Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
453/22.6JAVRL.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ERNESTO VAZ PEREIRA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
ATENUAÇÃO DA PENA
RESSARCIMENTO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 02/21/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Só por si o ressarcimento dos danos não constitui obrigação legal de atenuação especial da pena.

II. Sendo sua matriz a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só deverá ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, em situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa.

III. Fora dessa diminuição acentuada, essas circunstâncias podem sempre relevar como atenuantes gerais, mas não interferem já na pena abstracta prevista para o crime.

IV. As ditas circunstâncias excepcionais faltam, clara e manifestamente, no caso. E faltam tendo em conta a personalidade “sem factos abonatórios”, o bem jurídico atingido (vida humana), o modus operandi, o uso de arma, apontando-a a aglomerado de pessoas, onde até estão crianças, num local de grande movimento e afluxo de pessoas, assumindo e querendo o resultado, com graves danos pessoais causados, agindo em período de liberdade condicional pela anterior prática de crime também de homicídio.

V. No caso, a pena única de prisão de 5 anos e 6 meses responde adequadamente às concretas exigências de prevenção geral e especial, mostra-se necessária e proporcional, e não pode considerar-se que exceda o limite da culpa do arguido.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3ª secção, criminal, do Supremo Tribunal de Justiça:


I. RELATÓRIO

I.1.No Juízo Central Criminal de ..., Juíz 2, foi condenado o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio agravado na forma tentada, p.º e p.º pelos artigos 131.º, 22.º, n.º1 e 2, 23.º e 73.º, todos do C. Penal, e 86.º, n.º3, da Lei 5/2006, de 23 fevereiro, com as alterações introduzidas, pela Lei nº 17/2009, de 6-5, Lei nº 12/2011, de 27-4, Lei nº 50/2013, de 24-7 e Lei nº 50/2019, de 24-7, na pena de cinco (5) anos e seis (6) meses de prisão (ofendida BB).

Inconformado com a sentença vem o mesmo interpor recurso per saltum para este Supremo finalizando-o com as seguintes conclusões:

“1. Decidiu o tribunal a quo condenar o arguido numa pena única de cinco anos e seis meses de prisão.

2. Não pode o arguido conformar-se com a pena aplicada, que no seu entender se revela excessiva por violação, desde logo, do disposto no artigo 71.º CP.

3. Entende a defesa que foi violado o princípio da proporcionalidade latu sensu.

4. Tal porque, no que concerne às necessidades de prevenção geral, o arguido aguardou julgamento sujeito à medida de coação de permanência de habitação, pelo que está acautelada a ideia alegadamente sentida na comunidade de que “o crime compensa”.

5. O arguido, ora recorrente, tem apoio e retaguarda familiar e pretende retomar a sua atividade profissional na venda de perfumes ambulante.

6. O Supremo Tribunal de Justiça, no seu douto Acórdão de 11/02/2021, processo n.º 762/19.1GBAGD.P1.S1 tece algumas considerações acerca da reparação das consequências do crime, apelando a que sejam ponderadas as necessidades de prevenção geral e especial neste âmbito.

7. No que a esta matéria concerne, das declarações os ofendidos resultou que se consideram ressarcidos, pelo que, nos termos do artigo 72.º, n.º2, al. c) CP, tem de existir uma atenuação especial da pena.

8. Importa ter em conta, dentro dos limites abstratos definidos pela lei, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, deponham a favor ou contra o arguido, na medida em que se mostrem relevantes para a culpa ou para exigências preventivas.

9. O arguido agiu com a modalidade menos intensa de dolo, que se mostra eventual, pelo que, sendo a forma menos gravosa de dolo, representa um menor desvalor.

10. Face a toda esta factualidade, é suficiente para realizar a tutela dos bens jurídicos protegidos a aplicação ao arguido da pena mínima, que corresponde a um ano no que concerne aos crimes consumados e a três meses no que concerne aos crimes na forma tentada.

11. No que ao cúmulo jurídico concerne, a pena única a que o Tribunal a quo chegou é desproporcional aos factos e à personalidade do agente.

12. Conforme podemos ler no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08/10/2020, processo n.º 34/19.1PEVIS.C1.S1, “estão em causa, não considerações sobre a culpa mas prognósticos acerca das exigências mínimas de prevenção”.

13. A ameaça de ser preso e cumprir pena e a censura do facto são suficientes para afastar o recorrente de novo acto ilícito.

14. O arguido está sujeito a medida de coação de obrigação de permanência na habitação desde 16/09/2022 e que se mantém, registando adequação aos quesitos inerentes à medida de coação aplicada.

15. A paz jurídica abalada encontra-se, agora restabelecida.

16. O arguido pretende trabalhar e conta com apoio familiar.

17. Pelo que, estamos perante uma violação do artigo 18.º, n.º1 e 2 CRP.

Normas que considera violadas: artigos 71.º, 72.º, n.º2, al. c), do Código Penal, bem como artigo 18.º, n.º1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.”

E a acaba a pedir o provimento do recurso e, em consequência, a condenação do requerente numa pena única nunca superior a quatro anos de prisão.”

I.2. Respondeu o MP rematando a sua peça assim:

“na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal recorrido considerou todas as circunstâncias, quer atenuantes, quer agravantes, que militam quer a favor, quer contra o arguido, encontrando-se perfeitamente doseada, fase às concretas circunstâncias sócio económicas do arguido apuradas em sede de julgamento.

De facto, foram consideradas todas as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal.

Assim sendo, também nesta parte não merece qualquer censura a decisão recorrida, devendo manter-se nos exactos termos em que foi proferida.”

I.3. No STJ o Sr PGA acompanhando a resposta do MºPº na 1ª instância secunda o não provimento do recurso.

I.4. Foi cumprido o artigo 417, nº 2, do CPP. Não veio resposta.

I.5. Foi aos vistos e decidiu-se em conferencia

I.6. Admissibilidade e objeto do recurso

I.6.1. Impõe-se assinalar que o recurso mostra não condizente leitura com o texto do acórdão.

Na verdade, nas conclusões escreve-se: “Decidiu o tribunal a quo condenar o arguido numa pena única de cinco anos e seis meses de prisão.” E “Face a toda esta factualidade, é suficiente para realizar a tutela dos bens jurídicos protegidos a aplicação ao arguido da pena mínima, que corresponde a um ano no que concerne aos crimes consumados e a três meses no que concerne aos crimes na forma tentada.” E pede-se “o provimento do recurso e, em consequência, a condenação do requerente numa pena única nunca superior a quatro anos de prisão.”

Ora, o que é certo é que não há concurso de crimes a penalizar o arguido nem pena única aplicada.

De todo o modo, uma vez que se compreende a pretensão do arguido, baixar a medida da pena, aceita-se o recurso, com o objeto infra delimitado.

I.6.2. Não ocorrendo quaisquer dos vícios previstos nas alíneas a), b) ou c) do n.º 2 do art. 410º, do CPP, nem nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto acima transcrita, a qual nessa parte se mostra devidamente sustentada e fundamentada.

São as conclusões que delimitam o objeto do recurso.

Objeto do recurso: decidir da medida concreta da pena que o recorrente considera “desproporcional aos factos e à personalidade do agente”, e violadora dos “artigos 71.º, 72.º, n.º2, al. c), do Código Penal, bem como artigo 18.º, n.º1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.”

II. FUNDAMENTAÇÃO

II.1. Foram dados como provados os seguintes factos:

No dia ........2022, cerca das 17h15, na via pública, na Alameda de ..., sensivelmente, nas imediações da porta do número de polícia 15, em ..., dois grupos de etnia ..., familiares entre si, em número não concretamente apurado e por motivos não concretamente determinados, iniciaram uma contenda, com agressões mútuas.

A dada altura, os arguidos abordaram a viatura onde seguia o ofendido, CC, de marca Volkswagen, modelo Golf, de cor preta, sendo que, nesta viatura seguiam BB, esposa de CC, grávida no momento da prática dos factos, a sua filha, DD (com 16 anos à data dos factos), o seu filho, EE, com 6 anos à data dos factos, a sua filha FF (com 4 anos à data dos factos), a sua filha mais nova, GG (com 2 anos à data dos factos) e o seu genro, HH, quando se encontravam no Largo da Alameda ....

Naquelas circunstâncias de tempo e de lugar, o arguido AA desferiu um tiro com uma arma que aquele empunhava, de características não concretamente apuradas, acertando na barriga da ofendida BB.

A ofendida BB estava grávida de 19 semanas e um dia, foi atingida na zona da barriga, um pouco acima do umbigo, tendo necessidade de receber tratamento médico no Hospital de ....

Esta, quando deu entrada no Hospital de ... apresentava um ferimento na porta da entrada na região linha média infraumbilical, com cerca de 1 cm, sem evidência do projéctil.

Foi submetida a intervenção cirúrgica (laparatomia vertical) na região atingida, que determinou uma cicatriz de 19 centímetros.

Aquelas lesões determinaram 90 dias de doença com 90 dias de incapacidade para o trabalho em geral, tendo ocorrido a consolidação médico-legal no dia ...-...-2022.

O arguido AA atento o instrumento e projétil usado, numa contenda envolvendo várias pessoas, e através do disparo de uma arma de fogo, sabia e representou que ao agir da forma descrita em 3) poderia causar a morte da ofendida BB, com o que se conformou, o que não impediu de o fazer e só não veio a suceder, por circunstâncias alheias à sua vontade.

O arguido AA tinha na sua posse uma arma de fogo, de forma e tamanhos não concretamente apurados, sem deter a respectiva licença que o habilitasse ao porte da mesma.

O arguido, AA bem sabia que para deter, utilizar ou guardar quaisquer armas na sua posse e as respectivas munições, necessitava de licença, bem como necessitava de registar a arma, o que sabia não deter e ser obrigatório, mas mesmo assim não se absteve de agir do modo descrito, o que quis e logrou.

O arguido AA agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

Mais resultou provado dos certificados de registo criminal dos arguidos juntos aos autos:

O arguido AA tem averbadas as seguintes condenações:

pela prática em 15/09/1995 de um crime de receptação, por sentença de 19/12/1996, foi condenado em 120 dias de multa, à taxa de 800$00, no total de 96.000$00.

pela prática em 95/96 de um crime de tráfico de estupefacientes, p. p. art.º 21.º do DL 15/93 de 22/01, por acórdão de 5/11/1997, foi condenado na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.

pela prática em 5/03/1996 de um crime de ameaça, p. p. art.º 153.º, n.º1, do C. Penal, por sentença de 23/10/1998, foi condenado na pena de 30 dias de multa à taca diária de 1.000$00, no total de 30.000$00, a qual foi amnistiada e perdoada.

- pela prática em 3/08/2000 de um crime de condução sem habilitação legal, foi condenado por sentença de 3/08/2000, na pena de 45.000$00 de multa, julgada extinta pelo cumprimento.

- pela prática em 03/09/2004 de um crime de fraude sobre mercadorias, foi condenado por sentença de 10/07/2006 na pena de 75 dias de multa, à taxa diária de 3,00 euros e na pena única de 225 dias de multa à taxa diária de 3,00 euros, extinta pelo pagamento da multa;

- pela prática em 15/12/2005 de um crime de fraude sobre mercadorias, foi condenado por sentença de 12/12/2006 na pena de 6 meses de prisão, suspensa por 1 ano e 50 dias de multa à taxa diária de 4,00 euros, no total de 200,00 euros.

pela prática em 2005 de um crime de homicídio, p. p. artigos 131.º do C. Penal, foi condenado por acórdão de 28/09/2012, transitado em 16/04/2013, na pena de 10 anos de prisão, tendo-lhe sido concedida liberdade condicional por decisão de 10/01/2020, até ao termo da pena em 18/05/2023.

(…)

Do relatório social para determinação da sanção do arguido AA:

AA, à data dos fatos julgados provados, residia com a companheira e filha menor em habitação arrendada, espaço que apresenta condições deficitárias de habitabilidade e conforto, enquadramento residencial que mantém na atualidade.

A subsistência de AA e do agregado familiar era assegurada com o montante total de 780 € correspondente a prestações sociais do Rendimento social de Inserção, subsídio para a inclusão, complemento de cuidadora informal e pensão de invalidez atribuída ao arguido.

O arguido e um filho dedicar-se-iam à venda ambulante de perfumes.

Na atualidade, a situação económica mantém-se similar.

A composição do agregado familiar sofreu, recentemente, alteração com a integração de mais um filho do arguido.

AA e companheira têm como despesas fixas mensais, renda de casa no montante de 200 € e uma média de 75 €, referente a fornecimento de água e eletricidade.

AA terá restringidas, na atualidade, interação com os familiares próximos, afirmando não existirem, na atualidade, significativas interações sociais.

AA tem direcionado parte significativa do seu tempo, na frequência de consultas médicas, realização de exames complementares de diagnóstico e tratamentos, decorrente da situação de saúde originada por doença oncológica.

O processo de desenvolvimento psicossocial de AA decorreu no contexto familiar de origem, composto pelos progenitores, o próprio e quatro irmãos, enformado por referenciais especiais específicos do grupo cultural de pertença.

A nível económico não terá vivenciado especiais privações, não obstante fosse a figura paterna o único garante da subsistência familiar, com recurso à venda ambulante de artigos têxteis/lar.

O percurso escolar, iniciado aos 7 anos, terminou quando contava 16 anos, e o 8º ano de escolaridade concluído, por iniciativa do arguido, o qual se desejava autonomizar e acompanhar o pai no exercício da atividade de ....

Ao nível das interações na conjugalidade, o arguido regista duas uniões de facto, encetando a primeira com cerca de 17 anos, da qual nasceu um descendente. A rutura da relação viria a ocorrer durante período em que se encontrou recluído para cumprimento de uma pena de prisão por condenação por crime de tráfico de estupefacientes.

O arguido constituiu novo agregado familiar há cerca de 23 anos, tendo tido desta união mais três filhos, uma das quais ainda menor.

Existe registo na DGRSP de contacto de AA com o sistema da justiça, designadamente, acompanhamento em medida de flexibilização da pena, no âmbito do processo nº 446/13.4..., no qual foi condenado por crime de homicídio voluntário.

No âmbito do presente processo, o arguido iniciou a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, em 16/09/2022, registando, até ao momento, adequação aos quesitos inerentes à medida de coação aplicada, conforme reportado nos relatórios de execução da medida de coação que lhe foi aplicada.

AA teve repercussões pela presente intervenção judicial, a nível emocional, e económico por lhe coartar a atividade de venda ambulante.

II.2. E quanto à medida concreta da pena justificou o acórdão recorrido (transcrição sem notas de rodapé):

“Feita pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido em relação aos crimes de que vinha acusado, importa agora determinar a natureza e a medida das respectivas sanções penais, nos termos previstos no art. 71º do C. Penal, i. é, «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção», tendo em consideração «todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra» o agente.

Conhecidas que são, por já suficientemente enunciadas pela doutrina autorizada, as três fases do procedimento de determinação da pena - investigação e determinação da moldura legal, investigação e determinação dentro daquela moldura legal da medida concreta a aplicar, e escolha da espécie da pena, cumpre fazê-lo no presente caso.

A determinação da medida da pena concreta é feita, de acordo com o critério constante do artigo 71.º, do Código Penal onde se diz que na fixação do quantum da pena se deve atender à culpa do agente e às exigências de prevenção. Estabelece o artigo 40.º do Código Penal (finalidades das penas e medidas de segurança): “1.A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2.Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. Importa, assim, saber quais são as funções desempenhadas pela culpa e pelas necessidades de prevenção em sede de determinação concreta da pena. Importa, assim, saber quais são as funções desempenhadas pela culpa e as necessidades de prevenção em sede de determinação da moldura concreta da pena. No que concerne à culpa, este é um dos princípios estruturantes do Código Penal porquanto “toda a pena tem como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta ( cfr ponto 2. do preâmbulo do Código Penal). Consagra-se deste modo o princípio da culpa. A função da culpa é estabelecer o máximo de pena concreta ainda compatível com as exigências de prevenção da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de direito democrático. Como limite que é, pois, a medida da culpa serve para determinar um máximo da pena que não poderá em caso algum ser ultrapassado, não para fornecer em última instância a medida da pena: esta dependerá, dentro do limite consentido pela culpa, de considerações de prevenção. A medida da pena há-se ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Sendo certo, que quando se afirma que é função do direito penal tutelar bens jurídicos não se tem em vista só o momento da ameaça da pena, mas também o da sua aplicação. Deste modo, se alcança o significado prospectivo que assume a protecção dos bens jurídicos, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo reforço) da vigência da norma infringida. Estamos claramente em sede de prevenção geral positiva ou prevenção de integração. Dentro dos limites consentidos pela prevenção geral positiva ou de integração, podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que vão determinar, em último termo, a medida da pena. Esta deve em toda a extensão possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia de protecção de bens jurídicos. Acolhemos, deste modo, o critério proposto por Figueiredo Dias na determinação da medida concreta da pena, (obs. citas.), - a designada prevenção. Para aferir do grau das exigências de prevenção que no caso se fazem sentir e da medida da culpa do arguido, importa atender aos factores de determinação da medida da pena. Estes factores estão enumerados, de modo não exaustivo, no artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal.

O arguido AA está acusado a prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada, sem qualquer agravação.

Como acima se analisou não se verificam no caso concreto as qualificativas das alíneas e h) do n.º 2 do art.º 132.º do C. Penal, pelo que o crime cometido é na modalidade do art.º 131.º do C. Penal.

Ao referido crime de homicídio simples, p. p. art.º 131.º do C. Penal, na forma consumada, corresponde, em abstracto, prisão de 8 a 16 anos (cfr. artigo 131.º do Código Penal).

Todavia, há lugar à agravação prevista no art.º 86.º, n.º3, da Lei 5/2006, de 23/02 porquanto o crime foi cometido com uma arma.”1

E nestes casos prescreve o art.º 86.º, n.º3, da referida Lei das armas que As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

O n.º 4 diz que "para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.

Trata-se de uma alteração da qualificação jurídica de factos constantes da acusação de que o arguido já teve oportunidade de se defender, e que configuram uma "alteração não substancial dos factos descritos na acusação" nos termos do art.º 358.º, n.º1 e 3, do Cód. de Processo Penal, que importará comunicar ao arguido nos termos legais.

Assim sendo, a moldura penal agravada da pena de prisão do crime de homicídio do art.º 131 do C. Penal passa a ter como limite mínimo 10 anos e 8 meses e como limite máximo 21 anos e 4 meses.

Aplicando agora a atenuação especial resultante da tentativa nos termos impostos pelo art.º 23.º, n.º2, do C. Penal: de acordo com o disposto no artigo 73.º, n.º1, do Código Penal, sempre que houver lugar à atenuação especial da pena observa-se o seguinte relativamente aos limites da pena aplicável:

o limite máximo da pena de prisão é reduzido de um terço;

o limite mínimo da prisão é reduzido a um quinto se for igual ou superior a 3 anos e ao mínimo legal se for inferior.

Assim, a moldura penal abstracta passa a oscilar entre o mínimo de 2 anos e 1 mês e 18 dias de prisão e o máximo de 16 anos de prisão.

Esta a moldura penal dentro da qual será de fixar a pena concreta que cabe ao arguido, pela prática do crime de homicídio simples agravado na forma tentada na pessoa da ofendida BB.

O grau de ilicitude é mínimo/médio considerando que foi um disparo tiro, sendo médio porquanto uma pessoa foi atingida; também se considera como agravante da ilicitude a hora e local onde o disparo foi cometido e o contexto em que foi feito o disparo; de facto, como provado em 1) foi pelas 17.15 horas, em plena hora do dia, à vista de toda a gente, numa zona comummente frequentada de ..., Alameda de ..., que uma simples consulta do Google Maps referencia como sendo de cafés, restaurante, zona do teatro de ..., bem como do Centro Comercial ou Shopping de ...; a contenda entre dois grupos, seguida de uso de arma e disparo, causa forte alarme social e receio comunitário, devendo isto agravar a ilicitude e culpa do arguido que apesar daquele contexto não se absteve de usar uma arma da forma que usou.

O dolo é eventual, ou seja, de gravidade mínima, sendo pelas mesmas razões a intensidade do dolo qualificada de mínima.

A culpa do arguido é média: pelo que acima se referiu e pela motivação da actuação do arguido: trata-se de uma rixa ou contenda entre dois grupos de etnia ..., familiares entre si em que após agressões mútuas este lança mão da arma com intenção de atingir elementos da outra fação.

As consequências típicas da conduta do arguido são mínimas/médias: a ofendida BB que estava grávida de 19 semanas e um dia, foi atingida na zona da barriga, um pouco acima do umbigo, tendo necessidade de receber tratamento médico no Hospital de .... Quando deu entrada no Hospital de ... apresentava um ferimento na porta da entrada na região linha média infraumbilical, com cerca de 1 cm, sem evidência do projéctil. Foi submetida a intervenção cirúrgica (laparatomia vertical) na região atingida, que determinou uma cicatriz de 19 centímetros. Aquelas lesões determinaram 90 dias de doença com 90 dias de incapacidade para o trabalho em geral, tendo ocorrido a consolidação médico-legal no dia 24-10-2022.

Não foi declarado qualquer arrependimento pelo arguido, admitindo-se apenas pelo que resultou da prova e das declarações dos ofendidos que a situação está pacificada entre os membros dos dois grupos em confronto porquanto os ofendidos declararam estar ressarcidos.

O arguido tem antecedentes criminais, sendo o último precisamente pelo mesmo tipo de crime de homicídio simples na forma consumada, anotando-se e sublinhando que cometeu os factos pelos quais agora é condenado em pleno período de liberdade condicional.

Com efeito resulta do CRC e do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães junto aos autos que pela prática em 2005 de um crime de homicídio, p. p. artigos 131.º do C. Penal, foi condenado por acórdão de 28/09/2012, transitado em 16/04/2013, na pena de 10 anos de prisão, tendo-lhe sido concedida liberdade condicional por decisão de 10/01/2020, até ao termo da pena em 18/05/2023.

Ora, tendo praticado os factos pelos quais é condenado em 26/07/2022 não há dúvidas que o arguido ciente que estava em liberdade condicional não se absteve de andar armado no dia dos factos e de usar a arma para fazer o disparo na forma que fez, sendo como muito grave no caso concreto porque estava a cometer factos do mesmo tipo de crime que anteriormente acarretou a sua condenação em 10 anos de prisão; este facto, agrava a medida da pena afastando a pena concreta do limite mínimo.

Dos factos provados resulta que o arguido aparenta alguma inserção: AA, à data dos fatos julgados provados, residia com a companheira e filha menor em habitação arrendada, espaço que apresenta condições deficitárias de habitabilidade e conforto, enquadramento residencial que mantém na atualidade. A subsistência de AA e do agregado familiar era assegurada com o montante total de 780 € correspondente a prestações sociais do Rendimento Social de Inserção, subsídio para a inclusão, complemento de cuidadora informal e pensão de invalidez atribuída ao arguido. O arguido e um filho dedicar-se-iam à venda ambulante de perfumes; na atualidade, a situação económica mantém-se similar. A composição do agregado familiar sofreu, recentemente, alteração com a integração de mais um filho do arguido. AA e companheira têm como despesas fixas mensais, renda de casa de no montante de 200 € e uma média de 75 €, referente ao fornecimento de água e eletricidade. AA terá restringidas, na atualidade, interação com os familiares próximos, afirmando não existirem, na atualidade, significativas interações sociais. AA tem direcionado parte significativa do seu tempo, na frequência de consultas médicas, realização de exames complementares de diagnóstico e tratamentos, decorrente da situação de saúde originada por doença oncológica. O processo de desenvolvimento psicossocial de AA decorreu no contexto familiar de origem, composto pelos progenitores, o próprio e quatro irmãos, enformado por referenciais especiais específicos do grupo cultural de pertença. A nível económico não terá vivenciado especiais privações, não obstante fosse a figura paterna o único garante da subsistência familiar, com recurso à venda ambulante de artigos têxteis/lar. O percurso escolar, iniciado aos 7 anos, terminou quando contava 16 anos, e o 8º ano de escolaridade concluído, por iniciativa do arguido, o qual se desejava autonomizar e acompanhar o pai no exercício da atividade de .... Ao nível das interações na conjugalidade, o arguido regista duas uniões de facto, encetando a primeira com cerca de 17 anos, da qual nasceu um descendente. A rutura da relação viria a ocorrer durante período em que se encontrou recluído para cumprimento de uma pena de prisão por condenação por crime de tráfico de estupefacientes. O arguido constituiu novo agregado familiar há cerca de 23 anos, tendo tido desta união mais três filhos, uma das quais ainda menor. Na DGRSP existe registo de contacto de AA com o sistema da justiça, designadamente, acompanhamento em medida de flexibilização da pena, no âmbito do processo nº 446/13.4..., no qual foi condenado por crime de homicídio voluntário. O arguido iniciou a medida de coação de obrigação de permanência na habitação, em 16/09/2022, registando, até ao momento, adequação aos quesitos inerentes à medida de coação aplicada, conforme reportado nos relatórios de execução da medida de coação que lhe foi aplicada.

E sobre a sua personalidade não se provaram quaisquer factos abonatórios.

As necessidades de prevenção geral são elevadas, em face do já descrito modo de execução do facto, se considerarmos o local onde os factos ocorreram, mais ainda pelas recentes notícias que divulgam um aumento considerável nos crimes de homicídio na forma tentada e consumada pelas razões menos compreensíveis e fúteis, como sejam rixas entre grupos e discussões acompanhadas de muito violência.

Em sede de prevenção especial, tudo o antes referido nomeadamente os antecedentes criminais e o cometimento destes factos em plena liberdade condicional, aliado à ausência de arrependimento permitem concluir que existem necessidades de prevenção especial de ressocialização no sentido de fazer interiorizar o arguido de uma vez por todos que condutas como as que praticou são absolutamente proibidas num Estado de Direito.

Tudo visto e ponderado, entende-se justo e adequado condenar o arguido na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão pela prática do crime de homicídio agravado na forma tentada na pessoa da ofendida BB.”

II.3. A matéria de facto assim fixada não padece de quaisquer vícios que este Supremo Tribunal pode conhecer tal como prevê o art.º 410.º, n.º 2, do CPP, nem estes foram arguidos, não se vislumbrando quaisquer nulidades e por isso está definitivamente fixada, pelo que, com base nela se passa a decidir a questão de direito que foi suscitada pelo ora recorrente.

II.4. No âmbito dos poderes concedidos ao este tribunal de recurso impõe-se, porém, desde já proceder a uma retificação do acórdão recorrido.

Nos termos do artigo 380º, nº 1, al. b), do CPP o tribunal procede oficiosamente ou a requerimento à correção da sentença quando a sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial. Se aí for possível, será o tribunal de recurso a proceder á correção (nº 2).

No caso, como bem assinala o MP, o acórdão recorrido refere que o arguido agiu com arma de fogo, “de forma e tamanhos não concretamente apurados” ( pag. 3, em “9” de factos provados), presumindo-se ser pistola ou revolver (pag. 11, em motivação da decisão de facto), falando-se de novo em revólver na pag. 29, em enquadramento jurídico-penal) e, depois, em pag. 38, “de arma de características não concretamente apuradas”, “uma arma cujas características não se apuraram por não ter sido apreendida, nem examinada” e “não se sabe que tipo de arma era para efeitos da sua qualificação típica.” E fá-lo, acrescentamos nós, de acordo com os factos dados como provados e dentro da economia e da coerência do acórdão, bem se antolhando que essas asserções representam a apreensão do tribunal e a vontade de sobre as mesmas decidir.

Só que, como realça o Sr PGA, a pag. 40, o mesmo acórdão contraditoriamente afirma a agravação prevista no artigo 86º, nº 3, da L. 5/2006, de 23/02, “porquanto o crime foi cometido com uma arma, concretamente uma caçadeira, classe D, nos termos acima fundamentados.” Sendo que a mesma “arma caçadeira”, já tinha sido singularizada a propósito da perigosidade das armas a pag. 29.

Ora, tendo em conta o descritivo quer factual quer jurídico do acórdão, a sua economia e a sua coerência, manifesto é que as referências a arma caçadeira se mostram deslocadas fora de contexto e a despropósito, revelando-se assim tais referências como manifesto lapso, a que não será alheio, presume-se, a composição do acórdão com base e sobre outros, técnica frequentemente usada por todos os sujeitos processuais.

A referência na pag. 29 a “arma caçadeira” é irrelevante, por isso nada sobre ela se decidirá,

Já a referência à prática do crime com a “arma caçadeira”, por se tratar de manifesto lapso, terá de ter eliminada. E assim no respetivo parágrafo, pag. 40, com esta eliminação, passará a ler-se: “Todavia, há lugar à agravação prevista no art. 86, nº 3, da L. 5/2006, de 23/02, porquanto o crime foi cometido com uma arma.”

II.2. Direito

II.2.1. Defende o Recorrente que “No que a esta matéria concerne, das declarações os ofendidos resultou que se consideram ressarcidos, pelo que, nos termos do artigo 72.º, n.º2, al. c) CP, tem de existir uma atenuação especial da pena.”

É certo que o art. 72.º, nº 1, do CP contempla a “atenuação especial de pena”, determinando que “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”. Já o nº 2 enuncia depois, exemplificativamente, uma série de circunstâncias que podem revelar essa diminuição acentuada ou significativa da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena, conforme for o caso, nomeadamente ter havido reparação dos danos causados.

O acórdão recorrido admite “apenas pelo que resultou da prova e das declarações dos ofendidos que a situação está pacificada entre os membros dos dois grupos em confronto porquanto os ofendidos declararam estar ressarcidos.”

Só que, só por si tal ressarcimento não constitui obrigação legal de atenuação especial da pena.

A atenuação especial de pena, ao abrigo desta norma geral, deverá sempre fundar-se em circunstâncias excepcionais, ou seja, que extraordinariamente imponham a descida da pena abstracta abaixo do seu mínimo, por essa pena abstracta prevista para o crime se apresentar perante elas (ou seja, concretamente) como singularmente gravosa. Em diminuição significativa da ilicitude, da culpa ou da necessidade da pena. O que significa que a atenuação especial está prevista apenas para os casos em que a concreta situação de vida em apreciação configure uma ilicitude, uma culpa ou uma necessidade de pena que não atinjam a gravidade pressuposta ou equacionada no tipo incriminador.

Sendo sua matriz a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só pode ter lugar naqueles sobreditos casos extraordinários ou excepcionais, em situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa.

Fora dessa diminuição acentuada, essas circunstâncias podem sempre relevar como atenuantes gerais, mas não interferem já na pena abstracta prevista para o crime.

As ditas circunstâncias excepcionais faltam, clara e manifestamente, no caso. E faltam tendo em conta a sua personalidade “sem factos abonatórios”, o bem jurídico atingido, o modus operandi, o uso de arma, apontando-a a aglomerado de pessoas, onde até estão crianças, num local de grande movimento e afluxo de pessoas, assumindo o resultado, com graves danos pessoais causados, agindo em período de liberdade condicional pela prática de crime de homicídio.

II.2.2. Numa pena cuja latitude em abstrato vai de 2 anos e 1 mês e 18 dias a 16 anos, a pena concreta quedou-se em 5 anos e seis meses.

Estamos perante criminalidade especialmente violenta assim qualificada nos termos do artigo 1º, al. l), do CPP.

As finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

O objetivo último das penas é a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais.

Esta proteção implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração).

A prevenção geral radica no significado que a “gravidade do facto” assume perante a comunidade, isto é, no significado que a violação de determinados bens jurídico penais tem para a comunidade e visa satisfazer as exigências de proteção desses bens na medida do necessário para assegurar a estabilização das expectativas na validade do direito.

“Assim, a prevenção geral assume o primeiro lugar como finalidade da pena, não como prevenção negativa, de intimidação, mas como prevenção positiva, de integração e de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face á violação da norma, enquanto estabilização das expectativas comunitárias na validade e na vigência da regra infringida.” (in Noções de Direito Penal”, Simas santos, Leal Henriques, 8ª edição, Rei dos Livros, pag 187)

É a prevenção geral positiva que fornece uma moldura de prevenção dentro de cujos limites podem e devem atuar considerações de prevenção especial.

A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.

Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com auxílio do qual há de ser construído o modelo da medida da pena.

Anabela Rodrigues, in «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.

Na esteira da esquemática formulação do Professor Figueiredo Dias, in “Direito Penal Parte Geral”, I, 3ª Edição Gestlegal, 96, recorrentemente citada pelo STJ, “(1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais.”

E estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto), relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito. Agrupam-se nas alíneas a), b), c) e e), parte final, do n.º 2 do art.71.º, do Código Penal, os fatores relativos à execução do facto; nas alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente; e na alínea e), os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto.

Como se tem afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição, segundo o qual «a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». A privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, adequação e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

O grau de ilicitude dos factos é “mínimo/médio”.

Na acção é usada uma arma, e o disparo é efetuado para um aglomerado de pessoas, onde se encontram crianças.

Mesmo agindo com dolo eventual, trata-se de acto altamente censurável a acção de querer tirar a vida a outrem. (cf. art. 14.º, n.º 3, do CP). Isto é, ao atuar como atuou decidiu-se pelo risco da sua conduta, decidiu-se pela possibilidade real da existência de risco para a vida do ofendido decorrente da conduta que assumiu.

Está em causa o bem jurídico primeiro, por isso mais fortemente tutelado pelo direito penal, na decorrência, aliás, da afirmação constitucional perentória de que a vida humana é inviolável (artigos 24, nº 1, da CRP e 2.º, n.º 1, 1.ª parte, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos). “O direito à vida é um direito prioritário, pois é condição de todos os outros direitos fundamentais, sendo material e valorativamente o bem mais importante do catálogo de direitos fundamentais e da ordem jurídico-constitucional no seu conjunto» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2007, volume I, pp. 446-447).

Por isso, é o ilícito de homicídio aquele que maior tumulto, insegurança, perturbação e alarme social gera na comunidade, sendo que o número de homicídios em cada ano, como as estatísticas oficiais o confirmam, é alarmante.

São muito elevadas as exigências de prevenção geral, finalidade primeira da pena, (necessidade de restabelecer a confiança na validade das normas violadas), tendo em atenção o bem jurídico afrontado.

Com tais elevadas exigências de prevenção geral convergem elevadas necessidades de prevenção especial, Não se olvide que, pela prática em 2005 de um crime de homicídio, p. p. artigos 131.º do C. Penal, o arguido foi condenado por acórdão de 28/09/2012, transitado em 16/04/2013, na pena de 10 anos de prisão, tendo-lhe sido concedida liberdade condicional por decisão de 10/01/2020, até ao termo da pena em 18/05/2023.

O arguido agiu no período de liberdade condicional, com pesado registo criminal, evidenciando personalidade desconforme ao direito e a necessitar de rápida ressocialização. E para além do já exposto, também a personalidade extremamente desvaliosa que revelou nos factos praticados evidencia necessidades de ressocialização bem elevadas. Não há demonstrado arrependimento nem se provaram factos abonatórios.

As consequências do crime foram graves e perenes. A ofendida foi submetida a intervenção cirúrgica (laparatomia vertical) na região atingida, que determinou uma cicatriz de 19 centímetros e as lesões determinaram-lhe 90 dias de doença com 90 dias de incapacidade para o trabalho em geral.

A pena mostra-se fixada numa medida necessária à garantia das finalidades da punição, desde logo porque se evidenciam razões de prevenção geral elevadíssimas e com estas confluem necessidades de prevenção especial que resultam igualmente dos factos provados, como se expôs.

Todas as circunstâncias atenuantes relevantes que decorriam dos factos dados como provados, foram ponderadas pelo coletivo, o qual não podia deixar de considerar igualmente as agravantes que indicou, que caraterizavam a conduta do arguido e ressaltavam dos factos apurados. E foi, na ponderação das agravantes e das atenuantes, e na forma como o fez, usando critérios de razoabilidade e de bom senso, tendo em atenção as razões de prevenção geral e de prevenção especial que no caso concreto se faziam sentir, que o tribunal a quo determinou o quantum da pena a aplicar pelo crime cometido pelo arguido.

Em suma, a pena única de prisão de 5 anos e 6 meses responde adequadamente às concretas exigências de prevenção geral e especial, mostra-se necessária e proporcional, e não pode considerar-se que exceda o limite da culpa do arguido. É, por tudo, de manter. E ao invés do alegado não se mostra violados os artigos 71.º e 72.º, n. º2, al. c), do Código Penal, nem o artigo 18.º, n.º1 e 2 da Constituição da República Portuguesa.

Com o que, no arquétipo de remédio jurídico que assume o presente recurso, mesmo em matéria de medida da pena, não se justifica intervenção corretiva deste Supremo.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em

1. nos termos do artigo 380, nº 1, al. b), do CPP, eliminar no acórdão recorrido a referência à prática do crime com a “arma caçadeira”, por se tratar de manifesto lapso. E assim no respetivo parágrafo, pag. 40, com esta eliminação, passará a ler-se: “Todavia, há lugar à agravação prevista no art. 86, nº 3, da L. 5/2006, de 23/02, porquanto o crime foi cometido com uma arma.”

2. julgar improcedente o recurso do arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida.

3. Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em cinco (5) UC’s.

STJ, 21 de fevereiro de 2024

Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)

Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta)

Pedro Branquinho Dias (Juiz Conselheiro Adjunto)

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1. Pelo presente acórdão foi retificado este parágrafo (v. infra).