Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
257/11.1TELSB.L2-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
REQUISITOS
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
QUESTÃO DE FACTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Nos recursos para a fixação de jurisprudência (art. 437.º e ss., do C.P.P.), à mesmidade da questão jurídica a jurisprudência dominante do STJ passou a acrescentar, desde há muito, a identidade da questão de facto.

II. No caso sub judice, o acórdão recorrido e o acórdão fundamento, perante dois quadros factuais distintos, chegaram a conclusões diferentes, não podendo, por conseguinte, falar-se em verdadeira e efetiva oposição de julgados, pois para que se verifique este requisito fundamental é necessária a identidade de factos, não se restringindo à mera oposição entre as soluções de direito.

III. Nesta conformidade, acorda-se em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo arguido/condenado, por não se verificar o requisito substancial da oposição de julgados (art. 441.º n.º 1, 1.ª parte, do C.P.P.).

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. O arguido AA veio interpor, em 12/09/2023, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 28/03/2023, e transitado em julgado em 11/09/2023, que julgou improcedente o seu recurso e confirmou a condenação proferida pelo Juízo Central Criminal de ... na pena única, em resultado do cúmulo jurídico efetuado, de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão pela prática de 23 crimes de abuso de confiança agravados, 6 crimes de insolvência dolosa, um crime de branqueamento de capitais e um crime de fraude fiscal qualificado, com o fundamento de este acórdão se encontrar em oposição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 10/11/20041, transitado em julgado, alegando, em síntese, que, no que diz respeito ao crime de abuso de confiança, os dois arestos abordam, de forma diferente, a quebra da relação de confiança/fidúcia, entendendo o acórdão recorrido que a mesma não faz parte da tipicidade de tal crime, tendo, por seu turno, o acórdão fundamento perfilhado entendimento contrário, ou seja, no sentido de que a quebra dessa relação faz parte da tipicidade do mesmo crime.

Mais refere que a oposição que aponta no presente recurso encontra-se exatamente na base geral e abstrata cuja construção representa o primeiro momento do exercício que se vê desenvolvido nos dois arestos, o que, em sua opinião, será bastante para demonstrar que são “inócuas” e em nada interferindo no “aspeto jurídico do caso” as “diferenças factuais” que, obviamente, se verificam entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido.

Dito de outra forma, à oposição que atribui são perfeitamente alheios e indiferentes os concretos factos ponderados nas duas decisões.

Requer, por fim, que seja admitido este requerimento de interposição de recurso e, consequentemente, seja notificado para apresentar as respetivas alegações.

2. O recurso foi admitido por despacho do Senhor Desembargador titular, de 20/09/2023, com efeito devolutivo.

3. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu ao recurso, em 02/10/2023, sustentando estarem reunidos os pressupostos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

4. Por sua vez, neste Supremo Tribunal, o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu, em 30/11/2023, douto e muito desenvolvido parecer, na sequência do qual defende, em resumo, a rejeição do recurso, nos termos dos arts. 440.º n.ºs 3 e 4 e 441.º, n.º 1, 1.ª parte, do C.P.P.

5. Observado o contraditório, o recorrente, respondeu, em 05/12/2023, ao parecer do Ministério Público, manifestando a sua discordância e reafirmando os termos do recurso que interpôs.

6. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no art. 437.º e ss., do C.P.P., tem como finalidade específica evitar contradições entre acórdãos dos tribunais superiores, assegurando, assim, a uniformização da jurisprudência e, reflexamente, os princípios da segurança, da previsibilidade das decisões judiciais e da igualdade dos cidadãos perante a lei2.

Os antecedentes deste recurso parece, segundo Germano Marques da Silva3, citando os Professores Mário Júlio de Almeida Costa e Alberto dos Reis, encontrarem-se nas façanhas medievais e, mais modernamente, nos Assentos da Casa da Suplicação.

O Decreto n.º 12 353, de 22/09/1926, criou um recurso destinado à uniformização da jurisprudência, com um regime análogo ao recurso para o tribunal pleno, que viria a ser consagrado nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1961.

Integrados no mesmo Capítulo, encontram-se três espécies deste recurso, cada uma com as suas especificidades: recurso de fixação de jurisprudência próprio sensu (arts. 437.º a 445.º), recurso de decisões proferidas contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art. 446.º) e recursos interpostos no interesse da unidade do direito (art. 447.º).

Iremos, por razões óbvias, apenas nos focar no primeiro.

Ora, de acordo com a doutrina4 e jurisprudência5 dominantes, constituem requisitos formais de admissibilidade deste recurso para o Supremo Tribunal de Justiça:

a. a legitimidade e interesse em agir do recorrente;

b. a interposição do mesmo no prazo de 30 dias, a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar;

c. a invocação, no recurso, do acórdão fundamento, com junção de cópia deste ou do lugar da sua publicação;

d. o trânsito em julgado dos dois acórdãos; e

e. justificação da oposição que origina o conflito de jurisprudência.

Por seu turno, são requisitos substanciais de admissibilidade:

a. existência de julgamentos da mesma questão de direito entre dois acórdãos do STJ, dois acórdãos da Relação ou entre um acórdão do STJ e outro da Relação – o acórdão recorrido e o acórdão fundamento;

b. os acórdãos em causa assentem em soluções opostas, de forma expressa e a partir de situações de facto idênticas; e

c. serem ambos proferidos no domínio da mesma legislação, ou seja, quando durante o intervalo da sua prolação não tiver ocorrido alteração legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão controvertida.

Saliente-se ainda que a jurisprudência do Supremo vai no sentido de que a expressão soluções opostas diz respeito às decisões e não aos fundamentos.

2. Mas, voltando, de novo, ao caso sub judice, constata-se que o recorrente tem legitimidade e interesse em agir, o recurso é tempestivo, atendendo às datas do trânsito em julgado do acórdão recorrido e da interposição do recurso em análise, foi invocado um acórdão fundamento, também transitado em julgado, com a indicação da sua publicação e, por fim, foi justificada a oposição que, na perspetiva do recorrente, origina o conflito de jurisprudência.

Observados que estão, assim, os requisitos formais, passamos, de seguida, aos pressupostos materiais.

No caso concreto, atente-se no acórdão recorrido, na parte que agora releva:

(…)

Sustenta ainda o recorrente que “de toda a forma o Acórdão em crise, ao condenar o arguido em 23 crimes de Abuso de Confiança, fê-lo sem o necessário preenchimento dos elementos do tipo legal objectivo de tal crime pois, os factos trazidos pela Pronúncia e que deram lugar aos factos provados de 1º a 721º poderão, quanto muito, preencher o tipo legal do crime de Infidelidade p. p. artigo 224º do Código Penal. -vide tese de Mestrado da Dra. Maria Rita Oliveira Ramos que perfilhamos”.

Manifestamente não tem razão.

O abuso de confiança é um crime contra a propriedade: apropriação ilegítima de cosia móvel alheia que o agente detém ou possui em nome alheio.

No crime de abuso de confiança, o agente não subtrai a coisa da titularidade ou posse de outrem, sem ou contra sua vontade; ela encontra-se já na mão do agente, a quem foi entregue, mas a título não translativo. Isto é, o agente não se arrisca, no caso do abuso de confiança, numa actividade mais ou menos complicada, tendente a apoderar-se da coisa, pois que ela vem parar-lhe às mãos, por meio de uma entrega voluntária, do seu proprietário ou de terceiro, entrega que, todavia, como é do seu conhecimento, é precária e não translativa.

O dolo deste crime consiste em que o agente saiba que deve restituir, apresentar ou aplicar a certo fim a coisa que detém em seu poder e que queira apropriar-se dela património - Carlos Alegre, Crimes contra o património, Revista do Ministério Público, Cadernos, 3, pg.s 77 e 78.

Vejamos agora se o crime foi cometido pelo arguido, apreciando um a um os respectivos elementos do tipo:

1º elemento - o recebimento de dinheiro ou outra coisa móvel, por título que produza para aquele que recebe a obrigação de restituir a mesma coisa ou um valor equivalente, ou aplicá-la a um uso, trabalho ou emprego determinado;

2º elemento - o descaminho (desvio ilícito do caminho devido, do fim prescrito) ou a dissipação (gasto ilícito daquilo que deve conservar-se) por parte de quem recebe;

3º elemento - o prejuízo ou a possibilidade de prejuízo para o proprietário, possuidor ou detentor da coisa entregue;

4º elemento - o dolo. O crime de abuso de confiança é um crime essencialmente doloso, e para que exista o dolo é preciso: a) que o agente saiba que deve restituir, apresentar ou aplicar a certo fim a coisa que tem em seu poder: b) que queira descaminhá-la ou dissipá-la; c) que preveja que deste descaminho ou dissipação resultará um prejuízo ou perigo dele para o proprietário, possuidor ou detentor da coisa. - cfr. a este propósito o Acórdão do STJ de 25.03.1981, BMJ, 305º - 180.

O crime de infidelidade é distinto, não há apropriação: pune-se aquele que, lhe tendo sido confiado o encargo de administrar (dispor, administrar em sentido restrito ou fiscalizar) interesses patrimoniais alheios, no entanto, consciente e dolosamente causa graves prejuízos a estes interesses - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 1999, p. 362, anotação Américo Taipa de Carvalho.

Ora, ficou provado o seguinte:

1103.º A partir de 2001, o arguido decidiu utilizar as disponibilidades financeiras das farmácias para obter, em seu proveito, veículos de gama alta, obras de arte, barcos e outros bens, sempre com contratos e cheques assinados pelos directores técnicos, integrando-os no seu património e usando-os exclusivamente em benefício próprio.

1104.º Decidiu, também, fazer suas quantias pertencentes às sociedades - quer através de movimentações a débito nas contas destas, incluindo de montantes nelas creditados por via de empréstimos bancários às mesmas, quer através da apropriação de numerário entrado em caixa nos estabelecimentos -, e com aquelas pagar as obrigações mensais decorrentes dos vários créditos à habitação - quer para compra, quer para construção -, dos diversos prédios de que era proprietário - ainda que registados em nome de terceiros -, nomeadamente os destinados à habitação sitos em ..., ... e ..., assim como valores devidos pela compra de outras farmácias.

1105.º Em concretização de tal propósito, quanto a valores em numerário que constituíam o apuro de caixa de farmácias, o arguido dava ordens às trabalhadoras da A..... para não os depositarem nas contas das sociedades, mas sim na sua conta pessoal para pagamento das prestações referentes aos imóveis acima indicados, de habitação permanente e segundas habitações.

Dúvidas inexistem assim que houve crimes de abuso de confiança, pois, como vimos, encontram-se preenchidos os respectivos elementos do tipo, e não de infidelidade.

Houve apropriação.

Acresce que, mantendo-se a condenação pelos crimes de abuso de confiança agravado, sem a alteração pretendida pelo recorrente para o crime de infidelidade, não há que ponderar, por prejudicada, a questão da não existência de queixa, por estarmos perante crimes públicos. Somente o crime de abuso de confiança simples - 205.º, n.º 1. - tem natureza semi-pública.

(…)

Por sua vez, no acórdão fundamento:

(…)

Tem, assim, de decidir se os factos provados permitem, como pretendem os recorrentes, a integração de todos os elementos do crime por que o arguido vem acusado.

O arguido vem acusado de um crime de abuso de confiança, p. e p. no artigo 205°, n°s. 1 e 4, alínea b) do Código Penal.

Elemento central da tipicidade do crime de abuso de confiança é a apropriação de «coisa móvel» que tenha sido entregue ao agente por título não translativo da propriedade; o núcleo da acção típica situa-se, assim, na apropriação, ut domini, afectando a confiança com base na qual a «coisa móvel» havia sido entregue; a apropriação é a actuação que revela, externa e materialmente, a inversão do título de posse que constitui o momento essencialmente relevante para a integração dos elementos e para a consumação do crime, sendo a intenção que exista anteriormente à inversão do título de posse tipicamente irrelevante.

O crime de abuso de confiança pressupõe, pois, a quebra da «relação de fidúcia» que intercede entre o agente e o proprietário da coisa e entre o agente e a própria coisa - quer seja uma relação anterior de confiança (artigo 205°, n° 1), quer seja uma relação especial e positivamente determinada na lei («depósito imposto por lei» - n° 5).

O objecto da acção (da apropriação) no crime de abuso de confiança é uma «coisa móvel» alheia.

A noção de coisa móvel deve recolher-se no domínio da realidade material e jurídica (artigos 201° e 205° do Código Civil), neste sentido, créditos e outros direitos não são coisas móveis como elementos típicos do crime; porque não são coisas em sentido material ou jurídico, não podem constituir objecto do crime. Será o caso, por exemplo, do mútuo ou do depósito irregular que tenha por objecto coisas fungíveis, ou o depósito bancário, e que transfere a propriedade da coisa para o depositário (quoad effectum).

Elemento, pois, da essencialidade típica é a apropriação; o agente tem que fazer sua a coisa, passando a actuar uti domini, como se fosse o verdadeiro proprietário. A apropriação tem que ser "para si"; mesmo que o agente dê a coisa gratuitamente a outra pessoa, tem que haver um momento, ao menos lógico, em que o agente se apropria da coisa (cfi\, v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, de 24 de Março de 2004, proa 2142/03, e de 10 de Março e 2004, proc. 216/04).

Por isso, a prova da apropriação deve ser de tal modo que revele exteriormente a intenção de actuar uti domini, supondo, em caso de coisa de máxima fungibilidade como é o dinheiro e em situações de preexistência de relação contratualmente formatada, a exteriorização de comportamentos que se afastem manifestamente do domínio ainda próximo das disfunções de cumprimento e mora, e revelem, claramente, que a confundibilidade patrimonial e a utilização de quantias monetárias ocorram com a plena e determinada intenção de não restituir.

Mas, sendo assim, a matéria de facto provada não permite considerar, logo pelo plano da tipicidade, a verificação de todos os elementos necessários à integração do crime, especificamente a apropriação traduzida na inversão do título de posse.

Com efeito, nos pontos 7 e 8 da matéria de facto consigna-se que o arguido não procedeu ao depósito da quantia de 10.186.404 escudos (que recebeu em numerário) a que contratualmente estava obrigado, mantendo em seu poder tal quantia.

E apesar de pressionado (ponto 10), o arguido apenas depositou na conta da assistente cheques titulando a referida quantia, mas que sabia irregularmente sacados (pontos 11,12,13,14 e 15 da matéria de facto).

Também se provou que o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com o propósito, concretizado, de não entregar à assistente a referida quantia, que fez sua, bem sabendo que a mesma lhe não pertencia e que estava abrigado a entregá-la (ponto 16).

Provou-se ainda que a assistente foi sendo sucessivamente indemnizada (ponto 30), encontrando-se em dívida apenas 15.000 €.

A compatibilidade entre todos estes factos não é, todavia, clara, com a certeza que tem se ser encontrada na prova e determinação de um elemento central da tipicidade.

A natureza fragmentária do direito penal, que significa que o direito penal apenas deve intervir como ultima ratio na defesa de valores e bens essenciais, tem de servir como critério auxiliar na delimitação e qualificação diferencial de comportamentos que se possam acolher ainda no domínio de relações e prestações contratuais, isto é, quando uma situação conflitual, com aparência de contornos típicos, surja no âmbito, ou no ambiente, de relações contratuais entre os sujeitos implicados.

A matriz contratual (as questões ligadas ao cumprimento e não cumprimento, que aí têm o seu campo de regulação, com o exercício dos correspondentes direitos) deve ser um índice a ter em conta, pois, por princípio, de acordo com a natureza do direito penal, onde há outros mecanismos de regulação este não deve intervir, nem os tipos penais são estruturados para responder a tais situações: precisando, o crime de abuso de confiança não está, típica e teleologicamente, colimado à resolução de questões de incumprimento ou mora contratual.

Estes pressupostos essenciais estão presentes na argumentação do acórdão recorrido.

Com efeito, em caso de preexistência de relação contratual, em que possam estar em equação prestações de uma das partes, nomeadamente de coisa de fungibilidade máxima como é o dinheiro, a apropriação (e não apenas o não cumprimento, mesmo a mora extrema) exige a prova, através de actos e factos materiais integrantes, de que o acusado quis fazer suas as quantias que lhe foram entregues, exteriorizando o propósito de, esquecido o contrato, nunca mais as restituir.

Não basta, por isso, sem outros factos reveladores, a mera afirmação (a prova) de uma intenção.

No caso, a (exigível) comprovação, nos sobreditos termos, da efectividade da apropriação, é contrariada pela prova sobre as insistências da assistente para a entrega das quantias recebidas (que se compreendem no âmbito e no limite da interpelação ao cumprimento), e pela restituição, ao jeito de exoneração sucessiva, mas não completa, da obrigação de entrega, que o arguido tem vindo a satisfazer.

Nestes termos, como decidiu a Relação, não se pode considerar integrada a apropriação, como elemento central da tipicidade do crime p. no artigo 205° do Código Penal.

(…)

Ora, como pertinentemente observa o Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu esclarecido e bem fundamentado parecer, do confronto dos acórdãos recorrido e fundamento, não se afigura, na verdade, ocorrer qualquer oposição relevante sobre a mesma questão fundamental de direito.

No acórdão fundamento, o Supremo Tribunal de Justiça sancionou a decisão proferida pelo Tribunal da Relação que havia absolvido o arguido da prática de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1 e 4, alínea b), do Cód. Penal (e do correspondente pedido cível), por não ter resultado demonstrada a apropriação, como elemento central da tipicidade do crime p. no artigo 205° do Código Penal, já que não havia prova“(…) através de atos e factos materiais integrantes, de que o acusado quis fazer suas as quantias que lhe foram entregues, exteriorizando o propósito de, esquecido o contrato, nunca mais as restituir.”, razão pela qual julgou improcedentes os recursos interpostos pelo Ministério Público e pela assistente, confirmando a decisão impugnada.

Já no acórdão recorrido, quanto à questão objeto do recurso, que era a de saber se a matéria de facto dada como provada preenchia os elementos do tipo legal objetivo do crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º 1, do Cód. Penal, o Tribunal da Relação decidiu que a conduta do arguido preenchia os elementos objetivos e subjetivos de tal crime, uma vez que resultou provada a efetiva apropriação de avultadas quantias monetárias pertencentes às farmácias, confirmando, por isso, a decisão proferida em primeira instância.

Nesta conformidade, os dois acórdãos em confronto não assumem posições diversas em relação à mesma questão de direito.

As decisões em presença, perante dois quadros factuais distintos, chegaram a conclusões diferentes, não podendo, por conseguinte, falar-se em verdadeira e efetiva oposição de julgados, pois para que se verifique este requisito é necessária a identidade de factos, não se restringindo à mera oposição entre as soluções de direito.

À mesmidade da questão jurídica, a jurisprudência do STJ6 passou a acrescentar, desde há muito, a identidade da questão de facto, o que, in casu, não decorre.

Termos em que, ao contrário do defendido pelo recorrente, o recurso extraordinário em questão não tem condições para prosseguir.

III. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo arguido/condenado AA, por falta do requisito substancial da oposição de julgados (art. 441.º n.º 1, 1.ª parte, do C.P.P.).

Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

Lisboa, 21 de fevereiro de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Teresa de Almeida (Adjunta)

Ernesto Vaz Pereira (Adjunto)

____


1. Do qual é relator o Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, no Proc. n.º 04P2252, que se encontra publicado em www.dgsi.pt.

2. Vide Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, Verbo, 1994, pg. 353., e ac.do STJ de 16/3/2022, relator o Senhor Conselheiro Nuno Gonçalves, in www.dgsi.pt.

3. Curso de Processo Penal cit., pg. 355.

4. Por todos, José Damião da Cunha e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, Vol. II, 5.ª edição atualizada, Universidade Católica Portuguesa, anotação aos arts. 437.º e 438.º, e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª edição, Rei dos Livros, pg. 169 e ss.

5. Cfr., entre outos, os acórdãos do STJ de 11/1/2024, Proc. n.º 5875/10.2TDPRT-B.L1-A.S1, 8/11/2023, Proc. n.º 204/22.5YUSTR.L1-A.S1, de 28/9/2023, Proc. n.º 919/20.2PWPRT-A.P1-A.S1, de 16/3/2022, Proc. n.º 5784/18.7T9LSB.L1-A-A.S1, de 10/3/2022, Proc. n.º 218/20.0GCACB-A.C1.S1, 2/12/2021, Proc. n.º 344/19.8JABRG-C.S1, e de 2/12/2021, Proc. n.º 17648/08.8TDPRT-J.P1-A.S1, cujos relatores são, respetivamente, os Senhores Conselheiros Agostino Torres, Lopes da Mota, Orlando Gonçalves, Nuno Gonçalves, M. Carmo Silva Dias, Adelaide Magalhães Sequeira e Ana Barata Brito, todos disponíveis no indicado sítio.

6. Veja.se, v.g., o acórdão de 9/3/2022, cujo relator é o Senhor Conselheiro Nuno Gonçalves, no Proc. n.º 399/19.5Y9PRT.P1-A.S1.