Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02A532
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: GARCIA MARQUES
Descritores: ALD
RESOLUÇÃO
DISTRATE
Nº do Documento: SJ200204160005321
Data do Acordão: 04/16/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 2928/01
Data: 05/24/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 219 ARTIGO 405 ARTIGO 406 N1 ARTIGO 436 N1 ARTIGO 801 N2.
DL 354/86 DE 1986/10/23 ARTIGO 17 N1 N2 N4.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ PROC463/99 DE 1999/07/07.
Sumário : I - Apesar do contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel ser formal, a resolução do mesmo não está sujeita a forma.
II - A entrega do veículo ao locador e aceitação do mesmo sem reserva configura um negócio extintivo ou distrate.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
A, intentou a presente acção declarativa de condenação, com processo ordinário, contra B, pedindo a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia global de 2.063.793$00; os juros de mora à taxa legal permitida sobre as rendas vencidas e não pagas, de 340.855$00, desde a data de vencimento de cada uma até efectivo pagamento; os juros de mora à taxa legal sobre a indemnização de 1.383.334$00, desde a data da citação até efectivo pagamento.
Para o efeito, alegou, em síntese, o seguinte: (a) celebrou com o R. um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor, em 17-03-94, pelo prazo de 48 meses, mediante o pagamento de uma renda mensal de 145.122$00, acrescida de 24.680$00 para pagamento de serviços complementares (seguro); (b) em 27-04-95, o R. restituiu o veículo à A., o que provoca o efeito jurídico de rescisão do contrato de aluguer; (c) àquela data encontravam-se vencidas e não pagas as rendas nºs 10 e 13 que se venceram, respectivamente, em 28-12-94 e 28-03-95; (d) a rescisão do contrato pelo locatário, porque geradora de dano na esfera jurídica da locadora, constitui aquele na obrigação de indemnizar a Autora, o que, para efeitos de cálculos, corresponde à diferença entre a valorização financeira do veículo, reportada à data da resolução, e o valor efectivo da sua venda, nos termos da cláusula 8.2 do contrato celebrado entre as partes e do artigo 801º do Código Civil; (e) sendo o valor financeiro do veículo à data da resolução de 4.733.334$00 e tendo a A. aceitado a melhor oferta de aquisição do veículo no montante de 3.350.000$00, a referida indemnização cifra-se em 1.383.334$00; (f) ademais, o R. procedeu à entrega do veículo sem que fosse observado o prazo de 60 dias estabelecido no artigo 1055, nº 1, alínea b), do C. Civil, pelo que, durante esse período o contrato manteve-se em vigor, devendo, por isso, o R. pagar à A. duas rendas, no valor de 339.604$00.
O R. contestou, alegando, em síntese, a cessão da sua posição contratual a um terceiro, concluindo no sentido da sua absolvição do pedido.
Após saneamento e condensação, procedeu-se a julgamento, vindo, em 08-03-2000, a ser proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, pelo que condenou o R. a pagar à A. a quantia de 339.604$00, correspondente às duas rendas vencidas e não pagas à data da restituição do veículo, acrescida de juros de mora, à taxa legal estabelecida no Decreto-Lei nº 1/94, de 4 de Janeiro, e Avisos mensalmente divulgados pela Junta de Crédito Público e Portarias nºs 1167/95, de 23-09, e 262/99, de 12-04, desde 28-12-94 e 28-03-95 em relação às quantias de 169.802$00 e 169.802$00 até integral pagamento - cfr. fls. 86 a 89.
Inconformada, apelou a Autora, tendo, no entanto, o Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 24-05-01, confirmado a decisão recorrida - fls. 120 a 130.
Continuando inconformada, traz a Autora a presente revista, oferecendo, ao alegar, as seguintes conclusões:
1.ª A revogação é "uma forma de extinção de um negócio jurídico por manifestação de vontade, em regra discricionária, do seu autor ou por acordo entre as partes (se se tratar de contrato) produzindo normalmente efeitos apenas para o futuro" (...);
2.ª A revogação, discricionária pelo seu autor (o aqui réu), é uma "forma de extinção do contrato";
3.ª O contrato em causa é um contrato de aluguer de veículo automóvel sem condutor cuja regulamentação se encontra no DL 354/86, de 23-10, sendo certo que, e por ser um contrato de aluguer, aplicam-se-lhe as disposições gerais do contrato de locação (art.ºs 1022º e ss. do CC), as disposições gerais dos contratos, quando de origem imperativa, como os mencionados art.s 801, n. 1 e 798 do CC e as cláusulas estabelecidas pelos contraentes que não estejam em contradição com aquelas (...);
4.ª O réu recebeu um veículo com 0 Km no valor de 5.442.000$00, tendo restituído um veículo com cerca de 15.585 Km, em 27-04-95, um ano após a data da celebração do contrato (cfr. docs. 1 e 3 juntos com a petição inicial);
5.ª À data da restituição do veículo estavam por liquidar as rendas vencidas em 28-12-94 e 28-03-95;
6.ª Não tendo o Réu pago as rendas vencidas em 28-12-94 e 28-03-95, constituiu-se assim em mora, pelo que o direito à rescisão não lhe pertence.
7.ª A restituição do veículo pelo locatário, ainda na vigência do contrato, foi imputável ao réu;
8.ª Configura tal conduta incumprimento do contrato celebrado;
9.ª O cumprimento da prestação a que estava obrigado tornou-se impossível;
10.ª A impossibilidade do cumprimento da prestação é equiparada à falta culposa de cumprimento da obrigação (art.º 801º, n.º 1 e 798º do CC);
11.ª A impossibilidade culposa, quando tem por fonte um contrato bilateral gera um direito indemnizatório;
12.ª Sem prejuízo e cumulável com a posição assumida pelo credor, a aqui recorrente, quanto ao contrato;
13.ª "... de facto o mesmo evento desvinculante pode ter dado origem a prejuízos para o titular do direito, derivados do comportamento ilícito e culposo do devedor (contraparte) e radicados na ruptura contratual consequente ao incumprimento (...);
14.ª Direito indemnizatório esse que visa ressarcir os prejuízos assumidos pelo credor, a Autora, recorrente;
15.ª Ocorrendo a extinção do contrato, tem a recorrente direito a uma indemnização pelos prejuízos sofridos;
16.ª Na verdade, o contrato de ALD implicava para o locador um elevado investimento financeiro, proporcionando ao locatário o direito de usar o veículo alugado, sem o dispêndio do desembolso inicial do preço de um veículo novo (...);
17.ª Se não fosse a proposta do locatário a locadora não tinha despendido, como despendeu, na aquisição do veículo, a quantia de 5.442.000$00 (cfr. doc. n.º 1/2 junto com a petição inicial);
18.ª Dispõe o art.º 562º do CC: "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação", sendo certo que "o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão"- art.º 564º, nº 1, do CC;
19.ª A indemnização devida circunscreve-se ao dano de confiança, também chamado de interesse contratual negativo;
20.ª Tendente à obtenção de uma reparação económica por tal forma razoável que a locadora se veja colocada em situação patrimonial idêntica àquela em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado" (...);
21.ª O contrato de aluguer de longa duração de veículo automóvel sem condutor é um contrato de alto risco para a locadora, uma vez que é demasiado elevado o capital aplicado e tem como objecto bens imóveis que, embora de consumo duradouro, estão sujeitos a desgaste e desactualização;
22.º A restituição dos bens pode tornar estes imprestáveis se o locador não tiver possibilidade de lhes dar segunda utilização ou causar-lhes prejuízos se não conseguir logo locá-los (...) ou, conseguindo-o, não "cubra" os prejuízos tidos com o facto de o contrato se ter extinguido antes do prazo acordado.
23.ª A ruptura contratual, além de frustar expectativa para a locadora das vantagens económicas que o cumprimento do contrato lhe proporcionaria implica também o risco de nova colocação no mercado do veículo, agora de usados, que não disporá da mesma aceitação dos consumidores, para lá do desgaste que é inerente ao aluguer do respectivo uso (...).
24.ª No presente caso a locadora vendeu o veículo em Junho de 1995, um mês após a sua restituição, pelo preço de 3.350.000$00.
25.º Todavia, os prejuízos sofridos com a "vultosa mobilização de capitais feita pela autora para a aquisição de disponibilidade dos bens locados, e por outro lado, os riscos elevados que ela corre, sobretudo quando traz à colação o desgaste de equipamento locado, que o pode tornar, por completo, imprestável" não foram ressarcidos com a posterior venda do veículo (...);
26.ª O mapa de valorização financeira com base no qual é calculada a indemnização, é elaborado no início do contrato, tendo em conta o valor da aquisição do veículo, a desvalorização e depreciação do mesmo ou seja, a contabilização do valor do bem em cada momento da vida útil do contrato;
27.ª A locadora, a A, adquiriu o veículo por 5.442.000$00; sobre esse preço acrescem a remuneração da imobilização do capital, a amortização do mesmo e a sua desvalorização, a auferir pela locadora, pois é esse o seu objecto social;
28.ª O veículo dado de locação ao locatário, calculando o valor da renda com base numa perspectiva de negócio com o prazo de 48 meses, só findo o qual a locadora se encontrará completamente ressarcida do dispêndio financeiro inicial;
29.ª Os automóveis bens com elevado índice de depreciabiliadde, o seu valor de revenda no mercado, não cobre de forma alguma o investimento realizado com a sua aquisição, uma vez que o veículo é adquirido para o contrato de aluguer, sendo o preço das mensalidades fixado de acordo com a perspectiva de negócio a realizar;
30.ª É, pois, evidente que a Autora tem direito a uma indemnização a qual para efeitos de cálculo, e por aplicação analógica da cláusula 8.2 das condições gerais do contrato, corresponde à diferença entre a valorização financeira do veículo, reportada à data da resolução e o valor efectivo da sua venda;
31.ª A indemnização resulta neste caso (calculada com base na diferença entre o valor financeiro e o valor efectivo de venda) justa e transcreve de forma exemplar o prejuízo sofrido pela locadora.

O R. não contra-alegou.
II
São os seguintes os factos dados como provados:
1 - A Autora, na qualidade de proprietária do veículo de matrícula DJ, de marca Honda, modelo Civic CRX 1.6 VTI, celebrou com o réu, em 17-03-94, um acordo escrito que designaram por "Contrato de Aluguer de Veículo sem Condutor", com o n.º 38006/2/1, que constitui o documento n.º 1, junto com a petição inicial, através do qual a autora se obrigou a ceder ao réu o gozo do referido veículo, pelo prazo de 48 meses, mediante o pagamento de uma renda mensal de 145.122$00, acrescida de 24.680$00, para o pagamento de serviços complementares (seguro) - al. A) da especificação;
2- O pagamento de tal renda era feito por débito na conta n.º 1550101042 do Balcão do "Credit Lyonnais", dependência da Miguel Bombarda - al. B) da especificação;
3 - O veículo foi entregue pela Autora ao Réu que o passou a utilizar - al. C) da especificação;
4 - Em 27-04-95 o Réu restituiu o veículo à Autora - al. D) da especificação;
5 - Na data de restituição, encontravam-se vencidas e não pagas as rendas n.ºs 10 e 13 que se venceram, respectivamente, em 28-12-94 e 28-03-95 - al. E) da especificação;
6 - Houve um terceiro que se mostrou disponível para adquirir a posição do Réu no acordo referido em 1 - al. F) da especificação;
7 - O valor financeiro do veículo à data da restituição à Autora era de 4.733.334$00 - al. G) da especificação;
8 - A Autora aceitou a melhor oferta de aquisição do mesmo pelo valor de 3.350.000$00 - al. H) da especificação;
9 - O Réu procedeu à entrega do veículo sem comunicar com a antecedência mínima de 60 dias que o iria fazer - resposta ao quesito 1º;
10 - O Réu procurou, por sua iniciativa, encontrar um terceiro que sucedesse na sua posição no acordo referido em 1 - resposta ao quesito 2º;
11 - Até que encontrou um terceiro que se mostrou interessado em suceder na sua posição no acordo - resposta ao quesito 4º;
12 - Dirigiu-se assim acompanhado do "cliente" às instalações da Autora para tratar da documentação necessária à referida transferência - resposta ao quesito 5º;
13 - Foi efectuada a proposta, que não foi aceite na altura, por necessidade de avaliar o crédito do proponente - resposta ao quesito 6º;
14 - Depois de compulsar os elementos comerciais fornecidos pelo terceiro que procurou a Autora, a mesma veio a considerar que aquele não tinha capacidade financeira para assegurar o pagamento de uma renda mensal de 171.053$00 - resposta ao quesito 9º;
15 - Pelo que a "cessão" não foi aceite pela Autora - resposta ao quesito 10º.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
III
Questão prévia:
Como se sabe, o âmbito objectivo do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 684, nº 3, e 690, nº 1, do C.P.C.), importando, assim, decidir as questões nelas colocadas - e, bem assim, as que forem de conhecimento oficioso -, exceptuadas aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras - artigo 660, nº 2, também do C.P.C.
A única questão que se coloca consiste em saber se a Recorrente, que recebeu do locatário o veículo que lhe dera em aluguer, restituição que ocorreu antes do termo do contrato, tendo-o vendido em seguida, terá direito a uma indemnização calculada com base na diferença entre a valorização financeira do veículo à data da restituição e o valor efectivo da venda por ela realizada, tudo em conformidade com o alegado nos artigos 14º a 17º da petição inicial.
Vejamos.
1 - A este propósito, pode ler-se no acórdão recorrido o seguinte:
"A Ré aceitou o veículo e nada fez, a não ser no mês seguinte, vender o veículo objecto da locação. A sua conduta é indiciadora da aceitação da proposta do réu, no sentido de terminar com o contrato de aluguer de veículo, entre eles celebrado."
Ou seja, a Relação considerou a entrega do veículo como exteriorização de uma declaração negocial no âmbito do contrato que é objecto dos presentes autos.
Ora, como se sabe, a interpretação da declaração negocial e, por isso, da vontade negocial constitui matéria de facto, em princípio da exclusiva competência das instâncias, na medida em que o Supremo Tribunal de Justiça conhece de direito - cfr. os artigos 26º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, 722, n.º 2 e 729, n.º 1 do CPC.
Quer isto dizer que, relativamente à apreciação das provas e à fixação da factualidade material, não pode haver revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. Apesar de o contrato de aluguer de veículo sem condutor constituir um negócio formal, na medida em que é exigível escrito em triplicado para a sua formalização, a sua resolução não está sujeita a regras específicas (não contempladas pelas condições gerais e especiais do contrato), sendo aplicável o disposto no art. 436, n.º 1 do Código Civil, de acordo com o qual a resolução se faz mediante declaração à outra parte por qualquer meio - art. 219, também do C. C., diploma a que pertencerão os normativos que se indiquem sem menção da origem.
Não tem, assim, aplicação, quanto à resolução, o disposto no art.º 238º.
Uma vez que a locadora não tinha conhecimento da vontade real do locatário quando este entregou a viatura, e porque a mesma não lhe foi comunicada de modo explícito, resta saber se, na interpretação da vontade negocial da locatária, a que procedeu o acórdão recorrido, foi observado o disposto no art. 236, n. 1, que consagra a teoria objectiva da declaração, segundo a qual ela vale com o sentido que um declaratário normal colocado na posição do real declaratário possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. Trata-se de uma questão de direito, da competência do STJ e própria da revista.
2 - As partes celebraram o mencionado "Contrato de Aluguer de Veículo Automóvel Sem Condutor", cujas condições "particulares" e "gerais" constam, respectivamente, de fls. 8, frente e verso. Resulta das "condições particulares" que a Autora, na qualidade de proprietária do veículo mencionado, cedeu ao Réu o gozo do mesmo, que o começou a utilizar (1).
Ora, a um tal contrato, para além do clausulado contratual que lhe é inerente, corresponde o enquadramento legal resultante do Decreto-Lei nº 354/86 de 23 de Outubro, que, para o aluguer de veículos automóveis sem condutor, impõe a forma escrita, em triplicado, com arquivamento do original pela empresa locadora pelo prazo de dois anos (artigo 17, nº 1), bem como a observância dos requisitos previstos no n. 2 do art.º 17.
O n. 4 desse artigo 17 estabelece o seguinte:
"É igualmente lícito à empresa de aluguer sem condutor retirar ao locatário o veículo alugado no termo do contrato, bem como rescindir o contrato, nos termos da lei, com fundamento em incumprimento das cláusulas contratuais".
Por conseguinte, em relação às situações não previstas de modo expresso no contrato, coloca-se a questão da lei a aplicar.
Por se tratar de um contrato de aluguer de veículo automóvel, muito embora de longa duração, entende-se serem-lhe aplicáveis as disposições específicas relativas à locação e, na falta destas, as regras gerais e os princípio gerais dos contratos.
As partes não previram a entrega antecipada do veículo por parte do locatário, tendo-a previsto em conformidade com o desenvolvimento normal da locação, no termo desta, o que, aliás, constitui obrigação geral de todo e qualquer locatário (cfr. a alínea i) do artigo 1038º).
3 - As instâncias consideraram aplicável ao caso dos autos, a figura da "revogação", conceito que a Recorrente, nas alegações da presente revista, vem aceitar (2). Por isso, e por não se tratar de questão essencial para a decisão do presente recurso, não nos alongaremos com divagações de contornos teóricos mais adequadas a tratamento em outras sedes.
Como se sabe, de acordo com o princípio da "liberdade contratual", as partes têm o direito de, dentro dos limites da lei, contratar e fixar livremente o conteúdo dos contratos (artigo 405º). Em causa está o princípio da liberdade de celebração e de estipulação, fixação e modelação do contrato. Uma vez celebrado, o contrato passa a ter força vinculativa (pacta sunt servanda), devendo ser pontualmente cumprido. Consequência do princípio da liberdade contratual é o da liberdade de extinção contratual, consagrado no n.º 1 do art.º 406º, através do contrato extintivo e, quando assim acontece, ocorre o mútuo dissenso, distrate, revogação bilateral ou contrarius consensus (3).
Para que ocorra extinção válida do aluguer de longa duração aqui em causa seria forçoso que se concluísse que as partes tinham acordado, posteriormente à celebração do contrato, em lhe pôr termo, sendo essa extinção uma verdadeira e própria revogação.
3.1. - A desvinculação unilateral de um contrato bilateral, para além da hipótese de denúncia (que tem razão de ser nos contratos de duração indeterminada por razões de intolerabilidade dessa situação), justifica-se nos casos de incumprimento ou em situações passíveis de configurar uma justa causa de rompimento. Mas uma desvinculação unilateral, não fundamentada, discricionária há-de resultar de acordo das partes ou de ocorrer dentro dos casos expressamente admitidos pela lei (4). Como escreve o Autor citado em nota, "as situações de desvinculação unilateral e discricionária não se resumem às cláusulas resolutivas expressas impróprias", abrangendo outros casos admitidos na lei - para utilizar a expressão do nº 1 do artigo 406º - ainda que esta (artigo 432º, nº 1) lhe chame resolução" (5).
3.2. - In casu, o locatário não tinha fundamento legítimo, resultante de incumprimento por parte do locador ou de outra justa causa, para se desvincular do contrato. Por outro lado, nem o contrato nem a lei facultam, neste caso, ao locatário o direito de, unilateralmente, se desvincular.
Todavia, entendeu-se, no acórdão recorrido, que a restituição da viatura pelo Réu à Autora, ora Recorrente, consubstancia uma proposta de revogação do contrato dos autos, a qual terá sido aceite pela locadora. Com efeito, estão provados factos que, a nosso ver, permitem concluir que a locadora aceitou essa desvinculação, resultando, dessa forma, a extinção do contrato de locação antes do termo do prazo, por contrato extintivo ou distrate.
Na verdade, como consequência de iniciativa desenvolvida pelo Réu, apareceu um terceiro que se mostrou disponível em suceder na sua posição contratual - alínea F) da especificação e respostas aos quesitos 2º e 4º. Em seguida, o R. dirigiu-se, acompanhado pelo "cliente", ou seja, pelo terceiro em causa, às instalações da Autora para tratar da documentação necessária à referida transferência, tendo sido efectuada a proposta, que não foi aceite na altura, por necessidade de avaliar o crédito do proponente - respostas aos quesitos 5º e 6º.
É certo que, de acordo com o conteúdo da carta de 18 de Abril de 1995, a fls. 79, a A. chama a atenção do R. "para o facto de a cedência da sua posição estar sujeita a aprovação pela A, pelo que todas as responsabilidades se manterão a cargo de V. Exª, até à data de aprovação da alteração e entrega dos respectivos contratos assinados e reconhecidas as assinaturas notarialmente".
No entanto, não só o conteúdo da referida carta apenas se refere à concretização da cessão da posição contratual do Réu (que, manifestamente, não se verificou), questão que não faz parte do objecto do presente recurso, mas também o teor do referido documento de fls. 79 não foi levado em linha de conta na fundamentação das respostas aos quesitos, conforme se pode constatar de fls. 84, sendo certo que das respectivas respostas não houve reclamações.
Acresce que o mencionado documento de fls. 79, datado de 18-04-95, é anterior à data de entrega da viatura por parte do locatário, não sendo relevante para caracterizar uma vontade negocial em face da mencionada restituição.
Ora, o certo é que a locadora não só não se opôs à entrega do veículo, como declarou que o R./locatário, "em representação da Empresa", procedeu "nesta data (27-04-95) à entrega de um veículo" (o dos autos, isto é, de marca HONDA, modelo CIVIC CRX, matrícula DJ, com 15.582 Klms.), tendo inspeccionado a viatura e declarado o seu "bom estado geral" - ver declaração de fls. 11. E, não só recebeu a viatura antes do termo do prazo, como acabou por a vender por 3.350.000$00 em 01-06-95, isto é, pouco mais de um mês depois, conforme documento de fls.14.
3.3. - Já se tem entendido que ocorre incumprimento do contrato para efeitos do n.º 2 do artigo 801º quando o devedor mostre inequivocamente que não está disposto a cumprir, podendo uma tal entrega consubstanciar uma vontade inequívoca por parte do locatário de não cumprir.
Mas, nesse circunstancialismo, abrem-se duas opções ao locador: ou mantém o contrato e exige o seu cumprimento integral e pontual (o que a A / locadora aqui não fez); ou põe-lhe termo através da resolução que teria de ser efectuada mediante notificação ao devedor, o que a locadora também não fez (nem pede expressamente na presente acção) (6). Sendo, obviamente, irrelevante para a decisão do presente recurso a situação de mora em que o R. se encontrava quanto ao pagamento de duas prestações, tanto mais que não houve qualquer manifestação de perda de interesse na prestação por parte da credora nem recusa de cumprimento pelo devedor (artigo 808º, nº 1).
De concluir, portanto, que a aceitação da viatura foi sem reservas. Ora, restituída e aceite sem reservas a viatura, vendida a mesma pela locadora, é de concluir, como o fez a Relação, que esta última aceitou a revogação, tendo-se extinto o contrato nos termos do n.º 1 do artigo 406º.
O direito à indemnização - que a Autora apoia na previsão da condição geral 8.2 - não tem, assim, fundamento, até porque aquela condição se refere ao direito de resolver o contrato por parte da locadora em caso de incumprimento por parte do cliente.
3.4. - A aplicação analógica de uma regra ou de uma condição contratual (que também vale como regra inter partes) pressupõe que exista uma lacuna e que, em tal caso omisso, procedam as razões justificativas da regulamentação do caso previsto - artigo 10º.
A lacuna é, em fórmula corrente entre os autores alemães, uma "incompletude do sistema normativo que contraria o plano deste" (7). Como escreve Baptista Machado, existirá uma lacuna quando a lei (dentro dos limites de uma interpretação ainda possível) e o direito consuetudinário não contêm uma regulamentação exigida ou postulada pela ordem jurídica global. Ou melhor: quando não contêm uma resposta a uma certa questão jurídica.
Ora, é manifesto que, in casu, não existe nenhum caso omisso, passível de ser integrado com recurso à analogia.
Por outro lado, o pretendido direito à indemnização pressuporia sempre um incumprimento injustificado por parte do locatário e, no caso concreto, um incumprimento que, sendo considerado definitivo pelo locador, fosse acompanhado pelo exercício expresso do direito de resolução contratual por parte deste (8).

Termos em que se nega a revista.
Custas pela Recorrente.
Lisboa, 16 de Abril de 2002
Garcia Marques,
Ferreira Ramos,
Pinto Monteiro.
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(1) A propósito do início do contrato, a ocorrer na data da "autorização da entrega", cfr. a cláusula 3.1.das "condições gerais".
(2) Cfr., verbi gratia, fls. 151. Não assim nas antecedentes alegações da apelação, no quadro das quais a Recorrente considerava estar-se perante um caso de "caducidade".
(3) Cfr. Manuel Januário Costa Gomes, "Em Tema de Revogação do Mandato Civil", Almedina, Coimbra, 1989, pág. 46; Vaz Serra, em anotação ao acórdão do STJ de 08-06-78, na RLJ n.º 112, págs. 27 a 32.
(4) Cfr. Manuel Januário da Costa Gomes, obra citada, págs. 74/75.
(5) Loc. cit. na nota anterior, pág. 74. O Autor dá conta de que Galvão Telles propendia para a utilização do termo revogação, designando toda a cessação de contrato provocada por um poder discricionário.
(6) Cfr. o Acórdão do STJ de 07-07-99 na Revista n.º 463/99.
(7) Cfr. J. Baptista Machado, "Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador", 2ª reimpressão, Almedina, Coimbra, 1987, pp. 175 e seguintes, maxime, nota (18), pág. 202.
(8) Vejam-se os seguintes arestos: Ac. da R de Lisboa de 27-04-95, in C.J. Ano XX, T. II, 1995, págs. 120 a 122; Ac da R. de Lisboa de 07-07-94, in C. J. Ano XIX, T. IV, 1994, págs. 79 e 80; Ac do STJ de 09-03-93, in C.J. Ano I, T. II, págs. 8 a 10; Ac da R.P. de 19-04-99 in C.J. Ano XXIV, T. II, 1999, págs. 205 a 207.