Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
480/12.1TBMMV.C1.S2
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: VALIDADE DA DECLARAÇÃO
USURA
ABUSO DO DIREITO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
Apenso:
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / NULIDADE E ANULABILIDADE DO NEGOCIO JURÍDICO / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO.
Doutrina:
- Ana Prata, A Tutela Constitucional da Autonomia Privada, Coimbra, Almedina, 1982, máx. p. 85 ss.;
- Heinrich Ewald Hörster – A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, reimp. da ed. de 1992, p. 557;
- Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo. A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Coimbra, Almedina, 2010, p. 131-142;
- Menezes CordeiroDireito dos Seguros, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2017, p. 857;
- René Chapus (Droit Administratif Général, Paris, Montchrestien, 1993, vol. I, p. 984-985.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 282.º E 334.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 14-03-2019, PROCESSO N.º 1189/15.0T8PVZ.P1.S1;
- DE 04-07-2019, PROCESSOS N.º 5762/13.2TBVFX-A.L1.S1.
Sumário :
I – A usura pode afetar a validade de uma declaração negocial, por induzir na vontade de uma das partes um vício na formação daquela. Porém a usura, com toda a carga semântica que historicamente se foi sedimentando, embora seja hoje sobretudo um vício de que pode estar inquinado o negócio jurídico (v.g. art. 282 do CC), assume um pathos de tal forma negativo, mesmo arrasador, que, apesar de em certos casos poder uma situação muito se lhe aproximar, necessita, para realmente verificar-se, de se encontrar preenchida uma situação de clara e clamorosíssima gravidade e injustiça, sobre que não pairem dúvidas.

II – O abuso do direito (art. 334 CC), sem deixar de espelhar uma notória desconformidade com a juridicidade fisiologicamente sã, apesar de tudo não envolve um juízo tão pesado de reprobabilidade quanto a declaração de usura. É o abuso do direito um instituto de grande plasticidade, sobretudo se entendido em termos modernos e hábeis, sem o casulo subjetivista que já o entorpeceu no passado. E especificamente podendo prescindir de um numerus clausus de brocardos.

III - Pode uma Seguradora exercer os seus direitos subjetivos, nomeadamente propondo um acordo a sinistrada, quiçá sem nenhuma violação do direito constituído; mas se o concreto uso do seu direito ultrapassou os seus inerentes limites (art. 334 CC), se atentou, nomeadamente, contra as regras de boa fé, v.g. numa utilização excessiva da posição natural de supremacia de uma instituição do seu género face a um particular especialmente vulnerável e com debilidades em diferentes aspetos, verifica-se o abuso do direito.

IV – A atribuição de indemnização por danos não patrimoniais ganha em ser feita com recurso a juízos hábeis, dúcteis e teleológicos, que tenham em conta todas as circunstâncias do caso concreto e não esqueçam que a finalidade principal da compensação é proporcionar ao lesado(a) meios de diminuição da sua dor. Não pode ser irrisória nem descomunal, mas adequada aos danos e à condição de quem deles irá usufruir.
Decisão Texto Integral:

 

Proc.º nº 480/12.1TBMMV.C1.S2

1.ª Secção

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 

I

Relatório

1.A ora Recorrente, AA, interpôs ação declarativa sob forma ordinária contra BB – Sucursal em Portugal, pedindo a condenação da mesma a pagar-lhe a quantia de € 98.865, 00, acrescida de juros desde a citação.

2.Alegou, em síntese, haver sido vítima de acidente de viação em 2007, causado por segurado da R., do qual lhe resultaram múltiplos ferimentos, com consequências graves, designadamente de incapacidade. Invoca ter recebido tratamento médico nos serviços da seguradora R., entendendo que, em função da incapacidade com que ficou, lhe é devida indemnização no valor de € 98.865, 00 (descontados os € 50.000, 00, já pagos pela R.). Pelos danos não patrimoniais, entre o mais, com quantum doloris de 6 e dano estético de 5, entende ser-lhe devida compensação de € 40,000, considerando ainda o agravamento das sequelas que vêm ocorrendo desde o ano de 2010. Refere que a R. a indemnizou extra-processualmente. Mas, tendo ela A. reclamado € 90.000, 00, apenas recebeu € 50.000, 00. Alega que não interveio nessas negociações, em que intervieram terceiras pessoas e funcionários da R., que a afastaram, e lhe afiançaram que, além de tal valor, receberia ainda o montante mensal de €750,00 até completar 50 anos de idade, o que não ficou a constar no recibo de quitação por ela assinado, no montante de € 50.000,00. Tal documento, porém, não teria por ela sido compreendido, por ter pouca instrução, debilidades cognitivas, intelectuais e volitivas, associadas a alcoolismo, em função do que não teria tido qualquer consciência de que com o documento em causa apenas receberia o valor nele indicado e não qualquer outro mais, pelo que a sua declaração deveria considerar-se nula, nos termos do art. 246 do CC. Apenas teria assinado o recibo pensando que com o mesmo dava quitação dos € 50.000, 00, mas sem qualquer consciência de que renunciava a outros valores a que entende ter direito. Entende ainda que a R. atuou com má-fé, aproveitando-se da debilidade mental dela e da sua precária situação económica para a levar a assinar recibo, que estaria viciado, nos termos dos arts. 247, 251, 253 e 254 do CC, salientando que a R. conhecia a situação de inexperiência e debilidade dela, pelo que a quitação seria anulável, nos termos do art. 282, n.º 1 CC.  Invoca ainda a cláusula dos bons costumes ínsita no art.º 280, n.º 2 para obter a nulidade da quitação, considerando a desproporção entre o que entende ser-lhe devido e o recebido (€ 50.000, 00), bem como a exclusiva intervenção no ato de acerto dos valores do representante da R., do companheiro dela e do pai deste, com total ausência dela. Ademais, depois daquela quitação, surgiram novos danos que o documento não poderia englobar, não podendo existir renúncia antecipada, que seria nula, nos termos do art. 809 CC.

3.A R. contestou, afirmando ter assumido a responsabilidade pelo sinistro, tendo  pago à A., além do valor referido no recibo de quitação, o valor dos salários deixados de auferir durante o período de incapacidade temporária para o trabalho e despesas com deslocações para tratamentos. Quanto à negociação do valor final recebido pela A., esta teria estado presente mais do que uma vez na delegação da R., não tendo revelado qualquer debilidade intelectual ou cognitiva, sempre participando nas negociações. A proposta da R. acerca do valor atribuído e dos danos a que se referia foi apresentada à A. e não a terceiros, tendo a A. solicitado tempo para decidir, só mais tarde comunicando a aceitação da indemnização relativa a todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, incluindo uma cirurgia ainda a realizar para retirada de material de osteossíntese.

4. Foi apresentada réplica, sobre a qual foi considerado nada de novo haver sido alegado.

5.Elaborado despacho saneador e selecionada a factualidade relevante, foram apresentados articulados supervenientes (fls. 64 e 174).

6. Realizado julgamento, foi proferida sentença, que julgou parcialmente procedente a ação, embora apenas no que respeita à invalidade do recibo de quitação quanto à renúncia antecipada aos danos futuros, absolvendo a R. do demais peticionado. Cite-se expressamente o Dispositivo: “Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o pedido no que respeita à invalidade do recibo de quitação de fls. 25 quanto à renúncia antecipada aos danos futuros, mantendo-se intacto no demais.  Absolve-se a Ré do demais peticionado.”

7.Imediatamente antes, a fundamentação do Tribunal de 1.ª instância terminara da seguinte forma, que melhor nos permite compreender o Dispositivo citado supra (6):

“Certo que a atividade profissional pode ser mantida, ainda que com esforços suplementares, mas recorde-se que a Ré indemnizou a A. a este título em € 40.000, 00.

Do ponto de vista dos danos não patrimoniais, foi atribuído pela Ré à A. o valor de € 7.000, 00, valor que - considerando as lesões, quantum doloris, tempo de incapacidade parcial e total, cirurgias, incapacidade, repercussão nas atividades desportiva, de lazer e sexual, e dano estético - se afigura parco.

Todavia, este montante, acrescido do que sobeja dos € 23. 114, 20, para os € 40.000, 00, atribuídos, ascende já a patamares de equidade e justiça que afastam qualquer ideia de usura ou de ofensa dos bons costumes ou contrariedade da ordem pública.

É, por isso, de manter o documento de quitação., com exceção da renúncia antecipada aos danos futuros.

No mais, vejam-se que os danos alegados pela A. e que entretanto lhe teriam sobrevindo desde 2009 até à data da propositura da ação não foram demonstrados, sendo certo ser expectável dano futuro que, a ocorrer, deverá ser indemnizado pela Ré em momento oportuno e não neste.”

8. Inconformada, apelou a A., tendo o Tribunal da Relação julgado improcedente o recurso e confirmado a sentença do tribunal de 1.ª instância.  

9. Novamente inconformada, a A. interpôs recurso de revista excecional que foi admitido pela Formação a que se refere o artigo 672, n.º 3, do Código de Processo Civil, que considerou verificado o pressuposto da alínea a) do n.º 1 do mencionado artigo (fs. 487), por estar na discussão envolvida, além do mais, a questão da usura, a qual poderá ter “extrema importância”, não inédita mas não tendo alcançado ainda uma frequência e segurança jurisprudenciais em ordem a ficar “acautelada a melhor aplicação do direito”.

 10. Na sua alegação de recurso, a A. formulou as seguintes conclusões especialmente atinentes ao objeto da ação:

“Nos casos em que a incapacidade permanente é suscetível de afetar ou diminuir a potencialidade de ganho por via da perda ou diminuição da remuneração, maxime quando a vítima à data do acidente efetivamente exercia atividade remunerada, os tribunais têm procurado fixar a indemnização por apelo à atribuição de um capital que se extinga ao fim da vida (ativa ou total) do lesado e seja suscetível de lhe garantir, durante aquela, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganho. Para o efeito, têm sido utilizadas várias fórmulas e tabelas financeiras, na tentativa de se alcançar um critério uniforme.

t. Assim, para proceder ao cálculo da indemnização devida o tribunal de 1.ª instância recorreu à fórmula matemática que é utilizada em diversos arestos jurisprudenciais. Tal fórmula encontra-se expressa na Portaria n.º 377/2008 de 26 de maio, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de junho, que estabelece, no anexo III, uma fórmula de cálculo do dano patrimonial futuro, acompanhada de uma tabela prática de aplicação.

u. Esta Portaria fixa os critérios e valores orientadores utilizados pelas seguradoras para efeitos de apresentação de proposta aos lesados por acidente automóvel e reproduz aquela que foi proposta pela Relação de ... no acórdão de 04.04.1995, citado na sentença da 1.ª instância.

v. Porém, a jurisprudência não esquece que as referidas fórmulas “não se conformam com a própria realidade das coisas, avessa a operações matemáticas, certo que não é possível determinar o tempo de vida útil, a evolução dos rendimentos, da taxa de juro ou do custo de vida”, acrescendo que “não existe uma relação proporcional entre a incapacidade funcional e o vencimento auferido pelo exercício profissional em termos de se poder afirmar que ocorre sempre uma diminuição dos proventos na medida exatamente proporcional à da incapacidade funcional em causa. Assim, neste caso as mencionadas tabelas só podem ser utilizadas como meramente orientadoras e explicativas do juízo de equidade a que a lei se reporta” (acórdão do STJ, de 17.11.2005, processo 05B3436, disponível em www.dgsi.pt).

w. Daí que, já entre a supra referida Portaria e Acórdão, existisse divergência entre alguns dos critérios utilizados pelas seguradoras e os que têm sido adotados pelos tribunais, nomeadamente no que toca à divergência quanto à taxa de juro considerada (a Relação previa 7%, a Portaria prevê 5%) e quanto à taxa de atualização anual das prestações (a Relação previa 6%, a Portaria prevê 2%). - naturalmente, a taxa de juro aplicada pelo tribunal, sendo superior, favorece mais o lesado do que a taxa aplicada pela seguradora.

x. Em primeiro lugar, note-se que a sentença, posteriormente confirmada pelo acórdão ora recorrido, aplicou a taxa de juro mais baixa (5%) prevista na Portaria, bem como, em segundo lugar, que foi aplicada a fórmula e valores utilizados pelas seguradoras, não tomando em conta que tais valores necessitam de ser adequados à luz do panorama financeiro atual de modo a refletir as taxas de juro atualmente praticadas.

y. Ora, os critérios usados pelas companhias de seguros mais das vezes, em função dos critérios utilizados, dão origem a propostas muito baixas. Ou seja, as portarias em causa vieram propor a alternativa de valores quase insignificantes, ou seja, muito longe daqueles que os tribunais, com esforço, vinham – e vêm – ultimamente a aplicar.

z. Por isso, é irrazoável e inconstitucional aceitar os critérios utilizados sem qualquer adaptação à realidade atual e às circunstâncias do caso concreto, devendo o montante obtido ser aumentado de acordo com a equidade e com o panorama financeiro atual e as taxas de juros aplicáveis. aa. Vejamos o Acórdão to T.R.C. de 08/11/2016, Proc. n.º 319/12.8TBMGL.C1 (disponível em www.dgsi.pt):

“1. Os Tribunais devem reger-se pelos critérios fixados no Código Civil no cálculo das indemnizações decorrentes de acidentes de viação e não pelo disposto nas Portarias n.º 377/2008, de 26 de Maio e n.º 679/09, de 25 de Junho, que apenas servem para vincular as seguradoras na apresentação das ditas “propostas razoáveis” em sede de negociação extra-judicial.

2. Em obediência aos critérios legais, o cálculo do quantitativo da indemnização a atribuir   pelo   quantum   doloris,   que   se   integra   nos   danos   não   patrimoniais,   deve efectuar-se   de   acordo   com  regras   de   equidade   e   o   arbítrio   do   julgador,   partindo sempre de dados objectivos, tais como a idade da vítima, o período normal e médio da vida activa de uma pessoa, os salários auferidos e os meses em que os mesmos são pagos, a desvalorização da moeda, as taxas de juros praticadas e o facto de se passar

a dispor de uma quantia, por uma só vez, que de contrário só se iria receber daí a alguns   anos.   Tal   não   implica,   como   é   óbvio,   que   o   tribunal   não   se   socorra   de operações   de   cálculo,   sem   as  quais   seria   de   todo,   ou   quase   de   todo,   impossível computar a indemnização devida”.

bb. Assim,  a   posição   que   tem   sido   já   há   largos   anos   defendida   na   jurisprudência   dos nossos      tribunais      superiores      considera      que,      após      a      determinação      do      capital indemnizatório há que proceder a um desconto ou dedução em função da antecipação do     pagamento     da     indemnização,     porquanto     o     lesado     receberá     a     totalidade     da indemnização de uma só vez, podendo esse capital ser rentabilizado, produzindo juros.

cc. Assim,  trata-se    de    subtrair    o    benefício    respeitante    ao    recebimento    antecipado    do capital, ou seja, de efetuar uma dedução correspondente à entrega imediata e integral do  capital,  sob  pena  de  se  verificar  um  enriquecimento  sem  causa  do  lesado  à  custa alheia.    Tal    redução    oscilava    entre    os    10%    e    os    33%    -   (cfr.    acórdãos    do    STJ    de25/11/2009,  proc.       nº.       397/03.0GEBNV,       do       TRC       de       15/02/2011,       proc.       nº. 291/07.6TBLRA e do TRE de 11/06/2015, Proc. n.º 163/11.0TBFZZ.E1, todos acessíveis em www.dgsi.pt).

dd. Contudo,  há   que   ter   em   conta   a   progressiva   descida   das   taxas   de   juro,   que   estão atualmente em valores demasiado baixos ou mesmo negativos - e sendo a tendência no futuro a de se manterem em valores extremamente baixos –, o que significa que a rentabilização que poderia haver por o capital ser recebido de uma só vez, atualmente, é quase inexistente. ee. Assim, para uma fixação equitativa da indemnização havia que ser ponderado e sopesado o atual panorama financeiro e as taxas de juro atualmente praticadas, de modo a que os valores reflitam e sejam proporcionais e adequados à realidade atual da vida, devendo ser ajustada em conformidade a indemnização atribuída.

ff. Outro aspeto que deve ser tomado em conta aquando da fixação de uma indemnização é a comparação com outras decisões judiciais, tendo em vista o cumprimento do disposto no n.º 3 do art. 8.º do C.C. – “Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito” – e de modo a dar cumprimento ao princípio da igualdade (art. 13.º da C.R.P.).

gg. Citando o Acórdão do T.R.C. de 28/05/2013, Proc. n.º 1721/08.5TBAVR.C1:“Os princípios da igualdade e da unidade do direito e o valor da previsibilidade da decisão judicial vinculam à padronização e à normalização do valor da indemnização. Ou seja, o recurso à equidade não obsta à ponderação, como termo de comparação, dos valores pecuniários encontrados para o mesmo efeito noutras decisões judicias relativas a casos semelhantes, transitadas em julgado, sem prejuízo das especificidades e particularidades do caso que, concretamente, é submetido à apreciação do tribunal”.

hh. Se bem atentarmos na jurisprudência que vem sido proferida verificamos que o quantum indemnizatório atribuído à Recorrente de € 50.000,00 (dos quais, € 40.000,00 pela redução da capacidade de ganho e € 7.000,00 a título de danos não patrimoniais) claramente insuficiente, desproporcional e parco tendo em conta os danos sofridos, afrontando, manifestamente, as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida.

ii. Basta atentarmos nos factos dados como provados nos pontos 5 a 8 da matéria dada como assente  pelas   partes  e  os   factos  11  a   29  dos   factos   dados  como  provados  após julgamento:

-           A Recorrente tinha 31 anos (feitos menos de dois meses antes da data do acidente) à data do acidente, pelo que ainda teria pela frente um período de vida ativa de, pelo menos, 40 anos;

-           Auferia o salário mínimo nacional que à data se cifrava em € 426,50;

-           A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 18-11-2008, ou seja, 400 dias após o acidente.

-           De acordo com o primeiro relatório pericial realizado pelo INML junto aos autos em 12-07-2016 (fls. …) foi atribuído um DFP (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica) de 19 pontos, uma vez que teve também em conta a perícia psiquiátrica realizada que se refere a um coeficiente de desvalorização de 7 pontos pela existência de sintomatologia ango-depressiva que aí se entendeu estar relacionada com o acidente de viação.

-           Sofreu múltiplas fraturas, esteve internada, acamada e foi sujeita a três operações cirúrgicas distintas;

-           Teve de socorrer-se de cadeira de rodas e do uso de canadianas e fez várias sessões de fisioterapia;

-           Em resultado do acidente, a autora passou a sentir dificuldade em levantar pesos, principalmente com a mão direita, não conseguindo estar de pé durante mais do que 3 a 4 horas, tem ligeira crepitação no membro inferior esquerdo, dificuldade em colocar-se na posição de cócoras ou de joelhos e de subir ou descer mais do que um lance de escadas.

-           Toma diariamente analgésicos;

-           O dano estético permanente foi fixado no grau 4/7;

-           a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer foi fixado no grau 2/7;

-           a repercussão permanente na atividade sexual no grau 2/7;

-           repercussão nas atividades desportivas e de lazer (grau 2/7);

-           quantum doloris de 5/7 sendo de perspetivar a existência de dano futuro.

jj. Agora compare-se, a título de exemplo, com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2016, Proc. n.º 37/13.0TBMTR.G1.S1, Relator: Maria da Graça Trigo, em que se considerou ser de atribuir a um lesado de 43 anos de idade (doze anos mais velho do que a Recorrente), a quem foi atribuído um DFP de 11 pontos (inferior ao atribuído à Recorrente se considerarmos o primeiro relatório pericial que toma em devida conta a perícia psiquiátrica realizada, atribuindo-lhe um DFP de 19 pontos), um quantum doloris de 5/7 (igual ao atribuído à Recorrente) e um dano estético de 4/7 (também equivalente ao atribuído à Recorrente), uma indemnização que poderia ascender a quantia superior a € 30.000,00 pelo dano biológico e à quantia de € 35.000,00 a título de danos não patrimoniais.

kk. Ou seja, com uma classificação de DFP de 11 pontos a indemnização ascenderia, no mínimo, a € 65.000,00. Agora, note-se que à data a Recorrente era muito mais jovem (tendo apenas 31 anos), tendo ainda sofrido dano sexual (2/7) e repercussão nas atividades desportivas e de lazer (grau 2/7), bem como sofreu sequelas que demandam esforços acrescidos para o exercício da sua profissão, para além de que, o primeiro relatório pericial realizado que toma em conta a perícia psiquiátrica realizada à ora Recorrente, atribui um DFP de 19 pontos, aspetos estes que não foram devidamente levados em conta.

ll. Ademais, o Ac. do STJ 07/042016 (Proc. 237/13.2TCGMR.G1.S1) – lesada de 22 anos, internada durante três semanas; o quantum doloris foi fixado em 4 (inferior ao atribuído à Recorrente); o défice funcional permanente da integridade físico-psíquica foi fixado em 8% (novamente, inferior ao da Recorrente); as sequelas são compatíveis com o exercício da atividade habitual mas implicam esforços suplementares (tal como a Recorrente); o dano estético foi fixado em 3 numa escala de 1 a 7 (inferior ao da Recorrente); a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer foi fixada em 1 numa escala de 1 a 7 (inferior ao atribuído à Recorrente); - em que considerou-se justa e adequada a fixação da compensação, somente no que toca a danos não patrimoniais, o montante de € 50 000,00.

mm.     E,  novamente,  note-se  que,  comparativamente,  a  Recorrente  é  somente  9  anos mais velha que o caso citado, para além de que os danos sofridos pela Recorrente são de grau superior, não esquecendo que a Recorrente sofreu ainda dano sexual, bem como o DFP que lhe foi atribuído é superior em, pelo menos, três pontos percentuais (11 se tivermos em conta o primeiro relatório pericial).

nn. Mas ainda, o Ac. STJ 19/02/2015 (Proc. 99/12.7TCGMR.G1.S1) - lesado de 43 anos (12 anos mais velho que a Recorrente), que sofreu DFP de 12%, quantum doloris de 4/7 (inferior  ao  da  Recorrente),  dano  estético  de  1/7  (muito  inferior  ao  da  Recorrente)  e sem qualquer tipo de dano sexual ou repercussão em atividades desportivas e de lazer, ao contrário da Recorrente, a quem foi atribuída, só a título de danos não patrimoniais, o valor de € 20.000,00.

oo. Acrescentamos, ainda, o facto de o acidente da Recorrente ter ocorrido por facto imputável, a título de culpa exclusiva, ao condutor do veículo segurado, porque na avaliação do dano há igualmente que ter em conta o caráter sancionatório da indemnização a atribuir. O dano especificamente sofrido de caráter não patrimonial a fixar equitativamente tem de ter sempre em conta o pressuposto ético que está na base da obrigação de indemnizar - que é o da sanção da conduta culposa do agente - cfr. arts. 494.º, 497.º n.º 2 e 500.º, n.º 3 do C.C..

pp. Pelo que, mesmo que se considerem apenas 11 pontos de DFP sempre seria manifestamente insuficiente e desproporcional, tendo em conta toda a factualidade dada como provada quanto aos danos sofridos pela Recorrente, nomeadamente os factos 5 a 8 da matéria dada como assente pelas partes e os factos 11 a 29 dos factos dados como provados após julgamento, uma indemnização no valor de € 50.000,00, tendo a sentença proferida violado as normas constantes dos arts. 8.º, n.º 3, 483.º, n.º 1 e 566.º, n.º 3, todos do C. C., bem como o princípio da igualdade (art. 13.º CRP) e da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2 CRP).

qq. Assim, o acórdão recorrido deve, pois, ser revogado e substituído por outro que aumente o valor da indemnização a atribuir à Recorrente para um valor nunca inferior a € 136.865,00 (cento e trinta e seis mil oitocentos e sessenta e cinco euros) a título de danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, aos quais deverão ser deduzidos os € 50.000,00 já recebidos, num total de € 86.865,00 (oitenta e seis mil oitocentos e sessenta e cinco euros).

rr. Por tal valor se mostrar adequado, se atentarmos nas características do acidente, nos fatores que devem ser considerados na fixação deste tipo de quantia indemnizatória – data de consolidação das lesões, desgosto, submissão a operações cirúrgicas, internamento hospital, quantum doloris, dano estético, dano sexual, repercussão nas atividades de desporto e lazer, DFP, bem como os ligados ao critérios matemáticos que orientam os valores indemnizatórios e taxas de juro aplicáveis, assim como na jurisprudência recente dos nossos tribunais superiores.

ss.  Mesmo que assim não se entenda, e se considere o DFP de 11 pontos, nunca deverá ser atribuída uma indemnização inferior a € 95.000,00 (noventa e cinco mil euros) aos quais se deverão deduzir os € 50.000,00 já recebidos, num total de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros). tt. Por todo o supra exposto, violou o acórdão por ora recorrido, os princípios constitucionais da igualdade (art. 13.º C.R.P.) e da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2 C.R.P.), bem como os arts. 8.º, n.º 3, 483.º, n.º 1 e 566.º, n.º 3, todos do C. C., ao considerar justa e equitativa a indemnização a título de danos patrimoniais e não patrimoniais atribuída à Recorrente no valor de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), não adaptando a fórmula e critérios utilizados à especificidade do caso concreto e à situação financeira e taxas de juros atualmente praticadas, bem como atribuindo uma indemnização desfasada, insuficiente, desproporcional e parca, em particular se comparada com outros valores indemnizatórios atribuídos, tendo em conta os danos sofridos, afrontando, manifestamente, as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida.”

11.Não foram produzidas contra-alegações.

12.Sabido que o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, se delimita pelas conclusões, as questões a decidir seriam as seguintes, de que curaremos infra, subsequentemente aos Factos:

I - Validade da declaração negocial da autora

II - Cálculo da indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais

III – Questão sobre a constitucionalidade.

13.Tomaremos evidentemente em muita consideração as razões que levaram a Formação a admitir o recurso, havendo ponderado maduramente em especial a questão da “usura”, como se verá.

             

II

Dos Factos

A.O tribunal da 1.ª instância deu como provados os seguintes factos:

 1 - No dia 15 de Outubro de 2007, a A. circulava na Estrada do Campo, margem esquerda do rio ..., no sentido ...-..., conduzindo o ciclomotor com a matrícula 0-XXXX-04-00.

 2 - No local, a estrada tem configuração de uma reta e o tempo estava “bom”.

3 - Na sua mão de trânsito, a A. foi embatida pelo veículo ligeiro 00-DQ-00, que circulava no sentido contrário (...-...).

4 - Do sinistro resultaram inúmeros danos para a ora A., que deu entrada imediata no serviço de urgência do Hospital Distrital da …, E.P.E., onde lhe foram realizados vários exames médicos.

5 - A A. esteve internada até ao dia 26/11/2007.

6 - À A. foi atribuída uma incapacidade temporária absoluta, sendo-lhe posteriormente atribuída uma incapacidade temporária parcial para o trabalho de 50%.

7 - Para a Ré estava transferida a responsabilidade pelos danos emergentes da circulação do 00-DQ-00, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º 000000009.

 8 - A A. nasceu em 29.8.77.

 9 - Com data de 2.2.09 e referente ao sinistro de 15.10.07, a A. assinou o documento de fls. 25, onde se lê, entre o mais, o seguinte: «Recebi da BB – Companhia de Seguros SA a importância de 50.000, 00 (…) Danos Morais 7.000, 00 Hospital/Clínica 3.000, 00 Redução da Capacidade Ganho 40.000, 00 A presente indemnização comporta todos os danos Patrimoniais não Patrimoniais e Futuros, incluindo cirurgias ou outros quaisquer tratamentos decorrentes das lesões contraídas no presente sinistro. Mais declara que com recebimento da quantia acima referida, se dá por completamente indemnizado, sem excepção alguma sub-rogando a BB em todos os seus direitos, acções e recursos contra responsáveis pelo acidente (…)»

10 – A A. recebeu da Ré a quantia mencionada em 9.

Fatos apurados após julgamento

11 - A autora permaneceu acamada em casa durante tempo não concretamente apurado e quando deu entrada no HD... queixava-se “de dor no abdómen e no membro inferior esquerdo, apresentando mobilidade normal dos membros superior e inferior direitos, abdómen mole e depressível, doloroso nos locais da abrasão (fossa ilíaca direita e flanco esquerdo), fratura dos ramos ilío-ísquio-públicos bilateralmente e fractura da diáfase do fémur esquerdo. Foi algaliada, tendo-lhe sido identificada hematúria. Durante o internamento foi submetida a encavilhamento AO do fémur esquerdo.

12 - Por causa da fratura da bacia e do tornozelo esquerdo, seguiu-se um período marcado por dificuldades de locomoção, em que a autora, após RX em exame em consulta externa de ortopedia, teve de se socorrer de uma cadeira de rodas e, posteriormente, em época não determinada, de canadianas com carga parcial.

13 - Durante esse período, a autora necessitava da ajuda de terceiros, nomeadamente do filho menor, que a ajudava na sua higiene pessoal, na sua alimentação e na realização das tarefas domésticas.

14 - Ao longo de todo esse período, necessitou de um constante acompanhamento médico e de sessões de fisioterapia no Hospital Distrital da ..., E.P.E. até passar a andar sem canadianas em 3 de Abril de 2008.

15 – Em 18.1.2008 passou a ser seguida nos serviços clínicos da Ré, apresentando fratura bilateral dos dois ramos ílio-ísquio-público, à direita consolidada mas à esquerda com calo deficiente, encavilhamento com calo no fémur esquerdo, escara do calcâneo esquerdo com tecido de granulação exuberante, vindo a ser submetida a limpeza cirúrgica com aplicação de retalho cutâneo a 18.2.08. Após a intervenção cirúrgica a que foi submetida, por indicação e a expensas da ré, em 18-02-2008, a autora iniciou a realização de pensos ao calcanhar por escara com tecido de granulação exuberante, continuando a sofrer dores do tipo mecânico e mais intensas à palpação da face interna na borda da cicatriz. Usou canadiana desde 20.3.08 a 3.4.08.

16 - A ferida no calcanhar só fechou em 18/11/2008.

17 – Ecografia à coxa direita, a 15.4.08, revelou na face antero-interna apagamento do tecido celular subcutâneo desde a raiz da coxa até cerca de 10 cm acima do joelho por hematoma com várias vesiculações não reabsorvidas, sendo a maior de 2, 2 cm e já em fase de organização, sem drenagem livre. Exame radiográfico revelou fratura do escafoide direito. Após uma intervenção cirúrgica (em 09/05/2008) para osteossíntese do escafoide com parafuso canulado percutâneo e excisão de fibroma pós traumático da face interna da coxa, a autora continuou a ter dores na zona das coxas. Retirou os pontos a 23.5.08 e passou a usar coxa elástica compressiva tendo depois realizado punções com drenagem de sangue e tendo sido necessário uma nova intervenção cirúrgica para ressecção de hematomas enquistados. Retirou os pontos a 26.8.08, com pequeno foco residual revelado em ecografia e nova ecografia de 18.9.08 reveliu espessamento e irregularidade da cartilagem articular de natureza degenerativa a iniciar-se, ligamentite do ligamento lateral externo, lâmina de derrame subquadricipital e processo inflamatório da cartilagem externa da rótula.

18 - À data da alta (em 18/11/2008) apresentava marcha com claudicação ligeira, sem alterações das mobilidades da anca esquerda, cicatrizes queloides na coxa esquerda, joelho esquerdo com crepitação e dor à mobilização, ferida a nível do calcâneo ainda que fechada, rigidez do punho: flexão dorsal, 40º, flexão palmar: 45º, desvio cubital: 30º desvio radial:

 20º. (sic) Foi equacionada a possibilidade de vir a necessitar de EMOS cavilha do fémur esquerdo.

19 - Em resultado do acidente, a autora passou a sentir dificuldade em levantar pesos, principalmente com a mão direita.

20 - Não conseguindo estar de pé durante mais do que 3 a 4 horas, tem ligeira crepitação no membro inferior esquerdo, dificuldade em colocar-se na posição de cócoras ou de joelhos e de subir ou descer mais do que um lance de escadas.

21 – Até à data da consolidação das lesões a A. teve um período de 60 dias de défice funcional temporário total a que acrescem 8 dias que podem ser necessários para EMOS. Teve um período de défice funcional temporário parcial de 340 dias a que deve ser acrescido um período de 22 dias que pode ser necessário para a recuperação funcional após EMOS; um período de repercussão temporária na atividade profissional total de 353 dias que deverá ser acrescido de 30 dias que pode ser necessário para EMOS e repercussão temporária na atividade profissional parcial de 47 dias. Apresenta sequelas que são compatíveis com o exercício da atividade habitual (ajudante de cozinha], mas implicam esforços suplementares, sendo de 11 pontos o défice permanente da integridade físico-psíquica e sendo de admitir dano futuro.

22 – O A. sentiu dores, sendo o quantum doloris de 5, numa escala de sete graus de gravidade crescente, tendo em conta a natureza e gravidade das lesões resultantes, seu tratamento (múltiplas cirurgias), período de recuperação funcional e sofrimento psíquico vivenciado.

23 - A A. toma diariamente de analgésicos.

24 - Das referidas intervenções cirúrgicas resultaram para a autora cicatrizes aparentes nos pés, pernas e pulso direito, sendo o dano estético permanente fixável no grau 4/7.

25 - Em virtude do acidente, um dos filhos passou a ajudar a mãe conforme descrito supra em 13.

26 – No membro inferior esquerdo a A. apresenta limitação dolorosa da articulação coxofemoral a partir dos 90º de flexão; amiotrofia da perna de 2 cm abaixo do pólo inferior da rótula; ligeira diminuição da força muscular global (grau 4/5) e ligeira crepitação.

27 – A A. apresenta alterações da sensibilidade da cicatriz ao nível da coxa direita.

28 – A A. praticava atividade como a corrida, que deixou de fazer, sendo a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer fixável em grau 2/7, sendo de igual grau a repercussão permanente na atividade sexual.

 29 - A A. apresenta complexo cicatricial esbranquiçado no calcanhar, medindo 4cmx3cn, com hiperqueratose, zonas descamativas e fissuradas, sem sinais inflamatórios, embora abra ferida quando a pele está mais seca, causando-lhe dor

30 – A A. passou a comprar calçado um tamanho acima para evitar feridas a nível do calcanhar esquerdo.

31 – A A. pode vir a necessitar de extrair o material de osteossíntese (EMOS) do fémur esquerdo.

32 - Na sequência da assunção da responsabilidade por parte da Ré, a autora solicitou-lhe, em data não determinada, mas anterior ao facto descrito supra em 9, por escrito, o pagamento da quantia de € 92.000,00.

33 - Seguiram-se negociações nas instalações da Ré, nas quais acompanhou a A. o pai do seu então companheiro e que levariam à subscrição do documento de fls 25.

 34 – Antes de a autora assinar a declaração de fls 25, foi-lhe dito pelo funcionário da Ré que o recibo em causa serviria para comprovar que A. tinha recebido o sobredito montante a título de indemnização, nada mais lhe cabendo receber. 35 - A autora provém de um meio sócio-económico e familiar desfavorecido e detém tem uma escolaridade básica. pelos produzidos por CC, DD e EE.]

36 – Na época do sinistro, vivia com quatro filhos a seu cargo e um companheiro, tendo o casal várias dívidas para pagar.

37 – A A. é portadora de um Atraso mental leve (tem um QI de 66, sendo a média esperada para a polução de entre 90 e 109) e evidencia um funcionamento intelectual muito abaixo da média, facto que não é percetível no contato imediato e não prolongado com terceiros

38 - À data da subscrição do documento de fls 25, a autora encontrava-se numa situação de debilidade física causada pelo acidente.

39 - Encontrando-se sem trabalho, sem rendimento, nem património, com menos capacidade para trabalhar, dívidas em atraso decorrentes das despesas correntes do seu sustento e dos seus quatro filhos, o que levou a Segurança Social a instaurar procedimentos com vista a retirar à autora a guarda dos seus filhos. A tinha, ainda, tendência para o abuso de bebidas alcoólicas.

40 - Entre a data do acidente e a data da alta (que ocorreu a 18/11/2008), a ré pagou à autora as quantias que a mesma deixou de receber a título de salários, bem como as despesas com deslocações para tratamentos, tendo-se a A. deslocado, diversas vezes, à delegação da Ré, sita em ..., com vista a receber tais quantias.

41 - No início de Janeiro de 2009, a A. voltou a essa Delegação, onde lhe foi apresentada pela ré uma proposta indemnizatória que tinha por base a situação clínica da autora à data da alta, as sequelas permanentes de que ficou a padecer (a Ré atribuiu à A. uma incapacidade de 35%, como se vê de fls. 37), bem como a previsão dos tratamentos futuros necessários.

42 - As negociações desenvolveram-se em, pelo menos, duas reuniões, entre um funcionário da ré e a própria autora, estando também presente o então pai do companheiro desta.

43 - Foi acordado entre a autora e a ré, após pelo menos duas reuniões, o valor total de €50.000,00, constante de fls. 25.

44 - A autora comunicou ao funcionário da ré que ia pensar e, posteriormente, voltou à delegação da ré de ..., em data não determinada, comunicando que aceitava receber a indemnização de €50.000,00.

B - E julgou não provados os seguintes factos:

1 - Tenha perdurado por sete semanas o facto descrito em a) da matéria de facto controvertida nem que a A. tenha andado com andarilho, como referido em b) da mesma matéria.

2 – A A. sente contante mal-estar quando sentada ou deitada.

3 – A A. ficou impossibilitada de exercer profissões que a obriguem a permanecer de pé e que impliquem o uso de força do membro superior direito, sem prejuízo do que consta provado no ponto 20.

4 – Antes do acidente, a A. fazia longos passeios de bicicleta, aos fins-de-semana e dedicava-se nas horas vagas a tratar do jardim e da horta, vendo-se obrigada a abandonar tais atividades.

5 - À data do acidente, a autora tinha alegria de viver e de cuidar dos seus filhos.

            6 – A partir de maio ou do verão de 2010 a A. começou a sentir outras sequelas resultantes do acidente dos autos, nomeadamente, sempre que suportava pesos, caminhava de forma mais lenta e com pausas para não cair.

7 - Foi no verão de 2010 que começou a ocorrer o supra descrito em 27.

8 - Por via da técnica usada na colocação de material de osteossíntese para resolver a fratura no escafoide direito, a autor sofreu uma nova lesão, em fevereiro de 2010, no mesmo pulso e sentiu, desde essa altura, dores constantes na zona em que foi sujeita a intervenção cirúrgica, obrigando-a à toma diária de analgésicos e de anti-inflamatórios

9 - Recentemente no calcanhar do pé esquerdo, apareceu-lhe uma fenda profunda que continua aberta apesar dos tratamentos com consequentes dores e sangramento frequente, obrigando-a à compra de calçado específico, à colocação de silicone na parte interior dos sapatos para proteger a zona do calcanhar e à aplicação de pomadas, com redobrados cuidados de higiene.

10 – As negociações referidas supra em 32 e ss. ocorreram à margem da A., sem que esta participasse nas conversações.

11 - O pai do então companheiro da autora, na presença do mediador de seguros, representante da ré, Sr ..., apenas comunicou à autora que esta tinha que aceitar o que a ré estava disposta a pagar-lhe na altura – “€50.000,00 e €750,00 / mensais até aos 55 anos de idade”.

12 - Sem ser informada ou sem que lhe tenha sido dito que com o recebimento daquela quantia se esgotava a possibilidade de vir a receber qualquer outra quantia, seja a que titulo fosse.

13 - Por via do acima descrito, a autora assinou o documento de fls. 25, sem ler o seu teor e convicta que tal não afastava a possibilidade de vir a receber mais.

14 - Sendo influenciada pelo seu companheiro e pelo pai deste.

15 - Na época do sinistro, vivia em fracas condições habitacionais e com companheiro que não auferia rendimentos.

16 - A contraposta inicial feita pela ré à autora foi do montante de € 47.000,00.

17 – À data do acidente a autora auferia o salário de €403,07 (quatrocentos e três euros e sete cêntimos).

 18 - No valor referido a fls. 25 foram contemplados 14 meses de salário por ano.

19 - Do alegado pela A., no articulado de fls. 174 e ss., não se demonstrou a perda de consciência referida no ponto 1, posto que os dados documentais referem que deu entrada no HDFF “consciente e orientada” (fls. 119 v.º).

20 – A A. declarou verbalmente ao funcionário da Ré que pretendia receber a indemnização de € 92.000, 00, sem justificar a razão do montante que reclamava.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III

Apreciação e Fundamentação

1. (I – Da Validade da declaração negocial da autora. Em especial, a Hipótese da Usura – 1-20)

Como dito supra, considerada em sede da Formação competente a admissibilidade do recurso de revista excecional, foi decidida positivamente, pela verificação do pressuposto da alínea a) do n.º 1 do art. 672 CPC. Havendo-se sobretudo sublinhado a importância da questão da possível ocorrência de “usura”, devendo ser acautelada a melhor aplicação do direito, numa temática não inédita, mas considerada não completamente segura e frequente na jurisprudência. Cremos, na verdade, poder encontrar aqui elementos da maior importância para a forma de apreciação da causa, como se verá.

2.Com efeito, a Formação sublinha a seguinte matéria dada como provada (fl. 486):

“a A. provém de um meio sócio-económico e familiar desfavorecido e detém (…) uma escolaridade básica. Na época do sinistro, vivia com quatro filhos a seu cargo e um companheiro, tendo o casal várias dívidas para pagar.  A A. é portadora de um atraso mental leve (tem um QI de 66, sendo a média esperada para a população de entre 90 e 109) e evidencia um funcionamento intelectual muito abaixo da média. À data da subscrição do documento de fls 25, a autora encontrava-se numa situação de debilidade física causada pelo acidente. Encontrando-se sem trabalho, sem rendimento, nem património, com menos capacidade para trabalhar, dívidas em atraso decorrentes das despesas correntes do seu sustento e dos seus quatro filhos, o que levou a Segurança Social a instaurar procedimentos com vista a retirar à A. a guarda dos seus filhos. A tinha, ainda, tendência para o abuso de bebidas alcoólicas» (fls. 486).

3.A questão da “usura” era, na verdade, já invocada na petição inicial, no articulado 121:

 

“Sendo assim que a outorga pela autora do «recibo de sinistro» enferma também de vício de usura, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 282.º, n.º 1, do Código Civil, sendo por isso anulável.”

4.Nas Alegações, a A./Recorrente, e especificamente nas Conclusões, levanta toda a questão dos danos e sofrimentos em consequência do acidente, invocando ainda, inter alia, princípios constitucionais da igualdade e proporcionalidade, e a justeza ou acerto e afins da indemnização arbitrada.

5.A A./Recorrente alega profusas razões para se sentir injustiçada com a solução encontrada, mas a que tudo parece indicar acabaria por aderir, com a assinatura do documento (recibo) múltiplas vezes referenciado.

6. António Menezes Cordeiro lembra que, no Mundo, por ano morrerão 1,2 milhões de pessoas em acidentes de automóvel, e entre 20 a 50 milhões ficarão gravemente feridas ou inválidas. Continuando com estatísticas do mesmo género para a Europa e mesmo para Portugal (Direito dos Seguros, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2017, p. 857). Porém, a frequência dos males provocados por acidentes congéneres não deverá embotar a sensibilidade jurídica à injustiça que por vezes pode encobrir-se ou atenuar-se no álibi conformado da má sorte, do azar, da álea. E por isso mesmo é que as sociedades evoluíram para formas de cooperação social, como os seguros.

7.Até pela dimensão da frequência dos sinistros, a insatisfação, mesmo a sensação de injustiça, de um indemnizado (para com quem, em geral, haverá um sentimento geral de empatia e solidariedade, ao menos teórica: não chegando sequer a invocar o “pensamento de equidade geral” a que alude Heinrich Ewald Hörster – A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, reimp. da ed. de 1992, p. 557) não parece configurar, até pela sua recorrência (e subjetividade), perigoso alarme social ou potencial anomia. No momento atual de evolução da sensibilidade social concreta, e sobretudo das possibilidades, em recursos, não se conceberão as indemnizações de seguro como uma cabal reposição do statu quo ante (na verdade em muitos casos impossível pela própria natureza das coisas) ou uma compensação efetivamente capaz de ressarcir de forma cabal danos e perdas, mas um contributo para tal, quase se diria “por definição” insuficiente. Não sendo essa a solução justa na pureza das coisas, é certamente a possível, nos condicionalismos do hic et nunc. Sob pena de a tentativa do máximo direito (summum ius) poder vir a socialmente causar a máxima injustiça (summa iniuria).

8.Mas nem por isso deve a Justiça conformar-se com soluções miserabilistas ou indemnizações manifestamente insuficientes, ou em que o acordo sobre elas obtido enferme ou esteja toldado por dúvida muito séria.

9.Determina o art. 282 n.º 1 do CC: “É anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.”

10.É verdade que “A usura, como princípio geral invalidante do negócio jurídico, não é concebível sem que o lesado se encontre numa posição de vulnerabilidade que justifique a sua protecção pelo ordenamento jurídico e o sacrifício do princípio da liberdade contratual.” (05-02-2009 - Revista n.º 4108/08 - 7.ª Secção STJ). Ora essa situação está aqui claramente presente. Dificilmente se encontraria a presença de um tamanho rol de elementos de vulnerabilidade e afins.

Tal compagina-se facilmente com os factos seguintes, inter alia:

“35 - A autora provém de um meio sócio-económico e familiar desfavorecido e detém tem (sic) uma escolaridade básica.

36   - Na época do sinistro, vivia com quatro filhos a seu cargo e um companheiro, tendo o casal várias dívidas para pagar. (itálico nosso).

37   - A A. é portadora de um Atraso mental leve (tem um QI de 66, sendo a média esperada para a polução de entre 90 e 109) e evidencia um funcionamento intelectual muito abaixo da média, fato que não é percetível no contato imediato e não prolongado com terceiros.

38   - À data da subscrição do documento de fls 25, a autora encontrava-se numa situação de debilidade física causada pelo acidente.

39   - Encontrando-se sem trabalho, sem rendimento, nem património, com menos capacidade para trabalhar, dívidas em atraso decorrentes das despesas correntes do seu sustento e dos seus quatro filhos, o que levou a Segurança Social a instaurar procedimentos com vista a retirar à autora a guarda dos seus filhos. A tinha, ainda, tendência para o abuso de bebidas alcoólicas. (itálico nosso)”

       11. Atente-se ainda que “A anulabilidade dos negócios jurídicos usurários prevista no art. 282.º do CC pressupõe a verificação de três requisitos: (i) existência de uma situação de inferioridade do declarante; (ii) exploração da situação de inferioridade pelo usurário; (iii) lesão, i.e., promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados para o usurário ou terceiro.  (23-06-2016 - Revista n.º 1579/14.5TBVNG.P1.S1 - 2.ª Secção STJ). Ainda que se possa defender dever ser entendida cum grano salis, aplicado ao caso, a alínea (iii), não oferece dúvidas a presença dos dois primeiros requisitos. Contudo a presença do terceiro oferece algumas dúvidas. Até que ponto há esse carácter de excesso e injustificabilidade em termos absolutos ou radicais?

12.Já, pelo contrário, se poderá pensar em enquadrar o caso nesta descrição: “Subjectivamente, exige a lei a verificação de uma situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter, sindicando-se, assim, uma situação de inferioridade negocial, causal em relação ao negócio e ao próprio desequilíbrio”.  (26-11-2014. Revista n.º 2532/07.0TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção).

13. Mas vejamos, porém: “A usura tem como elemento subjectivo essencial a posição de inferioridade do lesado no momento em que celebra o negócio ou pratica o acto, a qual justifica a protecção do ordenamento jurídico para o salvaguardar de um desequilíbrio inaceitável entre essa posição e a posição da contraparte que se traduz na concessão de benefícios excessivos ou injustificados a favor deste, i.e. do usurário.”  (30-10-2014 - Revista n.º 1075-C/2002.P1.S1 - 7.ª Secção).  A questão volta a ser a qualidade de algo de verdadeiramente excessivo, no caso, o carácter de excesso e inaceitabilidade. Vimos que havia uma situação de grande dependência e necessidade. Mas, por outro lado, no caso, a indemnização a título de danos patrimoniais, não sendo liberal, será verdadeiramente “inaceitável”, por excessivamente parca? Já o mesmo não se poderá certamente dizer da quantia arbitrada a título de dano moral, que se afigura muito tímida.

14.A equacionação dos elementos subjetivos indiciadores de inferioridade em toda a jurisprudência citada perfeitamente enquadram o caso, tal como referido. Basta recordar a síntese supracitada constante dos parágrafos 35 a 39, reproduzidos supra no ponto 11.

15.Não estaria a ora A., obviamente, totalmente alheia ao que nesse ato se passava, mas certamente não terá realmente querido abrir mão de tudo: não tendo presumivelmente tido consciência do pleno alcance e implicações do que assinava, embora aparentemente tenha hesitado: Foi, com efeito, dado como provado que “44 - A autora comunicou ao funcionário da ré que ia pensar e, posteriormente, voltou à delegação da ré de ..., em data não determinada, comunicando que aceitava receber a indemnização de €50.000,00.”

16.Mas mesmo que se abeirasse dessa compreensão (e tal afigura-se ser ainda mais chocante e injusto), as condições em que se encontrava – numa situação de dor e debilidade física, com quatro filhos a cargo, sob a espada de Dâmocles de os vir a perder, com dívidas, vendo o companheiro desempregado, sem património, como poderia recusar um montante globalmente escasso, mas que poderia suprir as primeiras necessidades, uma provisória e precária boia de salvação, paliativa? É da experiência comum e corrente que uma situação de doença, para mais num contexto de privações não é a melhor conselheira mesmo na cura do próprio interesse, sendo frequente um abaixar das defesas e uma tendência para alguma passividade, e sobretudo uma resignação com o pouco que nos derem conquanto seja rápido, para satisfazer as urgências do momento.

17.Certamente que a vontade livre da pura liberdade negocial dos sujeitos concebidos abstrata e intelectualmente livres não se pode manifestar em todo o seu esplendor em casos como este. Aqui, não pode ter estado ela isenta de constrangimentos, daquela “circunstância” que acompanha e como que determina o próprio “eu” de que fala Ortega y Gasset. Estaremos, com efeito, naquela ocorrência que Henrich Ewald Hörster descreve assim: “Uma situação de necessidade existe quando dificuldades avultadas de uma pessoa provocam a necessidade imperiosa para ela de obter uma prestação para se libertar daquelas dificuldades” (A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, reimp. da ed. de 1992, p. 557)?

18. A forma de obtenção de acordo para o que a A. considera agora “uma indemnização desfasada, insuficiente, desproporcional e parca tendo em conta os danos sofridos, afrontando, manifestamente, as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida” (ponto IV das Alegações) não é de molde a tranquilizar-nos quanto ao ter-se ela apercebido do que assinava, e ter-se com tal conformado então, dadas a sua idiossincrasia própria e mesmo as circunstâncias do seu acompanhamento.  E de modo algum se pode considerar estar a verificar-se a hipótese colocada por Henrich Ewald Hörster, que, quando muito especificamente acautela a não aplicação do art. 282 a “incautos”, “imprevidentes” e “despreocupados” arrependidos (A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, Almedina, reimp. da ed. de 1992, p. 557), algo como em venire contra factum proprium.

19.Ainda em favor da tese da usura é importante salientar o peso da inferioridade subjetiva da autora, no contexto de um “sistema móvel”. Assim, como refere António Menezes Cordeiro: “As proposições do artigo 282.º devem ser interpretadas e aplicadas em conjunto, dentro da mecânica de um sistema móvel: quando a lesão seja muito grande, a ‘exploração’ e a fraqueza do prejudicado poderão estar menos caracterizadas. E quando a dependência do prejudicado seja escandalosa – por exemplo – não será de exigir um tão grande desequilíbrio.” (Tratado de Direito Civil Português, I. Parte Geral, Tomo I, Coimbra, Almedina, 1999, p. 395).

20.É certo que alguns obstáculos que objetivamente poderão ser qualificados como ideológicos (ou então excessiva prudência, que poderá ser antes tibieza) poderão eventualmente ser os responsáveis pela aplicação do instituto da usura a situações muito contadas (basta recordar o recuo, verificado nos tempos do dogma da vontade, face à ética negocial aristotélica e à vizinha doutrina tomista – questão abundantemente comentada e desenvolvida, na aplicação concreta ao Direito Civil, em Maria Clara Sottomayor, Invalidade e Registo. A Protecção do Terceiro Adquirente de Boa Fé, Coimbra, Almedina, 2010, p. 131-142). Concorre também para o esclarecimento da questão, v.g., a análise histórico-filosófica de Ana Prata, A Tutela Constitucional da Autonomia Privada, Coimbra, Almedina, 1982, máx. p. 85 ss.. Contudo, o recorte da usura como forma jurídica (não necessariamente apenas um verdadeiro e próprio “negócio”) “com conteúdo desaprovado pela ordem jurídica, em virtude do desequilíbrio das prestações, um reflexo da proteção dos mais fracos e da justiça social no direito privado” (Maria Clara Sottomayor, op. cit., p. 138) afigura-se não poder ser, de mais a mais nos dias hoje, um simples aleluia jurídico votado a quedar-se meramente no law in books. Como Henrich Ewald Hörster salienta, a readmissão no nosso ordenamento jurídico do instituto em apreço “é uma expressão positiva do carácter social do direito privado. Na verdade, para o direito privado a justiça não é apenas uma questão lógico-normativa, mas também um princípio social” (Op. Cit., p.). E essas considerações e a sua utilização de modo algum podem considerar-se “ativismo judicial”. Apenas plena assunção prática dos diversos institutos, conforme as circunstâncias.

21.(I – Da Validade da declaração negocial da autora. Da excessiva severidade e pathos do vício de usura para enquadrar o caso sub judice – 21-22).

Poderia assim tudo indicar que a declaração negocial da autora seria anulável nos termos do artigo 282 do CC. Porém, com idêntica consequência de invalidade, que resulta da eficácia retroativa da anulação, a Autora sem dúvida tem direito a uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais calculada de acordo com as regras da responsabilidade civil extracontratual, mas com base em fundamentos diversos, sem prejuízo da linha de raciocínio para que nos remeteu a douta decisão da Formação que recebeu o Recurso. E muitos dos factos e argumentos referidos evidentemente continuam a aproveitar ao entendimento em que, numa segunda ponderação, nos firmamos.

22.É que, bem ponderadas as coisas, afigura-se-nos que a categoria da usura com toda a carga semântica que historicamente se foi sedimentando (recorde-se a figura do usurário, no limite os míticos Shylok do Mercador de Veneza de Shakespeare ou Harpagan, o Avarento, de Molière), embora seja hoje, evidentemente, sobretudo um vício de que pode estar inquinado o negócio jurídico (e expressa no referido art. 282 do CC), tem um peso, uma carga, um pathos, de tal forma negativo e arrasador que, apesar dos muitos fatores de aproximação já referidos, não parece perfeitamente enquadrar a factualidade do caso presente. A atuação da Seguradora não se nos depara com os contornos tão severamente pintados pela imagem corrente da usura, que inevitavelmente pesam como pano de fundo na ponderação subsuntiva mesmo no rigor da exegese jurídica.

23.(I – Da Validade da declaração negocial da autora. Adequação do enquadramento na figura do abuso do Direito – 23-26)

Ganha outrossim mais sentido o enquadramento da situação no âmbito de outra figura que, sem deixar de espelhar uma desconformidade com a juridicidade fisiologicamente sã, não envolve um juízo tão pesado de reprobabilidade. Crê-se que em melhor sintonia com a realidade dos factos e a mais justa aferição da sua valoração jurídica. Trata-se do abuso do direito (art. 334 CC), entendido em termos modernos e hábeis, sem o casulo subjetivista que já entorpeceu o instituto. Como, em geral, se pode aquilatar da interpretação de Menezes Cordeiro, v.g. in Do Abuso do Direito: Estado das Questões e Perspetivas, ed. Online (consultado por último em 20 de novembro de 2019):

https://www.studocu.com/en/document/universidade-de-lisboa/direito/summaries/teoria-geral-dto-civil-abuso-de-direito-professor-menezes-cordeiro/2099833/view.

Além do mais, esta visão não apertada num numerus clausus de brocardos ou tópicos espartilhadores (e de alcance mais restrito e restritivo) foi objeto de decisão ainda recentemente no Ac. 1189/15.0T8PVZ.P1.S1. 14-03-2019, 7.ª Secção:

“I - O alcance do princípio do abuso do direito excede o conjunto dos grupos ou tipos de casos considerados na doutrina e na jurisprudência – como a exceptio doli, o venire contra factum proprium, o tu quoque ou o desequilíbrio no exercício jurídico – e, por consequência, não é absolutamente necessário coordenar a situação sub judice a algum dos tipos enunciados.”

24.Mas mesmo seguindo uma linha de raciocínio ainda tradicional, se chega a uma conclusão idêntica. Assim, parece que a Seguradora (recorrida) agiu conforme aos seus direitos, exerceu os direitos subjetivos que eram seus, nomeadamente propondo um acordo à sinistrada (autora). Poderia mesmo não ter havido, na verdade, nenhuma violação do direito constituído concreto, mas o uso do direito ultrapassou limites (e aqui aproveita toda a argumentação usada em sede da hipótese precedente, de usura). Certamente, em especial, as regras de boa fé, numa utilização excessiva da posição natural de supremacia de uma instituição do seu género face a um particular especialmente vulnerável e com debilidades em diferentes aspetos, e dadas as circunstâncias sobejamente referidas –  se diria, brevitatis causa.

25.Portanto, mesmo sem intenção de prejudicar a Autora, a Recorrida, ainda que quiçá para além da inteligência de que tal estava a ocorrer, acabou por aderir a uma forma de comportamento objetivamente para além do consentido pelo direito. E assim sendo, independentemente do animus, e segundo doutrina mais recente, que dele prescinde, verifica-se a hipótese do art. 334 CC.

            26.É plenamente verdade que

“Não basta, para se falar em abuso do direito, nos termos e para os efeitos do art. 334.º do CCivil, que o titular do direito, ao exercer o direito, se exceda. É necessário que se esteja perante uma situação gritante, ofensiva do sentimento ético-jurídico dominante, clamorosamente contrária aos ditames da lealdade e da correção imperantes na ordem jurídica e nas relações sociais.”

(como ainda recentemente sublinha o Ac. STJ 5762/13.2TBVFX-A.L1.S1, 4-07-2019, 6.ª secção). Mas precisamente essa moldura de enquadramento parece dar satisfação ao clamor de justiça, por justiça, que se referia supra. Ou seja, não se trata de, não seguindo a via do enquadramento na “usura”, como que desvalorizar a situação, mas de melhor a definir. Trata-se também de uma situação de desproporção objetiva entre a utilidade do exercício do direito por parte da Recorrida e as consequências que, por via disso, teria a Apelante que suportar (aplicando in casu a lição do Ac. STJ de 07-07-77, BMJ, 269.º - 174).

27.(II.Concretizando a questão dos Danos e da Indemnização – 27-35).

Relativamente aos danos, são eles, como se sabe, patrimoniais e não patrimoniais.

Sobre estes últimos, louvamo-nos em jurisprudência anterior deste Supremo Tribunal, nomeadamente, em sede geral:

 «A indemnização por danos não patrimoniais terá por finalidade proporcionar um certo desafogo económico ao lesado que de algum modo contrabalance e mitigue as dores, desilusões, desgostos e outros sofrimentos suportados e a suportar por ele, proporcionando-lhe uma melhor qualidade de vida, fazendo eclodir nele um certo optimismo que lhe permita encarar a vida de uma forma mais positiva.

Isto é, esta indemnização destina-se a proporcionar, na medida do possível, ao lesado uma compensação económica que lhe permita satisfazer com mais facilidade as suas necessidades primárias que possam constituir um alívio e um consolo para o mal sofrido.» Cf. Acórdão de 11-01-2011 - Revista n.º 210/05.4TBLMG.P1.S1 - 1.ª Secção.

28. E ainda: “I - O recurso às fórmulas matemáticas ou de cálculo financeiro para a fixação dos cômputos indemnizatórios por danos futuros/lucros cessantes não poderá substituir o prudente arbítrio do julgador, ou seja a utilização de sãos critérios de equidade, de resto em obediência ao comando do n.º 3 do art.º 566 do CC.” (15-01-2004 - Revista n.º 3926/03 - 2.ª Secção).

29.Além do mais, devem ter-se presente alguns parâmetros legais nesta matéria:

“A lei consagra o princípio da reposição do status quo anterior à lesão, ou seja, a obrigação de indemnizar deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento danoso (art. 562.º do CC) sendo que o dano patrimonial (reflexo do dano real na situação patrimonial do lesado) compreende não só o dano emergente como o lucro cessante.

A indemnização pecuniária (art. 566º nº 1 do CC) mede-se pela diferença entre a situação real do lesado e a hipotética não fosse o dano sofrido.

Devem-se atender aos danos futuros desde que previsíveis (art. 564º nº 2 do CC).

Não sendo possível fixar o valor exacto dos danos deve-se recorrer à equidade (art. 566º nº 3 do CC).” 12 – 03 – 2015, Processo n.º 1988/05.0TBOVR (Revista) – 1.ª secção).

30.O quadro a ter em atenção é já conhecido, mas recorde-se, a síntese que é feita nas Conclusões das alegações:

“-        A Recorrente tinha 31 anos (feitos menos de dois meses antes da data do acidente) à data do acidente, pelo que ainda teria pela frente um período de vida ativa de, pelo menos, 40 anos;

-           Auferia o salário mínimo nacional que à data se cifrava em € 426,50;

-           A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 18-11-2008, ou seja, 400 dias após o acidente.

-           De acordo com o primeiro relatório pericial realizado pelo INML junto aos autos em 12-07-2016 (fls. …) foi atribuído um DFP (défice funcional permanente da integridade físico-psíquica) de 19 pontos, uma vez que teve também em conta a perícia psiquiátrica realizada que se refere a um coeficiente de desvalorização de 7 pontos pela existência de sintomatologia ango-depressiva que aí se entendeu estar relacionada com o acidente de viação.

-           Sofreu múltiplas fraturas, esteve internada, acamada e foi sujeita a três operações

cirúrgicas distintas;

-           Teve de socorrer-se de cadeira de rodas e do uso de canadianas e fez várias sessões de

fisioterapia;

-           Em resultado do acidente, a autora passou a sentir dificuldade em levantar pesos,

principalmente com a mão direita, não conseguindo estar de pé durante mais do que 3

a 4 horas, tem ligeira crepitação no membro inferior esquerdo, dificuldade em colocar-

se na posição de cócoras ou de joelhos e de subir ou descer mais do que um lance de

escadas.

-           Toma diariamente analgésicos;

-           O dano estético permanente foi fixado no grau 4/7;

-           a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer foi fixado no grau 2/7;

-           a repercussão permanente na atividade sexual no grau 2/7;

-           repercussão nas atividades desportivas e de lazer (grau 2/7);

-           quantum doloris de 5/7 sendo de perspetivar a existência de dano futuro.”

31. A verba atribuída à A. fora de € 50.000,00 (dos quais, € 40.000,00 pela redução da capacidade de auferir proventos e € 7.000,00 a título de danos não patrimoniais e finalmente para despesas de Hospital / Clínica a quantia de € 3.000,00), o que se reconhece como muito parco. Estes valores devem ser corrigidos tendo em atenção, além das demais ponderações já referidas, designadamente a jurisprudência em situações de algum modo análoga. Designadamente, inter alia: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14-12-2016, Proc. n.º 37/13.0TBMTR.G1.S1, e o citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 12 – 03 – 2015, Processo n.º 1988/05.0TBOVR (Revista) – 1.ª secção.

32. Sobretudo é de assinalar a importância dos danos não patrimoniais, aqui muito evidente, dando por reproduzido o que foi sendo carreado supra. A própria angústia da decisão (que chegou a ser protelada) sobre o recibo que lhe era proposto deve ter acarretado significativo sofrimento moral. Uma mãe em vias de se ver privada dos filhos, em princípio do que não prescindirá? Mas quanto lhe não custa... O quadro, respigado agora das Conclusões das Alegações (ii, in fine), que se pretendem fazer eco dos factos dados como provados de números aí referidos, tem um peso de dano moral apreciável:

“-        Toma diariamente analgésicos;

-           O dano estético permanente foi fixado no grau 4/7;

-           a repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer foi fixado no grau 2/7;

-           a repercussão permanente na atividade sexual no grau 2/7;

-           repercussão nas atividades desportivas e de lazer (grau 2/7);

-           quantum doloris de 5/7 sendo de perspetivar a existência de dano futuro.”

Entendido de maneira holística, é um cenário de sofrimento, de dor.

33.Parece assim muito importante um necessário juízo que se pode dizer de “equidade”, ao menos lato sensu. Na verdade, esta dimensão équa é assinalada mesmo internacionalmente por especialistas da matéria, como Maria Francisca Carneiro,  professora brasileira que, na Argentina, na sua obra Método de valuación del daño moral, Buenos Aires, Hammurabi, 2001, assim comenta o nosso sistema (tradução nossa): “na nossa opinião, no direito português do (dano) moral, o que mais chama a atenção, o particular e diferente do que predomina no Ocidente, é que a fixação do montante da indemnização se deve dar pela equidade (própria da natureza da justiça) e não pelo arbítrio (que é uma falácia arbitrária)”, p. 105. E a autora cita Delfim Maya de Lucena, Danos não patrimoniais, Coimbra, Almedina, 1985, designadamente pp. 17 e ss., sublinhando a importância, para este autor, de recurso a juízos de equidade que tenham em conta todas as circunstâncias do caso concreto e não esqueçam que a finalidade principal da compensação é proporcionar ao lesado meios de diminuição da sua dor. Que é, em geral, a doutrina que tem vindo a ser citada, noutros autores.

34.Tendo em atenção a previsibilidade de um período de vida ativa de 40 anos (e mais potencialmente seria, porque a esperança de vida feminina é maior), o salário mensal de € 565,82 (€ 485,00 x 14:12), de acordo com a fórmula utilizada que teve sua génese no Acórdão da RC de 4/4/95 (in CJ tomo II, p. 23), e que considera o período de vida ativa, a percentagem da IPP e a inflação anual, os ganhos de produtividade e as evoluções salariais derivadas da progressão na carreira, pediu a A. a título de indemnização pelo Défice Funcional Permanente, o montante de € 98 865,00. Já pelo desgosto, quantum doloris, dano estético e prejuízo de afirmação pessoal estimou a verba em € 40 000,00.

Recorde-se que a A. recebeu apenas 7 000 a título de danos morais e pelos patrimoniais € 40 000,00.

35.Será de encontrar valores razoáveis e conformes aos critérios aplicáveis. Com ponderação de danos patrimoniais e morais não são desproporcionadas.

36.No tocante ao elemento objetivo, atentas as várias lesões, padecimentos, sequelas e afins, abundantemente provadas e constantes dos autos (aqui dadas por reproduzidas), assim como os elementos carreados pela A. quanto às questões levantadas por um pagamento unitário num contexto de taxas de juros muito baixas e questões afins (com apoio nomeadamente no invocado Acórdão do T.R.C. de 08/11/2016, Proc. n.º 319/12.8TBMGL.C1), cremos poder dar como assente haver uma desproporção apreciável. Nomeadamente, e desde logo, tendo em conta toda a factualidade provada quanto aos danos sofridos pela A., em especial os factos 4 a 6 da matéria dada como assente pelas partes e os factos 11 a 31 do rol de factos dados como provados após julgamento, suprarreferidos e transcritos, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

37.E é óbvio que a A. padeceu e padece severos danos morais, em tudo cabendo nos critérios de malha muito fina nomeadamente desenvolvidos por René Chapus (Droit Administratif Général, Paris, Montchrestien, 1993, vol. I, p. 984-985), nomeadamente nas modalidades de sofrimentos físicos suportados por vítima de danos corporais e em consequência de intervenções cirúrgicas e tratamentos a que um acidente obrigou; dano estético, prejuízo moral em consequência do incómodo e desagrado sofrido decorrente de lesões à sua integridade e harmonia corporais; perturbações nas condições de existência, exigindo mudança de hábitos, renúncia a projetos, abstenção de atividades desportivas ou de lazer, etc.

38.Sendo assim, procedem nomeadamente as conclusões de letras hh, ii, oo. Sendo os elementos aduzidos bastantes para sustentar um juízo sobre a matéria.

39.(III. Questão da Constitucionalidade (prejudicada))

Prescinde-se da ponderação em concreto de demais normativos e princípios alegados (nomeadamente constitucionais), por se considerar ser bastante o elemento do abuso do direito. E mais diretamente invocável e aplicável.

40.Sem prejuízo de se considerar, e deixar expresso, pelo enquadramento numa perspetiva de pirâmide normativa (e, portanto, também de hierarquia normativa e hermenêutica), que a densificação, no caso, dos invocados princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, se faz nomeadamente com acerto e propriedade através da nossa consideração do problema, no caso mais juridicamente recortado, do abuso do direito.

Ou seja, ao apreciar concretamente do abuso do direito, está-se a apreciar, e de forma mais próxima da realidade que no estrito plano principiológico, a realidade prática da aplicação desses princípios. Por isso, trata-se apenas de uma abordagem com malha mais fina do problema suscitado nas Conclusões, e por forma já invocada na petição inicial, aliás.

Sem embargo, sendo certo que o nosso sistema constitucional não desejou, na sua filosofia (ou, se se preferir, no telos ou sentido da sua arquitetura), abranger a inconstitucionalidade de atos não normativos, sempre se poder considerar uma categoria diversa (para situações que ferem a letra ou o espírito da Constituição sem serem normas), de “anticonstitucionalidade” (aflorada, entre nós, embora em termos muito latos, v.g. por Jorge Miranda, nomeadamente em Teoria do Estado e da Constituição, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, p. 687, n. 1) para o caso vertente, contudo sem grande interesse prático, pela preclusão lógica operada a partir da consideração do abuso do direito, como foi explicitado.

41.(Sobre a contagem dos prazos dos juros de mora)

A Reclamante tem noção da necessidade de correção dos valores com base em juros, em vários passos sublinhou a fórmula de indemnização encontrada não tomou tal em consideração (esquecendo, portanto, o fator tempo e os inevitáveis efeitos de depreciação do montante de uma única vez recebido). E parece ser absolutamente razoável – além de legal – que o tempo (subtil inimigo que ataca fugindo, como diria Gustavo Corção) não deprecie as verbas arbitradas.

Sobre esta matéria, valerá o Acórdão Uniformizador n.º 4/2002, de 9 de maio, designadamente considerando que:

«Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566.º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805.º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e 806.º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação» (AUJ n.º 4/2002).

IV

Decisão

a)Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente a revista, revoga-se parcialmente o Acórdão recorrido e condena-se a ré a pagar a título de danos não patrimoniais € 40 000,00. Dos quais, tendo já recebido € 7 000,00, virá a receber € 33 000,00, acrescidos de juros de mora a contar da decisão.

b)No mais, mantém-se o Acórdão recorrido.

c) Custas pela recorrida e pela recorrente na proporção do respetivo decaimento.

Lisboa, 17 de dezembro de 2019

Paulo Ferreira da Cunha - Relator

Maria Clara Sottomayor

Alexandre Reis