Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P2442
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: ACTO SEXUAL DE RELEVO
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME CONTINUADO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 07/12/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Sumário : 1 - Se o recorrente não fez, quer no requerimento de interposição, quer no texto da motivação quer nas conclusões do recurso da decisão condenatória qualquer menção ao recurso retido, não pode este recurso ser conhecido.
2 - É este o único sentido que hermeneuticamente se pode atribuir à «especificação obrigatória» dos recursos retidos em relação aos quais mantém interesse, nas conclusões do recurso que os faz subir (art. 412.º, n.º 5 do CPP)

3 - A expressão «acto sexual de relevo» é usada no C. Penal diploma, com o mesmo sentido, nos art.ºs 172.º, n.º 1 (abuso sexual de criança), 163.º (coacção sexual), 166.º (abuso sexual de pessoa internada), 167.º (fraude sexual) e mostrou-se envolver um conceito de “geometria variável”, pois que chegou na redacção originária do C. Penal a abranger o coito anal e oral; coitos que agora foram equiparados à cópula, como se vê dos art.ºs 164.º a 167.º, 172.º e 174.º, deixando de integrar aquele conceito.

6 - O conceito indeterminado, que constitui, confere ao aplicador uma certa margem de manobra, cobrindo, na sua plástica moldura penal abstracta, as hipóteses de actos graves e daqueles que, muito menos graves, não deixem de atentar contra a auto-determinação sexual do ofendido, o bem jurídico protegido: a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; a liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade da razão para então e aí se poder exercer plenamente aquela liberdade.

7 – Ocorre acto sexual de relevo se o arguido, tio da menor, formou o desígnio, quando esta tinha 12 anos de idade, de manter com esta um relacionamento amoroso e de cariz sexual, procurou passar a maior parte tempo na companhia da menor, beijou-a na boca a 8.10.2002, passou a telefonar e mandar SMS com regularidade dizendo que a amava. A partir de Junho de 2003, começou a encontrar-se durante a noite, com a menor, e na noite do dia 31 de Outubro para 1 de Novembro de 2003, pelas 00.00 horas, levou a menor para a sua residência, onde trocaram beijos na boca e carícias, até as 05.00. Depois, e por cerca de 7 ou 8 vezes, o arguido encontrou-se da mesma forma com a menor e levou-a para a sua residência, onde mantinham relações sexuais de cópula

8 – Na cronologia dos acontecimentos que a actuação do arguido na referida noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, se mostrou relevante no processo, em que o recorrente se envolveu, de minar a vontade da menor. No mesmo sentido aponta decisivamente as próprias circunstâncias da acção, local reservado e onde o arguido estava à vontade, gerando grande intimidade, e pela sua duração.

9 – Mas essa conduta do arguido na noite de 31 de Outubro, embora tenha constituído um acto sexual de relevo, integra-se na sua conduta ulterior, como passo do esquema por si gizado, e que integrou todas a s relações sexuais havidas como um crime continuado do art. 172.º, n.º 2 do C. Penal.

Decisão Texto Integral: 1.1.
O Tribunal Colectivo de Elvas (proc. n.° 141/03.2GBETZ, 2.º Juízo), procedeu ao julgamento do arguido JPFM e, no seu decurso, decidiu não homologar a desistência da queixa apresentada pelos pais da menor.

O arguido interpôs recurso dessa decisão, que foi admitido a subir com o recurso interposto da decisão que viesse a por termo à causa (fls. 449).

Veio o arguido a motivar esse recurso, interposto na acta, tendo respondido o Ministério Público.

1.2.

Veio o mesmo Tribunal Colectivo a julgar a acusação parcialmente procedente e condenar o arguido, pela prática de um crime continuado de abuso sexual de crianças do art. 172.º, n.º 2 , do C. Penal, na pena de 4 anos de prisão e pela prática de um crime de abuso sexual de crianças do art. 172°, n.° 1 do mesmo diploma, na pena de 1 ano de prisão; e, em cúmulo jurídico vai condenado na pena global única de 4 anos e 6 meses de prisão.

Mais decidiu julgar e parcialmente improcedente a acusação quanto ao demais imputado (ou seja, continuação criminosa quanto ao crime do art. 172.°, n.° 1 do C. Penal), de tal absolvendo o arguido.

1.3.

Partiu para tal da seguinte matéria de facto:

O arguido conhece a menor SPMS, nascida a 16.03.1990, em virtude de ser tio paterno da mãe daquela.

Devido aos laços familiares existentes entre estes, o arguido frequentava a casa dos pais da menor SPMS, sita no Monte da Eira, bem como a casa da avó materna da mesma, sita na localidade de Elvas

Em data não concretamente apurada mas sensivelmente a partir do mês de Setembro de 2002, o arguido decidiu aproximar-se da menor com o propósito de manter com esta um relacionamento amoroso e de cariz sexual

Mantendo esse propósito o arguido passou a frequentar com regularidade os lugares onde a menor se encontrava designadamente a casa da sua avó materna e a residência dos progenitores da menor.

Aproveitava assim, o propósito da mãe da menor não dispor de veículo automóvel para se disponibilizar e oferecer-lhe transporte para assim poder passar a maior parte tempo na companhia da menor SPMS

Foi assim que, no dia 8 de Outubro de 2002, o arguido se dirigiu à casa dos pais da menor e aproveitando o facto daquela se encontrar sozinha na referida residência, dirigiu-se ao quarto onde a mesma se encontrava e beijou-a na boca.

A partir dessa data, o arguido e a menor passaram a falar ao telefone com regularidade.

Por diversas vezes, o arguido enviou mensagens escritas (SMS) para o telemóvel utilizado pela menor, onde dizia que a amava

Em data não concretamente apurada, mas seguramente a partir do mês de Junho de 2003, o arguido começou a encontrar-se durante a noite, com a menor SPMS, a qual aproveitando o facto dos seus pais já se encontrarem deitados, e após um contacto via telemóvel por parte do arguido, saía da residência de seus pais através da janela da casa de banho que deixava encostada para, no regresso, poder voltar a entrar, por forma a não ser vista

Nessas ocasiões, o arguido esperava a menor no interior do seu veículo marca Seat Ibiza de cor vermelha, com a matrícula 90-44-HM, na estrada que dá acesso referido Monte da Eira

Outras vezes o arguido ia buscar a menor SPMS junto ao portão de acesso referido Monte.

Foi assim que, na noite do dia 31 de Outubro para 1 de Novembro de 2003, pelas 00.00 horas, a menor, actuando da forma descrita saiu da residência de seus pais e dirigiu-se para o veículo do arguido, que a levou para a sua residência sita no n° 8 , da Rua do Beco , na localidade de Vila Boim

Aí chegados, o arguido e menor trocaram beijos na boca e carícias, após o que, cerca das 05.00 horas da madrugada, o arguido levou a menor de volta à residência de seus pais onde estes a esperavam por terem dado conta da sua ausência

Após essa data, e ainda durante cerca de 7 ou 8 vezes, o arguido encontrou-se com a menor SPMS, a qual lograva sair da residência de seus pais pela forma descrita e entrava no veículo do arguido que a levava para a sua residência

Aí chegados, o arguido mantinha com a menor SPMS relações sexuais de cópula introduzindo o seu pénis na vagina da menor, sendo que a última das vezes ocorreu na noite do dia 12 para 13 de Dezembro de 2003 tendo a menor saído da casa de seus pais pela forma descrita, quando eram cerca da 01.30 horas da madrugada.

Nesse mesmo dia, pelas 06.00 horas da madrugada, após a consumação do acto sexual e como vinha sendo habitual, o arguido levou a menor de volta à residência de seus pais onde era, novamente, esperada pelos seus familiares e por agentes da GNR que entretanto haviam sido ali chamados em virtude do desaparecimento daquela

A menor nunca antes tinha tido um relacionamento sexual, sendo do conhecimento do arguido que aquela, à data da prática dos factos, contava apenas 13 anos de idade

Actuando da forma descrita o arguido quis e logrou satisfazer os seus instintos libidinosos, mantendo relações sexuais de cópula com a menor, aproveitando-se da sua ingenuidade, sabendo que esta era menor de idade e que ao fazê-lo, a ofendia na sua liberdade e desenvolvimento sexual, ofendendo anda o seu sentimento de timidez e de vergonha

Sabia o arguido que tal conduta lhe estava vedada por lei e tendo capacidade de determinação segundo as legais prescrições, ainda assim não se inibiu de a realizar.

O arguido, antes de estar preso preventivamente, exercia a profissão de manobrador de máquinas, auferindo mensalmente cerca de 420/30

Vivia só em casa arrendada e pagava de renda mensalmente € 125

Tem como habilitações literárias a 3ª classe.

Do seu CRC nada consta.

Do Relatório Social para Determinação da Sanção salienta-se o seguinte:

J P é natural de Elvas duma família numerosa - são 9 irmãos - e de fracos recursos económicos ( ) ( ) frequentou a Escola mas apenas completou o 3º ano começando de imediato a trabalhar no campo com o pai. Por volta dos 24 anos contraiu casamento com uma rapariga de 18 anos, tendo dessa união nascido 5 filhos. Após a separação do casal há cerca de 8 anos, os 3 filhos mais novos foram entregues a Instituições e posteriormente encaminhados para a adopção a mais velha ficou a cargo da progenitora e um outro a cargo duma tia. Posteriormente João Paulo teve mais 2 filhos duma outra relação actualmente a cargo da avó materna

Não lhe são conhecidos quaisquer anteriores conflitos ou problemas no âmbito da Justiça

João Paulo revela hábitos e capacidade de trabalho em relação à família, tem uma atitude reservada pouco comunicando Revela no entanto sensibilidade, capacidade e necessidade de afecto

(...) Mantém (durante a prisão preventiva) uma atitude resignada, consciente da situação e das razões que a ocasionaram

O impacto da situação jurídico-penal no seu modo de pensar é limitado, porque parece estarem em causa sentimentos muito profundos (...)

Face ao exposto parece poder concluir-se tratar-se de um adulto que, embora laboralmente revele capacidades, tem, no entanto, alguma vulnerabilidade ou imaturidade afectiva, com um percurso a este nível, pouco consistente, quer eventualmente pelas suas próprias características, quer pelas circunstâncias que influenciaram a sua vida

Consta do Parecer Técnico (Chão dos Meninos), o seguinte:

SPMS é acompanhada por esta Associação desde Dezembro de 2003 por uma suspeita de abuso sexual por parte de JPFM.

Do acompanhamento efectuado junto de Sara considera-se que a relação abusiva de JPFM para com a mesma expôs a menor a experiências de relacionamento interpessoal e sexual nefastas para o seu desenvolvimento saudável e harmonioso comprometendo desta forma o seu bem estar.

Atendendo ao superior interesse da vítima considera-se que o processo em causa deverá ter continuidade uma vez que há factores de risco identificados no decorrer do acompanhamento efectuado junto da menor, nomeadamente

O arguido continua a manter, de forma sistemática, contactos telefónicos com a menor.

O facto do contacto entre ambos nunca ter verdadeiramente cessado tem dificultado a eficácia do acompanhamento. Efectivamente, houve uma separação física mas não emocional

Esta situação tem contribuído para aumentar a ambivalência e os sentimentos de culpa que a menor sempre demonstrou. Quando questionada SPMS reconhece que preferia que o seu tio não lhe telefonasse no entanto pelo facto de se sentir culpabilizada por este se encontrar detido refere que não sou capaz de lhe desligar o telefone: ele não tem mais ninguém com quem falar e está lá por minha causa

A menor costuma frequentemente passar os fins-de-semana em casa dos seus tios maternos, em Elvas com os quais o arguido mantém uma relação de proximidade frequentando inclusivamente a sua casa. Saliente-se que estes tios demonstraram desde sempre alguma permissividade e conivência face ao relacionamento entre SPMS e o seu tio. A menor demonstrou um grande receio na possível saída de JPFM, dado que desta forma não poderia voltar a passar os fins-de-semana em casa dos seus tios. Considera-se no entanto que estes receios verbalizados por parte da menor estejam camuflados com o facto de voltar a relacionar-se com João, o que evidencia a situação de vulnerabilidade em que a menor se encontra.

Estes factores poderão facilitar os contactos neste caso presenciais, de João Mendes em relação a SPMS, dado que o mesmo tenderá a persistir na sua manutenção. Considera-se que não existiu, por parte deste uma tomada de consciência sobre o impacto e consequências que a situação de abuso sexual tem para a menor

Desta forma, e atendendo à relação de proximidade e familiaridade que o arguido mantém com a menor e sua família considera-se que o risco de recidiva dos comportamentos abusivos tenderá a aumentar. Por outro lado importa que a menor e sua família adquiram competências no sentido de a médio/longo prazo se protegerem de eventuais relações de carácter abusivo e simultaneamente adquirirem consciência da inadequação das mesmas para a menor. Desta forma caso o processo não prossiga a intervenção socio-terapêutica junto da menor e sua família estará seriamente comprometida uma vez que a responsabilização do agressor se constitui como uma das condições para garantir a eficácia deste acompanhamento.

2.1.

O arguido recorreu da decisão condenatória, concluindo na sua motivação:

1- A matéria dada como provada nos autos, não se mostra suficiente para preencher o elemento objectivo do tipo acto sexual de relevo, a que alude o n.° 1 do artigo 171° do CP;

2- Ao haver condenado o arguido pelo crime previsto em tal norma, o Tribunal a quo, violou o referido dispositivo;

3- Deverá, assim, a douta decisão recorrida ser nesta parte revogada e, substituída por outra que absolva o arguido em relação ao crime previsto no n,° 1 do art°. 172° do CP, assim se fazendo Justiça.

2.2.

Respondeu o Ministério Público, que concluiu:

1 — Os factos dados como provados no acórdão recorrido preenchem o elemento objectivo e subjectivo do crime de abuso sexual de criança, p. e p. pelo artigo 172, n.° 1, do Cód. Penal.

2 — Tais factos consistiram numa troca de beijos e carícias entre o arguido e a menor, na madrugada do dia 31 de Outubro de 2003, na residência do arguido;

3 — Esta factualidade consubstancia um “acto sexual de relevo”.

4 — Na realidade, trata-se de um comportamento relacionado objectivamente com o sexo e em que o seu autor teve a intenção de satisfazer apetites sexuais (facto provado 18) — neste sentido Maia Gonçalves sendo de relevo dado que é um comportamento capaz de perturbar a autodeterminação sexual da menor;

5 — Neste sentido, se pronunciou o acórdão recorrido;

6 — Ao decidir assim, o acórdão recorrido não violou o artigo 172.°, n.° 1., como sustenta o recorrente.

7 — Como tal, deve ser mantido o acórdão recorrido nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso.

3.

Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça a 8.6.05, teve vista o Ministério Público.

Colhidos os vistos, teve lugar a audiência. Nela, a defesa remeteu para a motivação de recurso. O Ministério Público pronunciou-se pelo não conhecimento do recurso interlocutório e quanto ao recuso da decisão final referiu que foi pouco precisa a decisão recorrida quando teve provado que o arguido e a menor trocaram carícias, mas não questionou a prática de um acto sexual de relevo, uma vez que na mesma decisão se relacionam essas carícias com a conduta global do arguido, o local e as circunstâncias em que ocorreram essas carícias. Quanto à possibilidade de consumpção desse segmento da conduta pelo crime do n.º 2 do art. 172.º do C. Penal, fê-lo depender do espaço temporal decorrido entre esses dois segmentos: dois crimes autónomos no caso de se concluir por um maior espaçamento, integração no crime do n.º 2 do art. 172.º do C. Penal em caso contrário.

Cumpre, assim, conhecer e decidir.

E conhecendo

3.1.

O recorrente suscitou no presente recurso uma única questão:

— Verificação do crime de abuso sexual de criança do n.º 1 do art. 172.º do C. Penal.

Mas entende o Tribunal, e enunciou-o na abertura da audiência, que outras duas se podem colocar:

— Conhecimento do recurso interlocutório do arguido;

— Integração dos factos que a decisão qualificou como constituindo o crime do n.º 1 do art. 172.º do C. Penal, na hipótese de improceder o recurso do arguido.

3.2.

Recurso interlocutório.

A primeira questão a tratar consiste, assim, em saber se o recurso interlocutório deve ser conhecido.

Na verdade, dispõe o art. 412.º, n.º 5 do CPP que, havendo recursos retidos, o recorrente especifica obrigatoriamente, nas conclusões, quais os que mantêm interesse.

Ora, o arguido não fez qualquer menção ao recurso retido, quer no requerimento de interposição, quer no texto da motivação quer nas conclusões do recurso da decisão condenatória.

Daí que não possa ser tal recurso ser agora conhecido, toda a vez que a especificação obrigatória, por parte do recorrente, de que mantém interesse na sua apreciação é condição sine qua non, que não foi no caso cumprida.

Com efeito, é esse o único sentido que hermeneuticamente se pode atribuir à «especificação obrigatória» dos recursos retidos em relação aos quais mantém interesse, nas conclusões do recurso que os faz subir. Se o recorrente mantêm interesse na apreciação dos recursos retidos tem de o explicitar, não o fazendo é porque não mantém esse interesse e o Tribunal Superior não conhecerá, então, deles.

3.3.

Abuso sexual de criança do n.º 1 do art. 172.º do C. Penal.

No recurso trazido da decisão condenatória, limita-se o arguido a suscitar a questão da autoria de um crime de abuso sexual de criança do n.º 1 do art. 172.º do C. Penal, por, no seu entender, se não mostrar suficiente a matéria provada para preencher o elemento objectivo do tipo acto sexual de relevo (conclusão 1.ª), e a pedir a revogação, nessa parte, da decisão recorrida e a sua substituição por outra que o absolva em relação àquele crime (conclusão 3.ª)

Sustenta, em apoio da sua posição, no texto da motivação (fls. 547): «ora, havendo-se dado como provado nos autos que o arguido trocou carícias e beijos na boca com a menor, sem se aprofundar em que circunstâncias tais actos tiveram lugar, não se mostra tal conduta, objectivamente considerada, como adequada a preencher o requisito de acto sexual de relevo a que alude o n.° 1 do artigo 172.º do CP».

A questão reconduz-se, pois, em saber se a conduta do arguido, no momento considerado, constitui um acto sexual de relevo a que se reporta aquele n.º 1 do art. 172.º do C. Penal.

Dispõe esse n.º 1, integrado nos crimes contra a auto determinação sexual, no segmento interessado, que comete um crime de abuso sexual de criança quem pratica acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o leva a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, sendo punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.

A expressão «acto sexual de relevo» é usada no mesmo diploma, com o mesmo sentido, também nos art.ºs 163.º (coacção sexual), 166.º (abuso sexual de pessoa internada), 167.º (fraude sexual)

E mostrou-se envolver um conceito de “geometria variável”, pois que chegou na redacção originária do C. Penal a abranger o coito anal e oral, como teve então este Tribunal ocasião de afirmar variadas vezes, p. ex. no Ac. de 28.2.96 (proc. n.º 48589: “5 - A prática, nas mesmas circunstancias de coito oral com a mesma ofendida, integra, em concurso, o crime do art. 163° - acto sexual de relevo”); coitos que agora foram equiparados à cópula, como se vê dos art.ºs 164.º a 167.º, 172.º e 174.º, deixando de integrar aquele conceito.

E recentemente teve este Supremo Tribunal de Justiça ocasião de explicitar que «preenche o conceito típico de "coito oral", da previsão do n.º 2 do art. 172.º do C. Penal, indo, assim, além do simples "acto sexual de relevo" tipificado no n.º 1 do mesmo dispositivo legal, a introdução, com fins libidinosos, do pénis do arguido na boca de uma criança de nove anos, sendo indiferente para o efeito que tenha ou não sido feito prova de erecção» (Ac. de 23/09/2004, Acs STJ XII, 3, 164, também subscrito pelo Relator dos presentes autos).

Não nos dá o C. Penal uma densificação do conceito de acto sexual de relevo, nem nos fornece uma extensa casuística exemplificativa, mas o que vai dito já permite excluir dele, os coitos oral e anal, que anteriormente constituíam, aliás, o seu expoente máximo de “relevo”.

Acto sexual é, neste domínio, essencialmente aquele que assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e que contende com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou o pratica.

Mas a corporização deste tipo legal exige ainda que o acto seja de relevo.

Referem Simas Santos e Leal-Henriques (Código Penal, II, pág. 368-9), a propósito:

«Quer isto dizer que não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano.

Estão nesta situação, por exemplo, os actos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo, etc., parecendo-nos que também se deve incluir no conceito de acto sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente.

Fiqueiredo Dias acentua, assim, que é de excluir do acto sexual de relevo não apenas os actos «insignificantes ou bagatelares», mas também aqueles que não representem «entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima» (v.g. «actos que, embora “pesados” ou em si “significantes” por impróprios, desonestos, de mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima») – Comentário, I, 449.

Pondera a propósito Sénio Alves (Crimes Sexuais, 8 e ss.):

«Em bom rigor, a dificuldade começa logo na definição de acto sexual (para efeitos penais, entenda-se). Um beijo é um acto sexual? O acariciar dos seios é um acto sexual? E se sim, é de relevo? E ainda em caso afirmativo será razoável punir do mesmo modo quem por meio de violência constrange a vítima a praticar consigo coito... (inter femural ou inter-axilar, que me parecem poder integrar, sem grandes objecções, o conceito de acto sexual de relevo) e aquele que, também por meio de violência, consegue acariciar os seios da sua vítima?

Numa noção pouco rigorosa (diria sociológica) de acto sexual têm cabimento actos como os supra referidas (o acariciar dos seios e de outras partes do corpo, que não só dos órgãos genitais). São aquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são actos de natureza sexual ou, se se preferir, actos com fim sexual».

E conclui:

«O acto sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas», sendo certo, assim, que «a relevância ou irrelevância de um acto sexual só lhe pode ser atribuída pelo sentir geral da comunidade”, a qual «considerará relevante ou irrelevante um determinado acto sexual consoante ofenda com gravidades ou não, o sentimento de vergonha e timidez (relacionado com o instinto sexual) da generalidade das pessoas».

Este Supremo Tribunal de Justiça não se tem afastado muito deste entendimento, ponderando que o acto sexual de relevo é um conceito indeterminado, que confere alguma margem de apreciação aos julgadores, em função das realidades sociais, das concepções reinantes e da própria evolução dos costumes, mas não deixa de cobrir as hipóteses de actos graves, nomeadamente aqueles que atentam com os normais sentimentos de pudor dos ofendidos, intoleráveis numa sociedade civilizada. O que, no entanto, não exclui a relatividade da gravidade, o que explica a grande amplitude da moldura penal (prisão de 1 a 8 anos) ou mesmo a irrelevância de um beliscão passageiro. (cfr. neste sentido o Ac. de 31.10.1995, proc. n.º 48119)

Considerou que acto sexual de relevo terá de ser entendido como o acto que tendo relação com o sexo (relação objectiva), se reveste de certa gravidade e em que, além disso, há da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais (cfr. Acs. de 24.10.96, proc. n.º 606/96 e de 12/03/1998, proc. n.º 1429/97)

E tem acentuado que a relevância do acto sexual tem fundamentalmente a ver com a necessidade de proteger a liberdade sexual da vítima (cfr. neste sentido o Ac. de 31.10.1995, proc. n.º 48119), que o bem jurídico a proteger, quer no crime de coacção sexual (art.º 163.º, do CP), quer no de abuso sexual de crianças (art.º 172.º, do CP), é a liberdade: a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; a liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade da razão para então e aí se poder exercer plenamente aquela liberdade (Ac. de 30.11.2000, proc. n.º 2761/00-5).

Para justificar a expressão "de relevo" terá a conduta de assumir gravidade, intensidade objectiva e concretizar intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto-determinação sexual; de todo o modo, será perante o caso concreto de que se trate que o "relevo" tem de recortar-se. Em sede de abuso sexual de crianças, o "relevo" como que está imanente a qualquer actuação libidinosa por mais simples que ela seja ou pareça ser; o tipo penal do art.º 172, do Código Penal nos vários cambiantes nele previstos (designadamente no do seu n.º 1) traduz isso mesmo, tanto mais que nele se visa a protecção de pessoas que presumível ou manifestamente não dispõem do discernimento necessário para, no que ao sexo respeita, se exprimirem ou se comportarem com liberdade, com presciência ou com autenticidade (Ac. de 15.6.00, Acs STJ VIII, 2, 226)

«Relevante é a idoneidade dos actos praticados sobre a vítima para cercear a sua livre autodeterminação sexual, e decisivo é que o acto sexual de relevo, pelo seu modo de execução, denote ausência de consentimento da vítima, em nexo causal com a violência sobre o corpo ou psiquismo da vítima, uma e outra aferidas segundo as condições pessoais e particulares daquela» (Ac. de 17.3.04, proc. n.º 439/04-3)

Decidiu-se no acórdão recorrido:

«(…) Quanto à relevância do acto • o intérprete deve averiguar se o mesmo representa um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima “

No caso dos autos, entendemos ser de distinguir as condutas dos dias 08.10.2002 (beijo na boca) e 31.10.2003 (troca de beijos na boca e carícias entre o arguido e menor entre as 0000 e as 0500 horas na residência do arguido):

Com efeito quanto à primeira das condutas o mero beijo (ainda que na boca) desacompanhado de quaisquer outros pormenores, entendemos não revestir, por si só, a relevância necessária ao preenchimento do tipo

Já quanto à segunda conduta, parece-nos indiscutível que já revestirá a aludida relevância e explicamos porquê

Existe interacção entre o arguido e a menor (troca de beijos e carícias entre o arguido e a menor, que não se limita a sofrer o beijo, como na primeira das condutas analisadas coexistência de duas acções - beijos e carícias 12 finalmente, a envolvência espacio-temporal 13 (a madrugada e a residência do arguido) que enquadram significativamente a conduta

Assim sendo, entendemos que apenas se mostra preenchido o elemento objectivo do tipo legal de crime em causa quanto à segunda conduta.

O elemento subjectivo, como acima analisámos, também se mostra preenchido.»

Em situação próxima do caso sujeito, decidiu-se que «os "beijinhos na boca" dados pelo arguido a menor, que para o efeito levou para um sótão de um edifício com o fim de aí satisfazer a sua lascividade sexual ou instinto libidinoso, atendendo às idades da ofendida e do arguido, respectivamente 8 e 46 anos, integram o conceito de atentado ao pudor do artº 205, do CP de 1982, tal como preenchem o conceito de "acto sexual de relevo" previsto no artº 172, nº 1, do CP de 1995» (Ac. do STJ de 20.2.97, proc. n.º 693/96).

Como se viu, é perante o caso concreto que se determinará se o acto é de relevo, pela intensidade objectiva e capacidade de concretização de intuitos e desígnios sexuais visivelmente atentatórios da auto-determinação sexual.

O conceito indeterminado, que constitui, confere ao aplicador uma certa margem de manobra, cobrindo, na sua plástica moldura penal abstracta, as hipóteses de actos graves e daqueles que, muito menos graves, não deixem de atentar contra a auto-determinação sexual do ofendido, o bem jurídico protegido: a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; a liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade da razão para então e aí se poder exercer plenamente aquela liberdade.

Ora da síntese da matéria de facto resulta que o arguido, tio da menor, formou o desígnio, quando esta tinha 12 anos de idade, de manter com esta um relacionamento amoroso e de cariz sexual, procurou passar a maior parte tempo na companhia da menor SPMS, beijou-a na boca a 8.10.2002, passou a telefonar e mandar SMS com regularidade dizendo que a amava. A partir de Junho de 2003, começou a encontrar-se durante a noite, com a menor, e na noite do dia 31 de Outubro para 1 de Novembro de 2003, pelas 00.00 horas, levou a menor para a sua residência, onde trocaram beijos na boca e carícias, até as 05.00. Depois, e por cerca de 7 ou 8 vezes, o arguido encontrou-se da mesma forma com a menor e levou-a para a sua residência, onde mantinham relações sexuais de cópula

A menor nunca antes tinha tido um relacionamento sexual, sendo do conhecimento do arguido que aquela, à data da prática dos factos, contava apenas 13 anos de idade

O que vale por dizer, na cronologia dos acontecimentos que a actuação do arguido na referida noite de 31 de Outubro para 1 de Novembro, se mostrou relevante no processo, em que o recorrente se envolveu, de minar a vontade da menor. No mesmo sentido aponta decisivamente as próprias circunstâncias da acção, local reservado e onde o arguido estava à vontade, gerando grande intimidade, e pela sua duração.

Isso mesmo reconheceu a decisão recorrida, que não merece assim a pretendida censura.

3.4.

Mas a argumentação aduzida para resolver a questão precedente suscita uma outra questão já enunciada.

Com efeito, e como se viu, a actuação do arguido na noite de 31 de Outubro, pelas circunstâncias precedentes da acção, o local reservado e onde estava à sua vontade, com grande intimidade e de grande mostrou-se relevante no processo, inclusive de excitação genésica, em que o recorrente se envolveu, de minar a vontade da menor, sua sobrinha.

Ele que quando esta tinha 12 anos de idade, formou o desígnio de se relacionar sexual e amorosamente, procurando-a, beijando-a na boca, telefonando e mandando regularmente SMS e iniciando encontros nocturnos que conduziram a que na noite de 31 de Outubro a levasse para a sua residência, onde trocaram beijos na boca e carícias, durante 5 horas, vindo depois a manter relações de sexo por 7 ou 8 vezes nessa residência.

A última vez em que correram essas relações foi na noite do dia 12 para 13 de Dezembro de 2003, pois quando às 6 horas a menor regressou a casa, a sua falta tinha sido detectada e ela era aguardada pelos familiares e GNR.

Ora, como se viu, está provado que «em data não concretamente apurada mas sensivelmente a partir do mês de Setembro de 2002, o arguido decidiu aproximar-se da menor com o propósito de manter com esta um relacionamento amoroso e de cariz sexual», sendo todas as condutas posteriores sido postas ao serviço desse objectivo: seduzir a menor.

Por outro lado, não se considera que o tempo decorrido entre a conduta havida em 31 de Outubro e o fim das relações sexuais (que terminaram na noite de 12 para 13 de Dezembro de 2003) seja tão longo que imponha uma autonomização das condutas.

É que as relações (que foram integradas na mesma incriminação) se repetiram por 7 ou 8 vezes, num período de tempo cujo termo final se conhece, mas cujo termo inicial se não descortinou. Ou seja, elas podem ter-se iniciado muito perto da noite de 31 de Outubro, e repetiram-se num espaço de tempo limitado: 1 mês e 12 dias.

Assim, entende-se e decide-se que a conduta do arguido na noite de 31 de Outubro, embora tenha constituído um acto sexual de relevo, se integra na sua conduta ulterior, como passo do esquema por si gizado, e que integrou todas a s relações sexuais havidas como um crime continuado do art. 172.º, n.º 2 do C. Penal.

Daí que se confirme a decisão recorrida quanto à condenação do arguido, pela prática de um crime continuado de abuso sexual de crianças do art. 172.º, n.º 2, do C. Penal, na pena de 4 anos de prisão, deixando de subsistir a condenação infligida pelo crime do n.º 1 do mesmo art. 172.º e, consequentemente, a pena única.

4.

Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem a (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento ao recurso, mas com fundamento do apontado pelo recorrente, e em consequência revogar a decisão recorrida quanto à condenação pelo crime do n.º 1 do art. 172.º do C. Penal e quanto à pena unitária, aplicada, no mais a confirmando.

Sem custas.

Honorários legais à Defensora Oficiosa

Lisboa, 12 de Julho de 2005

Simas santos (Relator),

Santos Carvalho,

Costa Mortágua,

Rodrigues da Costa.