Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
478/11.7TBOLH.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: SALAZAR CASANOVA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE
DESPACHO SANEADOR
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
SERVIDÃO DE PASSAGEM
ESTACIONAMENTO
PRÉDIO DOMINANTE
PRÉDIO SERVIENTE
USUCAPIÃO
MURO
DIREITO DE TAPAGEM
Data do Acordão: 04/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL/ ADMISSIBILIDADE DE RECURSO/ DIREITOS REAIS / SERVIDÃO DE PASSAGEM
Doutrina:
Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1984, vol. III, 2.ª Ed., pág. 66 (anot. Ao art. 1287.º)
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL: ARTS. 490.º, N.º 2, 573.º, N.º 2, 691.º, N.º 3.
NCPC: ARTS. 617.º, N.º 3, 635.º, N.ºS 4 E 5, 665.º, N.º 2, 674.º, N.º 1, AL. B).
CÓDIGO CIVIL: ARTS. 334.º, 342.º, N.º 2, 1547.º, N.º 1, 1564.º, 1565.º, N.º 2;
LEI N.º 41/2013, DE 26-06 – ART. 7.º, N.º 1.
Sumário :
I - É admissível recurso de revista, nos termos do art. 674.º, n.º 1, al. b) do CPC, do acórdão da Relação que considerou precludida a apreciação de decisões proferidas no despacho saneador, tendo em vista a questão de saber se as referidas decisões devem ou não devem considerar-se decisões interlocutórias.

II - No caso de se entender que o conhecimento de tais decisões não estava precludido por estarmos face a decisões interlocutórias, suscetíveis, portanto, de impugnação a interpor em momento ulterior ao momento em que foram proferidas (art. 644.º, n.ºs 1 e 3 do CPC), a apreciação do mérito dessas decisões, decisões que recaem unicamente sobre a relação processual, não compete ao STJ mas ao Tribunal da Relação, sendo admissível recurso do acórdão da Relação que sobre elas vier a ser proferido, verificando-se os pressupostos contemplados no art. 671.º, n.º 2, als. a) e b) do CPC.

III - Com efeito, constatando-se que o Tribunal da Relação não apreciou o mérito dessas decisões interlocutórias por considerar que essa apreciação estava prejudicada por preclusão do seu conhecimento, o STJ não se pode substituir ao tribunal recorrido, pois não se aplica ao STJ a regra da substituição constante do art. 665.º, n.º 2, do CPC face ao que dispõe o art. 679.º do CPC.

IV - De acordo com a máxima tantum praescriptum quantum possessum, se a coisa foi possuída livre de quaisquer direitos ou encargos que sobre ela incidiam, ela adquire-se do mesmo modo e, assim sendo, deve considerar-se constituída por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, servidão de passagem a pé e por automóvel nos precisos termos em que a servidão era utilizada em benefício do prédio dominante (arts. 1287.º e 1548.º, n.º 1 do CC).

V - No que respeita à extensão e exercício da servidão, incluída a servidão constituída por usucapião, em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente (art. 1565.º, n.º 2, do CC).

VI - Não existindo essa dúvida, face aos factos provados, a extensão e modo de exercício correspondem à extensão e modo de exercício comprovadamente realizados.

VII - No caso de o proprietário do prédio serviente, decorrido já o prazo necessário para a constituição da servidão de passagem por usucapião, edificar um muro que afetou o exercício e extensão da servidão, dificultando o acesso à garagem do prédio encravado, não pode deixar de proceder o pedido de demolição desse muro.

VIII- A construção desse muro fundada no exercício do direito de tapagem (art. 1356.º do CC) constitui abuso do direito (art. 334.º do CC) que não merece tutela, constatando-se que, independentemente de outras razões, ela teve por objetivo alterar a extensão da servidão, designadamente a sua largura, tal como vinha sendo exercida há 27 anos (de 06-06-1983 até 04-2011).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I.. AA intentou no dia 22-3-2011 ação declarativa com processo ordinário contra BB pedindo o seguinte:

1. Que seja reconhecido à autora a aquisição originária, por usucapião, do direito de passagem para aceder ao seu prédio sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número ..., a pé e de automóvel, através do caminho existente no prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, denominado " Quinta ..." inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo …  da secção BE e descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número ....

2. Que seja reconhecido à autora a aquisição originária, por usucapião, do referido direito de passagem com efeitos retroativos a 6 de junho de 1983.

3. Que seja a ré condenada a reconhecer a aquisição originária, por usucapião, do referido direito de passagem a favor da autora e a abster-se de praticar atos que impeçam diminuam ou vedem o direito ora requerido à autora.

4. Que seja a ré condenada a demolir o portão e a cancela que edificou para impedir o direito de passagem da autora ou, em alternativa, a entregar as respetivas chaves à autora.

5. Que seja a ré condenada a título de sanção pecuniária compulsória, não inferior a 250€ (duzentos e cinquenta euros) por cada vez que não permita o acesso da autora ou de pessoas que se dirijam ao prédio da autora sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número ....

6. Que seja ordenado o registo do direito de passagem a favor do prédio da autora sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o n.º ... a onerar o prédio da ré sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, denominado "Quinta ...", inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo ….º da secção BE e descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número ....

2. Na audiência preliminar foi proferido despacho de aperfeiçoamento tendo em vista a alegação  da existência de sinais visíveis e permanentes reveladores da serventia que alegadamente onera o prédio da ré pois, de acordo com o disposto no artigo 1548.º/1 e 2 do Código Civil, apenas as servidões aparentes são suscetíveis de constituição por usucapião  e, apesar de a autora se referir a um caminho, tais sinais não foram mencionados de forma explícita e concreta (fls. 161/162).

3. Na sequência desse despacho, a A. veio a reformular o pedido supra  mencionado em 4 que assim ficou desdobrado (4a e 4b), aditando ainda o pedido a seguir mencionado em 4c infra:

4a. Que seja a ré condenada a demolir o portão que edificou em 5-2-2011 e o muro que edificou em 8-4-2011 para impedir o direito de passagem da autora e a repor o caminho tal como ele sempre foi até ao dia 5-2-2011, sem portão , nem muro, ou em alternativa a entregar as chaves do portão à autora e a demolir o muro que edificou em 8-4-2011.

4b. Que seja a ré condenada a retirar a cancela e as placas que interditam a passagem da autora e de terceiros que se dirigem à sua residência.

4c. Que seja a ré condenada como litigante de má fé nos termos do artigo 456.º do C.P.C. no pagamento de multa e indemnização a favor da autora.

4. A ré contestou  deduzindo pedido reconvencional subsidiário para o caso de a ação ser julgada procedente e provada, assim formulado:

A) Que se condene a autora a indemnizar a ré em valor a apurar e a liquidar em execução de sentença, devido pela constituição da servidão de passagem.

B) Que, caso o Tribunal entenda que tal servidão deverá ser constituída pelo local assinalado a azul na planta que a autora junta aos autos, deve considerar-se que a autora provocou o encrave do seu prédio. E o valor da indemnização deve ser agravada nos termos estipulados no artigo 1552.° do CC, tudo também a liquidar em execução de sentença.

C) Que se condene a autora a não estacionar, bloquear ou de qualquer outra forma impedir / obstruir e/ou dificultar o acesso da ré, quer a pé, quer de veículo motorizado, na dita servidão, sob pena de pagamento a titulo de sanção pecuniária compulsória à ré do valor diário de 500,00€ (quinhentos euros).

D) Que se condene a autora a não depositar detritos, entulhos, resíduo e lixos ou qualquer outro tipo de bens, na servidão de passagem, sob pena de pagamento a título de sanção pecuniária compulsória à ré do valor diário de 500,00€ (quinhentos euros), acrescido dos custos que a ré venha a incorrer com a respetiva remoção e limpeza.

E) Que se condene a autora a pagar à ré a quantia de 13.693,79€ que a mesma despendeu a título de construção e manutenção de muros e da passagem desde 2001, cujo reembolso aqui se reclama, acrescida de juros, e ainda no pagamento dos valores que, não sendo de momento determináveis, o sejam a liquidar em execução de sentença.

F) Que se condene a autora no pagamento da contribuição de 50% dos valores que forem necessários para a reparação, manutenção e quaisquer obras de conservação, que sejam necessárias efetuar, futuramente, com exceção dos que forem de exclusiva responsabilidade da autora.

G) Que se condene a autora como litigante de plena e evidente má fé, nos termos do artigo 456.º do C.P.C, devendo tal consistir em multa e indemnização à ré.

5. Ainda na contestação,  a ré requereu que fosse ordenada a suspensão da instância dos presentes autos até ser decidida a questão prejudicial resultante do processo n.º 1376/08.7TBOLH do 1.º Juízo da comarca de Olhão no qual a ré peticionou a demolição de todas as construções efetuadas pela autora onde se inclui a piscina, piso técnico e muros envolventes, pois, caso tal pedido seja julgado procedente, a autora não terá já qualquer impedimento  para poder aceder à sua propriedade através do local assinalado na planta que faz parte da notificação avulsa, inclusive de carro.

6. Na sequência do despacho de aperfeiçoamento, sustentou a ré  o seguinte:

- Que a A., ao referir que o caminho através do qual acede ao seu prédio, e que tem início na E.N. 125, atravessa 4 propriedades, evidenciou a preterição de litisconsórcio necessário passivo a impor a presença nos autos desses proprietários, impondo-se, por isso, absolvição da ré da instância.

- Que a petição é inepta  por incompatibilidade do pedido de constituição de servidão de passagem por usucapião com o reconhecimento de que a servidão integra caminho público ( incompatibilidade entre pedido e causa de pedir).

- Que o pedido deduzido em 4a e 4b não deve ser admitido por não ser desenvolvimento ou consequência do pedido definitivo.

- Que o alegado nos artigos 15.º a 27.º do requerimento de fls. 165/170 sob a epígrafe " Das alterações realizadas pela ré no caminho já depois de instaurada a presente ação" está fora do âmbito do convite que foi dirigido à parte pelo que constituem alterações da matéria de facto que dessa forma e medida alteram a causa de pedir e o pedido e que não se conformam com o estabelecido no artigo 273.º do C.P.C/61 estando a sua admissão vedada pelo disposto no artigo 508.º/5 do C.P.C./61.

7. Na audiência preliminar foram proferidas as seguintes decisões:

- Admissibilidade das alterações do pedido que apenas serviram para conformar os pedidos manifestos na petição inicial à alteração da causa de pedir efetuada na réplica e aperfeiçoada no último articulado que a A. foi convidada a oferecer; acrescendo que tais alterações podem ser perspetivadas como desenvolvimento  ou consequência do pedido inicialmente efetuado.

- Admissibilidade da matéria alegada nos mencionados artigos 15.º a 27.º pois se a autora pode até ao termo da audiência preliminar apresentar articulado relativo a factos supervenientes (artigo 506.º/3, alínea a) do C.P.C.),também pode aperfeiçoar, ainda que por iniciativa própria e para além do convite que lhe foi expressamente feito, factos que tendo natureza superveniente foram alegados na réplica.

- Inadmissibilidade do pedido de suspensão da instância considerando que o facto de o prédio da autora passar, no futuro, a dispor de um acesso que torne desnecessária a servidão de passagem, tal circunstância não se afigura prejudicial da presente ação, pois não obsta  ou impede, pela falta de um qualquer pressuposto, uma tomada de decisão nestes autos.

- Inadmissibilidade do pedido reconvencional visto que, peticionando a autora o reconhecimento do direito de passagem que terá adquirido originariamente por usucapião, a defesa da ré, visando o pagamento de indemnização que a lei reserva para aquelas situações em que o titular do prédio encravado faz uso  do direito potestativo a que alude o artigo 1550.º do Código Civil, não se enquadra no objeto desta ação; por outro lado, constata-se ainda que a ré deduz um conjunto de pedidos que nada têm a ver com a causa de pedir alegada nesta ação, sendo dotados de plena autonomia no sentido em que não são impeditivos, modificativos nem extintivos do direito que a autora se arroga titular.

 - Improcedência da exceção de ilegitimidade  considerando que a autora com a presente ação pretende que o Tribunal reconheça a existência de uma servidão de passagem que onera o prédio da requerida e que a mesma seja condenada a remover todos os obstáculos que introduziu no caminho que impedem ou dificultam o exercício do direito de passagem; ora, muito embora a autora tenha alegado, em sede de aperfeiçoamento, que o caminho sobre o qual detém o direito de passagem atravessa 4 prédios, não se vê como este facto determine (supervenientemente) a ilegitimidade singular ou plural da ré, isto quando a pretensão que a autora deduz nos presentes autos apenas àquela se dirige e só aquela praticou atos que são obstativos ou dificultadores do direito de passagem da proponente; a relação jurídica invocada pela autora - de natureza real - não envolve, no presente caso, diversos sujeitos, mas apenas a ré, sendo certo que nem a lei nem um eventual negócio jurídico nem mesmo a natureza da relação jurídica invocada exige a presença de outras pessoas em juízo.

8. A ação foi julgada parcialmente procedente nos seguintes termos:

- Declarou-se que o prédio aludido no ponto 3 da matéria de facto se encontra atualmente onerado com uma servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do prédio da autora identificado no ponto 1 da matéria de facto a qual se processa da forma descrita nos pontos 9, 10 e 29 da matéria de facto.

- Condenou-se a ré a abster-se de praticar quaisquer atos ou condutas que impeçam, diminuam ou dificultem a servidão de passagem declarada em a).

- Absolveu-se a ré dos restantes pedidos deduzidos pela autora.

9. A autora interpôs recurso de apelação.

10. A ré interpôs recurso de apelação subordinado considerando que a suspensão da instância devia ter sido decretada por existência de causa prejudicial, violando-     -se, assim , o disposto no artigo 279.º do C.P.C, impugnando a decisão que não admitiu o pedido reconvencional e considerando, por último, que houve preterição de litisconsórcio necessário passivo.

11. O acórdão da Relação de 17-10-2013 julgou o recurso procedente e em consequência revogou a  decisão recorrida, substituindo-a por outra que reconhece à autora a aquisição originária, por usucapião, do direito de passagem para aceder ao seu prédio sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número ..., a pé e de automóvel, através do caminho existente no prédio rústico sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, denominado “Quinta ...”, inscrito na respectiva matriz predial rústica sob o artigo … da secção SE e descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número ...; mais reconheceu à A. a aquisição originária, por usucapião, do referido direito de passagem, com efeitos retroativos a 6 de Junho de 1983; condenou a ré a reconhecer a aquisição originária, por usucapião, do referido direito de passagem a favor da autora e abster-se de praticar actos que impeçam, diminuam ou vedem o referido direito; condenou a ré a entregar as chaves do portão à autora e a demolir o muro que edificou em abril de 2011.

12. Interpôs a ré recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo o seguinte:

- Que o acórdão proferido é nulo por omissão de pronúncia, pois não decidiu acerca do recurso subordinado que foi interposto pela ré recorrente conforme o estipulado no artigo 615.º/1, alínea d) do C.P.C.

- Que existe contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615.º/1, alínea c) primeira parte aplicável por força do artigo 674.º/1, alínea c) do C.P.C. visto que, tendo ficado provado em 23 da base instrutória (facto 27 infra) que o portão foi construído no prolongamento do muro, demolindo-se o muro não é possível manter-se o portão por forma a entregar-se as chaves à recorrida.

- Que não ficou provado que no local situado no prolongamento do portão e onde foi construído o muro existisse antes um caminho cuja largura oscilava entre os 7 e os 10 metros, tendo tão só ficado provado que nesse local havia uma zona cuja largura oscilava entre os 7 e os 10 metros, nada ficando provado quanto à largura do caminho fora desta zona. Partindo desta errada premissa, o acórdão recorrido ordena a demolição do muro, existindo, por isso, contradição entre os fundamentos e a decisão (artigo 615.º/1, alínea c) e 674.º/1, alínea c) do C.P.C.)

- Que o artigo 1563.º do Código Civil consagra o princípio da servidão necessária, impondo-se a menor oneração  possível do prédio serviente e as necessidades normais de passagem do prédio dominante. Ora tendo ficado provado que o caminho tem uma largura de 3,35 metros no seu ponto mas estrito e 4,30 metros no seu ponto mais largo, tal espaço é mais do que suficiente para assegurar o direito de passagem  da autora recorrida pelo que o acórdão recorrido violou o mencionado artigo 1563.º do Código Civil. Assim sendo, o acórdão violou artigo 1565.º/2 e 1356.º do Código Civil ao negar à ré a possibilidade de murar a sua propriedade.

- Que, estipulando o artigo 1565.º/2 do Código Civil, que a servidão , quanto à sua extensão ou modo de exercício, deve ser feita de forma a satisfazer as necessidades previsíveis e normais do prédio dominante, uma vez provado que não existe qualquer necessidade da autora/recorrida que justifique que lhe seja entregue uma chave do portão pela simples razão de que não constitui necessidade da autora introduzir-se no prédio da recorrente, conclui-se  que o acórdão da Relação ao ordenar a entrega da chave do portão desrespeitou o referido artigo 1565.º/2 do Código Civil.

13. O Tribunal da Relação, por acórdão de 19-12-2013, reconheceu que tinha deixado de conhecer o recurso de apelação subordinado. Suprindo a omissão, julgou-o improcedente, considerando que a questão de facto nele suscitada - alteração da resposta ao quesito 3.º - não era atendível face aos depoimentos prestados e considerando ainda que as decisões proferidas sobre indeferimento do pedido de suspensão da instância, improcedência da exceção dilatória de legitimidade e inadmissibilidade do pedido reconvencional, proferidas em audiência preliminar, estão há muito transitadas em julgado, pois não foi interposto recurso  dessas decisões, considerada a data da sua prolação (artigo 685.º/3 do C.P.C.).

14. A ré, ao abrigo do disposto no artigo 617.º/3 do C.P.C./2013, alarga o âmbito da revista  considerando que a referida decisão não transitou em julgado pois a presente ação foi proposta em 22-3-2011 e, na vigência daquele diploma, tais decisões apenas podiam ser impugnadas com o recurso de apelação a interpor nos termos do artigo 691.º/3 do C.P.C. Reitera as razões por que, em seu entender, o pedido e as exceções invocadas e a matéria de facto devem ser alterados.

15. Factos provados

1- O prédio sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, confrontando a Norte, Sul e Nascente com a ré e a Poente com servidão e com a ré, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ... e descrito na Conservatória de Registo Predial de Olhão sob o número ..., encontra-se registado a favor da requerente (ora A.) pela apresentação n°. 1 de 07/02/1986 (alínea A da matéria assente).

2- Por escritura Pública, designada «compra e venda», celebrada a 06.06.1983, no Cartório Notarial do Concelho de Olhão, a ré declarou comprar a CC casada com DD, a EE casado com FF e a GG casada com HH, e estes declaram vender-lhe o prédio identificado em 1. (alínea B da matéria assente).

3- Por escritura pública, designada «compra e venda», celebrada a 23.10.2000, no 1.º Cartório Notarial de Faro, a A. declarou comprar a CC e a EE e estes declararam vender-lhe o prédio misto sito em ..., freguesia de ..., concelho de Olhão, denominado “Quinta ...., inscrito na matriz predial rústica sob o artigo … da secção SE e na matriz predial urbana sob o artigo …, e descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão sob o número ... (alínea C da matéria assente).

4- O prédio referido em 3. encontra-se registado a favor da Ré pela apresentação 15 de 29/09/2000 0-2. da descrição predial n.º ... da Conservatória do Registo Predial de Olhão (alínea D da matéria assente).

5- O artigo rústico … da Secção SE deu lugar ao atual artigo … da Secção SE (alínea E da matéria assente).

6- Consta da escritura pública referida em 2 que o prédio supra identificado em 1. confrontava a Norte, Sul e Nascente com os vendedores e a Poente com Servidão e vendedores (alínea F da matéria assente).

7- O referido prédio encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Olhão com as seguintes confrontações: a Norte, Sul e Nascente com os vendedores e a Poente com Servidão (alínea G da matéria assente).

8- A parte rústica do prédio da ré é, desde data não concretamente apurada mas anterior a 1983, atravessado por um caminho que sai da Estrada Nacional 125, passa em frente ao depósito do gás, e dá acesso, entre outros, ao prédio da A. - resposta ao ponto 1 da base instrutória.

9- A partir do local em que o caminho inicia o atravessamento da propriedade da R. e até junto à entrada da propriedade da A. o caminho tem o cumprimento de cerca de 100 (cem metros) - (resposta ao ponto 3 da base instrutória).

10- Trata-se de uma faixa de terra batida, sem vegetação e coberta com brita - (resposta aos pontos 4, 5, 6 e 7  da base instrutória).

11- Os sinais referidos em 10. são anteriores ao ano de 1983 - (resposta aos pontos 8 e 9 da base instrutória).

12- Desde 6 de Junho de 1983 – data em que a autora adquiriu o prédio – que sempre acedeu ao mesmo através do referido caminho - (resposta ao ponto 11 da base instrutória).

13- Desde a data em que a A. adquiriu o prédio, acede ao mesmo pelo portão com arco que existe na entrada do prédio - (resposta ao ponto 12 da base instrutória).

14- Desde a edificação da casa, o acesso a esta, pela A. e seus familiares, foi sempre efetuado por aquele local - (resposta aos pontos 13 e 14 da base instrutória).

15- Essa era a entrada utilizada para aceder a pé ao prédio da A., e de automóvel para aceder à entrada da garagem que foi edificada no lugar do antigo alpendre - (resposta aos pontos 15 e 16 da base instrutória).

16- O acesso ao prédio nos termos referidos em 13 e 14 foi feito de forma contínua e ininterrupta - (resposta ao ponto 34 da base instrutória).

17- A referida utilização do caminho desde a Estrada Nacional 125 e até a entrada da casa da A., tem sido feita à vista de todos e conhecimento de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja e na plena convicção de estar a exercer um direito de passagem que lhe assiste - (resposta ao ponto 35 da base instrutória).

18- Em data anterior a 06/06/1983 o caminho dava acesso a uma eira e a outros prédios limítrofes - (resposta ao ponto 36 da base instrutória).

19- Quando a ré, em 23 de Outubro de 2000, adquiriu o seu prédio identificado em 3, já a A. utilizava e continuou a utilizar o referido caminho - (resposta ao ponto 37 da base instrutória).

20- Quando a ré adquiriu o seu prédio sabia da existência do caminho e da sua utilização pela A. - (resposta ao ponto 38 da base instrutória).

21- A ré com recurso a máquinas destruiu a calçada que existia na frente do portão e da garagem da autora - (resposta ao ponto 17 da base instrutória).

22- A calçada foi colocada de comum acordo e a expensas da ré - (resposta aos pontos 18 e 39  da base instrutória).

23- No dia 29 de Janeiro de 2011, a ré enviou à autora através da solicitadora de execução II, uma notificação judicial avulsa da qual constam os seguintes dizeres:

A partir desta data abster-se de utilizar como outra forma de acesso à sua propriedade outra que não seja pelo caminho identificado a verde na planta cadastral da requerente BB.

Devido aos repetidos roubos e ataques físicos e verbais e ameaças de morte de que foi vítima a requerente dentro da sua propriedade, irão ser colocados portões de segurança no acesso colorido a Verde.

Tais portões de segurança serão colocados no dito caminho de acesso colorido a verde e podem ser abertos manualmente e devem ser fechados sempre que usados, para segurança de todos, sob pena de indemnização pelos prejuízos causados.

O exercício do acesso à propriedade da Requerente deverá ser sempre usado e praticado exercido correta e razoavelmente, e sem velocidade excessiva pela Requerida e pelos seus familiares ou convidados, e

Poderá ainda ser solicitada contribuição monetária à Requerida AA, na proporção de 50% (cinquenta por cento) do valor necessário ou razoável para manter esse caminho de acesso, colorido a verde, sempre que for preciso - (H da matéria assente).

24- No dia 5 de fevereiro de 2011 a ré procedeu à colocação dos portões, mencionados na comunicação referida no ponto 25 dos tactos provados - (resposta ao ponto 19 da base instrutória).

25- Primeiro, colocou, no início do caminho, uma cancela que se pode abrir e fechar - (resposta ao ponto 20 da base instrutória).

26- Tendo procedido à deslocação de um portão azul (portão que inicialmente se encontrava à entrada da sua residência) - (resposta aos pontos 21 e 22 da base instrutória).

27- Em data não concretamente apurada de Abril de 2011 a ré edificou no prolongamento do referido portão um muro - (resposta ao ponto 23 da base instrutória). 

28- No local onde foi deslocado o portão, existia antes uma zona com a largura que variava nos seus diversos pontos entre os sete e os dez metros - (resposta ao ponto 24 da base instrutória).

29- Na sequência da construção do muro, erigido numa extensão de 26,35 metros, restou livre um caminho que oscila entre 3,35 metros (ponto mais estreito) e 4,30 metros (ponto mais largo) - (resposta ao ponto 25 da base instrutória).

30- O caminho que permite o acesso à casa da A. apresenta uma trajetória curvilínea, como se alcança a fls. 261 e 264 dos autos apensos - (resposta ao ponto 26  da base instrutória).

31- O curso identificado na comunicação referida no ponto 23 dos factos provados apenas permite o acesso pedonal - (resposta ao ponto 28 da base instrutória).

32- O local assinalado é uma encosta com inclinação de 11%, pedregosa e com vegetação - (resposta ao ponto 29  da base instrutória).

33- Face ao desnível existente, não é possível por esse local à A. entrar na sua propriedade de automóvel - (resposta ao ponto 30 da base instrutória).

34- Não é possível por esse local fazer chegar à moradia garrafas de gás e outros abastecimentos - (resposta ao ponto 31 da base instrutória).

35- Não é possível, por esse local, fazer chegar junto da moradia uma ambulância, se e quando tal vier a ser necessário - (resposta ao ponto 32 da base instrutória).

Apreciando

16. A presente ação foi proposta no dia 22-3-2011, o acórdão recorrido é de 17-10-2013.

17. Aplica-se, assim, ao presente litígio o C.P.C. de 2013 que entrou em vigor no dia 1-9-2013, não se subsumindo o caso à previsão constante do artigo 7.º/1 da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, que manda aplicar, no que respeita a recursos, o regime decorrente do Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto visto que este regime pressupõe que a ação tenha sido proposta antes de 1-1-2008, o que não é o caso.

18. Do ponto de vista processual suscita-se a questão de saber se assiste razão à recorrente quando considera que as decisões proferidas na audiência preliminar, ocorrida no dia 18-10-2011, de rejeição do pedido reconvencional, de indeferimento do pedido de suspensão da instância e de improcedência da exceção de legitimidade por preterição de litisconsórcio necessário passivo, não tinham transitado em julgado e, por conseguinte, eram impugnáveis apenas nos termos do artigo 691.º/3 do C.P.C./61.

19. Admitindo que, nesta questão processual, assiste razão à recorrente, importa, no entanto, ponderar se aquelas questões podem processualmente ser objeto de conhecimento, se é, neste momento, útil o seu conhecimento dada a delimitação do objeto do recurso por parte da ré e se, a subsistir alguma utilidade , o conhecimento da questão cabe ao Supremo Tribunal de Justiça ou à Relação.

20. A ré no recurso subordinado que interpôs para o Tribunal da Relação não pôs em causa a sentença de 1.ª instância e, por isso, os efeitos do julgado não podem ser prejudicados pela decisão do recurso nem pela anulação do processo (artigo 635.º/5).

21. Deve, portanto, considerar-se adquirido desde já que o prédio da autora se encontra atualmente onerado com uma servidão de passagem, constituída por usucapião, em benefício do identificado prédio da autora a qual se processa a partir do local em que o caminho com o comprimento de 100 metros inicia o atravessamento das propriedade da ré e até junto da entrada da propriedade da autora; a servidão de passagem é de terra batida, sem vegetação e coberta de brita e, na sequência da construção de um muro erigido numa extensão  de 26,35 metros, a servidão oscila entre 3,35 metros no ponto mais estreito e 4,30 metros no ponto mais largo.

22. A sentença reconheceu que o direito de servidão existe " nos termos descritos na matéria de facto (pontos 9, 10, 28 e 29) e com efeitos desde a data do início da posse ( artigo 1288.º do Código Civil)". Esse ponto 28 diz que " no local onde foi deslocado o portão existia antes uma zona com a largura que variava nos seus diversos pontos entre os sete e os dez metros".

23. O início da posse dá-se em 6-6-1983 quando a A. adquiriu o prédio, facto assim declarado na sentença e no acórdão.

24. A sentença não julgou procedente o pedido alternativo de entrega de chaves (4a) considerando que o portão apenas dá acesso ao prédio da ré; entendeu que a cancela existente no início do caminho não estorva  por qualquer forma o exercício da servidão (4b); não julgou procedente o pedido (4a) de demolição do portão e do muro por entender que continua a ser possível o acesso à garagem da autora pelo caminho com a largura de 3,5 metros que resultou depois da construção do muro, não obstante o grau de dificuldade ser superior ao que existia quando a largura do caminho oscilava entre os 7 e os 10 metros; não julgou procedente o pedido de condenação a título de sanção pecuniária compulsória (5).

25. Não está, portanto, em causa o reconhecimento da existência de uma servidão de passagem a favor da autora a pé e de automóvel, estando, portanto, definitivamente reconhecidos os pedidos deduzidos em 1. 1, 2 e 3.

26. E, por via da restrição ao objeto do recurso constante das conclusões da autora (artigo 635.º/4), está definitivamente assente a improcedência do pedido deduzido em 5 e 4b e também o pedido deduzido em 6 este com o sentido de ser o Tribunal a ordenar o registo do direito de passagem.

27. Restringiu a autora o recurso de apelação ao pedido deduzido em 4a.

28. O acórdão da Relação julgou  procedente o recurso da autora condenando a ré " a entregar as chaves do portão à autora e a demolir o muro que edificou em abril de 2011" ( fls. 569) com o consequente reconhecimento da servidão tal como era exercida antes da edificação do muro conforme 9, 10 e 28.

29. É igualmente quanto a este pedido que se insurge a ré na revista.

30. O recurso subordinado da ré não foi apreciado pela Relação que, no entanto, veio a suprir a omissão, decidindo em conferência ( acórdão de 19-12-2013, fls. 633/636) julgar improcedente o recurso interposto pela ré no que respeita ao invocado erro de apreciação da prova e, quanto aos demais fundamentos ( indeferimento dos pedidos de suspensão de instância e reconvenção, improcedência da exceção de legitimidade por preterição do litisconsórcio necessário), por considerar que a decisão proferida em audiência preliminar tinha transitado em julgado.

31. A ré recorrente alargou então o âmbito do recurso interposto sobre a questão principal - a demolição do muro e a entrega das chaves - nos termos do artigo 617.º/3 tendo em vista também a decisão entretanto proferida pela Relação no recurso subordinado.

32. Como se sabe, no caso de recurso sobre decisões interlocutórias, a lei só nos casos contemplados no artigo 671.º/2, alíneas a) e b) é que admite revista sobre acórdãos da Relação " que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual".

33. No caso vertente, porém, o recurso só apreciou no plano de mérito a questão atinente à matéria probatória, considerando prejudicados, por preclusão, o conhecimento das decisões.

34.  Ora, não estando em causa, no acórdão da Relação, a apreciação em si da decisão interlocutória, mas tão somente a questão de saber se as decisões em causa são ou não decisões interlocutórias, a revista é admissível de acordo com o disposto no artigo 674.º/1, alínea b), ou seja, com fundamento em violação ou errada aplicação da lei processual.

35. No entanto, a procedência das razões da recorrente - e, há que reconhecer-lhe razão porque, de acordo com o artigo 691.º/3 do C.P.C./61, preceito aplicável ao tempo em que a 1.ª instância apreciou tais questões, a sua impugnabilidade podia ser efetuada, como foi, no recurso interposto da decisão final - não implica que o Supremo Tribunal de Justiça se possa substituir ao Tribunal da Relação no que respeita à apreciação dessas decisões visto que hoje, contrariamente ao que sucedia anteriormente, o Supremo não tem o poder de se substituir à Relação, conhecendo as questões que apenas não foram conhecidas por estarem prejudicadas pela solução dada ao litígio (artigo 665.º/2).

36. Importa, no entanto, ponderar se ocorre situação preclusiva ou determinante de inutilidade que obste à apreciação das mencionadas decisões interlocutórias.

37. No que respeita à exceção de ilegitimidade por preterição de litisconsórcio necessário - como se vê,  a ré continua a insistir em que, pelo facto de o caminho iniciado na Estrada Nacional passar por outras propriedades antes de passar pela propriedade da ré, se impõe a presença nesta causa desses outros proprietários - constata-se que a ré não suscitou esta exceção na contestação e é aí que devem ser suscitados todos os meios de defesa que não sejam supervenientes ( princípio da preclusão: artigo 573.º/2 e artigo 490.º/2 do C.P.C./61). Com efeito,  a ré apenas suscitou esta exceção na sequência do requerimento que a autora apresentou, aperfeiçoando a sua petição. Sucede, porém, que a menção de que o caminho que liga a Estrada Nacional à propriedade da ré atravessa outras propriedades, essa menção já constava do artigo 6.º da petição inicial que diz: " a parte rústica do prédio da ré é desde tempos imemoriais atravessado por um caminho que dá acesso, entre outros, ao prédio da autora". Ora a ré, conhecedora desse facto, podia e devia ter invocado tal exceção quando contestou. Estava, portanto, quando o fez, precludido o seu direito de invocar a exceção e, por conseguinte, o facto de o Tribunal ter considerado que tal exceção não podia proceder, não afasta a preclusão verificada e, consequentemente, a inadmissibilidade da impugnação dessa decisão.

38. As coisas não são de entender diversamente pelo facto de a exceção em causa ser de conhecimento oficioso. O Tribunal, se entender que uma exceção de conhecimento oficioso se verifica, pode apreciá-la, mas não tem de o fazer se a parte não a suscitar adequadamente. A parte pode lembrar ao Tribunal a ocorrência de exceção, mas não tem direito a que o Tribunal a aprecie. Como é bom de ver, o Tribunal, se entender que uma exceção não se verifica, não tem de se pôr a justificar tal razão, não relevando sequer, enquanto decisão impugnável sobre questão não suscitada, quer a declaração formulária de que " não há nulidades ou exceções de que cumpra conhecer obstativas do mérito da causa", quer a declaração decisória que justificadamente considere que não ocorre essa nulidade.

39. Improcede, por estas razões, o recurso interposto pela ré, ou seja, o conhecimento desta questão deve considerar-se precludido.

40. No que respeita ao indeferimento do pedido de suspensão da instância, constata-se, como já se disse, que está definitivamente adquirido nestes autos o reconhecimento da aquisição por usucapião da servidão de passagem em benefício do prédio de que a autora é proprietária ( prédio dominante), onerando o  prédio da ré (prédio serviente).

41. Ora a ré visava com o pedido de suspensão da instância, na ação havida por prejudicial, obstar ao reconhecimento da constituição de servidão por usucapião, considerando que era desnecessário o reconhecimento dessa servidão porque, demolidas todas as construções efetuadas pela autora na sua propriedade (piscina, piso técnico, muros envolventes e vedações) o acesso à sua propriedade sobrante já se efetuaria sem qualquer impedimento.

42. Sucede, porém, que o reconhecimento da servidão constituída por usucapião (artigo 1547.º/1 do Código Civil) já não pode ser afetado tanto mais que a ré,  ponto esse essencial, não deduziu qualquer pedido nem alegou quaisquer factos supervenientes no sentido de se considerar extinta a servidão por desnecessidade e, por isso, nunca tal pretensão poderia aqui ser declarada.

43. Por este motivo, deve igualmente considera-se precludida a apreciação desta questão por ser absolutamente inútil tendo em vista obstar ao reconhecimento da constituição da servidão por usucapião.

44. Fica-nos, por último, o pedido reconvencional, limitado aos pedidos deduzidos em C), D) e E).

45. Quanto a estes, deverá o Tribunal da Relação pronunciar-se pelas razões expostas. No entanto, a necessidade de os autos baixarem ao Tribunal da Relação não obsta ao conhecimento desde já do recurso interposto pela ré visando a revogação do acórdão da Relação na parte em que  a condenou a " entregar as chaves do portão à autora e a demolir o muro que edificou em abril de 2011" que se passa desde já a apreciar.

46. A servidão constituída por usucapião em benefício do prédio da autora tem a extensão e os limites " definidos pela atuação do possuidor, em harmonia com a velha máxima tantum praescriptum quantum possessum. Assim, se a coisa foi possuída como livre de quaisquer direitos ou encargos que sobre ela incidam, adquirir-se-á nessa precisas condições, isto é, livre dos direitos ou encargos. É o que se chama usucapio libertatis […]. Talvez esta expressão possa ser acusada de pouco feliz, na medida em que sugere uma extinção de direitos reais por usucapião. Rigorosamente, porém, o que se passa, e o que resulta dos princípios expressos na lei, é que se adquire a coisa livre, porque se possui livremente, e o que se adquire é aquilo que se possuía" (Antunes Varela, Código Civil Anotado, 1984, Vol. III, 2.ª edição, pág. 66 em anotação ao artigo 1287.º).

47. As servidões, no que respeita à sua extensão e exercício, são reguladas pelo respetivo título; na insuficiência do título, observa-se, designadamente tendo em vista o caso em apreço, o que resulta do artigo 1565.º do Código Civil que, no n.º2, prescreve:

"Em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída a servidão por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente".

48. Esta regra vale para as servidões constituídas por usucapião ( artigo 1564.º do Código Civil).

49. Ora, analisando os factos provados, impõe-se verificar se há ou não dúvida quanto à extensão e modo de exercício da servidão.

50. A sentença de 1.ª instância considerou que a servidão tinha a extensão e era exercida em conformidade com  os factos referidos em 9, 10, 28 e 29.

51. No entanto, entendeu limitar o seu exercício, na extensão de 26,35 metros, ao caminho com a largura definida em 29.

52. O Tribunal da Relação considerou que a sentença restringiu indevidamente com base no direito de tapagem o exercício da servidão visto que a servidão era exercida no local onde foi deslocado o portão em " zona com a largura que variava nos seus diversos pontos entre os sete e os dez metros" (ver facto 28), zona essa que ficou reduzida a um caminho com a extensão de 26,35 metros que oscila entre 3,35 metros no ponto mais estreito e 4,30 metros no ponto mais largo ( ver facto 29).

53. Assim, a servidão deve declarar-se constituída  na extensão e área tal como foi exercida até ao momento em que a ré, já na pendência da ação (abril de 2011: facto 27), edificou muro, depois de ter colocado portão (5-2-2011: ver facto 24) que reduziu a servidão, depois de colocado o portão e construído o muro, ao caminho com a extensão e largura referidos.

54. O acórdão da Relação considerou que, abrindo-se a passagem para a zona agora vedada pelo portão e muro, sem demolição do portão, mas apenas com a entrega da chave - o que é pretensão da autora - se alcança solução equitativa.

55. Não se constata, face à matéria de facto provada, que alguma dúvida pudesse existir quanto à extensão ou modo de exercício da servidão que justifique a restrição da sua utilização, nesta sua parte final, ao mencionado caminho com o comprimento de 26,35 metros e com largura que oscila entre 3,35 metros e 4,30 metros.

56. Restrição que nunca se justificaria , diga-se, a partir do momento em que a própria sentença reconhece que a circulação do veículo na via com a dita largura máxima de 4,30 metros tem um " grau de dificuldade superior ao que existia quando a largura do caminho oscilava entre os 7 e os 10 metros", reconhecendo-se que " a largura mínima do caminho permite a um qualquer condutor de capacidade ou destreza mediana aceder em segurança à casa do autor" mas reconhecendo igualmente que " se procedeu a tentativas de entrar e sair da garagem, as quais se lograram, não obstante se verificar que é mais difícil entrar na garagem quando ' se entra de frente e se sai de marcha atrás" ( fls. 449).

57. Reconhecendo-se que esta situação foi provocada pela própria ré com a edificação do muro e já na pendência da presente ação, seria iníquo, por consagrar uma atuação manifesta abusiva da inteira responsabilidade da recorrente ( artigo 334.º do Código Civil), reduzir a largura do caminho, e sem fundamento que se possa acolher à sombra da previsão constante do artigo 1565.º/2 do Código Civil.

 

58. Não incorre o acórdão em contradição entre os fundamentos e a decisão quando determina a demolição do muro sem determinar a demolição do portão, não estando sequer demonstrada a impossibilidade de a demolição do muro impor a demolição do portão. Se existisse uma tal impossibilidade é evidente que a decisão não poderia deixar de ser a de se impor a demolição do portão pois a servidão tem de ser exercida no caminho com o comprimento e largura existentes antes da edificação do muro.

59. Não existe nenhuma contradição, como é evidente, ao determinar-se a demolição da totalidade do muro a fim de se assegurar o conteúdo da servidão em conformidade com o modo como a posse foi exercida ao longo dos anos.

60. A ré não sustentou, quando se opôs à alegação da matéria de facto superveniente respeitante à construção do muro,  que  o acesso à garagem da autora se efetivaria sem qualquer dificuldade, demolindo-se apenas parte do muro, assim se viabilizando o acesso a zona livre com a largura entre os sete e os dez metros.

61. Ora é certo que, permanecendo o  muro edificado tal como está, essa zona com a largura entre os sete e os dez metros deixou de existir.

62. Ora competia à ré, que edificou o muro, alegar e provar que, apesar de ter atuado de forma a limitar a servidão tal como era exercida pela autora, a demolição de parte do muro, concretamente definida, permitiria a passagem de modo igual ao que sempre foi utilizado pela autora, assim pedindo a sua condenação nesses termos e comprometendo-se a proceder em conformidade. Estamos diante de factos impeditivos do direito à demolição total cuja alegação e prova competia à ré (artigo 342.º/2 do Código Civil).

63. Não pode deixar de improceder o recurso da ré salvo no que respeita à apreciação da decisão de indeferimento dos pedidos reconvencionais em 4. C), D), E) e F) supra

Concluindo:

I- É admissível recurso de revista, nos termos do artigo 674.º/1, alínea b) do C.P.C., do acórdão da Relação que considerou precludida a apreciação de decisões proferidas no despacho saneador, tendo em vista a questão de saber se as referidas decisões devem ou não devem considerar-se decisões interlocutórias.

II- No caso de se entender que o conhecimento de tais decisões não estava precludido por estarmos face a decisões interlocutórias, suscetíveis, portanto, de impugnação a interpor em momento ulterior ao momento em que foram proferidas ( artigo 644.º/1 e 3 do C.P.C.), a apreciação do mérito dessas decisões, decisões que recaem unicamente sobre a relação processual, não compete ao Supremo Tribunal de Justiça mas ao Tribunal da Relação, sendo admissível recurso do acórdão da Relação que sobre elas vier a ser proferido, verificando-se os pressupostos contemplados no artigo 671.º/2, alíneas a) e b) do C.P.C.

III- Com efeito, constatando-se que o Tribunal da Relação não apreciou o mérito dessas decisões interlocutórias por considerar que essa apreciação estava prejudicada por preclusão do seu conhecimento, o Supremo Tribunal de Justiça não se pode substituir ao tribunal recorrido, pois não se aplica ao Supremo Tribunal de Justiça a regra da substituição constante do artigo 665.º/2 do C.P.C.  face ao que dispõe o artigo 679.º do C.P.C.

IV- De acordo com a máxima tantum praescriptum quantum possessum, se a coisa foi possuída livre de quaisquer direitos ou encargos que sobre ela incidiam, ela adquire-se do mesmo modo e, assim sendo, deve considerar-se constituída por usucapião, verificados os respetivos pressupostos, servidão de passagem a pé e por automóvel nos precisos termos em que a servidão era utilizada em benefício do prédio dominante ( artigos 1287.º e 1548.º/1 do Código Civil).

V- No que respeita à extensão e exercício da servidão, incluída a servidão constituída por usucapião, em caso de dúvida quanto à extensão ou modo de exercício, entender-se-á constituída por forma a satisfazer as necessidades normais e previsíveis do prédio dominante com o menor prejuízo para o prédio serviente ( artigo 1565.º/2 do Código Civil).

VI- Não existindo essa dúvida, face aos factos provados, a extensão e modo de exercício correspondem à extensão e modo de exercício comprovadamente realizados.

VII- No caso de o proprietário do prédio serviente, decorrido já o prazo necessário para a constituição da servidão de passagem por usucapião, edificar um muro que afetou o exercício e extensão da servidão, dificultando o acesso à garagem do prédio encravado, não pode deixar de proceder o pedido de demolição desse muro.

VIII- A construção desse muro fundada no exercício do direito de tapagem (artigo 1356.º do Código Civil) constitui abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil) que não merece tutela, constatando-se que, independentemente de outras razões, ela teve por objetivo alterar a extensão da servidão, designadamente a sua largura, tal como vinha sendo exercida há 27 anos ( de 6 de junho de 1983 até abril de 2011).

Decisão

Nega-se provimento ao recurso da ré salvo no que respeita à apreciação da decisão interlocutória respeitante aos pedidos reconvencionais deduzidos em 4. C), D), E) e F) supra cujo conhecimento compete ao Tribunal da Relação para onde os autos serão remetidos, transitado o presente acórdão.

Custas pela ré

Lisboa, 10-4-2014

Salazar Casanova (Relator)

Lopes do Rego

Orlando Afonso