Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06S3541
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: FERNANDES CADILHA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DE CONCLUIR
Nº do Documento: SJ200702070035414
Data do Acordão: 02/07/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - Tendo o recorrente, na impugnação da matéria de facto, indicado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, mediante a identificação das testemunhas e a transcrição dos depoimentos, mas sem identificar o local onde se encontram registadas as passagens da gravação, nada obsta, em ordem ao princípio da cooperação processual, a que se convide o interessado a suprir essa deficiência;

II - O convite para o esclarecimento ou completamento da alegação, quando esteja em causa a impugnação da matéria de facto, pode estender-se às conclusões, quando estas sejam deficientes ou se torne necessário delimitar, mais concretamente, o objecto do recurso;

III - Não é exigível, no entanto, que o recorrente leve às conclusões a indicação dos concretos meios probatórios em que se baseia a sua discordância relativamente à decisão de primeira instância, e, quando muito, apenas se justifica que o recorrente, de modo a melhor precisar a questão que coloca em recurso, identifique os pontos de facto que pretende ver reapreciados. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:



1. Relatório.

"AA", com os sinais dos autos, intentou a presente acção emergente de contrato individual de trabalho contra a Liga Portuguesa da Profilaxia da Cegueira, com sede e Lisboa, pedindo que a ré fosse condenada a pagar a quantia de € 26238,48 a título de trabalho suplementar e diferenças salariais, bem como a reconhecer a existência de um horário de trabalho de 25 horas semanais, ou, caso assim se não entenda, de 35 horas semanais.

Tendo sido efectuada a audiência de discussão e julgamento com gravação da prova, foi a acção julgada parcialmente procedente em primeira instância e a ré condenada a pagar à autora os montantes remuneratórios descontados em relação a 3 horas de trabalho semanais no período de Fevereiro de 1999 a Abril de 2002, a liquidar em execução de sentença.

Mediante recurso de apelação, a autora veio impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto.

O Tribunal da Relação de Lisboa rejeitou o recurso por considerar que a recorrente não indicou nas conclusões da alegação de recurso os concretos pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, nem identificou os depoimentos gravados por referência ao assinalado na acta, e, nessa medida, não deu cumprimento ao ónus especial de alegação a que se refere o artigo 690º-A, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).

É desta decisão que vem interposto recurso de agravo, em cuja alegação a autora formula as seguintes conclusões:

1 - O Tribunal a quo rejeitou o recurso por não se ter assinalado o número da volta das cassetes em que se encontra o depoimento das testemunhas e com o qual se fundamenta a discordância;
2 - Por outro lado, foi o recurso rejeitado por não ter sido levado às conclusões os pontos concretos da matéria de facto que a Recorrente considerou incorrectamente julgados;
3 - Em situações destas deve o Relator convidar o Recorrente a esclarecer ou a completar as suas conclusões, nos termos do artigo 690º do Código de Processo Civil;
4 - Da mesma forma e através da analogia deve o mesmo preceito ser aplicado à falta de indicação do número das voltas onde se encontra o depoimento das testemunhas segundo se pode ler no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Novembro de 2005;
5 - Pelo que ao não ter havido convite foi, na óptica da Recorrente, o n° 4 do artigo 690º do Código de Processo Civil violado;
6 - Deve, assim, e por forma a dar cumprimento àquele dispositivo legal, ser a Recorrente convidada a aperfeiçoar as suas conclusões bem como a vir indicar o número das voltas das cassetes onde se encontra o depoimento das testemunhas.

.A ré, ora recorrida, contra-alegou, pugnando pela manutenção do julgado, e, neste Supremo Tribunal de Justiça, a Exma. representante do Ministério Público emitiu parecer no sentido de ser concedido provimento ao recurso e ordenada a baixa do processo para que a Relação convide a recorrente a aperfeiçoar a alegação de recurso de apelação.

Colhidos os vistos dos Juízes Adjuntos, cumpre apreciar e decidir.

2. Matéria de facto.

Nos termos do artigo 713º, n.º 6, do CPC, dá-se como reproduzida a matéria de facto fixada pelas instâncias, sendo que, embora a decisão de facto da 1ª instância tenha sido impugnada perante a Relação e essa questão se mostre ainda em aberto por efeito do presente recurso, os aspectos a discutir neste recurso são meramente instrumentais relativamente à pretendida alteração da factualidade assente nessa decisão

3. Fundamentação de direito.

A única questão em debate consiste em saber se a recorrente incumpriu o ónus de alegação previsto no 690º-A do Código de Processo Civil, em termos de se justificar a rejeição do recurso que tinha em vista a impugnação de matéria de facto.

O artigo 690º-A do CPC, aditado pelo Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, na sequência da admissibilidade do registo das provas produzidas em audiência de julgamento - medida inovadora que havia sido introduzida por esse diploma em vista a garantir um efectivo segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto -, veio impor ao recorrente que pretenda impugnar a decisão de facto um especial ónus de alegação no que respeita à delimitação do objecto do recurso e à sua fundamentação (cfr. preâmbulo do diploma).

Dispõe esse preceito, na sua primitiva redacção:

"1- Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou da gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.
3 - (...)
4 - (...)"

Posteriormente, o Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, no propósito de implementar algumas medidas simplificadoras ao nível do processo civil declarativo comum que pudessem, de algum modo, favorecer a celeridade processual, veio substituir aquele regime de transcrição das passagens da gravação, por um novo sistema de indicação dos depoimentos por mera remissão para o início e termo da respectiva audição que estiver assinalado na acta.

O artigo 690º-A impõe, portanto, um ónus especial de alegação quando se pretenda impugnar a matéria de facto, que envolve, como explicita o seu n.º 2, a indicação dos concretos pontos de facto que se considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios em que se baseia a impugnação, e que se destina a assegurar que a parte fundamente minimamente a sua discordância em relação ao decidido, identificando os erros de julgamento que ocorreram na apreciação da matéria de facto. Deste modo, pretende-se evitar que o impugnante se limite a atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo simplesmente a reapreciação de toda a prova produzida em primeira instância, expediente que ademais poderia ser utilizado pelas partes apenas com intuitos dilatórios (Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, 1999, Coimbra, pág. 465).

Poderá ainda discutir-se se, tendo-se verificado um deficiente cumprimento do ónus de alegação, deve a Relação, antes de rejeitar o recurso, convidar a recorrente ao correspondente suprimento, por aplicação analógica do n.º 4 do artigo 690º do CPC.

Neste ponto, o acórdão do STJ (secção social) de 16 de Outubro de 2002, no processo n.º 2244/02, cuja orientação entretanto foi reafirmada pelo acórdão de 26 de Novembro de 2003, no processo n.º 2430/03, veio definir como a solução mais equilibrada aquela que passa pela distinção entre a falta total de menção das especificações exigidas e da transcrição das passagens relevantes e o mero cumprimento defeituoso desses ónus.

E escreveu-se a esse propósito o seguinte:

"Na primeira hipótese, o recorrente desprezou completamente os encargos que a lei lhe atribuiu como requisito para poder beneficiar de um verdadeiro segundo grau de jurisdição em matéria de facto; na segunda hipótese, tentou cumprir esse ónus, mas fê-lo de forma incorrecta ou incompleta. As sanções a essas falhas devem ser proporcionais à sua gravidade: na primeira hipótese, parece claro que o legislador cominou a "rejeição" imediata do recurso da decisão da matéria de facto, à semelhança da imediata declaração de deserção do recurso no caso de falta (absoluta) de alegação (n.º 3 do artigo 690.º); na segunda hipótese, justificar-se-á a prévia formulação de convite para completamento ou correcção da alegação ou da transcrição, à semelhança do que ocorre quando a alegação apresente irregularidades (n.º 4 do artigo 690.º).

Ora, analisando a alegação da apelação (fls. 299-306), é possível detectar quais os pontos de facto que a recorrente considera incorrectamente julgados, bem como os meios de prova que podem fundamentar uma diferente decisão. Com efeito, a recorrente alude aos factos descritos sob os n.ºs 4 e 5 da decisão de facto, que transcreveu em parte, e manifesta a sua discordância relativamente à ideia, que subjaz à referida materialidade, de que terão existido dois contratos de trabalho e não apenas um. Por outro lado, a recorrente pretende fundamentar o seu ponto de vista nos depoimentos das testemunhas BB, CC e DD, transcrevendo em relação a cada uma delas as perguntas que lhes forma dirigidas e as respostas que foram fornecidas.

É verdade que a recorrente não cumpriu o disposto no artigo 690º-A, n.º 2, do CPC, dado que, tendo indicado os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, não procedeu à indicação dos depoimentos por referência ao assinalado na acta, limitando-se a referir, e apenas em relação à testemunha CC, que o depoimento está inserido "na cassete 1 de 23 de Junho de 2005". Todavia, na linha da orientação jurisprudencial há pouco exposta, haverá de convir-se que a recorrente, ainda que de forma imperfeita e incompleta, procurou satisfazer o ónus de alegação que lhe impunha o preceito, só não tendo dado cumprimento ao disposto no seu n.º 2, que obrigava à identificação precisa do local onde se encontram registadas as passagens da gravação que servem de fundamento ao recurso.

Nada obstava, à luz do princípio da cooperação processual, que a Relação tivesse dado oportunidade ao recorrente para suprir a deficiência, permitindo que, por essa via, pudesse emitir uma decisão de mérito sobre os aspectos em causa.

E o mesmo se diga relativamente às conclusões da alegação.

Se se aceita, nos termos antes explanados, que haja lugar ao convite, dentro de certo condicionalismo, para suprir as deficiências da alegação, nada impede que esse mesmo convite seja dirigido ao esclarecimento ou completamento das conclusões.

Como se afirmou no acórdão do STJ de 13 de Julho de 2006 (Processo n.º 1079/06), o ónus especial de alegação a que se refere o artigo 690º-A do CPC, constituindo um ónus afirmatório, terá de ser satisfeito no próprio texto das alegações, e não nas conclusões. Por outro lado, o citado artigo 690º-A não faz sequer menção à obrigatoriedade da apresentação de conclusões, e, caso se entenda, por aplicação do princípio geral ínsito no artigo 690º, que o recorrente, quando impugne a matéria de facto, não está dispensado de formular conclusões, estas apenas poderão ter o efeito de delimitar, de forma precisa e sintética, o objecto do recurso, identificando as questões que nele se pretendem ver discutidas.

Tratando-se de uma impugnação da matéria de facto, a questão que constitui o objecto do recurso, e deve como tal ser identificada nas conclusões da alegação, é essa mesma, podendo, quando muito, admitir-se que o recorrente, de modo a precisar mais concretamente a questão que coloca em recurso, identifique os pontos de facto que pretende ver reapreciados. Mas não é exigível, que o ónus de concluir se estenda, por exemplo, aos próprios meios probatórios em que o recorrente assenta a sua divergência relativamente à decisão de facto da primeira instância. A indicação dos meios de prova em que assenta a impugnação da matéria de facto, segundo a exigência constante da alínea b) do n.º 1 do artigo 690º-A do CPC, corresponde à própria fundamentação da minuta de recurso, podendo traduzir-se numa extensa e complexa descrição da actividade probatória que tenha decorrido perante o tribunal, quer por via da necessidade de explicitação do conteúdo dos documentos juntos ao processo e da sua força probatória, quer também através da transcrição de relatórios periciais ou de depoimentos de testemunhas. É manifestamente inviável que essa concretização tivesse de ser feita nas conclusões da alegação de recurso, tanto mais que a lei impõe que estas sejam sintéticas, por forma a cumprirem a sua específica finalidade, que é, essencialmente, a de delimitar o objecto do recurso.

Ora, no caso concreto, a recorrente, nas conclusões das alegações, não deixou de mencionar a sua divergência em relação à decisão de facto do tribunal de primeira instância, especificando que considerava existir um contrato e não dois, como se concluiu nessa decisão (cfr. conclusões II e V). Pelo que é apenas de admitir que, nessas conclusões, a recorrente, de modo a precisar mais concretamente a questão que coloca em recurso, identifique os pontos de facto que pretende ver reapreciados.

4. Decisão

Em face do exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogar a decisão recorrida e ordenar a baixa do processo ao Tribunal da Relação para que este convide a recorrente a indicar os depoimentos gravados em que funda a impugnação da matéria de facto por referência ao assinalado na acta, segundo o disposto no artigo 690º-A, n.º 2, do CPC, e a completar as conclusões dessa alegação mediante a especificação dos pontos de factos que considera incorrectamente julgados.


Custas pela recorrida.

Lisboa, 7 de Fevereiro de 2007

Fernandes Cadilha - relator
Mário Pereira
Maria Laura Leonardo