Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02B4448
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
Nº do Documento: SJ200301300044487
Data do Acordão: 01/30/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 3522/02
Data: 06/04/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR SUC.
Legislação Nacional: CCIV867 ARTIGO 1761 ARTIGO 1837 ARTIGO 2000.
CCIV66 ARTIGO 2187.
Sumário : O testamento deve valer em conformidade com a vontade real do testador, desde que tenha uma repercussão literal mínima no contexto do testamento, ainda que imperfeitamente expressa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
Razão da revista
1. A, solteira, professora, residente na Rua Dr. ......., n.º ..., Porto; B, engenheiro, casado, residente na Praça ......, n.º .. - , Faro; C , assessor da função pública, casado, residente na Av. ......., ...-..., Porto; D, médico, casado, residente na Av. ......., n.º ...., Aveiro; E, engenheiro civil, casado, residente na Rua ...., n.º..- ....., Miraflores, Algés, Oeiras; F, separado, residente no Largo ......... ......; G, agente técnico de engenharia, casado, residente na Rua ..... , n.º...., ...., Lisboa; e H, advogada, divorciada, residente na Rua ......, ....., Lisboa, pediram, em acção declarativa, com processo ordinário, proposta contra I, viúva, residente na Rua ......., n.º ... - ..., Porto, o seguinte:
A condenação da ré, a reconhecer que os autores e os parentes, que identificam, são herdeiros testamentários de J;
O cancelamento do eventual registo de transmissão a favor da ré de quaisquer bens pertencentes à herança do mesmo.
E requereram a intervenção principal dos restantes herdeiros, que também identificaram.

1.2. Alegaram, no essencial, que o testador faleceu no estado de casado com a ré, sem descendentes, nem ascendentes, deixando testamento cerrado, datado de 7 de Abril de 1959, que revogou um anterior, feito em 24 de Março de 1950, manifestando a vontade de que, por sua morte, sejam chamados à herança aqueles que a lei determinar em seguida ao cônjuge, que assim fica privado de concorrer nessa herança, que os autores interpretam como intenção de instituir herdeiros os irmãos, e, na ausência destes, os sobrinhos, que são os autores e os intervenientes.

2. Em contestação, a ré impugnou os fundamentos da acção, negando que o testador quisesse contemplar no testamento em primeiro lugar os irmãos ou os sobrinhos, e concluiu pela improcedência do pedido.
Os autores replicaram, mantendo a posição anterior.

3. A acção foi julgada improcedente, e a ré absolvida do pedido, na sentença de primeira instância.

4. Os autores recorreram da decisão. E a Relação do Porto confirmou a decisão recorrida (fls.439).
Daí surgir a revista, naturalmente proposta pelos autores.
II
Objecto da revista
O objecto da revista é traçado pelas conclusões dos recorrentes/autores:
Dizem-nas (vamos transcrevê-las ipsis verbis apenas por uma regra de precaução processual, sabendo embora, como se demonstrará, da irrelevância e desinteresse de boa parte delas), assim:
1- Os Autores impugnaram a decisão da matéria de facto no tocante ao quesito 4°., apontando as razões por que o fazem: os passos do testamento, factos, inferências lógicas a partir desses factos, depoimentos de testemunhas e de parte da Ré e dos chamados a intervir, que, nos autos, assumiram a posição dela.

2- Entendendo que os Autores não satisfizeram tal ónus, por isso, não conhecendo da impugnação da matéria de facto, o acórdão recorrido violou o artigo 690-A, n.ºs 1, alíneas a) e b), e 2, do C.P.C., deve ser revogado.

3 - A resposta ao quesito 4.º em que se procura saber se o testador pretendeu instituir herdeiros os irmãos e (ou) filhos de irmãos falecidos, consistente em dar, apenas, como provado o texto do testamento, nada esclarece sobre a pergunta nele formulada, deixando o conhecimento da questão no mesmo estado anterior à resposta dada, já que, como é lógico e entendimento pacifico, a simples referência ao texto de um documento, nada esclarece sobre a interpretação que o mesmo merece.

4 - Assim, tratando-se de matéria que poderá considerar--se indispensável à decisão da acção, deverá, se assim se entender, nos termos dos artigos 729º, n.º 3 e 730º, n.º1, do C.P.C., reenviar-se o processo à 2ª instância, devendo a Relação proceder à resposta ao quesito, tal como determina o n.º4, do artigo 712º, do C.P.C.

5- Porém, o testamento em apreço, deve, segundo o critério definido no artigo 2187º C.C., a que correspondia o artigo 1761º do C.C. de 1867, ser interpretado no sentido de que a vontade do testador, que mais se harmoniza com o seu contexto, é a de que nele foram instituídos herdeiros os irmãos e (ou) descendentes destes.

6 - Como decorre da sua fundamentação, o Assento de 19-10--54,( in BMJ. 45, pág. 152), apenas se refere à determinação da vontade real do testador, como fenómeno psicológico, mera questão de facto, e não à interpretação do testamento como questão de direito, em conformidade com a regra do artigo 2187º C.C., a que correspondia o artigo 1761º do C.C. de 1867 (Alberto dos Reis, Anotado, vol. VI, pág. 57; e Ac. S.T.J., de 3-12-97, B.M.J n.º 472, pág. 493) .

7 - Aliás, é entendimento pacifico que a determinação da vontade real do declarante constitui matéria de facto, mas a interpretação normativa da declaração de vontade negocial, como sucede com a resultante do indicado preceito, e dos artigos 236º, n.º1, 237º e 238º, n.º1, do C.C., constitui matéria de direito.

8 - Antes de mais, ao contrário do que a Ré teima em sustentar, o testamento em causa não se destinou, apenas, a revogar o anterior em que o cônjuge do testador era instituído herdeiro, já que sendo intenção do testador exclui-lo da herança, para impedir a sua sucessão legitima (artigos 2000º e 2003º, § único, do C.C. de 1867) tinha de instituir herdeiros testamentários.
9 - Por isso, o testador nomeia testamenteiros e termina o testamento, dizendo que constitui a expressão da sua última vontade, e esperando que a cumpram.

10- Aliás, a Ré considerou-o como tal, juntando-o ao processo de liquidação do imposto sucessório por óbito do de cujus, e não pode ignorar que a resposta ao quesito 5°, impede o acolhimento da sua pretensão.

11- A favor da interpretação do testamento no sentido de que o testador pretendeu instituir herdeira a prima afastada, L, existem, sem dúvida, os n.ºs 4 e 5, do artigo 1969º, do C.C. de 1867, uma vez que no testamento se instituem herdeiros aqueles que "a lei determina em seguida ao cônjuge"

12- Mas, tendo-se dado como provado que o testador não estava ligado afectivamente a essa prima, com quem pouco convivia, e, diversamente, tendo-se dado como provado que tinha laços afectivos com os irmãos e sobrinhos, é absurdo ou, no mínimo estranho, que fosse intenção do testador pretender beneficiar aquela e não estes.

13- Mas o absurdo ou a estranha desaparecem se se considerar que do disposto nos artigos 2000º e 2003º, § único, do C.C. de 1867 resulta que os irmãos e descendentes destes só entram na posse e fruição dos bens da herança depois da morte do cônjuge, pelo que, nesse aspecto, se situam "em seguida ao cônjuge" ( e note-se que o usufruto do cônjuge pode valer, em função da sua idade, mais do que a raiz dos irmãos) .

14 - E que era essa a situação que o testador tinha em mente, prova-o a circunstância de, a seguir à expressão "aqueles que a lei determina em seguida ao cônjuge", acrescentar "que assim fica privado de concorrer nessa herança".

15- Concorrer significa participar conjuntamente com outros, e a única situação em que o cônjuge concorre à herança (com os irmãos do falecido) é precisamente a prevista nos artigos 2000º e 2003º, § único, do C.C.

16- A reforçar essa conclusão, o testador nomeou testamenteiros os irmãos D e G, o que, sendo tais cargos gratuitos não teria sentido que se pretendesse instituir herdeira a prima L.

17- E reforçando-a mais, o testador esclarece que, nessa data, são seus irmãos "alem daqueles dois, C e M, ( aquele residente no Porto, e esta na cidade de Aveiro)».

18 - Sendo de presumir que o encargo de testamenteiros fosse atribuído a herdeiros, interessados na conservação da herança, essa menção corrobora tal entendimento, na medida em que só faz sentido a sua inclusão no testamento com o propósito de identificar os outros herdeiros.

19 - Por outro lado, se o testador tivesse em mente instituir herdeira a prima afastada, não se compreenderia que fosse identificar os irmãos vivos à data do testamento, através da identificação dos testamenteiros e dos outros dois irmãos.

20 - Acresce que, não contendo o Cód. Civil de 1867, preceito semelhante ao artigo 2041º C.C. actual, se a prima não sobrevivesse ao testador, poderia entender-se que o herdeiro seria o Estado (artigo 1969º, n.º 6, do C.C. de 1867), o que pressuporia, se se pudesse acolher interpretação diferente da sustentada pelos Autores, que o testamento foi elaborado com uma indiferença que não pode presidir logicamente, à elaboração de um tal acto.

21 - Mas o Estado não sucedia a seguir ao cônjuge, como refere o testamento, mas a seguir aos colaterais não compreendidos no n.º 3, até ao sexto grau, pelo que, nessa hipótese, é duvidoso que o Estado pudesse ser considerado herdeiro testamentário, e, assim, revogado o testamento anterior, o cônjuge fosse impedido de concorrer à herança, juntamente com os Autores, nos termos dos artigos 2000º e 2003º, § único, do C.C. de 1867.

22 - Acresce ainda, que o testador, nos termos do artigo 1927º do C.C. de 1867, confiou o testamento a seu irmão N, o que só faz sentido se tivesse a intenção de instituir seus herdeiros os irmãos e sobrinhos, pois, se assim não fosse, o depositário do testamento não teria interesse em o conservar, mas, diversamente, em o fazer desaparecer, para que a sucessão legitima não fosse substituída pela sucessão testamentária.

23- Além disso, em 6-3-75, o testador, já separado judicialmente de pessoas e bens, receando naturalmente, que o testamento em causa se pudesse extraviar, voltou a revogar o testamento anterior, colocando os Autores automaticamente investidos na qualidade de seus herdeiros legítimos (artigo 2133º, n.ºs 1 c), e 3, do C.C., actual, na sua redacção primitiva) , mas, se fosse sua intenção beneficiar qualquer outro colateral até ao sexto grau, teria feito outro testamento.

24 - De ponderar, ainda, que, se no testamento, em apreço, o testador não pretendesse instituir herdeiros os irmãos ou descendentes destes, a quem o ligavam laços afectivos, mas a prima afastada, que lhe era praticamente indiferente, não se compreende como é que a partir da altura em que passou a viver com a Ré, em 1968, não outorgou um testamento a favor dela, pois esta somente passou a ser sua herdeira (legitimária), a partir de 25--8-78, data em que com ele casou.

25 - A própria atitude da prima é eloquente no sentido de que tem a consciência de que os herdeiros do testador são os Autores (fls. 9 e 150 v do apenso do arrolamento), só não tendo deposto nesta acção, em que foi indicada como testemunha (fls. 7), por impossibilidade.

26 - O argumento do, aliás, douto acórdão recorrido, de que, se foi intenção do testador instituir seus herdeiros os irmãos, "não se explica por que motivo não escreveu", de nada vale, porque tanto se aplica à interpretação que os Autores sustentam, como à outra possível, o que acaba por neutralizar tal argumento.

27 - Pelas razões aduzidas o, aliás, douto acórdão recorrido violou o disposto no artigo 2187º do C.C., pelo que deve ser revogado, e, consequentemente, o testamento em causa, conforme, aliás, já entendeu o Ac. Rel. do Porto, proferido no apenso B (linhas 8 a 10 de fls. 154 do referido apenso) interpretado no sentido de que o testador pretendeu instituir herdeiros os irmãos e (ou) descendentes de irmãos falecidos (das duas interpretações possíveis, esta é a única plausível) .
III
Factos provados
Releva para resolver a questão que vem colocada na revista, salientar a seguinte matéria de facto:

1. Os dois primeiros autores são os únicos filhos de C, filho de O e de P, falecido em 11 de Agosto de 1983;

2. Os terceiros e quarto autores são os únicos filhos de H , com a mesma filiação do pai dos primeiros autores, falecida em 9 de Agosto de 1989;

3. Os quinto a sétimo autores e Q e R, são os únicos filhos de N, com a mesma filiação dos quatro primeiros autores, falecido em 15 de Outubro de 1981;

4. Os pais dos autores eram irmãos, e tiveram dois outros irmãos, J, falecido sem descendentes, nem ascendentes, em 6 de Maio de 1995, no estado de casado com a ré, no regime imperativo de separação de bens; e S, falecido em 15 de Outubro de 1987 ;

5. S teve os seguintes filhos do casamento: T, H, U, X e Y;

6. O J fez testamento cerrado, por ele redigido e assinado, datado de 7 de Abril de 1959, e aprovado na mesma data pelo notário do 1.º Cartório Notarial do Porto, em que expressou a vontade de:
a) revogar o testamento que anteriormente fizera, em 29 de Março de 1950, no Livro de Notas do Dr. Ponce de Leão, que foi notário no Porto;
b) por seu falecimento, sejam chamados à herança aqueles que a lei determinar em seguida, ao cônjuge, que assim fica privado de concorrer nessa herança;
c) nomear testamenteiros os irmãos, N e G;

7. E confiou esse testamento ao irmão N;

8. A ré juntou o testamento ao processo de imposto sucessório n.º 3440, 5.º Bairro Fiscal do Porto, instaurado por óbito do marido;

9. Os autores e os parentes referidos são os únicos sobrinhos do falecido J, e só teve os pais daqueles como irmãos;

10. O J e a primeira mulher, W, separaram-se de facto, por esta o ter abandonado e passado a viver maritalmente com outro homem;

11. Magoado com o comportamento da mulher, e lembrando-se que pelo testamento, de 29 de Março de 1950, a tinha feito sua herdeira, revogou o testamento;

12. O J viveu, desde 1968, com a ré, com quem veio a casar, em 25 de Agosto de 1978;

13. Nunca o irmão N, ou a viúva deste, lhe restituíram o testamento cerrado de 1959 ;

14. À data do testamento, o testador tinha uma prima afastada, de nome L, com quem pouco convivia e a quem não estava ligado afectivamente;

15. O testador tinha então laços afectivos com os irmãos e sobrinhos;

16. Ao redigir o testamento, o testador visou afastar W da sua herança, não sendo sua intenção afastar qualquer outra mulher com quem ulteriormente viesse a casar;

17. Do casamento do J com a W não houve filhos;

18. Sempre reinou entre a ré e o J harmonia, cooperação e acentuado respeito mútuo ;

19. O J nunca falou do testamento, quer à ré, quer à família;

20. E sempre considerou a ré como sua herdeira;

21. O testador fez publicar os estudos genealógicos da família, com o título de « Os Nossos Costados »;

22. Não era versado em leis.
IV
Direito aplicável
1. A questão colocada pela revista consiste em saber, como alcançar a vontade real do testador, perante a formulação verbal do testamento e o contexto em que se enquadra.
É, pois - e desde logo devemos antecipar - um problema de avaliação normativa tout court da vontade negocial do autor da declaração.
Facilitará a compreensão e desenvolvimento do exercício judicativo, se revertemos o núcleo da questão ao seu enunciado, na versão trazida ao recurso pelos próprios recorrentes, alinhando o discurso judicativo pelo discurso recorrente.
Deste modo:
Os recorrentes impugnam a decisão da 1ª Instância sobre a matéria de facto, quanto à resposta ao quesito 4.º da base instrutória (conclusões 3ª; e 4.ª a 16.ª).
Perguntava-se, aí e então, e para o que ora importa, o seguinte:
(?) No testamento cerrado, de 7 de Abril de 1959, « o testador quis referir-se aos irmãos ou descendentes de irmãos, porventura falecidos, instituindo-os seus herdeiros?».
Para procedência do método de abordagem, reportando-a, como se disse, ao tema da pergunta enunciada, seguiremos o alinhamento acima indicado, tendo em vista o horizonte de pensamento e de objectivo que suporta todo o discurso das conclusões, conferindo, a final, se o resultado dele pretendido, se pode verificar, ou não, como emergente da vontade do testador, J.
Assim: na essência, a tese da revista cinge-se à ideia de que o quesito 4º {através do qual se procurou saber, se o testador pretendeu instituir herdeiros os irmãos e (ou) filhos de irmãos falecidos} não foi correctamente respondido. E não foi correctamente respondido, ainda segundo a mesma tese, porque há no processo, suporte contextual de matéria de facto, que permite uma resposta no sentido de que os recorrentes são os herdeiros instituídos;
Ou então, em alternativa, - dizem - que o processo reúne condições para se proceder à ampliação da matéria, para se averiguar adequadamente do sentido que preconizam. (Nomeadamente, conclusões 3ª, 4ª, já que todas as outras circulam, como deduções lógicas a seu benefício, à volta da declaração dispositiva).

1.1. A este propósito, precavidos fiquemos entretanto, lembrando que o Tribunal Colectivo deu como provado (Quesito 4º) apenas o que consta do testamento, ( « provado apenas o que consta do documento junto a fls. 50 a 53 dos autos de arrolamento» - fls. 281, III volume).
Daí retiram os recorrentes que, ou são eles os herdeiros instituídos, ou a transcrita resposta pouco esclarece sobre a pergunta formulada no quesito, «deixando o conhecimento da questão no mesmo estado anterior à resposta dada, já que, como é lógico e entendimento pacifico, a simples referência ao texto de um documento, nada esclarece sobre a interpretação que o mesmo merece». (Conclusão 4ª).

1.2. Para estudar a matéria atrás enunciada, reconduzida ao método proposto, e com vista a esgotá-la ( julgamos), tratemos os três aspectos seguintes:
- a matéria relativa à interpretação do testamento;
- depois, o enquadramento sucessório da matéria que suscita analise;
- finalmente, a formulação da real vontade negocial do testador, aliada ao contexto das circunstâncias relevantes que explicam o testamento.

2. Comecemos pelo aspecto jurídico da interpretação da vontade de testar. Nessa época, regia a matéria, o artigo 1761º, do Código Civil precedente, que dispunha:
«Em caso de dúvida sobre a interpretação da disposição testamentária, observar-se- á o que parecer mais ajustado com a intenção do testador, conforme o contexto do testamento». (É a «intenção do testador» que volta a prevalecer, quando houver equívoco sobre a pessoa do legatário ou sobre o objecto legado, segundo o artigo 1837º).
Não anda longe deste texto - do texto do artigo 1761º transcrito - a formulação do artigo 2187º, do Código Civil vigente.
Assim, o n.º1: « Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento»
E o n.º 2: «É admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa».

2.1. Apesar de um ou outra voz isolada, e inicialmente, está definitivamente adquirida, entre nós, tanto no domínio do «Código Civil de Seabra», como na vigência do actual, a orientação subjectivista na interpretação do testamento.
Quer-se dizer que o negócio jurídico de disposição testamentária deve valer em conformidade à vontade real do testador, de acordo com aquilo que ele verdadeiramente quis.
O fim da interpretação deve encontrar-se na determinação da vontade do testador. Nenhum interesse, de destinatários ou do tráfego, prevalece sobre este objectivo substancial. (1)
Só assim se cumpre a sua vontade. A sua última vontade!
Mas não se cumpre, se nos socorrermos de uma vontade ficcionada, que poderia resultar da aplicação da teoria geral do negócio jurídico, quanto à interpretação da vontade negocial, área onde predomina a vontade correspondente à impressão do destinatário, conforme dispõem os artigos 236º a 238º, do Código Civil em vigor.
No testamento, em conclusão, vale a vontade querida pelo testador - o declarante - com a limitação, segundo a lei, explicada por razões de objectividade, da exigência da repercussão literal mínima, ainda que imperfeitamente expressa, no contexto do testamento.
Resumindo: convém deixar claro, antes do passo que se segue, que a teoria subjectiva tem acolhimento na lei, quer ao tempo da elaboração e aprovação do testamento, quer ao tempo da abertura da herança ( e do testamento cerrado). (2)
3. Vejamos agora o enquadramento sucessório da matéria, nos dois tempos: ao tempo da feitura e ao tempo da abertura.
A quando da elaboração do testamento estava em vigor o Código Civil anterior.
Parece útil convocar os preceitos mais significativos que possam ajudar ao esclarecimento das condicionantes legais existentes à época, para melhor se entender, na perspectiva do autor da declaração testamentária, porque testou, e a favor de quem testou, ou a favor de quem não queria testar.
O autor era casado; não tinha ascendentes, nem descendentes.
Tinha irmãos e sobrinhos, como herdeiros legítimos.
O artigo 2000º, sobre a sucessão de irmãos e sobrinhos, estabelecia que, não tendo o falecido, descendentes, nem ascendentes ( e sendo filho legítimo), serão chamados à herança, caso ele não tenha disposto de seus bens, os irmãos legítimos e os descendentes legítimos de irmãos prefalecidos. (3)
O cônjuge beneficiava apenas do usufruto da herança. Ou seja, era um legatário, e não um herdeiro. (Artigos 1995º e 1999º). (4)
O artigo 2003º, sobre a sucessão do cônjuge sobrevivo, dispunha que « na falta de descendentes e ascendentes, irmãos e descendentes destes, sucederá o cônjuge sobrevivo, se ao tempo da morte do outro não estavam divorciados ou separados de pessoas e bens, por sentença passada em julgado».
E, o artigo 1969º, relativamente à sucessão de transversais até ao 6º grau, estabelecia que, em seguida ao cônjuge, a sucessão legítima era deferida a favor dos transversais não compreendidos no nº3, até ao 6ºgrau e, na falta destes ao Estado. Ou seja, primeiro são chamados os tios, que são parentes em 3º grau. Posteriormente, serão chamados todos os colaterais ou transversais do quarto grau ( primos co-irmãos e os tios avós); em terceiro lugar, são chamados os transversais do 5º grau (segundos primos e tios bisavós).
Finalmente, são chamados os colaterais do 6º grau ( terceiros primos e tios tetra-avós. (5) E o Estado, na falta de todos os herdeiros testamentários ou legítimos ( artigo 2006º). Era esta a ordem de sucessão legítima.
Tudo, significa - já foi adiantado - que o testador, não tendo ascendentes, nem descendentes, seria sucedido, à época, pelos irmãos e seus descendentes, e na falta destes ou de alguns destes, seguiam-se os demais transversais, pela ordem sobredita.
Falando do quadro sucessório actual, no que à causa importa, diremos que, O testador faleceu, em Maio de 1995, data em que se abriu a sua sucessão (artigo 2031º do Código Civil).
O seu cônjuge ocupa agora (a par dos descendentes, se os tivesse havido) a primeira classe sucessível, sendo também herdeiro legitimário do cujus, independentemente do regime de bens do casamento. (Artigos 2133º, 1, a); 2157º e 2158º, do Código Civil).

Em consequência da reforma de 1977, introduzida, como se sabe, pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro e que passou a vigorar em 1 de Abril de 1978, (artigo 176º) foi revalorizada, substancialmente, quer em relação à reforma de 1930, quer em relação ao Código Civil de 1966, a posição sucessória do cônjuge sobrevivo, quer como herdeiro legítimo, quer como herdeiro legitimário. (6)
E ainda que os autores sejam considerados herdeiros, só o seriam, na parte disponível da herança (artigo 2158º), e nunca herdeiros únicos e universais, como parece fundamentarem e desenvolverem a sua pretensão.

4. Elaborada uma síntese relativa ao quadro sucessório, ao tempo da feitura do testamento, e ao tempo da sua abertura, passemos agora a aspecto seguinte, que já ficou enunciado, na apresentação do método de análise. (Ponto 1.2., Parte IV).
Não se estranha que, no quadro sucessório ao tempo, o testador, sem descendentes, nem ascendentes, tenha disposto de seus bens, a benefício do seu primeiro cônjuge, em 1950.
Entremos, por isso, na análise do terceiro aspecto enunciado: A vontade real do testador no testamento questionado, feito, depois, em 7 de Abril de 1959.
Ora, o que sucedeu foi que sua mulher - a primeira mulher - infidelizou a relação matrimonial com o testador, originando que ele, dela se tivesse divorciado.
Assim, melhor explicado:
O testador e a primeira mulher, W, separaram-se de facto, por esta o ter abandonado e passado a viver maritalmente com outro homem;
Magoado com o comportamento da mulher, e lembrando-se que pelo testamento, de 29 de Março de 1950, a tinha feito sua herdeira, revogou este primitivo o testamento, através do agora em causa, na indicada data de 7 de Abril de 1959.
E passou a viver, desde 1968, com a ré, com quem veio a casar, em 25 de Agosto de 1978.

5. Para quem tenha da vida a capacidade avaliativa que atinja, ou, ao menos, que pretenda atingir, o lado mais pragmático do quotidiano, não é difícil perceber porque é que o testador fez novo testamento, ora cerrado, por ele redigido, e assinado, datado de 7 de Abril de 1959, e aprovado na mesma data, pelo notário do 1.º Cartório Notarial do Porto.
E percebe, ainda melhor, essa realidade, atentando que, desta vez, o testador expressou a sua vontade, declarando:
a) revogar o testamento que anteriormente fizera, em 29 de Março de 1950, no Livro de Notas do Dr. Ponce de Leão, que foi notário no Porto;
b) por seu falecimento, sejam chamados à herança aqueles que a lei determinar em seguida, ao cônjuge, que assim fica privado de concorrer nessa herança; (o sublinhado não pertence ao texto do testamento).
c) nomear testamenteiros os irmãos, N e G;

5.1. Vale a pena meditar mais um pouco sobre esta matéria:
O testamento foi confiado à guarda do irmão N, como seu fiel depositário.
Vem também reconhecido, de facto, ( ponto 16, Parte III) que, ao redigir o testamento, não foi intenção do testador afastar qualquer outra mulher com quem ulteriormente viesse a casar;
Esta intenção é um dado definitivo, adquirido pelo tribunal de revista, e porque de revista - o que poderia até resolver, formalmente a questão, no domínio pertencente à definitividade da fixação do facto.
Mas, sem ficar pela forma, poderemos ir mais além: da matéria de facto resulta também que sempre reinou entre a ré e o testador, harmonia, cooperação e acentuado respeito mútuo; O testador sempre considerou a ré como sua herdeira .
Verdade é ainda que o fiel depositário do testamento, o irmão, e , depois deste falecer, sua viúva, não lhe restituíram o testamento, mantendo-se a este propósito silenciados, durante todo o tempo que vai desde 1959.

5.2. Recuperemos o tema recorrente, com vista a melhorar o seu aprofundamento: o testador não queria que a sua primeira mulher viesse a ser sua herdeira testamentária, por naturais razões que, com facilidade, se assimilam, perante os factos ofensivos da sua dignidade moral e da sua aceitação social, que conduziram ao divórcio, e de que, há pouco, se falou.
A sua indignação está bem marcada na "dupla" revogação do testamento de 1950. Revogou-o, no testamento de 1959; e com se não ficasse descansado, revogou-o ( ou repetiu que o revogava) na escritura de 6 de Março de 1975.( Conclusão n.º 23).
Claro, que as razões da indignação, nada têm a ver com a pessoa da ré, a qual o testador sempre considerou sua herdeira, com atrás ficou sublinhado.
Mas não exprimiu claramente que o « anátema», abrangesse ou deixasse de abranger os irmãos e seus descendentes.

5.3. Dito isto, aprofundemos, então, melhor a questão, voltando a perguntar o que quis, ou que não quis o testador, com o questionado testamento?
A nosso ver, quis realmente afastar da sua sucessão, a primeira mulher, por razões que são transparentes. Mas só quis realmente isso!
Não definiu mais nada de inequívoco sobre o destino sucessório do que era seu.
Tem sentido razoável, e ajustado, no contexto ( palavras dos artigos 1761º,do Código anterior e 2187º, do Código actual) a declaração reportada à primeira mulher, afastando-a, com clareza, da posição testamentária que, em 1950, lhe atribuíra.
Quanto aos autores ( ou seus ascendentes) a referência feita não tem razoavelmente nenhum sentido instituidor hereditário.
Fazendo o exame, por outro ângulo, já anunciado: o que não quis o testador?
Ao redigir o testamento o testador não quis afastar qualquer outra mulher com quem ulteriormente viesse a casar». ( Pontos 13 e 20, da Parte III).
É muito importante recordar que, o testador não escreveu, que «instituía herdeiros os irmãos e seus descendentes» ( conferir ponto 4).
O que deixou inequivocamente escrito é que "... por seu falecimento, sejam chamados à herança aqueles que a lei determinar em seguida, ao cônjuge, que assim fica privado de concorrer nessa herança ( idem, ponto 4). (Sublinhámos).
Afastou o primeiro conjugue, por razões compreensíveis, já acentuadas.
Mas não deixou comprometida a eventualidade (que se verificou) do novo conjugue ser seu herdeiro, aliás legítimo - e da primeira classe sucessível - e legitimário, ao tempo da abertura da herança. (Artigos 2133º, 1, a); 2157º e 2158º do vigente Código Civil).
Se «são chamados à sua herança aqueles que a lei determinar em seguida ao cônjuge afastado», quando se abre a herança « aquele que a lei determina que seja chamado a recebê-la, é, inquestionavelmente, o segundo conjugue, conforme a lei da abertura sucessória, anteriormente explicada (ponto 3, parte IV), já que, provado ficou, que o testador sempre considerou a ré, como sua herdeira, nunca sendo também, seu propósito, limitar a vocação sucessória de qualquer outra mulher com quem viesse a casar. ( Pontos 16 e 20, Parte III).
A pretensão dos recorrentes/autores representaria, em relação a semelhante propósito, uma interpretação desajustada e descontextualizada, para mantermos a fidelidade de linguagem dos dois preceitos indicados, acima, propósito que não recolhe a menor repercussão na declaração do testador, no quadro de razões e destinatários possíveis, que explicaram o testamento cuja significação subjectiva exacta, tentamos apanhar.

6. Podemos condensar todo o exposto, relativamente ao núcleo de vontade real testamentária, que está em causa, dizendo:
- O testador quis afastar da sua sucessão, o seu primeiro cônjuge; não se encontra no texto do testamento, o mínimo de repercussão verbal, ainda que imperfeitamente formulada, de vontade real de instituição dos autores (ou seus pais - irmãos do de cujus) como sucessores dele, irmãos e sobrinhos;
- a vontade real formulada não revela qualquer propósito de excluir a possibilidade ( que ocorreu) de, o testador, vir a ter novo cônjuge que continuasse afastado da sucessão, a benefício dos irmãos e ( ou) outros descendentes dele, testador;
- utilizando a linguagem da lei, temos, por uma lado, que não podemos afastar o primeiro cônjuge, a benefício dos autores, arrastando por isso, a sorte da ré - herdeira, universal, legítima e legitimária do marido/testador - arrastamento que, em relação a ela, ré, não tem qualquer explicação racional, «não parece ajustado à vontade do testador, no contexto do testamento», segundo o artigo 2187º-1, actual, e 1761º, ao tempo.
Por outro lado, a defesa assumida pelos autores, no objecto da revista (Parte II - onde predominam as ilacções ou inferências, a partir de lógicas por eles construídas, conclusões 1ª e 8ª e seguintes) « não colhe qualquer efeito que lhes seja favorável, relativo à vontade do testador, porque tal favorecimento não tem no seu contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa», seguindo, de perto, a formulação, aqui adaptada, do artigo 2187º-2 - norma vigente ao tempo da abertura da herança, correspondente ao artigo 1761º, em vigor, à época da elaboração do testamento.

7. Finalmente, mesmo que houvesse dúvida ( conclusões 26ª e 27ª) sobre a vontade real do testador, normativamente avaliada, pela maneira exposta, certo é que, no texto e no contexto da sua declaração dispositiva, de natureza gratuita, sempre restaria dizer que, a hesitação se resolveria, no sentido de favor do disponente ( artigo 237º do Código Civil) - tese que sempre acabaria por contrariar a pretensão dos recorrentes, a benefício da ré, tal como foi julgado pelas instâncias.
V
Decisão
Termos em que, ponderando tudo quanto ficou exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento à revista, confirmando a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 30 de Janeiro de 2003.
Neves Ribeiro,
Araújo de Barros,
Oliveira Barros.,
____________
(1) Professor Oliveira Ascensão, Direito Civil das Sucessões, Coimbra Editora, 4ª edição, páginas 303, ponto 147.
(2) Sobre os artigos 1761º e 1837º, do Código Civil anterior (e particularmente sobre as razões que explicam a tese subjectivista) veja-se o Professor Ferrer Correia, Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico, páginas 232, bem como a recensão de fontes subjectivistas que faz na páginas 224/225, nota 1.
Sobre o preceito correspondente, o actual, artigo 2187º, e a teoria subjectivista que continua a consagrar, veja-se o Estudo do Professor Pamplona Corte Real, publicado na Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, edições LEX, ano de 1996, páginas 157, bem como a recensão actualizada das fontes subjectivistas, que faz, a páginas 158/159, em nota de rodapé, com o n.º352.
(3) É assim que deve entender-se o artigo 2000 não obstante a redacção pouco feliz que lhe foi dada.
Efectivamente, diz o artigo que « herdarão os irmãos legítimos e os descendentes legítimos destes», «dando assim a impressão de que estes dois grupos herdam conjuntamente. Ora, não é assim. Os descendentes dos irmãos só concorrem à sucessão por direito de representação ( artigo 1982º)».
Pires de Lima, Noções Fundamentais de Direito Civil, volume II, página 344.
(4)O cônjuge era mero legatário: Pires de Lima, obra citada na nota anterior, e actual artigo 2030º, n.º4, do Código Civil.
(5) Idem, páginas 350/351, com figuração gráfica ilustrativa da sucessão dos transversais até ao 6º grau.
(6)Sobre as razões subjacentes, vejam-se os números 49 a 53, do extenso preâmbulo do Diploma. A reforma de 1977, introduzida, como se sabe, pelo Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro, e que passou a vigorar, a partir de 1 de Abril de 1978, ( artigo 176º) revalorizou substancialmente, quer em relação à reforma de 1930, quer em relação ao Código Civil de 1966, a posição sucessória do cônjuge, quer com herdeiro legítimo, quer como herdeiro legitimário.