Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM REFORMATIO IN PEJUS DECISÃO FINAL DESPACHO CONCURSO DE INFRAÇÕES CÚMULO JURÍDICO PENA ÚNICA AMNISTIA PERDÃO NULIDADE DE ACÓRDÃO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO | ||
![]() | ![]() | ||
Data do Acordão: | 03/05/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I - A proibição de reformatio in pejus (art. 409.º, n.º 1, do CPP) abrange, antes de mais, o tribunal superior, mas aplica-se também ao tribunal de primeira instância, num segundo momento («reformatio indireta»), nas situações em que o tribunal superior ordena o reenvio do processo ao tribunal inferior para novo julgamento, desde que o recurso da primeira sentença tenha sido exclusivamente interposto pelo arguido ou pelo MP no exclusivo interesse deste. II - A proibição de modificação, pelo tribunal de recurso, da sanção imposta pelo tribunal da condenação, em prejuízo do arguido, decorre da estrutura acusatória do processo e da garantia do direito ao recurso enquanto componente do direito de defesa e das exigências de um processo equitativo (arts. 32.º, n.º 1, da Constituição e 6.º, n.º 1, da CEDH), por tal modificação desfavorável constituir uma limitação incompatível com o pleno exercício deste direito nos casos em que o recurso é interposto no interesse do arguido. III - Tal como no recurso, a proibição da reformatio in pejus em caso de reenvio pressupõe a aplicação de uma «sanção» pela «decisão final» recorrida e anulada em recurso, ou seja, por uma sentença ou um acórdão (art. 97.º, n.os 1, al. a), e n.º 2, do CPP) que, conhecendo do objeto do processo, mesmo em conhecimento superveniente do concurso, aplique uma «sanção». IV - Tendo o recurso do MP por objeto um despacho (art. 97.º, n.º 1, al. b), do CPP), que, declarando amnistiado um dos crimes em concurso, reformula o cúmulo efetuado em acórdão que aplicou a pena única, falecem os pressupostos de que depende a proibição da reformatio in pejus. V - O recurso do MP visou a realização de um direito do arguido – o direito à pena única, ou seja, o direito fundamental do arguido ao tribunal e ao processo, à tutela jurisdicional efetiva que assim se realiza – através de uma decisão de determinação da pena na forma exigida que se encontrava em falta, mas não a «decisão final» de aplicação da pena. VI - Proferido novo acórdão para reformulação do cúmulo jurídico por virtude da amnistia de um dos crimes e concorrendo para a determinação da pena única penas «perdoáveis» e «não perdoáveis» em aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, impõe-se a observância dos requisitos de fundamentação da sentença. VII - Não se indicando (a) os elementos necessários para se poderem identificar os crimes a que correspondem as penas «perdoáveis» e «não perdoáveis» nem os factos respetivos; (b) as penas que integram e definem a moldura do denominado «cúmulo intermédio»; (c) a justificação das molduras das «penas perdoáveis» e «não perdoáveis»; e (d) a pena única «perdoável» e a pena única «não perdoável» nem a motivação desta classificação; e não se mostrando fundamentada a aplicação da pena única, nos termos dos arts. 71.º e 77.º do CP, sobre que incidiu o perdão de 1 ano de prisão, encontra-se o acórdão ferido de nulidade, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. a), do CPP. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão proferido em 23.10.2024 pelo Juízo Central Criminal de ... – Juiz ... –, do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, que, em obediência ao acórdão de 26.08.2024 do Tribunal da Relação de Coimbra, procedeu à reformulação do cúmulo jurídico para aplicação da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, que «estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude», condenando-o numa pena única de 6 (seis) anos e 3 (três) meses de prisão, de que, sob a condição resolutiva prevista no artigo 8.º, n.º 1, declarou perdoado 1 (um) ano de prisão 2. Discordando do decidido, apresenta recurso com motivação de que extrai as seguintes conclusões (transcrição): «1) O arguido, ora recorrente, não se conforma com o Acórdão Cumulatório proferido em 23-10-2024, com a Referência Citius ...06, pelo Tribunal Coletivo a quo que, após aplicação dos institutos da amnistia e do perdão, fixou a pena única em 5 (cinco) anos e 3 (três) meses, versando o presente recurso sobre a matéria de direito desse Acórdão. 2) Por acórdão cumulatório proferido nos autos, no dia 14 de julho de 2021, foi o arguido condenado na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. 3) O referido Acórdão englobou as penas do processo comum singular nº 117/18.5..., do Juízo de Competência Genérica de ..., da Comarca de Coimbra (que deu origem aos presentes autos) e as penas parcelares aplicadas no processo comum colectivo n.º 151/18.5..., do Juízo Central Criminal – Juiz ... – de ..., no processo comum singular n.º 221/16.4..., do Juízo Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria e no processo comum singular n.º 182/18.5..., do Juízo Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria. 4) Nos presentes autos (Processo nº117/18.5...) por sentença de 03.02.2021, transitada em julgado, o ora recorrente foi condenado pela prática, em 6 de junho de 2018 e 1 de julho de 2018, de: a) um crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3º, nº 1 do Dec. Lei 2/98 de 3 de janeiro, na pena de 10 (dez) meses de prisão. b) um crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3º, nº 2 do Dec. Lei 2/98 de 3 de janeiro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. c) crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo art. 208º, nº 1 do Código Penal, na pena de 1(um) ano e 6 (seis) meses de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva, conforme sentença que aqui se dá por inteiramente reproduzido. 5) No processo comum colectivo n.º 151/18.5..., do Juízo Central Criminal – Juiz ... – de ..., por decisão de 4 de fevereiro de 2019, transitada em julgado em 6 de março de 2019, foi o arguido condenado, pela prática, em dia 23 de junho de 2018, 26 de junho de 2018, 19- 07-2018 e 1 de agosto de 2018, como co-autor material, de: a) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 do Código Penal (C.P.), na pena de 2 anos de prisão; b) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; c) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; d) um crime de roubo, na forma tentada, p. e p. nos arts. 22º, 23º e 210º/n.º 1 C.P., na pena de 9 meses de prisão; e) dois crimes de coacção, p. e p. no art. 154º/n.º 1 C.P., nas penas de 6 meses de prisão por cada um deles; f) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 2 anos de prisão; g) um crime de injúria agravada, p. e p. nos arts. 181º e 184º, com referência ao art. 132º/n.º 2-f), todos C.P., na pena de 2 meses de prisão; h) um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. no art. 347º/n.º 1 C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; Em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão. 6) No processo comum singular n.º 221/16.4..., do Juízo Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria, por decisão de 4 de março de 2019, transitada em julgado em 3 de abril de 2019, foi o arguido, ora recorrente, condenado, pela prática desde 27 de novembro de 2016 e nos dias 27 e 29 de novembro de 2016, como autor material, de: a) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 2 anos de prisão; b) um crime de coacção agravada, p. e p. nos arts. 154º/n.os 1 e 2 e 155º/n.º 1-a), ambos C.P. na pena de 1 ano de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão. 7) No processo comum singular n.º 182/18.5..., do Juízo Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria, por decisão de 9 de janeiro de 2020, transitada em julgado em 10 de fevereiro de 2020, foi o ora recorrente condenado, pela prática dia 19 de julho de 2018, como autor material um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. nos arts. 22º, 23º, 143º, 145º/n.os 1-a) e 2, por referência ao art. 132º/n.º 2-h), todos C.P., na pena de 9 meses de prisão. 8) Por decisão proferida por despacho – Referência Citius: ...63, em 18-05-2024, o ora recorrente beneficiou de amnistia no crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no art. 3º/n.º 1 D.L. n.º 2/98, sendo de 10 meses de prisão a pena que coube a este crime. 9) Bem como foi aplicado o perdão de 1 ano, conforme os artigos 3º/n.os 1 e 4 da mesma Lei n.º 38-A/2023. 10) Assim, foi aplicada na referida data de 18-05-2024, ao ora recorrente, por despacho, a pena única de 5 (cinco) anos e (1) um mês de prisão. 11) Desta decisão foi apresentado recurso (Referência Citius ...34). 12) O Tribunal da Relação de Coimbra, por Acórdão proferido em 26-08-2024, Referência Citius ...90, decidiu pelo reenvio do processo para a instância que deveria realizar a audiência de julgamento para a reformulação do cúmulo jurídico e aplicação desse perdão. 13) Realizada audiência de julgamento para reformulação do cúmulo jurídico das demais penas em que o mesmo foi condenado e à aplicação do perdão emergente da Lei 38-A/23, de 2.08, o Tribunal a quo, por Acórdão Cumulatório de 23-10-2024, aplicou ao ora recorrente a pena única final de 5 (cinco) e 3 (três) meses. 14) Não obstante ter sido realizada audiência de julgamento com vista à reformulação do cúmulo jurídico das demais penas em que o mesmo foi condenado e à aplicação do perdão emergente da Lei 38-A/23, de 2.08, não poderia o Tribunal a quo aplicar uma pena superior à já aplicada de 5 (cinco) anos e (1) um mês de prisão. 15) É certo que não foi o arguido, ora recorrente, a interpor o recurso, mas sim o Ministério Público. 16) Sucede que, entende o ora recorrente que o recurso interposto pelo Ministério Público foi no interesse do arguido pois que pugnava pela extinção por amnistia do crime de condução sem habilitação legal, p. e p., pelo artigo 3.º, n. º1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de3 de janeiro e pela realização de audiência de discussão e julgamento para reformulação do cúmulo jurídico antes efetuado ao arguido. 17) Um dos princípios basilares do processo penal português é o Princípio da proibição da reformatio in pejus plasmado no n.º 1 do art.º 409 do Código de Processo Penal e n.º 1 do art.º 32 da Constituição da República Portuguesa, de acordo com o qual não poderá, em sede de recurso, ser aplicada ao arguido pena mais gravosa que a anteriormente aplicada. 18) É entendimento jurisprudencial unânime que este princípio tem, igualmente, de ser entendido no sentido de que se o Tribunal e recurso ordenar a devolução do processo e a realização de (novo) julgamento, como aconteceu no caso sub judice, não poderá a instância vir a condenar o recorrente em pena mais grave do que a infligida anteriormente. 19) Assim, esta limitação à actividade jurisdicional, tem também de ser aplicada aos casos em que o Tribunal de recurso ordena a realização de (novo) julgamento, como aconteceu no caso sub judice, por se postularem as mesmas razões, sendo que a solução contrária se traduziria em atribuir ao tribunal do reenvio (ou do novo julgamento ou da devolução) poderes que não estavam cometidos ao tribunal de recurso. 20) Ora, no caso dos presentes autos o ora recorrente tinha sido condenado na pena única de 5 (cinco) anos e 1 (um) meses de prisão e, após em sede de recurso ter sido ordenada a devolução do processo e realização de audiência de julgamento, veio a instância condenar o ora recorrente em pena superior pois que lhe aplicou a pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão. 21) Esta condenação numa pena mais gravosa, o que configura uma clara violação da Lei. 22) Só desta forma interpretando este princípio será o processo justo, o processo equitativo, tributário da estrutura acusatória do processo, consagrada constitucionalmente e do princípio da acusação, que impõe que fiquem limitados os parâmetros da decisão e condicionado no processo o poder de decisão à não alteração em desfavor do arguido. 23) Conforme ensina o Professor GERMANO MARQUES DA SILVA, in Constituição da República Portuguesa Anotada, “o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso”. 24) Assim, não poderia o Tribunal a quo na sua decisão de 23-10-2024, ora posta em crise, ter aplicado ao ora recorrente uma pena superior a 5 anos e 1 mês de prisão, atendendo a que por decisão proferida em 18-05-2024 (Referência Citius ...63) ao ora recorrente foi aplicada pena única de 5 (cinco) anos e 1 (um) mês. 25) Acresce que, sempre deve ser aplicado ao arguido decisão que lhe for mais favorável relativa ao cúmulo jurídico e/ou da reformulação do mesmo na determinação da pena única, ao abrigo do disposto no art. 2º, nº4 do Código Penal. 26) Por outro lado, o ora recorrente não se conforma com o Acórdão Cumulatório agora posto em crise, no que concerne à medida da pena única após aplicação da amnistia e do perdão. 27) O ora recorrente, por força do art.4º da Lei nº38-A/2023 de 02-08 beneficiou da amnistia relativamente ao crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art 3º, nº1, do Dec Lei nº 2/98 de 3 de janeiro (punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias) – (referente ao Processo nº117/18.5...). 28) Ora, o recorrente tinha sido condenado na pena de 10 meses pela prática deste crime. 29) Pelo que, aos 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão deverão ser retirados estes 10 meses, reduzindo-se a pena única para 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses. 30) In casu, é aplicável, também, o instituto do perdão. 31) Aplicando-se o perdão de 1 (um) ano à pena única de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses acima referida, a pena única final computa-se em 4 (quatro) anos e 8 (oito meses). 32) É certo que existem decisões no sentido em que no concurso de penas em que umas beneficiam de perdão e outras penas não, devem ficcionar-se cúmulos jurídicos intermédios englobando apenas as penas que beneficiam dos perdões, para determinar a extensão do perdão a decretar com base em cada uma das leis aplicáveis, após o que se procede a um real cúmulo de todas as penas aplicadas ao arguido, assim se obtendo a pena única final na qual se descontam os perdões previamente determinados. 33) Contudo o ora recorrente não pode concordar com tal entendimento. 34) Isto porque, salvo melhor opinião, este entendimento acaba por coartar os princípios basilares de defesa do arguido, ora recorrente, e não encontra nenhum suporte na Lei. 35) De acordo com o princípio da legalidade as autoridades judiciais só podem agir de acordo com a Lei, sendo que as decisões devem fundamentar-se e suportar-se no que está estabelecido nas normas legais (Art. 2.º do CPP e Art. 32.º da CRP). 36) Ao arguido deverão ser assegurados os direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, das garantias de defesa, a que o processo criminal deve obedecer (artigo 32º da Constituição da República Portuguesa). 37) De outro modo, também o princípio da proporcionalidade não seria respeitado, violando o artigo 18º da Constituição da República Portuguesa. 38) Pelo exposto, o tribunal a quo violou, entre outros, os artigos 2º, 77º e 78º do Código Penal, todos do CP, os artigos 18 º e 32º da Constituição da República Portuguesa, os artigos 2º, 3º, 4º e 7º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08 e o artigo 409º do Código de Processo Penal. Termos em que, Se requer (…) que seja o presente Recurso admitido e julgado procedente, revogando-se o Acórdão proferido pelo Tribunal a quo e substituindo-se por outro que aplique uma pena única final de 4 (quatro) anos e 8 (oito meses) ou (…) a uma pena única final inferior aos cinco anos e três meses de prisão em que vem o arguido, ora recorrente condenado.» 3. O Ministério Público, pela Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, apresentou resposta no sentido da improcedência do recurso, dizendo, em conclusões (transcrição): «1 - A violação da proibição da “reformatio in pejus” está consagrado no artigo 409º, nº 1, do CPP, que estabelece que quando o recurso da decisão final é interposto somente pelo arguido, ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido, o tribunal superior não pode agravar, na espécie ou na medida, as sanções impostas na decisão recorrida. 2 - O Sr. Juiz do Julgamento decidiu, por despacho proferido em 18.05.2024, aplicar a amnistia e o perdão da Lei n.º 38-A/2003, de 2 de Agosto, sobre a pena única resultante do Cúmulo Jurídico operado no Acórdão de 14.07.2021, sem a realização da audiência de julgamento a que alude o artigo 472.º, n.º 1 do CPP e, consequentemente, sem reformulação do cúmulo jurídico operado e sem obedecer aos parâmetros do artigo 77º, n.º 2, do Código Penal, impondo ao arguido a pena única de 6 anos e 1 mês de prisão e declarando perdoado, sob condição resolutiva, um ano dessa pena de prisão que fixou em cinco (5) anos e um (1) mês de prisão. 3 - O Ministério Público interpôs recurso desse douto despacho, pugnando, em conformidade com o disposto nos artigos 128.º, n.º 2 e 3, 77.º, n.º 2 e 78º, do Código Penal, 471.º, n.º 1 e 472.º, n.º 1, do CPP, que, no âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de Agosto, tendo o arguido sido condenado em pena única por crime que se encontrava amnistiado e por outros crimes alguns dos quais beneficiavam do perdão, impor-se-ia, devido a alteração da inicial moldura abstracta das penas englobadas no cúmulo antes operado, decorrente da extinção por amnistia de uma dessas penas, a realização de audiência de julgamento para a reformulação do cúmulo jurídico daí decorrente e aplicação desse perdão na pena única que viesse a ser determinada na sequência da reformulação. 4 - Esse recurso mereceu provimento decidindo o Venerando Tribunal da Relação anular o despacho proferido em primeira instância, determinando a realização de audiência de julgamento para reformulação do cúmulo jurídico. 5 - No douto Acórdão de Cúmulo Jurídico proferido na sequência do determinado pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, agora impugnado, foi declarada a amnistia de uma pena parcelar de 10 meses de prisão e após a reformulação do cúmulo jurídico, devido à alteração da moldura penal abstracta, foi imposta ao arguido a pena única de 6 (seis) anos e 3 (três) meses de prisão e declarado perdoado, sob condição resolutiva, um ano dessa pena de prisão que foi fixada em cinco (5) anos e três (3) meses de prisão. 6 - O Ministério Público, no exercício das suas funções de titular do exercício da acção penal e de defensor da legalidade democrática (artigo 219º da Constituição), tem o poder e o dever de recorrer sempre que, em face dos critérios legais, o considerar necessário. 7 - A legalidade das decisões, há-de aferir-se pelo respeito dos pressupostos legais de que o ordenamento faz depender a sua mobilização em ordem à protecção dos valores e situações jurídicas a cuja tutela se destinam. Neste sentido, como bem refere Pedro Soares de Albergaria, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, página 92, §11, ao contrário do arguido ou do assistente que “só podem recorrer lá onde forem efectivamente prejudicados por uma decisão judicial por ter sido proferida contra os mesmos, o MP é prejudicado por qualquer decisão jurídica ou factualmente errada independentemente de a quem ela prejudique ou de quem dela beneficie”. 8 - Foi o que aconteceu no caso sub judice, razão pela qual não houve violação da proibição da “reformatio in pejus” . 9 - O douto colectivo procedeu à realização da audiência de cúmulo jurídico de penas, obedecendo às regras jurídicas aplicáveis no caso de cúmulos jurídicos que abranjam penas parcelares resultantes da condenação por crimes amnistiados e crimes abrangidos pela lei do perdão e que incluem não só as resultantes da lei da amnistia, mas também as decorrentes da cessação da execução da pena e dos seus efeitos, bem como da punição do concurso de crimes previstas no Código Penal. 10 - Ao, assim, actuar eliminando a crime amnistiado que havia sido considerado, bem como a respectiva pena parcelar, altera-se a moldura penal abstracta do cúmulo (artigo 77.º, n.º 2, do CP), impondo, após a realização da necessária audiência, em conformidade com o disposto nos artigos 472.º, n.º 1 e 477.º, n.º1, do CPP, para a qual é funcionalmente competente o tribunal colectivo e não o juíz de julgamento, a reformulação do cúmulo jurídico inicial. 11- O douto acórdão recorrido não interpretou deficientemente qualquer preceito legal e, designadamente, os mencionados pelo recorrente. Nestes termos (…) julgando-se improcedente o recurso interposto e, consequentemente, confirmando-se o douto acórdão cumulatório recorrido, far-se-á Justiça.» 4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, em concordância com o Ministério Público no tribunal recorrido, emitido parecer nos termos do artigo 416.º do CPP, no sentido da improcedência do recurso (transcrição parcial): «(…) É parecer do Ministério Público neste Supremo Tribunal de Justiça que não assiste razão ao recorrente, devendo ser proferida decisão que mantenha integralmente a douta decisão recorrida. Na verdade, muito brevemente, dada a simplicidade das questões, temos que, tal como referido na resposta, não se verifica a violação do invocado princípio, nem se mostra possível proceder-se à aplicação da chamada ‘«lei da amnistia’ nos moldes pretendidos. A. Quanto ao princípio reformatio in pejus e sua proibição, constante no artº 409º do CPP, nem se entende como pode o recorrente invocá-lo, pois que foi clara a intenção do Ministério Público aquando da interposição do recurso da decisão singular de 18.05.2024, qual foi a de serem seguidas as normas legais adequadas, até com intervenção de um tribunal coletivo (note-se que nem o juiz singular tinha competência para o ato). O Ministério Público recorreu da decisão por esta violar diversas normas jurídicas, não entrando no seu recurso em qualquer consideração acerca da pena que deveria ser plicada em cúmulo e se esta deveria ser ou não diferente da achada na decisão recorrida. Ou seja, o recurso não foi apresentado em benefício do arguido, pelo que aquele princípio não é aqui aplicável, não estando assim o tribunal limitado na determinação da pena que entendeu como correta, mesmo que superior à antes aplicada através de ação que havia violado as normas legais aplicáveis. B. Quanto ao modo de aplicação ao caso da Lei nº 38-A/2013, há a notar que o Tribunal a quo procedeu conforme determinado pelo Tribunal da Relação, seguindo a metodologia ali determinada – primeiro aplicou a amnistia e, excluído o crime abrangido por tal amnistia, procedeu ao cúmulo das penas sobrantes e, sobre este cúmulo, aplicou o perdão que, conforme disposto naquela Lei, se tem de aplicar sobre a pena única, procedendo inicialmente a um cúmulo parcial entre as penas suscetíveis de beneficiar de tal perdão - para apurar se este poderia chegar ao máximo de 1 ano – e, depois, desfazendo esse cúmulo, elaborando um cúmulo de todas as penas aplicadas, sobre o qual fez incidir o montante do perdão. Neste sentido o Acórdão deste STJ, de 2006-10-24, proferido no Processo nº 06P294, em que foi Relator o Conselheiro Santos Carvalho: «Para proceder ao cúmulo jurídico de penas em concurso de infracções quando só algumas beneficiam de perdão, há que seguir estes passos: - 1.° efectua-se o cúmulo jurídico de todas as penas em concurso, independentemente de alguma delas beneficiarem de perdão e, assim, obtém-se a pena única; - 2.° calcula-se o perdão, após se ficcionar um cúmulo jurídico parcelar das penas que por ele estão abrangidas; - 3.° faz-se incidir o perdão assim calculado sobre a pena única inicial, mas o perdão tem como limite máximo a soma das parcelas das penas "perdoáveis", tal como encontradas na operação de cálculo dessa pena única inicial. Rejeita-se, assim, a fórmula que há anos era a jurisprudencialmente consagrada: na situação apontada, havendo que cumular penas abrangidas por perdão com penas por ele não abrangidas, entendia-se que haveria que efectuar um cúmulo jurídico provisório das penas abrangidas pelo perdão, aplicar o perdão à pena única parcelar provisória e, depois, efectuar o cúmulo final entre o remanescente desta e as restantes penas não abrangidas pelo perdão. Ora, esta fórmula é passível, pelo menos, de duas críticas pertinentes: - por um lado, dela resulta uma dupla compressão injustificada de certas penas. Como se sabe, para a formação de um cúmulo jurídico, todas as penas, com excepção da mais grave, sofrem uma determinada compressão, maior ou menor consoante a ponderação que é feita dos factos e da personalidade do agente, visto que, em regra, não é aplicada a pena máxima do concurso (a soma material de todas as penas). Daí decorre que na fórmula em apreço há uma primeira compressão na formação do cúmulo jurídico provisório para calcular o perdão e uma segunda no cúmulo jurídico definitivo. E, como facilmente se percebe, é uma dupla compressão injustificada, pois há só um cúmulo jurídico real, já que o outro é meramente ficcionado tendo em vista o cálculo do perdão; - a outra crítica é a de que, com este método, o perdão fica diluído e não transparece na pena única definitiva, pelo que, por um lado, o arguido mal se apercebe de que beneficiou de um perdão no meio das contas do cúmulo, por outro, não se sabe ao certo que desconto efectivo foi feito na pena única final, por fim, perde-se o efeito dissuasor da condição resolutiva a que está sujeito o perdão (art. 4.º da Lei 29/99).» Foi este o método seguido no acórdão recorrido, que não merece, quanto a nós, qualquer crítica, método que já se viu aplicado noutros casos, como sucedeu no processo 475/22.7PALSB.L2-3 da Relação de Lisboa (acórdão de 21.02.2024 – Relatora – a atual Conselheira Maria Margarida Almeida), crítica que mereceria o método proposto pelo recorrente, por via do duplo benefício que o mesmo lhe traria (o perdão seria aplicado duplamente). Assim sendo, é parecer do Ministério Público que a decisão recorrida deverá ser mantida na sua totalidade (…).» 5. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido reafirmou a sua posição dizendo: a) Quanto ao princípio da proibição da reformatio in pejus Que o «entendimento» do Ministério Público «não pode proceder», pois que «o Ministério Público interpôs recurso da decisão singular, o que, ao contrário do que pretende fazer crer, teve como efeito a reabertura da discussão sobre a pena única aplicada ao arguido», e «ao ordenar a realização de audiência para reformulação do cúmulo jurídico, o Tribunal da Relação não conferiu ao tribunal a quo poderes para agravar a pena já fixada na primeira decisão (5 anos e 1 mês de prisão), mas apenas para adequar a aplicação dos institutos da amnistia e do perdão, sem que daí pudesse resultar um prejuízo para o arguido». Em consequência, defende que «a decisão recorrida padece de nulidade, pois violou o artigo 409.º do Código de Processo Penal e o artigo 32.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, impondo-se, por isso, a sua revogação, com a fixação da pena única no limite máximo da decisão anteriormente proferida (5 anos e 1 mês de prisão)». b) Quanto à aplicação da amnistia e do perdão Que, «como ficou demonstrado no recurso interposto, a pena única deveria ter sido fixada em 4 anos e 8 meses de prisão, após a aplicação correta da amnistia e do perdão, e não em 5 anos e 3 meses, como acabou por suceder», pois que «o método defendido pelo Ministério Público, baseado na ficção de cúmulos jurídicos intermédios para aferição do perdão aplicável, não tem, suporte legal e contraria o princípio da legalidade, que impõe que a aplicação da pena seja realizada nos termos expressamente previstos na lei», para além de que «esta metodologia gera uma situação de desigualdade, tratando de forma distinta arguidos que se encontram em idêntica posição jurídica, em clara violação do princípio da proporcionalidade consagrado no artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa.» 6. Colhidos os vistos, foi o processo à conferência, para decisão. II. Fundamentação Factos provados 7. Consta do acórdão recorrido: «Com relevância para a presente decisão importam os factos seguintes: 1- Por acórdão cumulatório proferido nos presentes autos, no dia 14 de julho de 2021, foi o arguido condenado na pena única de 6 (seis) anos e 6 (seis) meses de prisão. 2- Tal Acórdão englobou as penas do processo comum singular nº 117/18.5..., do Juízo de Competência Genérica de ..., da Comarca de Coimbra (que deu origem aos presentes autos) e as penas parcelares aplicadas no processo comum colectivo n.º 151/18.5..., do Juízo Central Criminal – Juiz ... – de ..., no processo comum singular n.º 221/16.4..., do Juízo Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria e no processo comum singular n.º 182/18.5..., do Juízo Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria. 3- Nos presentes autos (Processo nº 117/18.5...) por sentença de 03.02.2021, transitada em julgado, o arguido foi condenado pela prática, em 6 de junho de 2018 e 1 de julho de 2018, de : a) um crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3º, nº 1 do Dec. Lei 2/98 de 3 de janeiro, na pena de 10 (dez) meses de prisão. b) um crime de condução sem habilitação legal, p. p. pelo art. 3º, nº 2 do Dec. Lei 2/98 de 3 de janeiro, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão. c) crime de furto de uso de veículo, previsto e punido pelo art. 208º, nº 1 do Código Penal, na pena de 1(um) ano e 6 (seis) meses de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares em 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva, conforme sentença que aqui se dá por inteiramente reproduzido. 4- No processo comum colectivo n.º 151/18.5..., do Juízo Central Criminal – Juiz ... – de ..., por decisão de 4 de Fevereiro de 2019, transitada em julgado em 6 de Março de 2019, foi o arguido condenado, pela prática, em dia 23 de junho de 2018, 26 de junho de 2018, 19-07-2018 e 1 de agosto de 2018, como co-autor material, de : a) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 do Código Penal (C.P.), na pena de 2 anos de prisão; b) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; c) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; d) um crime de roubo, na forma tentada, p. e p. nos arts. 22º, 23º e 210º/n.º 1 C.P., na pena de 9 meses de prisão; e) dois crimes de coacção, p. e p. no art. 154º/n.º 1 C.P., nas penas de 6 meses de prisão por cada um deles; f) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 2 anos de prisão; g) um crime de injúria agravada, p. e p. nos arts. 181º e 184º, com referência ao art. 132º/n.º 2-f), todos C.P., na pena de 2 meses de prisão; h) um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. no art. 347º/n.º 1 C.P., na pena de 1 ano e 6 meses de prisão; Em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão. 5- No processo comum singular n.º 221/16.4..., do Juízo Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria, por decisão de 4 de Março de 2019, transitada em julgado em 3 de Abril de 2019, foi o arguido condenado, pela prática desde 27 de Novembro de 2016 e nos dias 27 e 29 de Novembro de 2016, como autor material, de: a) um crime de roubo, p. e p. no art. 210º/n.º 1 C.P., na pena de 2 anos de prisão; b) um crime de coacção agravada, p. e p. nos arts. 154º/n.os 1 e 2 e 155º/n.º 1-a), ambos C.P. na pena de 1 ano de prisão. Em cúmulo jurídico das penas parcelares, na pena única de 2 anos e 4 meses de prisão. 6- No processo comum singular n.º 182/18.5..., do Juízo Local Criminal – Juiz ... – de ..., da Comarca de Leiria, por decisão de 9 de Janeiro de 2020, transitada em julgado em 10 de Fevereiro de 2020, foi o arguido condenado, foi o arguido condenado, pela prática dia 19 de Julho de 2018, como autor material: - um crime de ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada, p. e p. nos arts. 22º, 23º, 143º, 145º/n.os 1-a) e 2, por referência ao art. 132º/n.º 2-h), todos C.P., na pena de 9 meses de prisão. 7- De acordo com o computo provisório das penas que o arguido cumpre em execução sucessiva, realizado pelo TEP, o ½ das penas ocorreu em 18/03/2023; os 2/3 foram atingidos em 04/08/2024; os 5/6 está fixado para 22/11/2025 e o termo em 10/05/2027. 8- De acordo com as declarações prestadas pelo próprio arguido, em 28-10-2019, concluiu o Curso Técnico de Instalações Elétricas que lhe deram equivalência ao 12º ano e sofreu duas sanções disciplinares no Estabelecimento Prisional ...; 9- Aguarda resposta ao pedido de ocupação laboral que formulou.» Objeto e âmbito do recurso 8. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo da 1.ª instância que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP]. Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades a que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, em vista da boa decisão de direito, dos poderes de conhecimento oficioso dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), que, neste caso, não se verificam. 9. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir: (a) Se o acórdão recorrido violou a proibição da reformatio in pejus; (b) Se, dada a amnistia de um dos crimes em concurso, em reformulação do cúmulo jurídico para aplicação da Lei n.º 38-A/2003, de 2 de agosto, foram respeitados os critérios de determinação da pena única sobre que incide o perdão de pena e se, na aplicação do perdão à pena única, foi violada a Lei n.º 38-A/2003, de 2 de agosto. Quanto à alegada violação da proibição da reformatio in pejus [9 (a)] 10. Dispõe o artigo 409.º (sob a epígrafe «Proibição de reformatio in pejus»), n.º 1, do CPP que «[i]nterposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes». 11. A proibição de modificação da sanção imposta pelo tribunal da condenação, em prejuízo do arguido, pelo tribunal de recurso, decorre, como é unanimemente reconhecido, da estrutura acusatória do processo, da garantia do direito ao recurso enquanto componente do direito de defesa e das exigências de um processo equitativo – artigos 32.º, n.º 1, da Constituição e 6.º, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos –, por tal modificação ou risco de modificação desfavorável constituir um resultado incompatível com o pleno exercício deste direito e, portanto, uma limitação inaceitável deste direito, nos casos em que o recurso é interposto pelo arguido ou pelo Ministério Público no «exclusivo» interesse do arguido. Estando o Ministério Público enquanto órgão de justiça e sujeito do processo dotado de estatuto vinculado a estritos critérios de legalidade e objetividade (artigos 219.º da Constituição e 3.º do Estatuto do Ministério Público) na prossecução da finalidade de realização do direito (artigo 53.º, n.º 1, do CPP), confere-lhe a lei processual a legitimidade necessária para, no cumprimento de um dever funcional (artigo 53,º, n.º 2, al. d), do CPP), recorrer única e exclusivamente na defesa do interesse do arguido, a favor do «direito de defesa», sempre que necessário à realização da justiça, na aplicação do direito ao caso concreto. O que, na concretização deste poder-dever, se concretiza, nomeadamente, sempre que esteja em causa um direito fundamental do arguido, nomeadamente o direito ao processo e a um tribunal regularmente constituído (direito à tutela jurisdicional efetiva – artigo 20.º da Constituição), e sempre que os critérios legais de decisão sobre a culpabilidade, incluindo a qualificação jurídica dos factos, e sobre a medida e natureza da pena justifiquem uma sanção de menor gravidade. 12. A proibição da reformatio in pejus encontra a sua justificação na garantia constitucional da plenitude das garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso, como afirmou o Tribunal Constitucional no acórdão de referência n.º 236/2007. Pode ler-se no Acórdão n.º 502/2007, convocando aquele acórdão: «(…) o Tribunal identificou os fundamentos constitucionais da proibição de reformatio in pejus. E disse – invocando jurisprudência sua anterior, nomeadamente a decorrente dos Acórdãos nºs 499/97, 498/98, 291/2000, 135/99, 522/99, 324/99 e 187/98 – que, face à Constituição, o instituto não tinha nem podia ter uma configuração absoluta: relevando ele de uma “tensão existente entre dois valores: o direito punitivo do Estado, de que decorre o poder dos juízes aplicarem livremente as sanções adequadas, e as garantias de defesa dos arguidos” (assim mesmo, Acórdão nº 324/99), a proibição justificar‑se‑ia constitucionalmente só quando referida ao princípio da plenitude das garantias de defesa e ao direito ao recurso, consagradas no artigo 32º, nº 1, da CRP. Significa isto que a proibição de agravação das penas por nova decisão judicial seria assim constitucionalmente justificada – ou, melhor dito, constitucionalmente imposta – sempre que, e apenas quando, a nova decisão resultasse exclusivamente do exercício de um direito da defesa. Sempre que: é que consagrando a CRP o princípio da plenitude das garantias da defesa (incluindo o direito ao recurso), mal se compreenderia que a lei ordinária permitisse que o exercício de um direito de defesa viesse a redundar em dano para a própria defesa. Apenas quando: se se entendesse de outro modo – isto é, se se entendesse que a Constituição impunha uma proibição de agravação das penas fora destas circunstâncias, configurando‑se assim uma raiz constitucional para a proibição absoluta de reformatio in pejus – tal entendimento “seria conflituante com o direito ao recurso da acusação e com a realização da justiça” (Acórdão nº 499/97)». 13. Esta garantia do direito de defesa não se limita, porém, ao tribunal de recurso. Apesar de não expressamente prevista, aplica-se também ao «tribunal de reenvio» («reformatio indireta»), isto é, nos casos de novo julgamento em virtude de anulação de julgamento anterior na sequência de recurso apenas interposto pelo arguido (ou pelo Ministério Público no seu «exclusivo» interesse, por identidade de razão), pois que o exercício de um direito de defesa não pode redundar em dano da própria defesa. Lê-se a este propósito no mesmo Acórdão nº 502/2007: «Encontrado deste modo o fundamento constitucional do instituto, o tribunal não teve dificuldade em estendê‑lo para além dos casos literalmente previstos no n.º 1 do artigo 409.º do Código de Processo Penal. E por isso disse, no Acórdão nº 236/2007, que a proibição de reformatio in pejus devia ser entendida não apenas como sendo dirigida aos tribunais de recurso (o que corresponde ao enunciado do nº 1 do artigo 409º do CPP) mas também aos tribunais de reenvio, em casos de novos julgamentos a que se procedesse em virtude de anulação de julgamentos anteriores, decidida em sequência de recurso apenas interposto pelo arguido. “Na verdade” – escreveu‑se então – “é igualmente inibidora do exercício do direito de recurso a possibilidade de, embora por via indirecta (na sequência de anulação do primeiro julgamento), o arguido, em situações em que é o único recorrente (ou na situação equiparada de o Ministério Público interpor recurso no exclusivo interesse da defesa), ver, a final, a sua posição agravada com uma condenação mais pesada do que a inicialmente infligida, apesar de o Ministério Público se haver conformado com esta”». Neste sentido, seguindo jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça (assim, o acórdão de 14.9.2011, Proc. n.º 138/08.6TALRA.C1.S1, em www.dgsi.pt) a partir destas decisões do Tribunal Constitucional se considerou recentemente no acórdão de 17.12.2024, Proc. n.º 43/14.7PBBRG.G2.S1, em www.dgsi.pt: «A proibição de reformatio in pejus abrange, antes de mais, o tribunal superior (…). Mas a proibição da reformatio in pejus aplica-se, também, ao tribunal de primeira instância, num segundo momento, nas situações de o tribunal superior ordenar o reenvio dos autos ao tribunal inferior para novo julgamento, conquanto que o recurso da primeira sentença tenha sido exclusivamente interposto no interesse do arguido.» É, pois, neste quadro, que deve analisar-se a questão dos autos. 14. O acórdão recorrido foi proferido em cumprimento de um acórdão do Tribunal da Relação que revogou o «despacho» recorrido e a sua substituição «por outro que, declarando extinta, por amnistia, a responsabilidade criminal do arguido AA relativamente ao crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1 do Dec. Lei 2/98, designe dia para realização da audiência de julgamento com vista à reformulação do cúmulo jurídico das demais penas em que o mesmo foi condenado e à aplicação do perdão emergente da Lei 38-A/23, de 2.08.». Essa decisão da Relação, em recurso interposto pelo Ministério Público, limitou-se a responder à questão de «saber no âmbito de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, em caso de o arguido ter sido condenado em pena única por crime que se encontre amnistiado e por outros crimes alguns dos quais beneficiem do perdão decretado pela mesma, deve ou não ser realizada a audiência de julgamento para a reformulação do cúmulo jurídico e aplicação desse perdão.» 15. É certo que o recurso do Ministério Público, que incidiu sobre um «despacho» (artigo 97.º, n.º 1, al. b), do CPP), visou também a realização de um direito do arguido – o direito à pena única, ou seja, o direito fundamental do arguido ao tribunal e ao processo e à forma de determinação da pena única, à tutela jurisdicional efetiva que assim se realiza. Para o que agora interessa, nesse recurso não estava em causa uma «decisão final», isto é, uma sentença ou um acórdão (artigo 97.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, do CPP) que, conhecendo do objeto do processo, nesta fase processual, aplicasse uma «sanção» – sendo que uma tal «sanção» só por um ato revestindo uma destas formas poderia ser aplicada –, mas a falta de uma tal decisão do tribunal na forma exigida que, procedendo à reformulação do cúmulo jurídico, por virtude da amnistia de um dos crimes em concurso, aplicasse uma pena conjunta aos restantes crimes. O recurso do Ministério Público visou essa reformulação, que se impunha, nos termos dos artigos 77.º e 78.º do Código Penal. Falece, pois, desde logo, um dos pressupostos da reformatio «indireta». Estendendo a norma do artigo 409.º, n.º 1, do CPP a estes casos, em leitura conforme à Constituição, dela se extrai que, tal como no recurso, a proibição da reformatio in pejus em caso de reenvio pressupõe a aplicação de uma «sanção» pela «decisão final» recorrida e anulada em recurso. 16. Não havendo a «decisão final», nem «reenvio» (que pressupõe uma anterior «decisão final»), não pode haver violação da proibição. Embora possa ser visto como interposto no «interesse» do arguido, no sentido de, por essa via, se visar também assegurar um direito seu, o recurso do Ministério Público não agiu em seu interesse «exclusivo» nem em sua «defesa» perante uma decisão de aplicação de pena. 17. Com estes fundamentos se conclui, assim, que não foi violada a proibição da reformatio in pejus e que, em consequência, o recurso, nesta parte, não merece provimento. Quanto à alegada violação da Lei n.º 38-A/2003 na reformulação do cúmulo jurídico, na determinação da pena única e na aplicação do perdão [9 (b)] 18. A decisão recorrida encontra-se fundamentada nos seguintes termos: «Da questão de apreciação da Lei 38-A/2023 de 02-08 relativamente a cada um dos crimes: Estabelece o artigo 2.º da Lei n.º 38-A/2023 de 02-08: 1 - Estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º Preceitua o art 3.º da citada Lei: “1- Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos. (…) 4- Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única.” Dispõe o artigo 4º da citada Lei: “São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa”. Nos termos do artigo 7.º: 1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: a. No âmbito dos crimes contra as pessoas, os condenados por: (…) iv) Crimes de coação, perseguição, casamento forçado, sequestro, escravidão, tráfico de pessoas, rapto e tomada de reféns, previstos nos artigos 154.º a 154.º-B e 158.º a 162.º do Código Penal; b) No âmbito dos crimes contra o património, os condenados: i) Por crimes de abuso de confiança ou burla, nos termos dos artigos 205.º, 217.º e 218.º do Código Penal, quando cometidos através de falsificação de documentos, nos termos dos artigos 256.º a 258.º do Código Penal, e por roubo, previsto no n.º 2 do artigo 210.º do Código Penal. 2 - As medidas previstas na presente lei não se aplicam a condenados por crimes cometidos contra membro das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários, no exercício das respetivas funções. 3 - A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos.” Conforme resulta ainda do artigo 8º: “1 - O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.” * Do benefício da amnistia: No presente caso, conforme resulta dos preceitos supra citados, considerando as molduras penais abstratas aplicáveis aos crimes pelos quais foi condenado, que o arguido, por força do art 4.º da Lei n.º 38-A/2023 de 02-08 apenas poderá beneficiar da amnistia relativamente ao crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art 3.º, n.º 1, do Dec Lei nº 2/98 de 3 de janeiro (punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias) – (referente ao Processo nº117/18.5...). O arguido foi condenado na pena de 10 meses de prisão, pelo que no caso deste crime, deverá o mesmo ser amnistiado. A amnistia extingue o procedimento criminal e, no caso presente faz cessar a execução tanto da pena e dos seus efeitos (cfr. art.º 128.º, n.º 1, do C.P.) pelo que para os efeitos da reformulação do Acórdão, esta pena já não integrará o novo cúmulo a realizar. * Da aplicação do perdão: Por força do disposto no art 7.º, n.º 1, a) iv), b) i) e n.º 2 da citada Lei, o arguido não poderá beneficiar de perdão relativamente a estas penas parcelares, Em situações como a presente de concurso de penas, em que umas beneficiam de perdão e outras não, encontramos na jurisprudência, por ocasião da aplicação da Lei da Amnistia nº 29/99 o seguinte Acórdão do STJ: “I-Perante o concurso de penas em que umas beneficiam de perdão de apenas algumas leis e outras penas não beneficiam de tais perdões ou não beneficiam de nenhum perdão, devem ficcionar-se cúmulos jurídicos intermédios englobando apenas as penas que beneficiam de cada um dos perdões, para determinar a extensão do perdão a decretar com base em cada uma das leis aplicáveis, após o que se procede a um real cúmulo de todas as penas aplicadas ao arguido, assim se obtendo a pena única final na qual se descontam os perdões previamente determinados. II - Esta posição é a que permite a maior concordância entre as disposições da Lei n.º 29/99 e as disposições dos arts. 77.º e 78.º do CP, dos quais resultam as seguintes orientações: - havendo cúmulo jurídico o perdão incide sobre a pena única. A expressão "pena única" tem um sentido preciso, o usado no art. 77.º, n.º 1, do CP: pena unitária final resultante da consideração de todas as penas parcelares envolvidas, e não um "subcúmulo" ou "cúmulo parcelar" ou "cúmulo provisório" utilizado para cálculo do perdão; - se houver casos ou infracções que tenham de ser afastados do perdão, o cúmulo é reformulado de forma adequada. A adequada reformulação do cúmulo não pode afastar as regras já citadas e não pode deixar de ser um cúmulo que considere todas as parcelares a ter em conta e não um cúmulo de penas parcelares com "remanescentes" de "subcúmulos", realidades ou conceitos não previstos na lei; - as regras dos arts. 77.º e 78.º do CP devem manter-se, particularmente as que obrigam a uma apreciação conjunta dos factos e da personalidade do agente, bem como a que estipula sobre os limites, mínimo e máximo, da pena única a aplicar. Os limites máximo e mínimo da pena única só podem ser respeitados na posição que se assume. III - A necessidade de formular cúmulos "intermédios" ou parcelares, quando certas condenações estão excluídas ou há amnistias parciais, deve ser entendida como um expediente processual "provisório", para efeitos de cálculo.” (1 ). Vejamos então. Conforme decorre do art 7.º, n.º 3, da Lei da Amnistia: “A exclusão do perdão e da amnistia previstos nos números anteriores não prejudica a aplicação do perdão previsto no artigo 3.º e da amnistia prevista no artigo 4.º relativamente a outros crimes cometidos”. (cfr art 7º, nº3). No caso presente, em síntese, importa reter: - O arguido foi condenado numa pena única de 6 anos e 6 meses de prisão; - O arguido beneficiou da amnistia relativamente à pena de 10 meses de prisão com consequente extinção do procedimento criminal e cessação da sua execução, a qual já não se integrará no cúmulo a realizar; - Á data da prática dos factos tinha menos de 30 anos (art 2º); - O arguido poderá beneficiar de perdão relativamente penas não excluídas pelo disposto no no art 7º, nº1, a) iv), b) i) e nº 2 da citada Lei. Assim sendo, as penas parcelares aplicadas perdoáveis são superiores a 1 ano. Existindo penas perdoáveis e outras não perdoáveis, entendemos ser necessário ficcionar um cúmulo intermédio das penas perdoáveis. E levando-se em conta os fatores gerais previstos no art 71º, nº2, do C.Penal, já tidos e conta no Acórdão cumulatório agora objeto de reformulação, entendemos justo e adequado fixar a moldura das penas perdoáveis em 4 anos e 3 meses a das penas não perdoáveis em 2 anos. Aqui chegados, haverá agora que reformular o cúmulo jurídico de todas as penas acima referidas (excluída a pena de 10 meses de prisão já amnistiada). E, por aplicação do citado art 77º do C.Penal, a moldura do concurso das penas não perdoáveis e das penas perdoáveis o limite mínimo será agora de 2 (dois) anos e o seu limite máximo será de 14 (catorze) anos e 5 (cinco) meses. Tudo ponderado, temos para nós adequado aplicar ao arguido uma pena única de 6 (seis) anos e 3 (três) meses. Por fim, obtida a pena única a que se refere o art 3º da citada Lei, sobre esta deverá incidir agora o perdão de 1 (um) ano (apurado nos termos acima expostos como pena única das penas perdoáveis) assim, se alcançando a respetiva proporção. Nesta medida, procedendo-se à reformulação do cúmulo jurídico, julga-se adequado aplicar ao arguido uma pena única de 6 (seis) anos e 3 (três) meses de prisão.» 19. Terminando com o seguinte dispositivo: «IV-Dispositivo Pelo exposto, procedendo à reformulação do cúmulo jurídico, acordam os Juizes que constituem este Tribunal Coletivo em: a) Declarar amnistiado o crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art 3.º n.º 1 do Dec Lei 2/98, com consequente extinção da pena de 10 meses de prisão (art 128º, do C.P.), nos termos do art 2º n.º 1 e 4º da Lei n.º 38-A/2023, de 02-08 (pena parcelar do processo nº 117/18.5...); b) Condenar o arguido numa pena única de 6 (seis) anos e 3 (três) meses (que engloba as penas dos presentes autos (com exceção da pena parcelar amnistiada) e as penas dos processos n.º 151/18.5..., nº 221/16.4... e nº 182/18.5...). c) Declarar perdoado 1 (um) ano de prisão na pena única de 6 (seis) anos e 3 (três) meses, ficando a pena única reduzida a 5 (cinco) anos e 3 (três) meses, sob a condição resolutiva prevista no artigo 8º nº1 da citada Lei.» 20. Como se viu, o acórdão recorrido visou dar cumprimento ao acórdão do Tribunal da Relação que revogou o despacho recorrido e determinou que fosse substituído por outro despacho que, «declarando extinta, por amnistia, a responsabilidade criminal do arguido AA relativamente ao crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3.º, n.º 1 do Dec. Lei 2/98», designasse «dia para realização da audiência de julgamento com vista à reformulação do cúmulo jurídico das demais penas em que o mesmo foi condenado e à aplicação do perdão emergente da Lei 38-A/23, de 2.08». A decisão agora recorrida é, pois, o acórdão que, realizada a audiência de julgamento, «em obediência» ao acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, declarando a amnistia, nos termos do artigo 78.º do CP procedeu à reformulação do cúmulo jurídico e à aplicação do perdão concedido pela Lei n.º 38-A/2023. 21. A determinação da pena única em caso de conhecimento superveniente do concurso de crimes (artigo 78.º do CP) efetua-se através de nova sentença do tribunal da última condenação que realize ou, sendo caso disso, proceda à reformulação do cúmulo jurídico das penas aplicadas a cada um dos crimes que se posicionam numa relação de concurso efetivo (artigo 30.º, n.º 1, do CP), mediante audiência e realização das diligências necessárias (artigos 471.º e 472.º do CPP). Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso, para que remete o artigo 78.º, quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, formada a partir da moldura do concurso, determinada pelo mínimo correspondente à pena mais elevada e pelo máximo definido pela soma das penas aplicadas (artigo 77.º, n.º 2), para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, como critério especial, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º, in fine), com respeito pelos limites impostos pela culpa (artigo 40’.º do CP). A pena única corresponde a uma pena conjunta resultante das penas aplicadas aos crimes em concurso segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se, na sua fixação, o procedimento normal de determinação e escolha das penas, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso (pena aplicável). Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente manifestada no facto, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito, em observância do critério de proporcionalidade com fundamento no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição. Como se tem sublinhado, é na consideração destes fatores, determinados na averiguação do «grande facto» caraterizado pelas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, constituem o substrato da determinação da pena, que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos, que devem pautar a sua aplicação2 . 22. Estabelece o artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena. A sentença que aplica a pena única na sequência da audiência a que se refere o artigo 471.º do CPP deve, assim, na sua autossuficiência, com as devidas adaptações – pois não está em causa a decisão sobre factos já julgados nem o exame crítico das provas –, respeitar os requisitos de fundamentação exigidos pelo n.º 2 do artigo 374.º e pelo n.º 1 do artigo 375.º do CPP, incluindo a descrição dos factos provados praticados pelo arguido, que devem ser considerados no seu conjunto, com particular atenção aos elementos relevantes para o conhecimento da personalidade deste, projetada e manifestada no facto ilícito típico praticado, tendo em conta o critério especial de determinação da pena estabelecido na parte final do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal3. A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos das disposições legais mencionadas, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre diretamente do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas nos termos previstos na lei. O dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais resulta de razões que se extraem do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais, que implicam, para além do mais, a necessidade de justificação do exercício do poder estadual, de modo a possibilitar o seu controlo por parte dos destinatários e dos tribunais superiores, assim se conferindo garantia efetiva ao direito de defesa, incluindo o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição4. “A fundamentação cumpre, simultaneamente, uma função de carácter objetivo – pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões – e uma função de carácter subjetivo – garantia do direito ao recurso, controlo da correção material e formal das decisões pelo seu destinatário”5. A fundamentação das decisões dos tribunais representa um dos aspetos do direito a um processo equitativo protegido pelo artigo 6.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos, a qual impõe o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza6. Escreveu-se no acórdão de 17.06.2015, processo 488/11.4GALNH: “Constitui orientação sedimentada e segura neste Supremo Tribunal a que aponta para a necessidade de, na determinação da pena unitária do concurso, se deverem observar especiais cuidados de fundamentação, na decorrência aliás do que dispõem os artigos 71.º, n.º 3, do CP, 97.º, n.º 5 e 375.º, n.º 1, do CPP, e 205.º, n.º 1 da CRP. (…) a decisão que proceder ao cúmulo de penas está também submetida ao formalismo do art. 374.º, n.º 2, do CPP, devendo, portanto, indicar os fundamentos de facto e de direito que a suportam. Com efeito, e como é sabido, a punição do concurso superveniente não constitui uma operação aritmética ou automática, antes exige um julgamento (art. 472.º, n.º 1, do CPP), destinado a avaliar, em conjunto, os factos, na sua globalidade, e a personalidade do agente, conforme dispõe o art. 77.º, n.º 1, do CP. O que vale por dizer, pois, que o julgamento do concurso de crimes constitui um novo julgamento, destinado a habilitar o tribunal a produzir um juízo autónomo (…). Esse juízo global exige uma fundamentação própria, quer em termos de direito, quer de facto. Daí que a sentença de um concurso de crimes não possa deixar de conter uma referência aos factos cometidos pelo agente, tanto no que diz respeito à necessidade de citação dos tipos penais cometidos, quanto também no que concerne à descrição dos próprios factos efetivamente praticados pelo agente, na sua singularidade circunstancial, pois só ela, dando os contornos de cada crime integrante do concurso, pode informar sobre a ilicitude concreta dos crimes praticados (que a mera indicação dos dispositivos legais não revela), a homogeneidade da atuação do agente, a eventual interligação entre as diversas condutas, enfim, a forma como a personalidade deste se manifesta nas condutas praticadas. A decisão de cúmulo, podendo dispensar uma fundamentação especificada conforme o determinado no art. 374.º, n.º 2, do CPP, terá que explicitar os motivos de facto e de direito que determinaram o sentido da decisão. O que vale por dizer que, bastando uma referência sucinta aos crimes em concurso, porquanto os factos constam das respetivas sentenças condenatórias, não pode a decisão deixar de conter o núcleo que o tribunal considerou para aferir da ilicitude do facto global, a homogeneidade da ação e a projeção da personalidade nos crimes praticados”7. 23. Vista e examinada a fundamentação da decisão em matéria de facto (supra, 7), verifica-se que o acórdão recorrido limita-se a indicar a pena única aplicada em 14.7.2021, os processos em que foram proferidas as condenações, os tipos de crime por que o arguido foi condenado e a respetiva previsão legal, as penas aplicadas a cada um deles, a liquidação provisória das penas em «execução sucessiva», as declarações que o arguido prestou em 28.10.2019 sobre a conclusão de um curso técnico sobre instalações elétricas com equivalência ao 12.º ano e sobre duas sanções disciplinares aplicadas no estabelecimento prisional, e de que «aguarda resposta ao pedido de ocupação laboral que formulou». Quanto aos fundamentos da decisão em matéria de direito (supra, 18), importa lembrar que o acórdão recorrido, convocando e seguindo o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça 16-05-2001, Proc. n.º 134/01-3, depois de ter concluído que «o arguido poderá beneficiar de perdão relativamente penas não excluídas pelo disposto no no art 7.º, n.º 1, a) iv), b) i) e n.º 2 da citada Lei» e pela necessidade de reformular o cúmulo jurídico, dada a «existência de penas perdoáveis e outras não perdoáveis», e de, para o efeito, «ficcionar um cúmulo intermédio das penas perdoáveis», limitou-se a dizer o seguinte: «E levando-se em conta os fatores gerais previstos no art 71.º, n.º 2, do C.Penal, já tidos e conta no Acórdão cumulatório agora objeto de reformulação, entendemos justo e adequado fixar a moldura das penas perdoáveis em 4 anos e 3 meses a das penas não perdoáveis em 2 anos. Aqui chegados, haverá agora que reformular o cúmulo jurídico de todas as penas acima referidas (excluída a pena de 10 meses de prisão já amnistiada). E, por aplicação do citado art 77º do C.Penal, a moldura do concurso das penas não perdoáveis e das penas perdoáveis o limite mínimo será agora de 2 (dois) anos e o seu limite máximo será de 14 (catorze) anos e 5 (cinco) meses. Tudo ponderado, temos para nós adequado aplicar ao arguido uma pena única de 6 (seis) anos e 3 (três) meses. Por fim, obtida a pena única a que se refere o art 3º da citada Lei, sobre esta deverá incidir agora o perdão de 1 (um) ano (apurado nos termos acima expostos como pena única das penas perdoáveis) assim, se alcançando a respetiva proporção. Nesta medida, procedendo-se à reformulação do cúmulo jurídico, julga-se adequado aplicar ao arguido uma pena única de 6 (seis) anos e 3 (três) meses de prisão.» 24. Porém, não se indicam: (a) os elementos minimamente necessários para se poderem identificar os crimes a que correspondem as penas «perdoáveis» e «não perdoáveis» nem os factos respetivos; (b) as penas que integram e definem a moldura (mínimo e máximo da pena aplicável) do denominado «cúmulo intermédio»; (c) a justificação das molduras (limites mínimo e máximo) das «penas perdoáveis» e «não perdoáveis»; (d) a pena única «perdoável» e a pena única «não perdoável» nem a motivação desta classificação; (e), nem, finalmente, se mostra fundamentada a aplicação da pena única de 6 anos e 3 meses de prisão sobre que incidiu o perdão de 1 ano. O que impossibilita a pronúncia, em recurso, sobre as questões colocadas quanto à pena única e à aplicação do perdão. Assim, face ao que anteriormente ficou dito quanto aos critérios de determinação da pena única e quanto aos requisitos da fundamentação, em aplicação dos artigos 40.º, 71.º e 77.º do Código Penal (supra, 21 e 22), impõe-se concluir que não podem considerar-se preenchidas as exigências legais de fundamentação, o que, dizendo respeito a matéria de facto cuja fixação se encontra subtraída aos poderes de apreciação e decisão deste Tribunal e impedindo a verificação da proporcionalidade da pena, não pode ser suprido na decisão do recurso. 25. Nos termos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, é nula a decisão que não contiver as menções referidas no n.º 2 do artigo 374.º, nomeadamente a enumeração dos factos provados e uma exposição, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, incluindo os fundamentos que presidiram à medida da pena, nos termos do artigo 375.º do CPP e do artigo 71.º, n.º 3 do Código Penal. Verifica-se, pois, esta nulidade, que deve ser conhecida oficiosamente em recurso (artigo 379.º, n.º 2, do CPP). Quanto a custas 26. De acordo com o estabelecido no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. O que não é o caso. III. Decisão 27. Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em: a) Julgar improcedente o recurso quanto à questão da alegada violação da proibição da reformatio in pejus estabelecida no artigo 409.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; b) Declarar nulo o acórdão recorrido, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. a), 1.ª parte, e n.º 2, do Código de Processo Penal, por omissão de fundamentação de acordo com o n.º 2 do artigo 374.º e com o artigo 375.º do mesmo diploma, o qual deve, por isso, ser reformulado para suprimento da nulidade, tendo em conta o que na fundamentação se deixou expresso e o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, 77.º, n.º 1, 78.º, n.º 1, do Código Penal. Sem custas. Supremo Tribunal de Justiça, 5 de março de 2025. José Luís Lopes da Mota (Relator) Maria Margarida Ramos de Almeida Carlos Campos Lobo _____________________________________________ 1. cfr 16-05-2001 Proc. n.º 134/01-3 Lourenço Martins, Pires Salpico, Flores Ribeiro (vencido), Leal-Henriques, citado no Ac STJ de 16-10-2003 proc convencional nº03P3180. 2. Assim, entre outros, os acórdãos de 8.6.2022, Proc. 430/21.4PBPDL.L1.S1, de 26.06.2019, Proc. 174/17.1PXLSB.L1.S1, de 9.10.2019, Proc. 24/17.9JAPTM-E1.S1, e de 3.11.2021, Proc. 875/19.0PKLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt. 3. Neste sentido, refletindo jurisprudência constante, os acórdãos de 27.11.2019, Proc. n.º 3073/19.9T8GMR-S1, de 17.12.2015, Proc. 520/13.7PCRGR.L1.S1, e de 18.09.2013, Proc. 968/07.6JAPRT-A.S1). 4. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, anotações ao artigo 205.º, Vol. II, 4.ª ed. 5. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Tomo III, 2007, anotações III e IV ao artigo 205.º 6. Assim, o acórdão do TEDH de 09.07.2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02, e outros nele mencionados. 7. Assim, também, entre outros, refletindo jurisprudência constante, os acórdãos de 15.05.2013, no Proc. n.º 125/07.1SAFRD.S1, de 18.09.2013, no Proc. 968/07.6JAPRT-A.S1, de 06.02.2014, no Proc. n.º 627/07.PAESP.P2.S1, de 27.01.2016, Proc. n.º 178/12.0PAPBL.S2, (todos em www.dgsi.pt). |