 1ª, deveria ser efectuado pela Devedora até ao dia 31 de Março de 2016, que não ocorreu até à presente data.
Nessa medida, face ao manifesto e reiterado incumprimento da Devedora mas ainda convictos da existência de um ponto de convergência entre as partes vimos pela presente a fim de evitar os de outro modo inevitáveis incómodos e despesas decorrentes de uma cobrança coerciva dos valores em dívida e pela presente convidar V. Exas. para, na qualidade de Garante da Devedora, regularizar o pagamento da quantia em dívida no prazo de 8 dias.
Após o termo do referido prazo e sem que a situação se ache regularizada, sem outros avisos, será a presente situação de incumprimento reencaminhada para o nosso departamento jurídico, com todas as inerentes consequências”.
4 - A 25/05/2016, Rosas – SGPS, S.A., remeteu à ora Ré M. Couto Alves, S.A., a carta de fls. 34 do seguinte teor:
Fazemos referência ao Acordo de Pagamento celebrado a 4 de Novembro de 2015 entre V. Exas. e as sociedades Rosas – SGPS, S.A., RCM – …, S.A., MCA – ..., S.A., e Rosas – Construtores, S.A., nas qualidades, respectivamente, de Garante, Credora, Devedora, Accionista e Credora Originária.
Nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 da cláusula 2ª (“Garantia”) do referido acordo vimos pela presente notificar V. Exas., na supra citada qualidade de Garante da sociedade Devedora RCM – …, S.A., do incumprimento por parte desta da obrigação de pagamento da quantia de USD 2.000.000, correspondente ao valor da segunda prestação do acordo celebrado e cujo pagamento, de acordo com o ponto ii) do nº 2 da cláusula 1ª, deveria ser efectuado pela Devedora até ao dia 31 de Março de 2016, concedendo consequentemente a V. Exas. o prazo máximo de 10 dias úteis para efectuar o respectivo pagamento.
Após o termo do referido prazo e sem que a situação se ache regularizada, sem outros avisos, será instaurada a respectiva acção executiva, com todas as inerentes consequências”.
5 - A 21/06/2017, Rosas – SGPS, S.A., remeteu à ora Ré M. Couto Alves, S.A., a carta de fls. 36/38 do seguinte teor:
Fazemos referência ao Acordo de Pagamento celebrado a 4 de Novembro de 2015 entre V. Exas. e as sociedades Rosas – SGPS, S.A., RCM – …, S.A., MCA – ..., S.A., e Rosas – Construtores, S.A., nas qualidades, respectivamente, de Garante, Credora, Devedora, Accionista e Credora Originária.
Nos termos do disposto na cláusula 2ª (“Garantia”) do referido acordo vimos pela presente notificar V. Exas., dando por este meio a respectiva quitação, na supra citada qualidade de Garante e substituta da sociedade Devedora, dos pagamentos parcelares recebidos por parte de V. Exas., referentes ao pagamento do capital correspondente ao valor global de 3.000.000 USD (três milhões de dólares americanos), equivalentes a € 2.755.580,05, fixados à taxa de câmbio em vigor nas datas dos pagamentos parcelares (taxa média de 1,09) e da seguinte forma discriminados:
(i) transferência efectuada a 03/02/2016, no montante de € 300.000,00;
(ii) transferência bancária efectuada a 04/02/2016, no montante de € 300.000,00;
(iii) desconto de letra, a 08/06/2016, no montante de € 160.000,00;
(iv) transferência bancária efectuada a 02/07/2016, no montante de € 110.000,00;
(v) desconto de letra, a 08/07/2016, no montante de € 160.000,00;
(vi) transferência bancária efectuada a 28/09/2016, no montante de € 100.000,00;
(vii) transferência efectuada a 30/09/2016, no montante de € 99.999,99;
(viii) transferência bancária efectuada a 16/11/2016, no montante de € 755.000,00;
(ix) transferência bancária efectuada a 23/12/2016, no montante de € 600.000,00;
(x) transferência bancária efectuada a 10/04/2017, no montante de € 160.000,00.
Sem prejuízo, e de acordo com o contratualmente estipulado, obrigou-se a sociedade Devedora RCM – …, S.A., a pagar aquela quantia de 3.000.000 USD (três milhões de dólares americanos), fixados em euros à taxa de câmbio em vigor na data do respectivo pagamento, da seguinte forma:
(i) a quantia de 1.000.000 USD até ao dia 31/12/2015;
(ii) a quantia remanescente de 2.000.000 USD até 31 de Março de 2016, quantia sobre a qual serão devidos juros à taxa de 15% ao ano, contados desde 1 de Janeiro de 2016 até à data do efectivo pagamento.
Sucede que a quantia de € 265.625,45, correspondente aos juros de mora calculados de acordo com a cláusula 1ª do Acordo de Pagamento e objecto da factura nº …, de 24/05/2017, não foi tempestivamente liquidada pela sociedade Devedora pelo que vimos notificar V. Exas., na supra citada qualidade de Garante e substituta da sociedade Devedora RCM – …., S.A., do incumprimento por parte desta da obrigação de pagamento da quantia de € 265.625,45, correspondente ao valor dos juros de mora calculados de acordo com a cláusula 1ª do acordo celebrado e cujo pagamento, de acordo com o nº 2 da cláusula 1ª, deveria ser efectuado pela Devedora, concedendo consequentemente a V. Exas. o prazo máximo de 10 dias úteis para efectuar o respectivo pagamento.
Após o termo do referido prazo e sem que a situação se ache regularizada, sem outros avisos, será instaurada a respectiva acção executiva, com todas as inerentes consequências”.
6 - Acompanhava esta carta a factura de fls. 39/42 e de fls. 213/214 com o cálculo dos juros de 05/01/2016 até 10/04/2017, do montante total de € 265.625,45.
7 - MCA Construções - M. Couto Alves, S.A., remeteu à Rosas – SGPS, S.A., a 04/09/2017, a carta de fls. 42/44, na qual acusa a recepção da carta referida em E), da qual consta (além do mais): “registamos a vossa quitação relativamente ao pagamento por nós efectuado, na referida qualidade de garante, do valor global de 3.000.000 USD (três milhões de dólares norte americanos). Porém, quanto ao mais, adiantamos que a v/comunicação merece a nossa discordância, quer quanto à questão de fundo (exigência de juros), quer ainda (e mesmo que fossem devidos juros por nós, sendo que entendemos e demonstraremos que o não são) quanto aos cálculos efectuados por V. Exas.
8 - A RCM – Engenharia, S.A., devedora originária no Acordo de Pagamento de 04/11/2015, não cumpriu o plano de pagamento, não tendo procedido ao pagamento tempestivo de nenhuma prestação.
9 - A ora Autora recebeu da ora Ré as quantias referidas na carta de 21/06/2017, nas datas ali constantes, tal como consta de fls. 37.
10 - Quando, pela carta de 21/06/2017, a ora A. notificou a Ré, na qualidade de garante e como substituta da sociedade devedora dos pagamentos parcelares no montante global de 3.000.000 USD equivalente a € 2. 755. 580, 05, “dando por este meio a respectiva quitação” estava a assumir apenas que recebeu as quantias referidas na mesma carta e não a dar quitação integral da dívida.
11 – A ora A., na qualidade de credora, nas cartas que enviou à ora Ré, imputou, efectivamente, os montantes recebidos no capital.

2. De direito

2.1. Da nulidade

O art.º 615.º do CPC (também aplicável aos acórdãos, por força da remissão do art.º 666.º, n.º 1, do mesmo Código) dispõe que a sentença é nula, entre outras situações que não importa aqui analisar por não serem objecto do recurso, quando o juiz condene “em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido” [al. e), 2.ª parte].
Estas causas de nulidade resultam da violação da regra fundamental estabelecida no art.º 609.º do mesmo Código sobre os limites da condenação, o qual proclama, no seu n.º 1, que “a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” Cfr. Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª ed. revista, 1985, págs. 675 e 691, a propósito do correspondente art.º 661.º do CPC de 1961, de igual teor..
Por força desta regra, o juiz não pode, na sentença, extravasar os pedidos formulados pelas partes, encontrando-se limitado por eles.
Por isso, “… a decisão, seja condenatória, seja absolutória, não pode pronunciar-se sobre mais do que o que foi pedido ou sobre coisa diversa daquela que foi pedida” Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 3.ª edição, Almedina págs. 714 e 715..
E, por força do estatuído no art.º 608.º, n.º 2, do CPC, o juiz deve “conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer”.
Mas não pode o juiz “conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de exceções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes” Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, ibidem, pág. 737., sendo nula a sentença em que o faça.
“É também nula a sentença que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância … não observe os limites impostos pelo art. 609-1, condenando ou absolvendo em quantidade superior ao pedido ou em objecto diverso do pedido” Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in Código de Processo Civil anotado, volume 2.º, 3.ª edição, pág. 737..
Trata-se de um mero corolário do princípio do dispositivo, consagrado no art.º 5.º do CPC.
Por força deste princípio, cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções (n.º 1), só podendo o juiz servir-se dos factos articulados, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do mesmo preceito. E também têm o ónus de impulso processual inicial, como vertente do mesmo princípio do dispositivo, consagrado, ainda, no art.º 3.º, n.º 1, do CPC Cfr. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, volume 1.º, 3.ª edição, págs. 6 e 14 e os acórdãos de 19 de Março de 2019, processo n.º 8174/15.0T8LSB.L1.S1, e de 19 de Setembro de 2019, processo n.º 461/17.9T8GMR.G1.S1, por nós relatados, que vimos seguindo e reproduzindo..
Dito isto, vejamos o caso dos autos.
Para este efeito, importa, antes de mais, ter em atenção o pedido e a causa de pedir concretamente formulados na injunção.
Nela, consta como pedido a condenação da ré na quantia de 317.205,30 € a título de capital e na de 31.808,64 € a título de juros de mora vencidos.
Como causa de pedir, foi alegado um “acordo de pagamento” celebrado entre várias entidades respeitante à liquidação de uma dívida com origem num fornecimento de máquinas e equipamentos, no qual a ré participou como garante e que não foi integralmente cumprido.
Mais foi alegado que, nos termos desse acordo, a dívida ficou de ser paga em duas prestações, sendo a 1.ª no valor de 1.000.000 USD até 31/12/2015 e a 2.ª no valor de 2.000.000 USD até 31/3/2016, esta acrescida de juros à taxa de 15% ao ano, tendo a ré efectuado apenas pagamentos parciais nas datas e pelos valores indicados no requerimento de injunção, os quais foram imputados de acordo com a ordem prevista no art.º 785.º do CC.
A Relação entendeu, no acórdão recorrido, que a sentença era nula na parte em que condenou a ré no pagamento dos juros sobre as quantias objecto das prestações, visto que a autora havia pedido uma dívida de capital em falta e respectivos juros de mora, quando se provou, fruto de imputação diversa, que já não havia capital a liquidar.
Para melhor esclarecimento da fundamentação do acórdão recorrido, transcreve-se aqui o seguinte:
“Nesta matéria, de forma expressa, a Autora reclamou o pagamento da quantia de capital de € 317.205, 30, sustentando, para o efeito, que no âmbito do ajuizado acordo de pagamento, a Ré não procedeu ao pagamento desse capital, incumprindo, pois, aquele acordo e o que nele estava convencionado.
De facto, a Autora, embora tenha, logo ab initio, admitido que a Ré efectuou os pagamentos parcelares por si discriminados no requerimento inicial (artigo 15º), não deixou de alegar, de forma clara e inequívoca, que, à luz do preceituado no artigo 785º, do Cód. Civil, imputou esses pagamentos no valor dos juros de mora e atento o atraso ocorrido no pagamento das prestações previstas no acordo (uma primeira de 1.000.000, USD, que deveria ter sido paga até ao dia 31.12.2015; e uma segunda de 2.000.000 USD, que deveria ser realizada até ao dia 31.03.2016, ainda que sobre ela incidissem juros moratórios desde o dia 1.01.2016) – vide artigos 9º a 17º do requerimento inicial.
Por outro lado, em consonância lógica com o por si expendido quanto à imputação dos pagamentos nos juros de mora sobre as aludidas prestações, reclamou a Autora apenas o pagamento de juros de mora, à taxa contratual de 15%, acrescida da sobretaxa de mora de 4%, mas sobre o capital por pagar (€ 317.205, 30), desde a data do último pagamento parcelar efectuado pela Ré, ou seja, desde 10.04.2017 e até integral pagamento do capital, computando, neste pressuposto, os ditos juros já vencidos à data do requerimento inicial – 19.10.2017 - no montante de € 31.808, 64.
A sentença, no entanto, ainda que partindo da afirmação/decisão essencial de que o capital reclamado (de € 317.205,30) havia sido integralmente solvido com o pagamento pela Ré da última prestação a 10.04.2017 – sustentada na consideração que a Autora, efectivamente, ao abrigo de um acordo tácito com a Ré, imputou esses pagamentos parcelares no abatimento do capital e não dos juros de mora (afirmação de facto e decisão que não é posta em causa no recurso, nomeadamente pela Recorrida) -, veio a condenar a Ré no pagamento, não nos supra citados juros de mora peticionados pela Autora (pois que, logicamente, encontrando-se pago o capital a 10.04.2017 não haveria, após essa data, qualquer atraso no pagamento, em contrário do reclamado pela Autora), mas antes nos juros de mora vencidos e vincendos sobre as prestações de 1.000.000 USD e 2.000.000 USD, a partir da data de vencimento de tais prestações (1.01.2016) e até integral pagamento, ou seja, com o devido respeito, em juros de mora que a Autora nunca reclamou nestes autos, por os considerar pagos através dos valores que foi recebendo da Ré, e, ainda, a partir de uma data anterior à que a própria Autora definiu como início da contagem dos mesmos.
Ora, como se vê, esta outra condenação ultrapassa manifestamente o pedido formulado pela Autora (mesmo que aritmeticamente esteja contida no seu valor), pois que, não só a Autora pediu juros de mora desde 10.04.2017 (ao passo que na sentença esses juros se reconhecem e contam desde 1.01.2016), mas, ainda, apenas sobre o capital alegadamente em débito, ao passo que na sentença se reconhece, em termos radicalmente diversos do peticionado, o direito da Autora a juros de mora, não sobre o capital, como reclamado pela Autora, mas sobre as prestações parcelares de 1.000.000 e 2.000.000 USD.
Nesta perspectiva, segundo julgamos, a sentença condenatória ultrapassa não só o pedido formulado, como, ainda, a própria causa ou título que lhe serve de base, pois que não só se parte de uma data de vencimento e cômputo de juros anterior à invocada pelo credor, como, ainda, se faz incidir esses juros sobre prestações parcelares quando o pedido de juros é formulado sobre o capital, no pressuposto de que este último se encontrava por pagar, o que foi afastado, de modo indiscutido, na mesma sentença.
Destarte, com todo o respeito, a única decisão que, em congruência e correspondência com o peticionado e com a causa jurídica invocada pela Autora (isto é, em conformidade com o princípio do pedido e do dispositivo), poderia ser proferida não podia deixar de ser, em nosso ver, a absolvição da Ré do concreto pedido de juros formulado pela Autora, ou seja, absolver a mesma integralmente dos pedidos formulados pela Autora, pois que, ao contrário do que foi por si alegado e reclamado nos autos (pois que não existe formulação de qualquer pedido subsidiário, nem alteração do pedido formulado), não existe dívida de capital – que foi pago integralmente a 10.04.2017 – e, logicamente, também não existe a dívida acessória (única que se mostra peticionada) a esse capital, ou seja, juros de mora sobre o capital e desde 10.04.2017 e até integral pagamento daquele capital.
O Tribunal a quo pode, admite-se, até perfilhar a posição de que a Autora tem direito a reclamar juros de mora sobre as prestações de 1.000.000 USD e 2.000.000 USD (em face do atraso no pagamento integral das mesmas), mas, em face do antes exposto e atentos os limites cognitivos que se lhe impõem em razão do princípio do dispositivo não pode substituir-se à Autora e dar cobertura à pretensão que a mesma poderia (ou deveria) ter formulado, mas não formulou.
De outro modo, com o devido respeito, a sentença está a ultrapassar o que foi concretamente pedido ou rogado pela parte/credor e o próprio fundamento ou causa jurídica do pedido formulado por este, incorrendo, nessa parte, numa nulidade da sentença …, por condenação em objecto diverso e montante superior ao pedido.
Como assim, neste enquadramento ora pressuposto, não nos cumpre tecer qualquer consideração sobre a questão de fundo de saber se a Autora tem ou não direito (substantivo) a tais juros de mora (sobre os valores parcelares fixados no negócio celebrado entre as partes), qual a taxa de juro aplicável e, ainda, se pode ou não (do ponto de vista substantivo e à luz do acordo de pagamento celebrado com a aqui Ré/Recorrente) a mesma exigir esse pagamento desta última, pois que as sobreditas questões substantivas, face ao antes exposto, extravasam manifestamente o objecto ou thema decidendum deste processo.
Essas questões, como resulta do antes expendido, só assumiriam relevo e teriam que ser conhecidas nos termos do artigo 608º, n.º 2, do CPC, se a Autora tivesse, efectivamente, reclamado nos autos o pagamento de tais juros de mora e com esse fundamentoo que não sucede -, antes se restringindo, como se salientou, o objecto do processo à questão – formulada pela Autora em razão do pedido e da causa de pedir por si convocados nos autos – de saber se a Ré pagou o capital em dívida (3.000.000 USD) e, em caso negativo, se o pagou com atraso relativamente à data de 10.04.2017, data esta que a Autora invocou como data de vencimento de tal dívida, estabelecendo, nessa outra hipótese a taxa dos juros de mora devidos por esse atraso e a data do início e do termo do respectivo cômputo.
Digamos, pois, que, nesta parte, a questão não é substantiva – e, por isso, não importa dela conhecer -, mas antes prévia, de natureza adjectiva ou processual e contende com os limites cognitivos que se impõem ao tribunal de 1ª instância e, por maioria de razão, ao tribunal hierarquicamente superior, sendo certo que este, como é pacífico, não tem por função conhecer de novas questões e a produzir novas decisões, mas reanalisar ou reponderar as decisões proferidas.
Destarte, em termos conclusivos, tendo sido decidido na sentença recorrida (e sem impugnação por parte da Recorrida, a quem se mostra desfavorável tal segmento decisório) que o capital foi pago e foi integralmente solvido a 10.04.2017, a acção, com o devido respeito, teria que improceder na sua totalidade, ou seja, quanto à condenação no pagamento do reclamado capital de € 317.205,30 – por extinção de tal obrigação em razão desse pagamento - e quanto ao pagamento dos juros de mora (sobre o mesmo capital) vencidos a partir de 10.04.2017 e até 19.10.2017, assim como dos juros vincendos.
Por outro lado, ainda, não haveria que conhecer de qualquer outra questão, por extravasamento do pedido formulado pela Autora e consequente objecto do processo, com a inerente nulidade (parcial) do sentenciado quanto aos juros de mora consignados na parte decisória da sentença recorrida e por violação do disposto no artigo 615º, n.º 1 al. e), do CPC.”
Sustenta a recorrente da revista que a sentença não extravasou o pedido e a causa de pedir formuladas na injunção, uma vez que a causa de pedir é a celebração de um acordo de pagamento e o incumprimento das obrigações daí emergentes, constituindo o pedido no pagamento dos valores em dívida, pelo que, tendo, inclusive, os juros autonomia em relação à obrigação principal, sempre haveria lugar à respectiva condenação mesmo concluindo-se pela liquidação do capital em dívida, decorrendo tal da natureza das coisas.
Todavia, sem razão.
Como bem se referiu no acórdão recorrido, a nulidade que aí se verificou e declarou decorreu do desfasamento entre a condenação e o pedido deduzido, sustentado na causa de pedir invocada no requerimento de injunção, uma vez que nele foram pedidos juros de mora, desde 10/4/2017, sobre ao capital de 317.205,30 € que restava pagar do alegado “acordo de pagamento”, feita a imputação das quantias parcelares que recebeu segundo o art.º 785.º do Código Civil, enquanto na sentença, fazendo imputação diversa do alegado, segundo acordo tácito provado, foram considerados juros de mora nunca foram reclamados nestes autos, à taxa comercial legal, sobre o montante de 1.000.000 USD e, à taxa contratual de 15%, sobre o montante de 2.000.000 USD, ambos desde 1/1/2016 e até aos pagamentos parcelares verificados, dando como extinta a obrigação assumida naquele acordo.
A sentença ultrapassou, assim, não só o pedido formulado, mas também a causa que lhe serve de fundamento na medida em que a data de vencimento nela considerada é anterior à invocada pela autora e fez incidir juros sobre prestações parcelares quando foram pedidos juros sobre o capital, no pressuposto de que este se encontrava por pagar.
Destarte, existe manifesta violação do princípio do dispositivo e do pedido, integradora da nulidade verificada no acórdão recorrido, o que impede a discussão e verificação de eventual direito da autora/recorrente a reclamar juros de mora sobre as prestações de 1.000.000 USD e 2.000.000 USD pelo atraso no pagamento integral das mesmas, atentos os limites cognitivos impostos por aqueles princípios, não podendo o Tribunal substituir-se à recorrente e dar cobertura à sua pretensão que não formulou em tempo oportuno, tanto mais que os recursos visam reapreciar as decisões anteriormente proferidas por tribunal hierarquicamente inferior e não proferir decisões sobre matéria nova.
Tratando-se de uma questão de natureza adjectiva ou processual que contende com os limites cognitivos que se impõem ao tribunal, é evidente que não pode ser apreciada a questão substantiva que a recorrente pretende ver solucionada em sede de recurso de revista.
Esta pressupõe a formulação, em tempo oportuno, do correspondente pedido e a alegação dos respectivos factos.
E, no caso, não se mostra que o tenham sido!
Como já escrevemos nos nossos acórdãos acima citados, “A realização da justiça no caso concreto deve ser conseguida no quadro dos princípios estruturantes do processo civil, como são os princípios do dispositivo, do contraditório, da igualdade das partes e da imparcialidade do juiz, traves-mestras do princípio fundamental do processo equitativo proclamado no art.º 20.º, n.º 4, da CRP” Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Janeiro de 2017, proc. n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1, in www.dgsi.pt..
Estes mesmos princípios impossibilitam a alteração da decisão pretendida pela recorrente.
Como escreveu o Prof. Lebre de Freitas, a “pretensão (ou pedido, como a nossa lei a usa chamar) apresenta-se duplamente determinada: no seu conteúdo, ao direito material, consiste na afirmação duma situação jurídica subjetiva atual ou, na ação constitutiva, da vontade dum efeito jurídico (situação jurídica a constituir) baseado numa situação subjetiva actual, ou ainda na afirmação da existência ou inexistência dum facto jurídico; na sua função, consiste na solicitação duma providência processual para tutela do interesse do autor”( José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil – conceito e princípios gerais à luz do novo código, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2013, págs. 64/65.).
O pedido do autor, conformando o objecto do processo, condiciona o conteúdo da decisão de mérito, com que o tribunal lhe responderá: como se referiu, o juiz, na sentença, “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação”, não podendo ocupar-se de outras (artigo 608.º, n.º 2 do CPC), e “não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir” (art.º 609.º, n.º 1 do CPC).
A sentença deve, pois, manter-se quanto ao seu conteúdo, dentro dos limites definidos pela pretensão do autor e da reconvenção eventualmente deduzida pelo réu, não podendo o juiz proferir sentença que transponha os limites do pedido, quer no que respeita à quantidade, quer quanto ao seu próprio objecto.
A limitação contida no referido art.º 609.º, n.º 1, do CPC – consubstanciada na velha máxima do direito romano ne eat iudex ultra vel extra petita partium – constitui um corolário do princípio dispositivo, numa área que compreende o núcleo irredutível deste princípio. Será, assim, sobre o titular de determinado direito subjectivo que recairá o ónus de escolher, de entre
diversas providências possíveis, aquela que melhor satisfaça os seus interesses, sendo o tribunal alheio a essa escolha, que depende única e exclusivamente da vontade do interessado e que uma vez efectuada – através da dedução do pedido – delimitará os poderes do juiz (art.º 3.º, n.º 1, do CPC).
É certo que a “interpretação do pedido não deve cingir-se aos estritos dizeres da formulação do petitório, devendo antes ser conjugada com o sentido e alcance resultantes dos fundamentos da pretensão”( Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Janeiro de 2017, proc. n.º 873/10.9T2AVR.P1.S1, in www.dgsi.pt.). No entanto, como também já se referiu supra, o juiz não pode extravasar dos pedidos formulados pelas partes, nem conhecer de causas de pedir não invocadas, sob pena de cometer nulidade.
Ou seja, as partes, através do pedido (art.º 3.º, n.º 1 do CPC), circunscrevem o thema decidendum, indicam a providência requerida, não tendo o juiz que cuidar de saber se perante a real situação conviria, ou não, providência diversa Neste sentido, vide Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, pág. 728..
Trata-se de uma esfera em que, como já dito, “domina o princípio do dispositivo, o qual, em termos paralelos, também vigora em sede da sustentação fáctica da pretensão. Em ambos os casos prevalece a estratégia assumida pelo autor, sem que nela se deva imiscuir o juiz. Consequentemente, a sentença deve inserir-se no âmbito do pedido (e da causa de pedir), não podendo o juiz condenar (ou fazer a apreciação que corresponder ao tipo de ação em causa) em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir”( Idem, ibidem.).
Também é verdade, e nós assim o entendemos, que, como se diz no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Abril de 2016, “é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao A., por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter; mas já não será processualmente admissível atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração da materialidade do pedido, bens ou direitos substancialmente diversos do que o A. procurava obter através da pretensão que efectivamente, na sua estratégia processual, curou de formular( Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Abril de 2016, proc. n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1, in www.dgsi.pt.).
No caso em apreço, e como já referido pelo que nos dispensamos de repetir aqui, estamos perante uma condenação quantitativa e qualitativamente diversa.
Assim, e sem necessidade de maiores considerandos, a sentença ao condenar a ré com base em pedidos diversos dos inicialmente deduzidos pela autora violou o basilar princípio do pedido, tomando posição sobre questão que não faz parte do objecto do processo tematicamente conformado por esta. O reconhecimento do direito aos juros nos termos em que foi feito e a condenação da ré com base nele não têm correspondência com o direito e sua violação cuja reparação foi peticionada pela autora.
Ao assim decidir, cometeu a nulidade reconhecida e declarada no acórdão recorrido.
Como tal, deve este ser mantido, contrariamente ao pretendido pela recorrente no recurso de revista, a qual não pode deixar de ser negada.

Fica, deste modo, prejudicada a apreciação da questão suscitada pela recorrida a título subsidiário para o caso de aquele obter provimento.

Sumário:

I. Por força do princípio do dispositivo, a sentença e o acórdão devem conter-se dentro dos limites objectivo e subjectivo da pretensão deduzida, não sendo lícito ao juiz desviar-se desse âmbito ou desvirtuá-lo.
II. O tribunal pode proceder à qualificação jurídica que julgue adequada, dentro da factualidade alegada e provada e nos limites do efeito jurídico pretendido, mas está processualmente vedado atribuir-lhe, sob a capa de tal reconfiguração, bens ou direitos substancialmente diversos dos que o autor procurava obter através da pretensão que efectivamente formulou.
III. Deve ser mantido o acórdão que declare nula a sentença que conheça de causas de pedir não invocadas ou que, violando o princípio do dispositivo na vertente relativa à conformação objectiva da instância, não observe os limites impostos pelo art.º 609.º, n.º 1, do CPC.

III. Decisão

Pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista e manter o acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente (art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC).
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STJ, 8 de Setembro de 2020

Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar.

Fernando Augusto Samões (Relator)

Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta)

António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto)