Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1010/16.1T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: RIBEIRO CARDOSO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
INFRACÇÃO DISCIPLINAR
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / APELAÇÃO / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA / INTERPOSIÇÃO E EXPEDIÇÃO DO RECURSO.
DIREITO DO TRABALHO – CONTRATO DE TRABALHO / DIREITOS, DEVERES E GARANTIAS DAS PARTES / INCUMPRIMENTO DO CONTRATO / SUSPENSÃO DE CONTRATO DE TRABALHO POR NÃO PAGAMENTO PONTUAL DA RETRIBUIÇÃO / CESSAÇÃO DE CONTRATO DE TRABALHO / DESPEDIMENTO POR INICIATIVA DO EMPREGADOR / MODALIDADES DE DESPEDIMENTO / DESPEDIMENTO POR FACTO IMPUTÁVEL AO TRABALHADOR.
Doutrina:
-António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 17.ª Edição, p. 514, 519;
-Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, p. 422;
-Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2015, 3.ª Edição, p. 427 e 428;
-Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, p. 247;
-Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6.ª Edição, 2016, p. 804 e 807.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 608.º, N.º 2, 663.º, N.º 2, 674º, N.º 3 E 679.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 128.º, N.º 1, ALÍNEA C), 328.º E 351º, N.ºS 1, 2, ALÍNEAS A), D), E) E M), E 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 05-04-1989, IN BMJ, N.º 386º, P. 446;
-DE 05-01-2012, PROCESSO N.º 3937/04.4TTLSB.L1.S1;
-DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 1715/12.6TTPRT.P1.S1;
-DE 26-10-2017, PROCESSO N.º 196/12.9TTBRR.L2.S1.
Sumário :
I – A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça relativamente à decisão sobre a matéria de facto está limitada aos casos previstos no art. 674º, nº 3, do CPC.

II – Tendo a Relação alterado a decisão sobre a matéria de facto exclusivamente com base na reapreciação da prova testemunhal, porque se trata de um meio de prova sujeito ao princípio da livre apreciação, o Supremo Tribunal de Justiça carece de poderes para sindicar essa decisão.

III – Para que se verifique justa causa de despedimento, é necessário um comportamento culposo e ilícito do trabalhador e que desse comportamento, na medida em que tenha quebrado a relação de confiança, decorra como consequência necessária a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral.

IV – Constitui justa causa de despedimento na medida em quebrou o elo de confiança que tem que existir entre o empregador, empresa de contabilidade e a sua trabalhadora, a conduta desta que, na emissão de alguns dos recibos de salário da cliente deduziu, em duplicado, os valores do abono em espécie designado “acordo viatura”, que lançou na contabilidade dessa cliente um cheque inexistente, que se atrasou no encerramento da contabilidade de diversos clientes, que não lançou relativamente a outros clientes diversas faturas e documentos de despesa e que errou nos lançamentos contabilísticos dos salários dos funcionários, tendo essa conduta contribuído para a rescisão do contrato por um dos clientes e para o pagamento de impostos indevidos por aqueles clientes.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça ([1])

1 - RELATÓRIO

AA intentou a presente ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, apresentando o formulário a que aludem os artigos 98º-C e 98º-D do CPT, opondo-se ao despedimento que lhe foi promovido por BB, LDA pedindo que seja declarada a ilicitude ou irregularidade do mesmo com as consequências legais.

Realizada a audiência de partes, que se frustrou, a Ré contestou motivando o despedimento reafirmando os factos invocados na nota de culpa os quais, em seu entender, configuram a violação dos deveres laborais consagrados nas alíneas c), e) e h), do artigo 128º do CT, bem como dos mais elementares princípios e procedimentos exigíveis pela legis artis da função profissional em causa, por manifesta conduta omissiva da trabalhadora e colocam em causa, de forma irreversível, a confiança necessária para que a Ré possa mantê-la ao seu serviço, constituindo justa causa de despedimento nos termos das alíneas a), d) e) e m) do nº 2 do artigo 351º do CT.

Peticionou que, caso seja decretada a ilicitude do despedimento, seja excluída a reintegração da Autora a qual lhe causaria, de forma evidente, grave prejuízo e grave perturbação no seu funcionamento.

A Autora contestou, por exceção, invocando a invalidade do procedimento disciplinar por, em seu entender, se ter verificado a caducidade do direito de aplicar a sanção disciplinar de despedimento, que a ré utiliza conceitos vagos que não concretiza, impedindo-lhe o exercício do contraditório, não podendo, por isso, tal matéria ser considerada para efeitos de procedimento disciplinar, o que acarreta a sua invalidade nessa parte. Invocou ainda a prescrição dos factos que consubstanciam processamentos ocorridos há mais de 1 ano.

Por impugnação, invocou a inexistência de justa causa de despedimento dado que a respetiva decisão não só se baseia em factos que não foram praticados pela Autora, como não se encontram demonstrados e/ou não são suficientes para suportar tal decisão.

Deduziu reconvenção alegando ter prestado trabalho suplementar que não lhe foi pago e serem-lhe devidas as quantias correspondentes à formação profissional que não lhe foi ministrada. Em consequência do procedimento disciplinar e do despedimento sofreu uma situação de ansiedade e incerteza, o que acabou por lhe provocar uma depressão, devendo, por isso, ser indemnizada pelos danos não patrimoniais que sofreu.

Pediu:

A) Que seja declarada a invalidade do procedimento disciplinar por caducidade do direito de aplicar a sanção e por morosidade do procedimento, em violação do disposto no artigo 382º nº 1, 2ª parte do Código do Trabalho.

Caso assim não se entenda:

B) Que seja declarada a ilicitude por invalidade do procedimento disciplinar:

- Por falta de fundamentação, de facto e de direito, da decisão, em violação do disposto no artigo 382º nº 2, alínea a) última parte e alínea d) segunda parte do Código do Trabalho;

- Por inexistência de justa causa.

C) Em consequência, deve a Ré ser condenada:

- A pagar-lhe uma indemnização de antiguidade de 60 dias por ano e fração em virtude da exclusão da sua reintegração pedida pela Ré, no montante já calculado de € 33.280,00;

- A pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento (29/12/2015) até à data da sentença;

- A pagar-lhe uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de € 2.500,00, conforme alínea a) do artigo 389º do Código do Trabalho;

- A pagar-lhe, a título de trabalho suplementar prestado e não pago o montante de € 9.840,00;

- A pagar-lhe, a título de formação profissional não concedida o montante de € 1.050,00.

- A pagar-lhe os correspondentes juros legais sobre aquelas quantias.

A Ré respondeu pugnando pela validade do procedimento disciplinar, pela inadmissibilidade dos pedidos relativos a créditos por trabalho suplementar e formação profissional e, caso assim, não se entenda, pela sua improcedência, bem como pela improcedência do crédito peticionado a título de danos não patrimoniais.

Foi proferido despacho que relegou para a sentença o conhecimento da exceção da caducidade do direito de aplicar a sanção e admitiu o pedido reconvencional.

Realizado o julgamento foi proferida a sentença com o seguinte dispositivo:

«Face ao exposto julga-se a acção improcedente, declarando-se lícito o despedimento da Trabalhadora e, consequentemente, absolvendo-se a Entidade Empregadora dos pedidos contra esta formulados.

Valor da acção: € 46.670,00 (cfr.art.98º.-P n.º2 do CPT.

Custas pela Requerente (cfr. art. 527.º n.º 1 do CPC).

Notifique e registe.»

Inconformada, a A. arguiu a nulidade da sentença, que foi julgada não verificada e apelou, impugnando a decisão sobre a matéria de facto e peticionando a revogação da sentença, tendo sido proferida a seguinte deliberação:

«Em face do exposto, acorda-se em:

1- julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto nos termos acima mencionados.

2- julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, altera-se a sentença recorrida e, julgando-se a acção parcialmente procedente por provada, decide-‑se:

a)- declarar a ilicitude do despedimento promovido pela Ré à Autora, por destituído de justa causa e condena-se a Ré a pagar à Autora:

- as retribuições que esta deixou de auferir desde a data do despedimento até à data do trânsito em julgado da decisão que declare a ilicitude do despedimento, valor a apurar em incidente de liquidação, a que acrescem juros de mora à taxa legal, devidos desde a data do vencimento das prestações e até integral pagamento;

- uma indemnização em substituição da reintegração cujo montante é determinado com base em 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, devida até ao trânsito em julgado da decisão judicial, valor a apurar em incidente de liquidação, a que acrescem juros de mora à taxa legal devidos desde o trânsito em julgado da decisão e até integral pagamento;

b) condenar a Ré a pagar à Autora a retribuição relativa a 98 horas de formação profissional não concedida, cujo valor deverá ser apurado em incidente de liquidação, a que acrescem juros de mora à taxa legal devidos desde a data da citação e até integral pagamento.

d) - manter, no mais, a sentença recorrida.

Custas da acção e do recurso pelas partes, na proporção do respectivo decaimento.»

Desta deliberação recorre a Ré de revista para este Supremo Tribunal, impetrando a revogação do acórdão recorrido e a repristinação da sentença da 1ª instância.

A A. recorrida contra-alegou pugnando pela manutenção do julgado.

Cumprido o disposto no art. 87º, nº 3 do CPT, o Exmº Procurador-Geral-‑Adjunto emitiu douto parecer no sentido da revogação do acórdão recorrido e da repristinação da sentença.

Notificadas as partes, a A. respondeu pugnando pela confirmação do acórdão recorrido.

Formulou a recorrente as seguintes conclusões, as quais, como se sabe, delimitam o objeto do recurso ([2]) e, consequentemente, o âmbito do conhecimento deste tribunal:

”1. A Decisão recorrida procedeu a alterações quanto à matéria de facto provada em sede de audiência de julgamento, sendo que, no que se refere ao Facto Provado I - que diz respeito ao cheque nº ..., fundamentou a modificação na existência de dúvidas sobre a génese deste documento; Se teria sido "inventado" pela Autora, ou fornecido o seu número pela cliente;

2. Contudo, sem nenhuma relação com essa dúvida, o TRL eliminou, sem qualquer fundamento, do texto inicial fixado pela 1ª instância, a expressão "exactamente correspondente ao valor do último movimento da referida nota de lançamento", o que, salvo melhor opinião, lhe estaria vedado efectuar;

3. A alteração da matéria de facto, no que se reporta à inicial comprovada "invenção" do cheque, por parte da Autora fundamenta-se, exclusivamente, numa hipotética possibilidade de transmissão de um número de cheque, por parte dos serviços da FF, desvalorizando a explicação inequívoca e segura da testemunha CC, que a tal respeito manifestou;

4. Acresce que, como resulta do facto provado H, o cheque com o nº ... não existe, nem nunca existiu e, nesse contexto e apelando às regras da experiência comum, segundo o critério de um bonus pater famili[as], jamais a funcionária da FF poderia ter transmitido um número de um cheque inexistente, importando ainda questionar que interesse teria em semelhante comportamento;

5. No contexto da conjugação da vastidão de erros e omissões comprovadamente praticados pela Autora - mesmo outros em relação à FF - dúvidas não restam que o cheque só poderia ter [sido] inventado por esta, para justificar um movimento contabilístico para o qual não tinha suporte documental, facto que não deveria ter "escapado" à ponderação crítica da prova, efectuada pelo TRL;

6. Ainda em relação a este ponto da matéria de facto, a redacção final conclui que à Autora cabia fazer a conferência da soma dos cheques, o que podia ter feito, quando deveria consignar “o que devia ter feito” por, além do mais, ser esse o dever que decorre, de forma evidente, da fundamentação apresentada;

7. Neste contexto, e porque se entende que tal cabe nos poderes deste tribunal, ao abrigo do disposto no nº 3 (parte final), do artº 674º, do C.P.C., deve ser reapreciada a alteração da matéria de facto efectuada pelo TRL, com a reposição da versão do ponto I, da matéria de facto provada em julgamento, tal como considerada na sentença;

8. Improcedendo a anterior conclusão, o que se co[nce]de  por mera cautela, deverá a nova redacção dada ao ponto em questão ser alterada, passar a constar que “O cheque em causa, exactamente correspondente ao valor do último movimento da referida nota de lançamento, estaria incluído num pagamento ao fornecedor DD, com recurso a cheques pré-datados, no qual a soma dos cheques destinados ao referido pagamento - cujas cópias foram enviadas, pela cliente, com a nota de lançamento - não perfazia o total a pagar, sendo que à Autora cabia proceder à sua conferência, o que devia ter feito [“].

9. Mesmo no âmbito da matéria de facto fixada pelo TRL e considerando a fundamentação de direito que sustenta o douto acórdão, a decisão lógica do recurso não poderia ser a de julgar o despedimento ilícito, mas antes a confirmação da decisão proferida em 1ª instância;

10. De facto, importa ter presente, desde logo, para ponderação da possibilidade da subsistência da relação de trabalho, a vastidão de erros e omissões praticados pela Autora, ao longo de cerca de dez meses;

11. Erros e omissões que, tal como considerado no acórdão recorrido, configuram violação grave e culposa dos deveres de realizar o trabalho com zelo e diligência, que tiveram consequências a nível patrimonial para os clientes, sendo graves em si mesmo e nas suas consequências, contribuindo, ainda que parcialmente, para a perda do cliente FF;

12. Como reconhecido no acórdão, ...as funções exercidas pela Autora têm de o ser dentro de prazos e com rigor na medida em que o não cumprimento das obrigações fiscais por parte dos contribuintes acarreta multas e coimas, por vezes, de elevado montante...;

13. A fundamentação da Decisão recorrida invoca como factores determinantes da Decisão o desconhecimento da intensidade da culpa da Autora, a ausência de prova quanto a eventual conduta com intuitos fraudulentos ou direcionada a prejudicar a R., bem como a ocorrência dos erros e omissões num período de tempo limitado;

14. Salvo melhor opinião, o comportamento culposo que incorpora o conceito de justa causa abrange, também, como será o caso dos autos, os erros e omissões resultantes de conduta negligente, razão pela qual falece a douta argumentação a este propósito apresentada;

15. Acresce que a duração no tempo, dos erros e omissões trazidos ao processo disciplinar, se encontram condicionados pela prescrição prevista no nº 1, do artº 329º, do CT, facto que o TRL não poderia desconhecer e desconsidera, quando invoca a ausência de notícia nos autos que já tinham repetido noutras ocasiões (os erros e omissões);

16. Sabendo-se que, no caso concreto, os erros e omissões ocorreram nos 10 meses antecedentes à instauração do procedimento disciplinar, só se pode concluir pela total ausência de fundamento de tal argumentação;

17. A Decisão recorrida viola, por outro lado, o disposto no nº 3, do artº 351º, porquanto na ponderação da questão da possibilidade da subsistência da relação de trabalho deixou [de] considerar, desde logo, a natureza dos serviços prestados pela R. aos seus clientes e, bem assim, as consequências que advêm dos erros e omissões praticados, cuja gravidade e consequências reconheceu, mas dos quais não retirou as devidas ilações;

18. Deixou de considerar o quadro e natureza das funções efectivamente desempenhadas pela Autora, como sejam a sua autonomia nas tarefas da sua responsabilidade e a dependência, face a esse desempenho, por parte da sua coordenadora, na elaboração das declarações fiscais, tal como resulta da vasta matéria de facto provada;

19. Em suma, a Decisão recorrida ignorou, desde logo, aspectos fundamentais para ponderação da exigência da manutenção da relação de trabalho, como seja o quadro de gestão da empresa;

 20. Acresce que, se afigura pacificamente notório, que certas actividades, pela natureza dos assuntos que tratam, dos serviços que prestam e das competências exigíveis aos seus colaboradores, têm como pilar fundamental a manutenção de um elevado índice recíproco de confiança, aqui se incluindo, entre outras, a actividade bancária e a prestação de serviços de contabilidade;

21. Atenta a matéria de facto provada, a extensão e consequência dos erros e omissões praticados pela Autora, por contraposição à das funções que lhe competiriam, fácil será concluir pela inexistência de uma réstea futura de confiança que seja, por parte da entidade patronal, para a manutenção da relação de trabalho;

22. Tudo isto segundo critérios de um bonus pater famili[as] ou de um empregador médio, que colocado na posição da R., fosse chamado a responder se, perante o quadro factual apresentado, era exigível a esta que mantivesse a relação de trabalho com a Autora;

23. Num quadro complementar, e mesmo despiciendo em relação à já alegada e fundamentada inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho, por parte da R., sempre se dirá que carece de fundamento afirmar-se que não ficou demonstrada a desobediência, por parte da Autora, a ordens superiores ou que os seus erros e omissões não representaram reduções anormais de produtividade;

24. No entender [d]a R., a organização e desenvolvimento do tipo de actividade que prossegue pressupõem a existência [de] um conjunto de instruções, regras e determinações internas, decorrentes da obrigatoriedade de cumprimento de prazos de natureza fiscal, que se afiguram constituir facto notório e que, além do mais, foi por referência a essas regras, que se veio a provar existirem atrasos no fecho das contabilidades de vários clientes, o que só podia ter acontecido, por existire[m] prazos/regras previamente definidos;

25. Incumprindo os prazos e violando as regras, a Autora desobedeceu a ordens superiores, por muito que se diga o contrário;

26. De igual modo, os atrasos muito significativos na realização do trabalho, que obrigaram a alocar outra funcionária para ajudar na recuperação dos mesmos, configura clamorosa redução de produtividade, sendo incompatível, até com o critério mais complacente de análise, afirmar-se o contrário;

27. Neste contexto, perante o quadro factual fixado, ou eventualmente alterado nos termos requeridos, a questão fulcral a reapreciar e responder por este tribunal é:

 Nas circunstâncias apuradas, era exigível à R. manter a relação de trabalho com a Autora ??? Obviamente que não, na pura convicção da R.

28. Decidindo como o fez, o TRL efectuou errada valoração da prova, das demais circunstâncias e factores determinados por lei, designadamente dos já referidos nºs 1 e 3, do artº 351º, do CT, produzindo decisão ilegal, que importa revogar, repristinando a Decisão da sentença da 1ª instância.”

A A. recorrida formulou nas contra-alegações as seguintes conclusões:

“A) Pretende a Recorrente com o presente recurso de Revista a alteração à matéria de facto constante do Facto Provado I (referente a uma situação que envolve um Cheque) por forma a manter-se a redacção inicialmente proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

B) De acordo com o disposto no artigo 674, n.º 3 do CPC, aplicável ex vi artigo 1.º do CPT: "O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova".

C) A Recorrente não invoca qualquer norma, disposição ou lei que tenha alegadamente sido transgredida pelo que não poderá o presente recurso de revista, salvo melhor entendimento, versar sobre a apreciação das provas, não [o] podendo presente recurso de revista ser admitido para os referidos efeitos.

D) Quanto à fundamentação do Recurso alega a Recorrente que o TRL fez errada valoração da prova porquanto entende que o comportamento da Autora se integra nas alíneas a) d) e) e m) do nº 2 do artigo 351º do Código do Trabalho, consubstanciando justa causa de despedimento.

E) De acordo com a matéria dada como provada são imputáveis à Recorrida erros e omissões, nomeadamente atrasos na execução do trabalho na contabilidade de alguns clientes os quais consubstanciam a violação de deveres de zelo e diligência na execução do seu trabalho;

F) Considerando a especificidade da actividade prosseguida pela Recorrente, que, como é consabido, se caracteriza pelo permanente e elevado volume de trabalho e documentação contabilística, conforme indiciam os factos provados nomeadamente em RR, TT, e YY da matéria de facto provada, os referidos factos provados não se caracterizam pela "vastidão" nem enfermam da gravidade que a Recorrente lhes pretende conferir.

G) A Recorrente invocou a justa causa do despedimento da A. imputando a esta a prática de factos culposos que integram a previsão das alíneas a) Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores, d) Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto), e) Lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa e m) Reduções anormais de produtividade do nº 2 do artigo 351º do Código do Trabalho, o que segundo a Recorrente tornou imediata e impossível a subsistência da relação de trabalho.

H) Corroborando na íntegra o douto Acórdão do TRL, entendemos, em face da matéria de facto provada que é de excluir que o comportamento da A. consubstancie uma desobediência a ordens da sua empregadora ou que desta tenham resultado reduções anormais de produtividade para a R.

I) Quanto à imputada lesão de interesses patrimoniais sérios da R., ficou provado que a rescisão da prestação de serviços do cliente FF não pode ser imputado à A. pois para aquela contribuíram também outros factos (como o do IVA de 2013 entre outros) não imputáveis à A., nem em sede de procedimento disciplinar.

J) Dos factos provados não resulta demonstrado que o comportamento da A., violadora dos deveres de zelo e diligência, foi suficiente para criar na R. qualquer dúvida sobre a idoneidade da A., necessária para que se pudesse pôr em causa a subsistência da relação laboral existente.

K) Pelo que se conclui que o comportamento da A. não consubstancia comportamento culposo que pela sua gravidade e consequências torna imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

L) Da matéria de facto provada não resulta a prática pela A. de factos culposos que integram a previsão das alíneas a) d) e) e m) por forma a concluir-se pela irremediável quebra da confiança necessária à continuação da relação laboral, sendo certo que a R. poderia sempre ter recorrido a outras sanções conservatórias que seriam bastantes e proporcionais para que a A. corrigisse o seu comportamento deverá ser mantida a douta decisão proferida pelo Acórdão do TRL sendo o despedimento da Autora considerado ilícito com todas as consequências daí decorrentes para a R.           

M) Relevando o facto de a A. prestar funções para a R. desde 1999, ou seja, durante 16 anos, (K, GG) sem que durante todo esse período de tempo tenha sido objeto de qualquer reparo ou processo disciplinar.”

2 – ENQUADRAMENTO JURÍDICO

Os presentes autos respeitam a ação especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento intentada em 15.01.2016.

O acórdão recorrido foi proferido em 11.10.2017.

Assim sendo, são aplicáveis:

- O Código de Processo Civil (CPC) na versão conferida pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho;

- O Código de Processo do Trabalho (CPT), na versão operada pelo DL n.º 295/2009, de 13 de outubro, entrada em vigor em 1 de janeiro de 2010.

3 - ÂMBITO DO RECURSO – DELIMITAÇÃO

Face às conclusões formuladas, as questões submetidas à nossa apreciação consistem em saber:

1 – Se estava vedado ao Tribunal da Relação alterar a redação do facto provado I);

2 - Se os factos provados praticados pela A. constituem justa causa para o despedimento.

FUNDAMENTAÇÃO

4.1 - OS FACTOS

Foram os seguintes os factos julgados provados pelas instâncias:

“Por acordo:

A.A ré tem como objecto social a execução e planificação contabilística e assistência fiscal dos seus clientes.

B. A Ré recolhe a documentação contabilística dos seus clientes, faz o tratamento, classificação e registo da mesma, procede ao preenchimento das respectivas declarações fiscais e, nalguns casos, procede mesmo ao pagamento dos impostos, mediante prévio pedido dos clientes.

C. Na Ré existem 3 coordenadoras, que têm sob a sua orientação entre 2 a 3 funcionárias cada.

D. A Autora era coordenada pela Drª EE, que é Técnica Oficial de Contas.

E. A Autora foi notificada da Nota de culpa, em 24.09.2015.

F. A autora apresentou Resposta à Nota de Culpa, em 08.10.2015.

G. Na sequência do apuramento de novos factos, a Ré deduziu aditamento à Nota de Culpa com documentos, que notificou à Autora através carta registada com aviso de recepção (registo RD …PT), datada de 29.10.2015.

H. Em 19.11.2015, a Autora, na companhia da sua ilustre mandatária, consultou o processo disciplinar.

I. A Autora apresentou Resposta ao Aditamento à Nota de Culpa, em 23.11.2015.

J. A Ré proferiu Decisão, que notificou à Autora, através de CTT Expresso (EM…PT), em 29.12.2015.

K. A Autora foi admitida na BB, em 18.10.1999 onde detinha, à data da decisão de despedimento, a categoria profissional de Assistente Administrativa II.

L. No âmbito das suas funções, a Autora era responsável pela elaboração da contabilidade de vários dos clientes da Ré competindo-lhe designadamente:

a) a organização da documentação, a classificação e lançamento da mesma no programa SAGE;

b) o apuramento dos movimentos contabilísticos (balancetes) mensais e trimestrais que servem de base à elaboração das declarações relativas ao IRC, Mod. 10 e IES;

c) preenchimento das declarações de IRS dos gerentes e outras pessoas singulares;

d) fazer o processamento dos salários dos trabalhadores das entidades sob a sua responsabilidade;

e) Comunicar as entradas e saídas de trabalhadores junto da segurança social e do Fundo de Compensação do Trabalho.

M. Era com base no trabalho e na informação transmitidos pela Autora, conforme descrição que antecede, que a sua coordenadora procedia ao preenchimento das declarações de IRC, Mod. 10 e IES;

N. No dia 24/09/2015, a Autora foi notificada da nota de culpa com intenção de promover o seu despedimento.

O. No dia 8/10/2015, a Autora apresentou Resposta à Nota de Culpa, não tendo requerido diligências probatórias.

P. No dia 2/11/2015, decorridos 25 dias, a Autora foi notificada de um Aditamento à Nota de Culpa.

Q. E no dia 9/11/2015, 32 dias após a resposta à nota de culpa, a Autora foi notificada dos documentos de suporte ao aditamento à Nota de Culpa e para os quais esta remetia.

R. No dia 19/11/2015, a Autora consultou o processo disciplinar e a documentação.

S. No dia 29/12/2015, isto é, 36 dias sobre a Resposta à Nota de culpa a Autora recebeu, por correio expresso, a decisão de despedimento.

T. (eliminado).

Da prova produzida em audiência de julgamento.

A. Compete às coordenadoras a elaboração e envio das declarações relativas a IRC Mod.10 e IES, de cada um dos clientes que lhe estão distribuídos e às suas coordenadas.

B. Na sequência de uma reclamação pela cliente FF, Lda, a Ré determinou a instauração de procedimento disciplinar à Autora, precedida de inquérito prévio.

C. Na sequência do qual, a Autora determinou a inquirição de 3 testemunhas.

D. Procedeu-se à inquirição das testemunhas, em 10 de Dezembro de 2015.

E. Em Julho de 2015, a BB recebeu uma reclamação da cliente FF, Lda – cuja contabilidade era da responsabilidade da Autora – relacionada com algumas ocorrências, que lhe teriam provocado prejuízos, devido a omissões da primeira.

F. (eliminado pela Relação).

G. Na emissão de alguns dos recibos de salário de 2015, relativos aos gerentes da FF, CC e GG, a Autora deduziu, em duplicado, os valores do abono em espécie designado “acordo viatura”, com prejuízo para os referidos gerentes, porquanto, em resultado dessa dedução indevida, receberam um valor líquido inferior ao que lhes era devido (alterado pela Relação).

H. A Autora lançou na contabilidade da FF, supostamente pendente de apresentação ao banco, um cheque com o nº ..., do B..., no valor de € 114,80 quando, por consulta aos canhotos dos cheques, na posse da arguida, se percebe que tal cheque não existe, nem nunca existiu.

I. O cheque em causa estaria incluído num pagamento ao fornecedor DD, com recurso a cheques pré-datados, no qual a soma dos cheques destinados ao referido pagamento – cujas cópias foram enviadas, pela cliente, com a nota de lançamento - não perfazia o total a pagar, sendo que à Autora cabia proceder à sua conferência, o que podia ter feito (alterado pela Relação).

J. (eliminado pela Relação).

K. (eliminado pela Relação).

L. (eliminado pela Relação).

M. Com excepção dos factos H) e I), os factos descritos supra e relativos à FF contribuíram, entre outros, para a rescisão do contrato de prestação de serviços que este cliente detinha com a BB (alterado pela Relação).

N. Relativamente ao universo dos restantes clientes, cuja contabilidade era da responsabilidade da Autora, apurou-se que, no dia 03.08.2015, deveria esta ter prontas (contabilizado, conferido e conciliado) as contabilidades referentes a Maio/2015 de todos os clientes mas, na realidade, tal apenas se verificava em relação a 4 clientes (alterado pela Relação).

O. Por referência à data de 23.09.2015, encontravam-se por encerrar as contabilidades de 14 clientes, reportadas ao mês de Junho de 2015, que já deveriam estar efectuadas (contabilizado, conferido e conciliado), facto que obrigou a alocar outra funcionária para ajudar a Autora a recuperar os atrasos no trabalho.

P. A Autora não lançou, na contabilidade do HH, Lda, reportado ao ano de 2014, 8 documentos designados “Relatórios de Despesas”, cujo valor total ascende a € 4.452,04 e outros 24 documentos de despesas correntes e facturas de fornecedores no total-devidamente identificados em pasta própria-cujo montante ascende a € 645,43, o que implicou um acréscimo de resultados da cliente, no ano de 2014, em € 5.097,47, com a consequente incidência fiscal e aumento do IRC a pagar, que não seria devido.

Q. A Autora errou nos lançamentos contabilísticos dos salários dos funcionários do cliente HH, Lda, de Outubro a Dezembro de 2014, tanto na vertente dos abonos, como dos descontos, facto que implicou a contabilização errónea dos mesmos no valor de € 15.000,00 com as consequentes implicações em sede de IRC, por ter determinado o pagamento de um valor incorrecto respeitante ao imposto em causa (alterado pela Relação).

R. A omissão da Autora determinou a errada contabilização dos demais saldos contabilísticos associados ao processamento laboral, nomeadamente, as contas de pagamentos, as contas de controlo dos impostos sobre rendimentos do trabalho, e ainda as contas de controlo de pagamentos à Segurança Social, Caixa Geral de Aposentações, e ADSE.

S. A Autora efectuou, também, a incorrecta contabilização dos salários do cliente HH, Lda, de Janeiro a Março de 2015, tanto na vertente dos abonos como dos descontos (alterado pela Relação).

T. (eliminado pela Relação).

U. A Autora não efectuava a reconciliação bancária do cliente em causa, da conta à ordem do B…, desde Outubro/2014, verificando-se que os últimos extractos bancários para conferência estavam disponíveis para o efeito, desde o dia 09/01/2015, data em que esta os recebeu, por e-mail, enviados pelo cliente. Também não foi efectuada a reconciliação da conta de empréstimos bancários no B…, do mesmo cliente (alterado pela Relação).

V. A Autora não procedeu, como estava acordado, ao envio mensal para o cliente II, Lda dos elementos contabilísticos respectivos, facto que motivou uma reclamação por parte desta, recebida por e-mail no dia 15/10/2015.

W. Os últimos elementos contabilísticos enviados pela Autora ao cliente remontam aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2015, colocando assim a BB numa situação de incumprimento.

X. Relativamente ao cliente JJ, a Autora não contabilizou as facturas que constam dos documentos de fls.160 a 177 do PD (alterado pela Relação).

Y. A Ré processa salários e faz as respectivas declarações para a segurança social para alguns dos seus clientes.

Z. Quanto às funções das “coordenadoras” as respectivas funções não se restringem à elaboração e envio de declarações de IRC, Modelo 10 e IES de cada um dos clientes que lhe estão distribuídos e às suas coordenadas.

AA. Desde a reclamação do cliente e mesmo após notificação da nota de culpa a empresa manteve sempre a Autora ao seu serviço.

BB. A Autora apresentou baixa médica no dia 28/09/2015.

CC. No dia 10/11/2015, a Autora foi notificada da sua suspensão preventiva.

DD. No dia 23/11/2015, a Autora respondeu ao Aditamento à Nota de Culpa, recebido pela Ré no mesmo dia.

EE. Não foram requeridas quaisquer diligências probatórias pela Autora.

FF. Foi a Ré que oficiosamente promoveu tais diligências.

GG. A Autora foi admitida ao serviço da empresa em Outubro de 1999.

HH. A Autora prestava as funções inerentes à categoria profissional de Assistente Administrativa de II.

II. No âmbito das suas funções a Autora:

i) Organiza documentação;

ii) classifica-a e lança-a em computador;

iii) faz os apuramentos dos movimentos contabilísticos (balancetes) mensais e trimestrais e que depois servem de base aos modelos oficiais de IRC, modelo 10, IVA, IES, estes que são preenchidos pela sua Coordenadora EE.

iv) preenche declarações de IRS dos gerentes e outras pessoas singulares;

iv) faz processamento de salários de trabalhadores;

v) comunica as entradas e saídas de trabalhadores junto da Segurança Social e Fundo de Compensação do Trabalho;

JJ. Todo o trabalho da Autora relacionado com o apuramento contabilístico é reportado à sua Coordenadora EE para que esta, por sua vez, elabore e entregue os respectivos modelos oficiais de IRC, IES, modelo 10, IVA.

KK. É à Coordenadora da Autora que competia ainda emitir as guias de pagamento do IRC e IVA.

LL. Cabia à Autora proceder ao apuramento contabilístico, para que a sua Coordenadora EE, com base em tal apuramento, preenchesse o modelo 22 e emitisse guia para pagamento.

N.N. A sua Coordenadora é responsável por coordenar a equipa da qual a Autora faz parte, tendo conhecimento de todos os prazos legais e sendo sua obrigação promover a correta entrega dos modelos oficiais contabilísticos em cumprimento dos prazos legais.

OO. A Autora acrescenta que é verdade que foi admitida uma trabalhadora em finais de Maio de 2015 para apoiar a Ré, não estando exclusivamente alocada à Autora.

PP. A declaração de IVA não é feita pela Autora mas sim pela sua superior hierárquica EE.

QQ. (eliminado na sequência da decisão que considerou o facto prescrito).

RR. A partir de 2007 a Ré deu autorização para aceder aos programas/sistema da ré por via de acesso remoto.

SS. A situação causou à Autora danos efectivos na sua vida familiar e pessoal, tendo esta tido necessidade de obter cuidados médicos e, inclusivamente foram-lhe receitados medicamentos que originaram despesas médicas e medicamentosas.

TT. No âmbito da sua dedicação ao trabalho a Autora sempre trabalhou fora do seu horário de trabalho, tanto nas instalações da própria empresa, como levando trabalho para casa, o que aconteceu mesmo depois de ter nascido o seu filho, em 2007.

UU. Quando foi confrontada com a instauração do processo de inquérito interno e com o procedimento disciplinar a Autora ficou destabilizada, ansiosa e insegura sobre o seu futuro.

VV. Tendo a Autora apresentado baixa médica no dia 28.09.2015.

XX. A Autora nunca deu conhecimento à Ré dessa prática, nem reclamou qualquer pagamento a esse título, até à data.

YY. A Ré autorizou todas as suas funcionárias a acederem ao servidor, por via remota, apenas devido à natureza do trabalho desenvolvido e à necessidade ocasional de acesso, fora do local de trabalho, para resolver situações inesperadas, em caso de impossibilidade de comparência no mesmo.

ZZ. O mesmo acontecendo com a caixa de correio electrónico, que também pode ser acedida do exterior, pelas mesmas razões.

AAA. A Ré não tem registo de trabalho suplementar.

BBB. As funcionárias da Ré gozam, isso sim, desde sempre, de uma ampla liberdade de conformação da sua prestação de trabalho em termos de organização temporal, que lhes permite faltar ou chegar mais tarde, quando necessitam, recuperando esse tempo como melhor lhes aprouver.

CCC. Atenta a autonomia individual da prestação de cada trabalhador faz com a Ré se preocupe com o resultado e não com a forma como o mesmo é obtido.

DDD. Entre 2010 e 2015, a Ré assegurou às suas funcionárias e à Autora, a presença nas seguintes acções de formação, realizadas pela APECA:

a) 2010-Orçamento de Estado para 2010;

b) 2011-Orçamento de Estado para 2011;

c) 2011-IRS-Análise Preenchimento das Declarações Mod.3 e Anexos;

d) 2012-Orçamento de Estado para 2012;

e) 2013-Orçamento de Estado para 2013;

f) 2014-Orçamento de Estado para 2014;

g) 2015-Orçamento de Estado para 2015.

EEE. A Ré emitiu Ficheiros Informativos e subsequentes explicações, quer colectivas, quer individuais.”

4.2 - O DIREITO

Vejamos então, de entre as referidas questões que constituem o objeto do recurso, aquelas de que este tribunal pode conhecer, mas não sem que antes se esclareça que este tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos produzidos nas alegações e conclusões, mas apenas as questões suscitadas, bem como, nos termos dos arts. 608º, n.º 2, 663º n.º 2 e 679ºdo Código de Processo Civil, não tem que se pronunciar sobre as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras ([3]).

4.2.1 – Se estava vedado ao Tribunal da Relação alterar a redação do facto provado I).

Alegou a recorrente:

«No acórdão recorrido, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) alterou a matéria de facto fixada em 1ª instância. Concretamente, a propósito do Facto Provado I - que diz respeito ao cheque nº ... - considera-se que (pag.36) "Ora, o conjunto de prova suscita a dúvida se o cheque em causa foi "inventado" pela Autora para acabar o lançamento de um documento, ou se número do "cheque" foi-lhe transmitido pelo cliente".

Suscitou-se, assim, ao TRL, a questão da possibilidade/dúvida sobre uma eventual transmissão da cliente à Autora, do número do cheque em causa.

Mas, como consequência dessa dúvida, a alteração produzida no texto do facto provado I, vai muito para além dela.

De facto, como facilmente se constata, o TRL retirou da redacção dada pela 1ª Instância a expressão "exactamente correspondente ao valor do último movimento da referida nota de lançamento", sem qualquer correspondência com a argumentação ou fundamentação da alteração operada, circunstância que lhe está vedada.

Acresce que, o TRL desvalorizou o depoimento da testemunha CC, na parte em que este, de forma clara - e quanto a uma questão de organização e funcionamento interno da FF, da qual era e é sócio-gerente e, por consequência, sabia melhor que ninguém - afirmou "que a sua funcionária não deu qualquer informação à Autora sobre o dito cheque porque o método é claro e simples: cada factura vai com o chegue agrafado (sublinhado nosso), acrescentando que quem cometeu o erro foi a empresa de contabilidade e que não havia outra hipótese dada a maneira como eram feitas as coisas na FF."

Além do mais, a raciocínio expendido no douto acórdão, a este propósito, tem alguma dificuldade de acolhimento, mesmo recorrendo à mera percepção e diligência de um "bonus pater famili[as]", por confronto com a matéria de facto constante do Ponto H, dos factos provados, na sequência da prova produzida em audiência de julgamento, onde se consignou que o cheque nº ..., do B..., no valor de 114,80€, não existe, nem nunca existiu.

Se o cheque não existe nem nunca existiu, como se consegue configurar que uma funcionária da FF tenha transmitido o número de uma coisa inexistente???

Para concluir, o douto acórdão introduz uma subtileza de linguagem na redacção do ponto em causa, quanto à expressão "o que podia ter feito", inculcando a ideia de uma mera faculdade da visada, quando o que está em causa é a violação de um dever, razão pela qual, tal como decorre da própria argumentação vertida no acórdão, o que deveria ali constar era "o que devia ter feito".

Razão pela qual, face ao supra descrito e ao abrigo dos poderes que são conferidos a este tribunal, para sindicar a matéria de facto assente pelo TRL, entende a R. que deve ser reposta a versão dada pela 1ª Instância ao Ponto I, da matéria de facto fixada em resultado da prova produzida em audiência de julgamento ou, se assim se não entender - o que só se concede por mera cautela - deverá a nova versão ser intercalada com a expressão "exactamente correspondente ao valor do último movimento da referida nota de lançamento", passando a ler-se "O cheque em causa, exactamente correspondente ao valor do último movimento da referida nota de lançamento, estaria incluído num pagamento ao fornecedor DD, com recurso a cheques pré-datados, no qual a soma dos cheques destinados ao referido pagamento - cujas cópias foram enviadas, pela cliente, com a nota de lançamento - não perfazia o total a pagar; sendo que à Autora cabia proceder à sua conferência, o que devia ter feito.»

A A. na apelação que interpôs da sentença impugnação a decisão da 1ª instância relativamente ao facto provado I, requerendo que fosse julgado não provado, argumentando que «inexiste qualquer prova documental e testemunhal que permita concluir como provado o facto…».

A Relação não acolheu a pretensão da recorrente tendo, todavia, alterado a respetiva redação, com os seguintes fundamentos:

«O facto provado I) foi alegado pela Ré no artigo 26º da motivação (ponto 15 da decisão de despedimento) e contestado pela Autora nos artigos 104º a 112º da contestação.

Invoca a Recorrente que do depoimento da testemunha EE, Coordenadora da Autora, resulta que o lançamento contabilístico dos cheques a efectuar pela BB pode ser feito através de uma mera indicação do número de cheque na contabilidade daquele cliente, uma vez que o mesmo lhe pode ter sido transmitido pelo cliente.

Contrapõe a Recorrida que o Mmº Juiz a quo fundou a sua convicção nos depoimentos claros e categóricos das testemunhas CC e EE prestados em conjunto com a consulta dos diversos documentos juntos aos autos e que a pretensão da Recorrente apenas se funda nas respostas das testemunhas dadas em sede de contra instâncias.

Sobre a matéria, a testemunha EE referiu que o número do cheque em causa está na contabilidade da FF e que foi a Autora quem o lançou, mas que não existe cheque para justificar o valor de €114,80 constante da nota de pagamentos de fls. 104 do processo disciplinar, que ela própria viu o livro de cheques da FF e confirmou que este cheque não consta dele.

Acrescentou que o movimento foi lançado mas como havia valor para o qual não existia cheque, então, a Autora “inventou” um cheque para perfazer esse valor. 

Tendo-lhe sido perguntado qual o interesse da Autora em inventar um cheque respondeu “Acabar de lançar o documento”.

Ainda acrescentou que pode suceder haver valor que não está justificado, mas que é preciso saber resolver o problema, nomeadamente contactando o cliente, mas não actuando desta maneira.

A instâncias da ilustre mandatária da Autora acabou por admitir que o número do cheque pode ser indicado por telefone pelo cliente, mas que na data do lançamento em causa, mesmo que essa indicação tivesse sido dada por telefone, a Autora já tinha na sua posse o livro de cheques e tinha a obrigação de conferir se ele existia, ou não, o que a Autora não fez, caso contrário não o teria lançado na contabilidade do cliente.

Por seu turno, a testemunha CC referiu que este número de cheque foi inventado para justificar uma despesa e que confirmou no livro de cheques que ele não existia e que quem o inventou foi a pessoa que fazia a contabilidade, ou seja, a Autora.

Ainda referiu, a instâncias da ilustre mandatária da Autora, que KK, funcionária que trabalha consigo, é quem faz a ponte com a BB e quem, por norma, falava com a Autora; ele fazia-o pontualmente.

Acrescentou que a sua funcionária não deu qualquer informação à Autora sobre o dito cheque porque o método é claro e simples: cada factura vai com o cheque agrafado, acrescentando que quem cometeu o erro foi a empresa de contabilidade e que não havia outra hipótese dada a maneira como eram feitas as coisas na FF.

Ora, o conjunto de prova suscita a dúvida se o cheque em causa foi “inventado” pela Autora para acabar o lançamento de um documento, ou se número do “cheque” foi-lhe transmitido pelo cliente.

Contudo, não existem dúvidas que a Autora, no momento do lançamento, sempre teria a obrigação de conferir se o cheque existia, ou não, o que, indubitavelmente, não fez, quando é certo que podia tê-lo feito».

Vejamos.

Dispõe o art. 662º, nº 1 do CPC: “[a] Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa([4]).

Como é referido na “exposição dos motivos” da Lei 41/2013 de 26.06 “…cuidou-se de reforçar os poderes da 2ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios…, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material. Com efeito, se os elementos constantes do processo, incluindo a gravação da prova produzida na audiência final, não forem suficientes para a Relação formar a sua própria convicção sobre os pontos da matéria de facto impugnados, tem a possibilidade, mesmo oficiosamente, de ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento e de ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova.”

Como se vê da fundamentação reproduzida, a Relação, perante a impugnação da decisão referente ao facto provado I, reapreciou os depoimentos e tendo formulado a sua convicção não totalmente coincidente com a da 1ª instância, e embora não acolhendo a pretensão eliminatória da recorrente, alterou aquele facto e fê-lo ao abrigo do disposto no art. 662º, nº 1 do CPC e respeitando os limites aqui impostos.

Nas alegações que produziu na revista, a ora recorrente não invoca que, na alteração da decisão da matéria de facto, a Relação tenha ofendido qualquer disposição legal que exigisse certa espécie de prova ou que fixe a força probatória de qualquer documento existente nos autos.

Estabelece o art. 674º, nº 3 do CPC que “[o] erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

«Ao nível da decisão da matéria de facto, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça é limitada à apreciação da observância das regras de direito probatório material (denominada prova vinculada), ficando fora do seu âmbito de competência a reapreciação da matéria de facto fixada pela Relação no domínio da faculdade prevista no art.º 662.º do CPC, suportada em prova de livre apreciação e posta em crise apenas no âmbito da percepção e formulação do respectivo juízo de facto» ([5]).

Como r[2apurada nas instâncias, o Supremo está adstrito a uma obrigação negativa: a de não poder alterar, salvo em casos excepcionais, essa matéria de facto… Estas vinculações implicam que o Supremo não pode controlar a apreciação da prova, porque uma vinculação à matéria de facto averiguada nas instâncias e uma proibição de a alterar conduzem necessariamente à impossibilidade (e também à desnecessidade) de controlar a sua apreciação. Em especial, o Supremo não pode controlar a prudente convicção das instâncias sobre a prova produzida pelas partes… A impossibilidade de conhecimento de matéria de facto pelo Supremo envolve igualmente a inadmissibilidade de controlo por este tribunal dos poderes inquisitórios ou instrutórios atribuídos às instâncias».

A decisão do facto provado I, tanto da 1ª instância como da Relação, assentou exclusivamente na prova testemunhal, ou seja, em prova de livre apreciação (art. 396º do CC), matéria que escapa aos poderes sindicantes deste Supremo Tribunal, motivo pelo qual não se pode conhecer, nesta parte, do recurso de revista.

4.2.2 – Se os factos provados praticados pela A. constituem justa causa para o despedimento.

Nos termos do art. 351º, nº 1 do CT constitui justa causa de despedimento «o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho».

A justa causa de despedimento (conceito indeterminado) é assim, integrada pelos seguintes requisitos cumulativos:

“- um comportamento ilícito, grave, em si mesmo ou pelas suas consequências, e culposo do trabalhador (é o elemento subjectivo da justa causa);

- a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral (é o elemento objectivo da justa causa);

 - a verificação de um nexo de causalidade entre os dois elementos anteriores, no sentido em que a impossibilidade de subsistência do contrato tem que decorrer, efectivamente, do comportamento do trabalhador” ([7]).

Não basta pois que se verifique um comportamento culposo e ilícito do trabalhador, sendo ainda necessário que esse comportamento tenha como consequência necessária a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral.

A impossibilidade da subsistência da relação de trabalho constitui assim, “uma limitação ao exercício do direito de resolução do contrato de trabalho na sequência do princípio, constante do art. 808º do CC, de a resolução de qualquer contrato depender da perda de interesse por parte do lesado (no caso o empregador), determinada objectivamente… Perante o comportamento culposo do trabalhador impõe-se uma ponderação de interesses; é necessário que, objectivamente, não seja razoável exigir do empregador a subsistência da relação contratual. Em particular, estará em causa a quebra da relação de confiança motivada pelo comportamento culposo. Como o comportamento culposo do trabalhador tanto pode advir da violação de deveres principais como de deveres acessórios, importa, em qualquer caso, apreciar a gravidade do incumprimento, ponderando a viabilidade de a relação laboral poder subsistir.” ([8]).

“A subsistência do contrato é aferida no contexto de um juízo de prognose em que se projeta o reflexo da infração e do complexo de interesses por ela afetados na manutenção da relação de trabalho, em ordem a ajuizar da tolerabilidade da manutenção da mesma” ([9]).

A impossibilidade de subsistência do contrato de trabalho, “equivalente à inexistência ou inadequação prática de medida alternativa à extinção do vínculo” ([10]), para além de ter que ser imediata, deve ser aferida não em termos de impossibilidade objetiva, mas de inexigibilidade para a outra parte da manutenção daquele vínculo laboral em concreto ([11]), considerando “o entendimento de um bonus pater familias, de um empregador razoável” ([12]).

“É que a inexigibilidade – envolvendo, como assinalou Bernardo Xavier, «um juízo de probabilidade, de prognose, sobre a viabilidade da relação de trabalho» - surge apontada ao suporte psicológico do vínculo. O que ela significa – o que significa a referência legal é «impossibilidade prática» da subsistência da relação de trabalho – é que a continuidade da vinculação representaria (objectivamente) uma insuportável e injusta imposição ao empregador. Nas circunstâncias, a permanência do contrato e das relações (pessoais e patrimoniais) que ele supõe seria de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador” ([13]).

A R. despediu a A. com fundamento na prática por esta de atos que constituem violação dos deveres previstos no art° 128.°, n.º 1, al. c) – realizar o trabalho com zelo e diligência, al. e) - cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho e al. h) – promover ou executar os atos tendentes à melhoria da produtividade da empresa.

A 1ª instância concluiu pela licitude do despedimento tendo considerado que «a Trabalhadora […] não cumpriu com a sua prestação de trabalho com zelo e diligência que se exigia tendo praticado diversos erros com prejuízos inegáveis para a Ré, sendo certo que perante a matéria de facto considerada como provada dificilmente se poderia admitir a manutenção da relação de confiança que se exige que exista numa relação laboral, estando esta comprometida em termos definitivos».

Revogando a sentença da primeira instância, entendeu a Relação que a conduta da A. não integrava justa causa de despedimento, tendo considerado que, embora graves, os factos provados não permitiam concluir pela impossibilidade da manutenção do vínculo laboral.

E fê-lo com os seguintes fundamentos:

«[…] o conjunto dos erros e omissões cometidos pela Recorrente permitem afirmar que esta não cumpriu a prestação a que estava obrigada com o empenho, o cuidado e o acerto que lhe eram exigíveis no quadro das funções que exercia, pelo que, tal como o Tribunal a quo, não temos dúvidas que o quadro factual ilustra a violação, por parte da Autora, do dever de realizar o trabalho com zelo e diligência.

E tal violação é grave e culposa, sendo certo que não se provaram quaisquer circunstâncias que atenuem a censurabilidade das condutas ou que nos permitam dizer que, nos períodos em causa a Autora estava incapacitada para desempenhar as tarefas que lhe estavam cometidas.

Contudo, a justa causa não se basta com a mera violação dos deveres laborais. Por isso, há que apurar se o provado comportamento da Autora é de tal modo grave ao ponto de quebrar os laços de confiança entre empregador e trabalhadora.

Entendeu a Recorrida que o comportamento da Recorrida integra a previsão das alíneas a), d), e) e m) do nº 2 do artigo 351º do Código do Trabalho.

De acordo com o nº 1 do artigo 351º do CT “Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a relação de trabalho”.

O nº 2 do mesmo artigo enuncia, a título exemplificativo, os casos que constituem justa causa de despedimento, prevendo as alíneas a), d), e) e m), respectivamente “desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores”, “desinteresse repetido pelo cumprimento com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto”, “lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa” e “reduções anormais de produtividade”.

Por seu turno, o nº 3 do referido artigo estatui que “Na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes”.

[…]

Em suma, podemos afirmar que o conceito de justa causa de despedimento corresponde a um comportamento do trabalhador violador dos seus deveres contratuais, gerador de uma crise contratual de tal modo grave e insuperável que provoca uma ruptura irreversível entre as partes contratantes de modo a não ser exigível a um empregador normal e razoável a continuação da relação laboral.

Ora, da factualidade provada entendemos ser de excluir, desde já, a consideração de que o comportamento da Autora se integra na previsão das alíneas a) e m), na medida em que não ficou provado que os erros e omissões cometidos pela Autora são actos intencionais de desobediência a ordens da empregadora ou que, na sua sequência, resultaram reduções anormais de produtividade para a Ré.

Por outro lado, não se provou que foi o comportamento da Autora que, em exclusivo, levou à rescisão do contrato de prestação de serviços por parte da FF. Apenas sabemos que também contribuiu para tal.

 Ou seja, não podemos dizer que foi o comportamento da Autora que provocou lesão grave nos interesses patrimoniais da empresa (perda de um cliente), embora não se olvide que, em alguma medida, contribuiu para isso, como contribuíram outros factos.

 É certo que os erros e omissões cometidos pela Autora verificaram-se em relação a alguns clientes da Ré e tiveram consequências, a nível patrimonial, para os mesmos, pelo que se impõe afirmar que o comportamento da Autora foi grave em si mesmo e nas suas consequências.

Por outro lado, face ao núcleo de funções atribuídas à Recorrente e perante os referidos erros e omissões, que ocorreram num período de tempo limitado, sem que haja notícia nos autos que já se tinham repetido noutras ocasiões, coloca-se a questão de saber se perante tal situação era legítimo à empregadora duvidar da idoneidade da Recorrente para continuar a exercer as funções que lhe estavam atribuídas e, nessa medida, se a continuação da relação laboral, nas palavras de António Monteiro Fernandes, representaria “uma injusta imposição para o empregador”.

Ora, sem esquecer a gravidade da situação, o certo é que se desconhece, em absoluto, o que terá levado a Autora a cometer os ditos erros e omissões, sendo certo que nada se provou nos autos que aponte para uma conduta direccionada a prejudicar a empregadora ou eivada de qualquer intento fraudulento.

Sabemos, apenas, que a Recorrente é uma trabalhadora que foi admitida na Ré em 1999, ou seja, há 16 anos com referência à data do despedimento, de quem não são conhecidas sanções disciplinares e que, em determinado período e no exercício das suas funções, cometeu erros e omissões, erros que, evidentemente, lhe são censuráveis e que tiveram repercussões no património de alguns clientes da Ré.

É certo que as funções exercidas pela Autora têm de o ser dentro de prazos e com rigor na medida em que o não cumprimento das obrigações fiscais por parte dos contribuintes acarreta multas e coimas, por vezes, de elevado montante.

Contudo, perante os factos provados apenas podemos concluir pela gravidade das infracções, mas nada nos elucida sobre a intensidade da culpa da Autora, pelo que não podemos afirmar que o comportamento da Autora tornou imediatamente impossível a subsistência da relação laboral. Ou seja, não se pode concluir que a Autora teve um comportamento com contornos que quebram irremediavelmente a confiança necessária à continuação da relação laboral.

 Sendo assim, considerando, por um lado, o disposto no artigo 330º do CT, que determina que a sanção a aplicar terá de ser proporcional à gravidade das infracções e da culpa e, por outro lado, o leque de sanções previstas no artigo 328º do CT, entendemos que não é de acompanhar o entendimento do Tribunal a quo quando conclui pela existência de justa causa de despedimento, concluindo-se, sim, pela inexistência de justa causa do que resulta que o despedimento da Autora é ilícito (art.381º, al. b) do CT).»

Na valoração disciplinar, para efeitos sancionatórios, dos factos praticados pelo trabalhador importa não olvidar que o despedimento não é a única das sanções previstas pelo legislador no art. 328º do CT para os comportamentos violadores dos deveres contratuais do trabalhador. O despedimento é a sanção mais grave e deve ser aplicado apenas quando nenhuma das outras for adequada, tendo em conta a gravidade e/ou as consequências do comportamento culposo do trabalhador, sob o enfoque da inexigibilidade para a entidade empregadora da manutenção da relação de trabalho.

Vejamos então os atos praticados pela A.

Está provado que a Ré tem como objeto social a execução e planificação contabilística e a assistência fiscal dos seus clientes, recolhe a documentação contabilística destes, faz o tratamento, classificação e registo da mesma, procede ao preenchimento das respetivas declarações fiscais e, nalguns casos, procede mesmo ao pagamento dos impostos, mediante prévio pedido dos clientes.

A A. foi admitida na Ré em 18.10.1999, onde detinha, à data da decisão de despedimento, a categoria profissional de Assistente Administrativa II.

No âmbito das suas funções, a Autora era responsável pela elaboração da contabilidade de vários dos clientes da Ré competindo-lhe designadamente:

a) A organização da documentação, a classificação e lançamento da mesma no programa SAGE;

b) O apuramento dos movimentos contabilísticos (balancetes) mensais e trimestrais que servem de base à elaboração das declarações relativas ao IRC, Mod.10 e IES;

c) O preenchimento das declarações de IRS dos gerentes e outras pessoas singulares;

d) Fazer o processamento dos salários dos trabalhadores das entidades sob a sua responsabilidade;

e) Comunicar as entradas e saídas de trabalhadores junto da Segurança Social e do Fundo de Compensação do Trabalho.

Na emissão de alguns dos recibos de salário de 2015, relativos aos gerentes da FF, CC e GG, a A. deduziu, em duplicado, os valores do abono em espécie designado “acordo viatura”, com prejuízo para os referidos gerentes, porquanto, em resultado dessa dedução indevida, receberam um valor líquido inferior ao que lhes era devido. Estes factos contribuíram, entre outros, para a rescisão do contrato de prestação de serviços que a FF detinha com a Ré.

 A A. lançou na contabilidade da FF, supostamente pendente de apresentação ao banco, um cheque com o nº ..., do B..., no valor de € 114,80 quando, por consulta aos canhotos dos cheques, na posse da arguida, se percebe que tal cheque não existe, nem nunca existiu. O cheque em causa estaria incluído num pagamento ao fornecedor DD, com recurso a cheques pré-datados, no qual a soma dos cheques destinados ao referido pagamento – cujas cópias foram enviadas, pela cliente, com a nota de lançamento - não perfazia o total a pagar, sendo que à Autora cabia proceder à sua conferência, o que podia ter feito.

Relativamente ao universo dos restantes clientes, cuja contabilidade era da responsabilidade da A., apurou-se que, no dia 3.08.2015, deveria esta ter prontas (contabilizado, conferido e conciliado) as contabilidades referentes a maio/2015 de todos os clientes mas, na realidade, tal apenas se verificava em relação a 4 clientes.

Por referência à data de 23.09.2015, encontravam-se por encerrar as contabilidades de 14 clientes, reportadas ao mês de junho de 2015, que já deveriam estar efetuadas (contabilizado, conferido e conciliado), facto que obrigou a alocar outra funcionária para ajudar a A. a recuperar os atrasos no trabalho.

A A. não lançou, na contabilidade do HH, Lda, reportado ao ano de 2014, 8 documentos designados “Relatórios de Despesas”, cujo valor total ascende a € 4.452,04 e outros 24 documentos de despesas correntes e faturas de fornecedores cujo montante ascende a € 645,43, o que implicou um acréscimo de resultados da cliente, no ano de 2014, em € 5.097,47, com a consequente incidência fiscal e aumento do IRC a pagar, que não seria devido.

A A. errou nos lançamentos contabilísticos dos salários dos funcionários do cliente HH, Lda., de outubro a dezembro de 2014, tanto na vertente dos abonos, como dos descontos, facto que implicou a contabilização errónea dos mesmos no valor de € 15.000,00 com as consequentes implicações em sede de IRC, por ter determinado o pagamento de um valor incorreto respeitante ao imposto em causa.

A omissão da A. determinou a errada contabilização dos demais saldos contabilísticos associados ao processamento laboral, nomeadamente, as contas de pagamentos, as contas de controlo dos impostos sobre rendimentos do trabalho, e ainda as contas de controlo de pagamentos à Segurança Social, Caixa Geral de Aposentações, e ADSE.

A A. efetuou, também, a incorreta contabilização dos salários do cliente HH, Lda., de janeiro a março de 2015, tanto na vertente dos abonos como dos descontos.

A A. não efetuava a reconciliação bancária do cliente em causa, da conta à ordem do B…, desde outubro/2014, verificando-se que os últimos extratos bancários para conferência estavam disponíveis para o efeito, desde o dia 9/01/2015, data em que esta os recebeu, por e-mail, enviados pelo cliente. Também não foi efetuada a reconciliação da conta de empréstimos bancários no B…, do mesmo cliente.

A A. não procedeu, como estava acordado, ao envio mensal para o cliente II, Lda. dos elementos contabilísticos respetivos, facto que motivou uma reclamação por parte desta, recebida por e-mail no dia 15/10/2015.

Os últimos elementos contabilísticos enviados pela Autora ao cliente remontam aos meses de janeiro e fevereiro de 2015, colocando assim a BB numa situação de incumprimento.

Relativamente ao cliente JJ, a Autora não contabilizou as faturas que constam dos documentos de fls. 160 a 177 do procedimento disciplinar.

Concordamos com as instâncias quando entenderam que os atos praticados são graves não só em si mesmos mas nas consequências que tiveram, seja em termos patrimoniais para aqueles clientes, seja para a R., por terem contribuído para a perda do cliente FF.

Tais atos são claramente violadores do dever de realizar o trabalho com zelo e diligência, previsto no artº 128º, n.º 1, al. c), do CT.

É certo que não vem provado qual o valor dos prejuízos que os atos da A. provocaram aos clientes. Porém, importa ter em consideração que os prejuízos existiram, seja em termos do pagamento de impostos superiores aos devidos, seja da menor devolução dos que haviam sido pagos ou ainda do errado processamento dos salários dos trabalhadores dos clientes. 

Sendo a Ré uma empresa que tem como objeto social a execução e planificação contabilística e a assistência fiscal dos seus clientes, os atos dos seus funcionários têm repercussão direta nos seus clientes mas também na Ré uma vez que esta depende da confiança daqueles. Por outro lado, importa considerar que tratando-se de um serviço de contabilidade, a confiança no desempenho do trabalhador tem que ser total, dado que o erro no tratamento dos dados dos clientes acarreta consequências para estes, designadamente patrimoniais, como as que vêm provadas.

Perspetivados os atos praticados pela A. sob este enfoque e tendo em conta a sua extensão e consequências não só para os clientes mas também para a Ré, já que contribuíram para a perda do cliente FF, impõe-se a conclusão de que se mostra quebrado o elo de confiança que tem que existir entre a Ré e a A., sobretudo tendo em consideração a atividade da Ré.

É certo que a A. já era trabalhadora da Ré há 16 anos e não tem antecedentes disciplinares. Estes factos, porém, devendo embora ser ponderados em sede sancionatória, são insuficientes para dirimir a culpa e para reatar o elo de confiança que objetivamente foi quebrado e que, como vimos referindo, tem que existir, tendo em conta a atividade da Ré, sendo certo que também não vêm provados quaisquer factos que, de alguma forma, possam contribuir para justificar os atos da A., e para diminuir a sua censurabilidade, ou que permitam perspetivar que, de futuro, não se repetirão.

Sopesando tudo o referido e considerando a inquestionável quebra de confiança que os atos da A., violadores do dever de realizar o trabalho com zelo e diligência, previsto no artº 128º, n.º 1, al. c), do CT, produziram na sua relação com a Ré, entendemos que não é razoável exigir a esta a manutenção da relação contratual.

Concluímos assim que os atos praticados pela A. constituem justa causa de despedimento, como decidido pela 1ª instância, impondo-se a revogação, nesta parte, do acórdão revidendo.

DECISÃO

Pelo exposto delibera-se:

1 – Conceder parcialmente a revista.

2 – Revogar o acórdão recorrido na parte em que declarou a ilicitude do despedimento e condenou a Ré a pagar à A. as retribuições desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão e a indemnização em substituição da reintegração, e juros de mora respetivos [nº 2, al. a) da decisão], repristinando-se, nesta parte, a sentença da 1ª instância.

3 – Condenar a A. e a Ré nas custas da apelação e da revista, na proporção do decaimento que se fixa em 4/5 para a A. e 1/5 para a Ré.

Anexa-se o sumário do acórdão.

                            Lisboa, 1.03.2018

Ribeiro Cardoso (Relator)

Ferreira Pinto

Chambel Mourisco

___________________
[1] Acórdão redigido segundo a nova ortografia com exceção das transcrições (em itálico) em que se manteve a original.
[2] Cfr. 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil, os Acs. STJ de 5/4/89, in BMJ 386/446, de 23/3/90, in AJ, 7º/90, pág. 20, de 12/12/95, in CJ, 1995, III/156, de 18/6/96, CJ, 1996, II/143, de 31/1/91, in BMJ 403º/382, o ac RE de 7/3/85, in BMJ, 347º/477, Rodrigues Bastos, in “NOTAS AO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL”, vol. III, pág. 247 e Aníbal de Castro, in “IMPUGNAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS”, 2ª ed., pág. 111.    
[3] Ac. STJ de 5/4/89, in BMJ, 386º/446 e Rodrigues Bastos, in NOTAS AO Código de Processo CivIL, Vol. III, pág. 247.
[4] Repare-se que o legislador no CPC vigente fez constar o sintagma verbal “deve alterar a decisão”, quando o nº 1, do art. 712º, do CPC anterior referia “pode ser alterada”. Daqui resulta ter sido intenção do legislador conferir poderes acrescidos à Relação no âmbito da reapreciação da prova, como também transmutou o anterior poder em dever.
[5] Ac. desta 4ª Secção de 26.10.2017, proc. n.º 196/12.9TTBRR.L2.S1 (Ana Luísa Geraldes) e subscrito pelos aqui relator e 1º Adjunto.
[6] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 1997, pág. 422.
[7] Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, 6ª edição, 2016, pág. 804.
[8] Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 2015, 3ª edição, págs. 427 e 428.
[9] Ac. do STJ de 28.01.2016, proc. 1715/12.6TTPRT.P1.S1 (Leones Dantas).
[10] António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 17ª edição, pág. 514.
[11] Neste sentido Maria do Rosário Palma Ramalho, in ob. cit. págs. 807.
[12] Ac. do STJ de 5.01.2012, proc. 3937/04.4TTLSB.L1.S1 (Sampaio Gomes).
[13] António Monteiro Fernandes, in ob. cit. pág. 519.