Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
470/14.0TVPRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DEVER DE VIGILÂNCIA
ESTABELECIMENTO DE ENSINO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANOS FUTUROS
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 05/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. — O cumprimento do dever de vigilância relevante para efeitos do art. 491.º do Código Civil deve ser apreciado em face das circunstâncias de cada caso.

II. — O conceito de cegueira do Decreto-Lei n.º 49 331, de 28 de Outubro de 1969, não releva para efeitos de indemnização.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I. — RELATÓRIO

 1. AA propôs a presente acção contra Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Vitória Seguros, S.A., formulando o seguinte pedido:

serem os réus condenados a pagar ao autor, de acordo com a responsabilidade de cada um que se vier a apurar, a quantia global de 75.392,42€ acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento”.

2. O pedido foi entretanto ampliado, no sentido de

I. — serem as rés condenadas a pagar ao autor as seguintes quantias:

− 100.000,00 € de danos patrimoniais futuros/dano biológico;

− 60.000 € a título de dano não patrimonial”, acrescidas de juros à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;

II. — “ser [a ré] condenada a suportar todas as despesas futuras com tratamentos médicos regulares decorrentes das lesões de que o autor ficou a padecer, com consultas de oftalmologia e medicamentosas”.

3. O Tribunal de 1.ª instância julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:

1. Condena-se as rés, Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Vitória Seguros, S.A., solidariamente, a pagar ao autor, AA, a quantia de € 5.058,63 (cinco mil e cinquenta e oito euros, e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros contados desde a data de prolação desta sentença e até efetivo pagamento, sendo os juros (sobre o capital de € 5.000,00) devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civ..

2. Condena-se ainda a ré Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro a pagar ao autor, AA, a quantia de € 111.905,48 (cento e onze mil, novecentos e cinco euros, e quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros (sobre o capital de € 111.303,89) contados desde a data de prolação desta sentença e até efectivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civ..

3. Condena-se ainda a ré Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro a, relativamente às intervenções médicas e medicamentosas ulteriores ao encerramento da audiência final, liquidar ao autor o preço:

3.1. das consultas da especialidade de oftalmologia a que seja sujeito, nas quais seja observado o seu olho direito;

3.2. dos tratamentos, designadamente cirúrgicos, ao seu olho direito;

3.3. dos medicamentos e próteses prescritos em receita médica para tratamento ou colocação no olho direito do autor.

4. As despesas referidas no ponto 3 devem estar documentadas em faturas ou recibos, emitidos em nome do autor, descrevendo a observação ou o tratamento do olho direito, e, respeitando a próteses, tratamentos ou despesas medicamentosas, em prescrição médica indicando o tratamento do olho direito.

Custas da ação a cargo das partes na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.

Valor da Causa: € 160.000,00 (arts. 265.º, n.º 5, e 299.º, n.º 4, do CPC). Registe e notifique.

4. O Centro de Caridade de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro interpôs recurso de apelação.

5. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1º) O presente recurso vem interposto da sentença proferida no proc. n.º 470/14.0TVPRT, que correu termos pelo Juízo Central Cível .......... - Juiz ……, Tribunal Judicial da Comarca …......, que condenou o ora Recorrente, nos seguintes termos:                                               

"1. Condena-se as rés, Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e Vitória Seguros, S.A., solidariamente, a pagar ao autor, AA, a quantia de € 5.058,63 (cinco mil e cinquenta e oito euros, e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros contados desde a data de prolação desta sentença e até efectivo pagamento, sendo os juros (sobre o capital de € 5.000,00), devidos à taxa legal que a cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 5590 do Cód. Civ.

2. Condena-se ainda a ré Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro a pagar ao autor, AA, a quantia de € 111.905,48 (cento e onze mil, novecentos e cinco euros, e quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros (sobre o capital de € 111.303,89) contados desde a data de prolação desta sentença e até efectivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 5590 do Cód. Civ.

3. Condena-se ainda a ré Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro a, relativamente às intervenções médicas e medicamentosas ulteriores ao encerramento da audiência final, liquidar ao autor o preço:

3. 1. das consultas da especialidade de oftalmologia a que seja sujeito, nas quais seja observado o seu olho direito;

3.2. dos tratamentos, designadamente cirúrgicos, ao seu olho direito:

3.3. dos medicamentos e próteses prescritos em receita médica para tratamento ou colocação no olho direito do autor.

4. As despesas referidas no ponto 3 devem estar documentadas em faturas ou recibos, emitidos em nome do autor, descrevendo a observação ou o tratamento do olho direito, e, respeitando a próteses, tratamentos ou despesas medicamentosas, em prescrição médica indicando o tratamento do olho direito.

2 a) O Recorrente considera que, no elenco dos factos provados, se encontra matéria de facto que não foi objecto de prova nos termos descritos, impondo-se, por isso, a sua alteração, concretamente, itens 8° e 9° dos factos provados.

3 a) Tendo em conta o depoimento prestado pela testemunha BB (prestado na sessão de 06/05/2019, de 00:03:54 a 00:04:18, 00:04:45 a 00:05:00, 00:05:13 a 00:05:15, 00:05:47 a 00:06:17, 00:07:03 a 00:07:46) e as declarações de parte do A. AA (prestadas na sessão de 06/05/2019, 00:07:36, de 00:07:46 a 00:08:01), o item 8° dos factos provados deve ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:

"8° - No dia 8 de Junho de 2011, quaria-feira, cerca das 13h20, encontrava-se nas mencionadas escadas um aluno matriculado e a frequentar o mesmo estabelecimento escolar, na mesma turma do autor, de nome CC, com 11 ou 12 anos de idade, que deu um pontapé numa bola ou num vidro que partiu.”

4 a} Tendo em conta as declarações de parte do A. AA (prestadas na sessão de 06/05/2019, de 00:02:25 a 00:02:43, de 00:11 :48 a 00:12:11), o item 9° dos factos provados deve ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:

"9° - O autor encontrava-se a andar na direcção de colegas, no descrito pátio.”.

5 a) Tendo em conta o depoimento da testemunha DD (prestado na sessão de 06/05/2019, de 00:11 :16 a 00:11 :59, de 00:14:07 a 00:14:16), bem como as declarações do A. AA (prestadas na sessão de 06/05/2019, de 00:16:12 a 00:17:09, 00:17:01 a 00:17:09), o item 22° dos factos provados deve ser alterado, passando a ter a seguinte redacção:

"220 - Antes do sinistro, o autor era uma criança nervosa, agitada e irrequieta, características que manteve após o sinistro, tendo sentimentos de inferioridade devido à sua limitação de visão.”.

6 a) Deve ser levada ao elenco dos factos provados a matéria de facto constante dos itens 410 e 42° dos factos não provados, porquanto foi feita prova bastante acerca da referida matéria, através dos depoimentos das testemunhas EE, BB e DD (todos prestados na sessão de 06/05/2019).

7 a) Tendo em conta o depoimento das testemunhas EE (de 00:15:24 a 00:15:58, de 00:16:34 a 00:16:39), BB (de 00:08:19 a 00:08:35, de 00:09:08 a 00:09:33, 00:10:28 a 00:10:40, 00:10:43 a 00:10:56, de 00:12:25 a 00:12:34,00:32:23 a 00:32:57, de 00:35:32 a 00:35:55) e DD (de 00:14:17 a 00:14:20, de 00:15:07 a 00:15:46, de 00:07:08 a 00:07:35), os itens 41 ° e 42° dos factos não provados devem passar para o elenco dos factos provados com a seguinte redacção:


41.º (dos factos provados)  No intervalo de almoço, designadamente no dia e hora do acidente, encontrava-se em trabalho de vigilância, pelo menos, a funcionária BB.”

42.º - No dia do sinistro, durante os períodos de intervalo das aulas, os alunos estiveram sempre sob vigilância de funcionários da primeira ré”.


8 a) A inclusão dos itens 410 e 420 dos factos não provados na matéria constante dos factos provados (com a redacção acima explicitada) fundamenta-se nos depoimentos das testemunhas indicadas, que são peremptórias na afirmação que sempre existiu vigilância no recreio, onde ocorreu o sinistro, bem como no dia e à hora do mesmo, independentemente do número de vigilantes.

9 a) A alteração da matéria de facto provada e da matéria de facto não provada baseou-se em factos concretos aferidos através dos depoimentos prestados em audiência de julgamento e, por conseguinte, indesmentíveis e daí que se imponha a alteração requerida, nos termos, moldes e configuração adiantados (art. 640º do CPC).

10 a) Resulta inquestionável que não pode ser atribuída à Recorrente qualquer responsabilidade pela ocorrência do sinistro dado que, por um lado, cumpriu com os seus deveres de vigilância, e, por outro lado, é do conhecimento geral e comum que o sinistro em causa é enquadrável no âmbito das ocorrências fortuitas, imprevisíveis e incontroláveis.

11 a) Contrariamente ao decidido na sentença em apreço, a Recorrente cumpriu com o seu dever de vigilância, na medida em que o recreio da escola esteve sempre sob vigilância de adultos, independentemente do número de vigilantes em cada momento, conforme se comprova pelos depoimentos das testemunhas EE, BB e DD.

12 a) A sentença em recurso contém uma contradição, entre os itens 8° e 100 dos factos provados, em virtude de um referir que o CC pontapeava um dos vidros da estrutura e o outro referir que o dito CC deu um pontapé e partiu o vidro.

13 a) Não existindo qualquer violação do dever de vigilância por parte da Recorrente, inexistiu qualquer violação do dever de protecção.

14 a) O comportamento do A. AA, na medida em que refere que viu o CC a pontapear o vidro, mas que continuou a andar naquela direcção, contribuiu para o resultado do sinistro, obstaculizando à verificação do dever de protecção por parte da Recorrente.

15 a) A sentença, na sua fundamentação, não considerou a documentação junta pela Recorrente (através de requerimentos de 15.10.2015 e de 10.05.2016), particularmente, a aprovação do projecto de arquitectura pela Câmara Municipal....., o respectivo alvará de obras e os pareceres das entidades externas, todos em sentido favorável, nomeadamente, da Segurança Social, da Delegação de Saúde, dos Bombeiros, bem como o Alvará comprovativo da data de início de actividade como estabelecimento de ensino, emitido pelo Ministério da Educação Nacional e Inspecção Geral do Ensino Particular.

16 a) O estabelecimento de ensino Externato, funciona desde 1973, ou seja, há 46 anos, tendo sido objecto de inúmeras melhorias, ao longo do tempo, formando milhares de alunos, nestas quase cinco décadas, sem qualquer registo de sinistros (nomeadamente, com vidros), o que é elucidativo de, por um lado, a existência de condições de funcionalidade, qualidade e segurança e, por outro, de que a Recorrente cumpre o seu dever de vigilância e protecção dos alunos.

17 a) As características do edifício (conforme referido, com todas as licenças e fiscalizações das entidades competentes, incluindo, DGESTE) que a Recorrente afectou à sua actividade (ensino) eram adequadas a garantir a segurança do A. AA, como é comprovado pelos 46 anos de actividade escolar sem sinistros desta natureza, não violando, assim, o Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior e inexistindo qualquer ilicitude na sua conduta.

18 a) Impõe-se aditar ao elenco dos factos provados um novo item, visando a fundamentação da uma sentença criteriosa e ponderada, com o seguinte teor:


42.º A - O edifício afecto à actividade escolar da 1 a ré tinha as características necessárias para garantir a segurança dos alunos. .

19 a) Torna-se forçoso concluir que a conduta da Recorrente não pode ser objecto de qualquer censura, pelo facto de a actividade escolar ser desenvolvida num edifício possuidor de todas as licenças necessárias para o exercício do ensino não superior, não lhe podendo ser imputada qualquer responsabilidade (culpa) a este título.

20 a) Não pode aceitar-se a invocação constante da sentença em apreço de que a Recorrente não exerceu o seu dever de vigilância sobre os alunos, pois não só as crianças estavam vigiadas dentro e fora do recreio, como a quebra do vidro (e não dos vidros) ocorrida constituiria sempre um perigo, independentemente de ser em zona alta ou baixa, pois daí resultam (ou podem resultar) estilhaços, como, ainda o espaço em que se encontravam as crianças estava devidamente licenciado pelas entidades competentes, como se demonstrou documentalmente.

21 a) Não se pode atribuir à acção da Recorrente qualquer conduta violadora do Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior, que consubstancie uma ilicitude, bem como a adopção de uma diferente solução construtiva, atendendo à adequação das instalações de ensino em questão ao fim pretendido, daí resultando a inexistência de culpa

22 a) Não corresponde à verdade que a Recorrente não tenha proporcionado a devida segurança ao A. AA, não só porque cumpriu com os seus deveres de vigilância e protecção, mas também porque as suas instalações e o exercício da sua actividade de ensino encontram-se devidamente licenciados e vistoriados, pelo que não se lhe pode assacar qualquer responsabilidade pelo sinistro ocorrido.

23 a) Face a tudo o que foi explicitado anteriormente, nomeadamente, que o sinistro ocorrido não radica em acção ou omissão desenvolvida pela Recorrente, no âmbito da sua acção educativa - antes se integrando no domínio dos acidentes fortuitos, imprevisíveis e inesperados -fica prejudicada a análise do item 4. da sentença, porquanto é inquestionável que inexiste qualquer obrigação de indemnização por parte da Recorrente.

24 a) Por mera cautela, a Recorrente não pode deixar de se pronunciar acerca de algumas considerações e imprecisões de marcado alcance, que a serem levadas em conta, constituirão uma flagrante injustiça na decisão final, que se pretende ponderada e equitativa.

25 a) A sentença sob recurso caracteriza-se por uma impreclsao extraordinária, quando refere que o A. AA ficou cego de um olho (pág. 22 ab inltio da sentença).

26 a) Não existe qualquer incapacidade total do olho direito do A. AA.

27 a) O Mmo. Tribunal a quo não apresentou qualquer critério objectivo que permita aferir a forma de cálculo da compensação pelos danos patrimoniais atribuídos ao A. AA - € 60.0000,00.

28 a) No tocante à situação económica do agente, torna-se imperioso referir que se está perante uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS), que pratica um ensino de inclusão, não visando o lucro e tendo uma situação anual deficitária de mais de 300 mil euros (a este propósito, junta-se Parecer do Conselho Fiscal relativo ao exercício de 2018, ao abrigo do disposto na 28 parte do n° 1 do art. 651° do CPC).

29 a) No que tange ao comportamento do lesado, torna-se imperioso referir que, na sua versão do sinistro, sufrada pela sentença, que refere que o mesmo depôs de modo claro e coerente, o A. AA poderia ter evitado o acidente, caso se tivesse desviado do amigo CC que alegadamente pontapeava o vidro.

30 a) O que sucedeu, na versão do A. AA, foi que, não obstante ter visto o amigo a pontapear o vidro, continuou a andar na sua direcção, conformando-se com a possibilidade de ocorrer o que efectivamente ocorreu (quebra do vidro e ferimento do olho direito do A. AA) (cfr., a este propósito, páqs. 19 e 20 do presente recurso).

31 a) É manifesto que a sentença em apreço não só não discriminou, nem explicitou o critério objectivo que usou para o cálculo da compensação pelos alegados danos não patrimoniais do A. AA, como, igualmente, não usou de uma perspectiva de proporcionalidade, ao ignorar a concreta situação económica do agente (ora Recorrente) e o comportamento do lesado (ora A. AA).

32 a) Face aos concretos meios probatórios explicitados anteriormente, a decisão proferida violou o disposto nos arts. 8°/3, 483°, 491°, 798°, 799° todos do Código Civil, devendo ser substituída por outra que a absolva do pedido de condenação no pagamento ao A. AA de qualquer quantia decorrente do sinistro ocorrido em 08.06.2011, seja a que título for.

Termos em que e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deve o presente recurso ser considerado procedente por provado e, em consequência, revogada a decisão recorrida e substituída por outra que absolva a Recorrente de todos os pedidos formulados pelo Recorrido, nos termos e com as legais consequências, assim se fazendo INTEIRA E SÃ JUSTiÇA!

6. O Autor AA contra-alegou.

7. Finalizou a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

1 - A douta sentença de que se recorre espelha com todo o rigor o que se passou na audiência de discussão e julgamento, não devendo ser alterado o item 8º dos factos provados.

2 – Os argumentos explanados pela Recorrente, a este propósito, nomeadamente o depoimento da testemunha BB, são incongruentes e mesmo contraditórios, não merecendo qualquer valoração, como muito bem fez o Mº Juiz a quo.

3 - Quanto ao item 9º dos factos provados, será ainda mais errado pretender a alteração defendida pela recorrente, bastando, para tal, atender ao depoimento do A., que foi bem claro: ia a andar na direção dos colegas e quando passava junto ao vidro, este partiu-se. Ou seja, quando o vidro se partiu, o AA estava junto ao mesmo, independentemente de ser naquele preciso momento ou de já lá estar anteriormente.

4 - A propósito da pretendida alteração da matéria de facto dos itens 8º e 9º, é de notar o seguinte:

A recorrente pretende que o item 8º seja alterado pelo depoimento credível da testemunha BB, considerando que o depoimento do A. AA não merece credibilidade. Mas, para alteração do item 9º dos factos provados, já dá total credibilidade ao depoimento do AA, deixando totalmente de fora o depoimento que considera tão importante da testemunha BB que afirmou que o AA estava junto ao vidro a falar com o CC!

5 - A verdade é que o depoimento daquela BB é cheio de incongruências, cfr. o que já se fez notar, não merecendo qualquer credibilidade, quer para a pretendida alteração do item 8º, quer para o item 9º, que não devem ser alterados, por corretos, traduzindo a realidade dos factos.

6 - A Recorrente pretende, também, que seja alterado o item 22º dos fatos provados. Este item tem o seguinte conteúdo: Depois do sinistro, o autor passou a ser uma criança triste e desanimada, tendo sentimentos de inferioridade devido à sua limitação de visão”. A recorrente pretende que passe a ter a seguinte redação: Antes do sinistro, o autor era uma criança nervosa, agitada e irrequieta, características que manteve após o sinistro, tendo sentimentos de inferioridade devido à sua limitação de visão”.

7 - Para tanto a Recorrente transcreve parte do depoimento do autor AA. Nessa parte, o único facto que ficamos a conhecer, é que o AA costumava ver televisão enquanto tomava o pequeno almoço, e quando chegava da escola, embora não visse muito porque lhe ficavam a doer os olhos.

8 - Já quanto ao depoimento da testemunha DD, professora do AA à data dos factos, pelo trecho do depoimento transcrito pela Recorrente, ficamos a saber que o AA também era uma criança nervosa, assim bastante agitado”, nada mais, pois esta testemunha não se pronunciou sobre a personalidade do AA após o acidente, nem poderia fazê-lo uma vez que ele não voltou a frequentar aquela escola nem teve qualquer contacto com a dita professora.

9 - Por outro lado, a recorrente não faz qualquer menção aos depoimentos das testemunhas FF (tia do A.), GG (prima do A.) HH (pai do A.) e II (mãe do A.) que descreveram os efeitos do sinistro na vida do A. e as vivências deste antes e depois do acidente, e que o Mº Juiz a quo considerou claros e coerentes – vide fls 11 da douta sentença.

10 – Pelo que deve manter-se o item 22º dos factos provados.

11 - A Recorrente assenta a sua motivação para sustentar a inclusão do item 41º nos Factos provados - No intervalo de almoço, designadamente no dia e hora do acidente, encontrava-se em trabalho de vigilância, pelo menos, a funcionária BB” – no depoimento das testemunhas EE BB e DD.

12 – Quer a testemunha EE, quer a testemunha DD nada disseram em concreto sobre a vigilância no momento do acidente por, simplesmente, nenhuma delas estar presente.

13 - Já o depoimento da testemunha BB é mais risível, na medida em que entra em flagrantes contradições, quer quanto ao momento imediatamente anterior ao acidente, quer quanto ao momento daquele, não merecendo qualquer credibilidade.

14 - Como referiu o Mº Juiz a quo – vide fls. 10 da douta sentença – o depoimento desta testemunha foi hesitante, orientado num determinado sentido e inconsistente, em todos os seus momentos, não devendo ser valorizado.

15 – Devendo, assim, improceder o pedido de inclusão do item 41º nos factos provados.

16 - Improcedendo este último, improcederá, também e pelas mesmas razões, o pedido de inclusão do item 42º nos factos provados.

17 - A Recorrente não tem qualquer razão quando alega a fragilidade da fundamentação da decisão recorrida”. Aliás, usar como argumento a existência de uma contradição entre o item 8º e 10º dos factos provados, isso sim, demonstra uma enorme, imensa, fragilidade dos argumentos da Recorrente, que nem merecerá qualquer consideração. Ainda assim, sempre se dirá que se o vidro de uma escola do ensino básico, frequentada, portanto, por crianças de tenra idade, se partisse com um único pontapé, muito mal andaria essa escola em termos das mais elementares regras de segurança! De facto, o vidro partiu-se com um único pontapé… depois de fragilizados por todos os pontapés que precederem esse último! Não existe qualquer contradição!

18 - A Recorrente, vai mais longe na incoerência dos seus argumentos: pretende que uma criança de 12 anos de idade, se desvie, se afaste de um perigo que, pelos vistos, nem a testemunha BB, adulta a exercer funções de assistente administrativa, que a Recorrente tanto quer convencer que estava no local aquando do acidente, conseguiu prever e fazer cessar!

19 - No que concerne à pretensão da Recorrente de aditamento de outro facto provado, a saber: O edifício afeto à atividade escolar da 1ª Ré tinha as caraterísticas necessárias para garantir a segurança dos alunos.”, há a dizer que o facto de ter sido aprovado o projeto de arquitetura pela Câmara Municipal do ....., de existirem pareceres favoráveis de outras entidades externas, não significa que o edifício cumpra as regras de segurança mais elementares.

20 - A Recorrente até pretende que se dê como provado que o vidro se partiu apenas com um único pontapé de uma criança de 11/12 anos de idade! Um vidro que se situe ao nível do solo, ou qualquer outro a menos de 1,5 metros de altura, e que se parte com um pontapé de uma criança, não pode cumprir as mais elementares normas de segurança.

21 - A ré pode ser portadora de muitos documentos, mas ainda assim, não pode negar factos que demonstram, plenamente, que não cumpre as regras de segurança.

22 - Pelo que deve improceder o pedido de aditamento do facto 42.º A.

23 - Quanto ao montante indemnizatório pelos danos patrimoniais, no montante de 56.303,89€ e que a Recorrente refere, erradamente, ser de 60.000,00€, e de 6.000,00€ pelos danos não patrimoniais, estão ambos devidamente justificados, e fundamentados de modo exemplar, os primeiros a fls. 21 e 22 da douta sentença, o segundo a fls. 22 e 23. Recomenda-se à Recorrente a leitura da mesma!

24 - Pelo que o montante indemnizatório poderá pecar por defeito, nunca por excesso, devendo manter-se.

TERMOS EM QUE, MANTENDO-SE A SENTENÇA RECORRIDA, SE FARÁ INTEIRA E SÃ JUSTIÇA.

7. O Tribunal da Relação …….. confirmou a sentença recorrida.

8. Inconformado, o Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro interpôs recurso de revista.

9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

A - No seguimento da sua decisão sobre a prova, e após discorrer sobre o, na sua perspectiva, preenchimento dos fundamentos para aplicação da responsabilidade por culpa in vigilando por parte da Recorrente, o Mmº Juiz da primeira instância, decidiu-se pela condenação da Recorrente a) a pagar ao autor, AA, a quantia de € 5.058,63 (cinco mil e cinquenta e oito euros, e sessenta e três cêntimos), acrescida de juros contados desde a data de prolação desta sentença e até efetivo pagamento; b) a pagar ao autor, AA, a quantia de € 111.905,48 (cento e onze mil, novecentos e cinco euros, e quarenta e oito cêntimos), acrescida de juros (sobre o capital de € 111.303,89); c) a, relativamente às intervenções médicas e medicamentosas ulteriores ao encerramento da audiência final, liquidar ao autor o preço das consultas, tratamentos, medicamentos, e próteses, tudo relativo ao seu olho direito.

B – O Acórdão Recorrido sufraga a decisão da primeira instância (embora alterando a resposta ao já citado artigo 42.º, donde resulta que considerou provado que pelo menos uma funcionária da 1ª Ré estava com os alunos no recreio”).

C – Como se pode ler no Acórdão recorrido, A sentença recorrida enquadrou a situação na culpa in vigilandum prevista no artigo 491º do CC, e, considerou verificados todos os pressupostos processuais da responsabilidade civil e da obrigação de indemnizar da 1ª para com o autor AA.”.

D – Mais se diz que São requisitos do disposto no art. 491º do C.Civil: a)a existência de uma obrigação -legal ou convencional- de vigilância a cargo de um sujeito; b)a prática de um facto ilícito por parte do vigilando; c) que esse facto cause um dano a terceiro.”

E – E ainda que A 1ª Ré, obrigada à vigilância tem o ónus do ilidir a presunção, o mesmo é dizer apresentar prova liberatória. Em obediência a este dever tem de alegar e sobretudo demonstrar que cumpriu o seu dever de vigilância ou demonstrar, ainda, que os danos teriam ocorrido ainda que o dever de vigilância fosse cumprido- relevância negativa da causa virtual do dano.” (…)

F — No que concern ao dano não-patrimonial, é indiscutível que o enquadramento jurídico feito pelo Mmº Juiz da primeira instância, e ratificado pelos Senhores Desembargadores, é o mais correcto; contudo não é verdade que a Recorrente não tenha cumprido com o seu dever de vigilância.

G - Contudo, como já vimos, o próprio Tribunal da Relação alterou a resposta dada à matéria de facto nos termos que supra se indicaram, dando por provado que No dia do sinistro, durante os períodos de intervalo das aulas, os alunos estiveram sempre sob a vigilância de funcionários da primeira ré”, tendo chegado a referir-se, no texto daquela decisão que pelo menos uma funcionária da 1ª Ré estava com os alunos no recreio”.

H – Assim, se estavam os alunos sob vigilância de, pelo menos, uma funcionária da Recorrente, então verifica-se que tal dever foi cumprido.

I – Não se podendo, sequer, invocar a natureza e a qualidade (ou falta dela) dos vidros para sustentar também esse incumprimento, pois nenhuma perícia se fez sobre o assunto, e na falta desta, dever-se-á apenas ter como cumprida aquela adequação da construção ao fim em causa, pois que as mesmas foram inspecionadas pela IGE, que no Relatório formulado no âmbito do seu Processo n.º 10.03.24/00521/RN/12, com data de 14-06-2012, no seu Módulo D, relativo às instalações, questiona-se no ponto 1.4.1. Verifica-se que os espaços, a seguir listados, são adequados no que respeita à organização e ao apetrechamento:”, nomeadamente quanto ao ponto 1.4.1.11. espaços exteriores (recreio)”, e a resposta é positiva (S”), sendo este o único critério possível de aferição daquela conformidade.

J - Não que se considere tal demonstração essencial para preenchimento do ónus que impenderia sobre o Recorrente, mas antes como evidência que, mesmo perante tal inadmissível matéria de prova pela Recorrente, ainda assim a mesma se encontraria cumprida.

K – E, ainda que se tenha fixado ao Autor, e bem, pelo INML uma incapacidade permanente, tal não obsta a que o Autor se veja impedido de prosseguir uma via académica e profissional especialmente dependente da sua visão, pois consta dos factos dados por provados, nomeadamente no ponto 27.º: Em 31 de agosto de 2017, o autor obteve certificação profissional em Técnico/a de Multimédia”, com a classificação final de 12 valores, no Colégio .........., conforme documento junto a fls. 577, que aqui se dá por transcrito.”, o que, acreditamos, prova que o infortúnio do Autor não foi impeditivo que o mesmo alcançasse sucesso académico, e não o impedirá de singrar profissionalmente.

L - Pelo que, atendendo ao supra exposto, e neste segmento e sequência, deverá considerar-se como cumprido o dever de vigilância que indiscutivelmente competia ao Recorrente, e nesse sentido, revogando a decisão recorrida, absolvê-lo do pedido de indemnização por danos patrimoniais em que foi condenado.

M – No que concerne à indemnização por danos não patrimoniais, e como bem se refere no Acórdão recorrido, estamos perante um julgamento de equidade, que tem por objectivo proporcionar ao lesado meios económicos que de alguma maneira o compensem da lesão sofrida. Este montante em dinheiro concedido diz respeito à aquisição de uma satisfação, não raras vezes de caracter puramente espiritual, que correspondam a um lenitivo, compensando, na medida do possível, os estragos causados. Na indemnização pelo dano não patrimonial o pretium doloris deve ser fixado por recurso a critérios de equidade, de modo a proporcionar ao lesado momentos de prazer que, de algum modo, contribuam para atenuar a dor sofrida.”.

N – Para, fundamentando o quantum fixado, se dizer na mesma decisão – na esteira do que havia decidido a primeira instância, que Apenas sublinhamos que o demandante ficou cego de um olho no início da sua vida, (…) Do exposto se extrai ser ajustada a compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pelo autor no valor de € 60.000,00 − quantia calculada (atualizada) por referência à presente data.”

O – Não se pode ignorar, contudo, que a cegueira” é, antes de mais um conceito legal, estando previsto no Decreto-Lei n.º 49 331, de 28 de Outubro de 1969, que se entende por cegueira” a ausência total de visão” ou situações irrecuperáveis em que: a acuidade visual seja inferior a 0,1 no melhor olho e após correcção apropriada”.

P - Em momento algum a lei define o que é “cegueira total de um olho”, porquanto tal conceito apenas é definido relativamente a ambos os olhos.

Q - Assim, se é verdade que como expressão quotidianamente utilizada nos permitimos dizer cego de um olho”, com isso significando quem nada vê de um dos olhos, tal não autoriza que quando um Tribunal avalia um quantum indemnizatório a atribuir como compensação de danos não patrimoniais se possa permitir, extravasando da definição legal e ampliando-a, baseie a fixação dessa compensação numa evidente ficção legal, que é o da cegueira de um só olho, situação que a lei não prevê.

R – Pelo que se tem por excessiva a condenação, neste segmento, impondo-se a sua redução, o que se impetra.

Assim se fazendo inteira Justiça!

10. O recurso de revista excepcional foi admitido pela Formação prevista no art. 672.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

11. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:

      I. — se o Réu, agora Recorrente, Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro cumpriu o dever de vigilância, para efeitos do art. 491.º, in fine, do Código Civil (conclusões A a L);

      II. — se o conceito de cegueira do Decreto-Lei n.º 49 331, de 28 de Outubro, releva para efeitos da indemnização dos danos patrimoniais futuros e dos danos não patrimoniais do Autor, agora Recorrido, AA (conclusões O e P);

      III. — se deve ser reduzida a indemnização dos danos não patrimoniais do Autor, agora Recorrido, AA — fixada pelas instâncias em 60 000 euros (conclusões M a R).

II. — FUNDAMENTAÇÃO

      OS FACTOS

12. O Tribunal de 1.ª instância deu como provados os factos seguintes:

1.º − O autor esteve matriculado e frequentou o estabelecimento de ensino Externato Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, pertencente ao Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, no ano letivo de 2010/2011.

2.º − O Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro (NIPC 500868549) é uma instituição particular de solidariedade social.

3.º − O edificado deste estabelecimento de ensino possui umas escadas localizadas junto ao corpo principal do edifício, adjacentes ao mesmo, e que dão acesso ao refeitório, a partir de um pátio descoberto, no interior do recinto do estabelecimento.

4.º − O volume da prumada destas escadas é revestido por vigotas paralelas verticais, sendo os espaços entre estas preenchidos por vidro transparente.

5.º − Estes vidros constituem-se em placas de dimensões variáveis, desde o nível do pavimento dos patamares das escadas até à altura do teto, com uma largura entre vigotas não inferior a 20 cm e não superior a 40 cm, e com uma altura até cerca de 3 metros.

6.º − O pátio descoberto referido situa-se a um nível inferior, em cerca de 1 metro, ao nível do pavimento do primeiro patamar das escadas, conforme se encontra ilustrado a fls. 18 e 138:

7.º − Nos termos do documento intitulado Regulamento Interno do Externato Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, junto a fls. 329, que aqui se dá por transcrito:

a. são deveres do docente regular o comportamento dos alunos dentro e fora da sala de aula” (ponto 30/p).

b. constitui um direito do aluno:


usufruir, no Externato, de um ambiente acolhedor” (ponto 31/b)

ii. ver salvaguardada a sua segurança no Externato e respeitada a sua integridade física e moral” (ponto 31/k);

c. constitui um dever do aluno:

i. tratar com correção todos os membros da Comunidade Educativa” (ponto 32/c);

ii. cumprir as orientações do pessoal docente e não docente, em qualquer espaço e ou atividade do Externato” (ponto 32/h);

iii. ter atitudes corretas nos diferentes espaços do Externato, de acordo com as regras próprias de funcionamento dos mesmos” (ponto 32/q);

d. a violação pelo aluno de algum dos deveres previstos no Regulamento Interno do Externato (…) é passível da aplicação de medida corretiva ou medida disciplinar sancionatória (ponto 50); e. a frequência do Externato pelos seus alunos está sujeita a uma pré-inscrição e a uma inscrição realizada pelos seus encarregados de educação, bem como à admissão pelo diretor pedagógico (ponto F);

f. a frequência do Externato por parte de um aluno tem por suporte um Contrato de Prestação de Serviços Educativos, estabelecido entre o Externato e os Pais/Encarregados de Educação, formalizado através da assinatura do boletim de inscrição” (ponto F);

g. a frequência do Externato por parte dos alunos implica o cumprimento das regras estabelecidas no Regulamento Interno, por parte dos alunos e dos

8.º − No dia 8 de junho 2011, quarta-feira, cerca das 13 horas e 20 minutos, encontrava-se nas mencionadas escadas um aluno matriculado e a frequentar o mesmo estabelecimento escolar, na mesma turma do autor, de nome CC, com 11 ou 12 anos de idade, que pontapeava um dos descritos vidros daquela estrutura.

9.º − O autor encontrava-se no descrito pátio, junto às mencionadas escadas.

10.º − Em resultado do desferimento de um pontapé pelo CC, o vidro partiu-se, sendo o autor atingido no olho direito por fragmentos daquele, perfurando estes o seu globo ocular.

11.º − Para socorro e tratamento da lesão sofrida, o autor foi transportado para o serviço de urgência do Hospital .................., no …...

12.º − Foi-lhe diagnosticado ferida perfurante do globo ocular direito, com exteriorização do conteúdo ocular e catarata traumática.

13.º − Em consequência dos factos acima descritos:

a. O autor deu entrada no Serviço de Urgência (SU) do HG. em 08-06-2011, sendo depois transferido do Hospital ............. e, ulteriormente, orientado para internamento no Hospital ...........;

b. Foi submetido no mesmo dia a uma intervenção cirúrgica;

c. Em 14-06-2011, foi submetido a intervenção cirúrgica, tendo alta do internamento após 12 dias;

d. Em 21-06-2011, foi submetido a cirurgia;

e. Em 30-06-2011, foi observado em consulta;

f. Em 02-07-2011, deu entrada no SU do HG. por queixas de dor e rubor no olho direito, tendo alta no mesmo dia;

g. Em 05-08-2011, foi observado em consulta externa;

h. Em 08-08-2011, foi admitido no HG. proveniente do SU, sendo internado, tendo e alta no dia seguinte;

i. Em 28-09-2011, foi observado em consulta, mencionando-se não deve realizar exercício físico até ordem médica em contrário”;

j. Em 04-10-2011, foi submetido a remoção da sutura corneana, tendo alta no mesmo dia;

k. Em 25-11-2011, foi observado em consulta;

l. Em 23-02-2012, foi submetido a intervenção cirúrgica;

m. Em 18-04-2012, deu entrada no SU do HG.., tendo alta para o domicílio;

n. Em 23-10-2013, deu nova entrada no SU do HG.., tendo nova alta para o domicílio;

o. Em 24-12-2014, deu entrada no SU do HG.., tendo alta para o domicílio;

p. Em 05-05-2017, foi observado novamente em consulta;

q. Em 02-03-2018, foi submetido a tratamento cirúrgico;

r. Em 19-04-2018, foi observado novamente em consulta.

14.º − Em resultado dos factos descritos, o autor tem uma acuidade visual do olho direito inferior a 0,5, numa escala de 10 pontos.

15.º − Em consequência dos factos acima descritos, sofreu dores com uma intensidade (quantum doloris) de 5, numa escala até 7.

16.º − Em consequência dos factos acima descritos:

a. a data da estabilização médico-legal das lesões ocorreu em 18 de março de 2012;

b. o período de défice funcional temporário total teve a duração de 196 dias;

c. o período de défice funcional temporário parcial teve a duração de 89 dias;

d. o período de repercussão temporária na atividade formativa total teve a duração de 196 dias;

e. o período de repercussão temporária na atividade formativa parcial teve a duração de 89 dias;

f. o autor deverá ser seguido durante a sua vida em consulta pela especialidade de oftalmologia, com ajudas medicamentosas.

17.º − Em consequência dos factos acima descritos, o autor sofre:

a. um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 24 pontos (numa escala de 100 pontos);

b. um dano estético permanente quantificável de grau 2, numa escala até 7;

c. uma limitação no exercício de atividades desportivas e de lazer quantificável no grau 1, numa escala até 7.

18.º − As sequelas descritas são, em termos de repercussão permanente na actividade formativa, compatíveis com o exercício da atividade habitual, mas implicam esforços suplementares.

19.º − O autor nasceu em 26 de janeiro de 1999.

20.º − Na data do sinistro, o autor tinha 12 anos e frequentava o 6.º ano de escolaridade.

21.º − No momento do sinistro, o autor sofreu fortes dores e sentiu-se aterrorizado com a ideia de ficar cego.

22.º − Depois do sinistro, o autor passou a ser uma criança triste e desanimada, tendo sentimentos de inferioridade devido à sua limitação de visão.

23.º − Sempre que foi intervencionado, e durante os respetivos tratamentos, sentiu-se revoltado.

24.º − Em consequência dos factos acima descritos, o autor sofreu os incómodos inerentes à sujeição a diversas intervenções cirúrgicas, designadamente nas perdas de tempo e de capacidade física durante a recuperação.

25.º − O autor esteve impedido de praticar desportos durante os períodos de convalescença.

26.º − Por causa do estado de tristeza e desânimo sentido, bem como dos internamentos e tratamentos a que foi sujeito, o autor não teve aproveitamento escolar no ano lectivo seguinte ao da ocorrência do acidente, não tendo passado de ano.

27.º − Em 31 de agosto de 2017, o autor obteve certificação profissional em Técnico/a de Multimédia”, com a classificação final de 12 valores, no Colégio .........., conforme documento junto a fls. 577, que aqui se dá por transcrito.

28.º − No início de junho de 2011, pretendendo efetuar um seguro, ré Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro contactou o Gabinete de Corretores de Seguros Olímpio de Magalhães, L.da, na pessoa do seu agente JJ.

29.º − Em 7 de junho de 2011, pelas 17 horas e 16 minutos, JJ remeteu ao responsável da área dos corretores da ré Vitória Seguros, S.A., KK, a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 125, que aqui se dá por transcrita.

30.º − Em 7 de junho de 2011, pelas 17 horas e 24 minutos, KK remeteu a LL, funcionária da ré Vitória Seguros, S.A., a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 126 (base), que aqui se dá por transcrita.

31.º − Em 7 de junho de 2011, pelas 18 horas e 23 minutos, LL remeteu a KK a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 126 (topo), que aqui se dá por transcrita.

32.º − Em 7 de junho de 2011, pelas 18 horas e 38 minutos, KK remeteu a MM, funcionário da ré Vitória Seguros, S.A., a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 127 (base), que aqui se dá por transcrita.

33.º − Em 8 de junho de 2011, pelas 10 horas e 57 minutos, MM remeteu a KK a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 127 (topo), que aqui se dá por transcrita.

34.º − Em 8 de junho de 2011, pelas 11 horas e 4 minutos, KK remeteu a JJ a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 128, que aqui se dá por transcrita.

35.º − Em 8 de junho de 2011, pelas 12 horas e 58 minutos, NN, directora administrativa e financeira da primeira ré, remeteu a JJ a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 129 (base), onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito, Concordamos com a nova proposta e pretendemos que se dê andamento a esta apólice, logo que possível. // Posteriormente assinaremos o novo «contrato»”.

36.º − Em 8 de junho de 2011, pelas 15 horas e 22 minutos, JJ remeteu a KK a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 129 (topo), onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito, De acordo com o nosso telefonema de há pouco, este mail vem reforçar o que anteriormente lhe enviei, ou seja, o pedido do cliente para se efetuar os seguros em causa é das 12h58m.

Ora, durante a hora do almoço ocorreu um sinistro com uma criança, pelo que oportunamente serão enviadas as respetivas despesas para liquidação da vossa parte.

Por fim, informo que o meu pedido de cobertura só seguiu às 14h17m pois foi a hora a que cheguei de almoço e de imediato demos cobertura”.

37.º − Em momento não anterior às 14 horas do dia 8 de junho de 2011, a ré Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro subscreveu o documento intitulado PROPOSTA DE SEGURO / ACIDENTES PESSOAIS, que entregou ao Gabinete de Corretores de Seguros Olímpio de Magalhães, L.da, cuja cópia se encontra junta a fls. 51 e 122, que aqui se dá por transcrito.

38.º − Em 2 de julho de 2011, a ré Vitória Seguros, S.A., emitiu o documento intitulado APÓLICE / CONDIÇÕES PARTICULARES DA APÓLICE N.º 10769271, cuja cópia se encontra junta a fls. 110, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito, Período do Seguro 08.06.2011 – 01.06.2012”.

39.º − A ré Vitória Seguros, S.A., liquidou ao autor a quantia de € 998,08, a título de custos médicos” para tratamento das sequelas do sinistro acima descrito.

40.º − As rés foram citadas para a ação em 4 de junho de 2014.

13. Em contrapartida, o Tribunal de 1.ª instância deu como não provados [t]odos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados – discriminados entre os factos provadosou considerados na motivação(aqui quanto aos instrumentais)”.

Em consequência, [r]esultaram… não provados os factos [seguintes]:

41.º − No intervalo de almoço, designadamente no dia e hora do acidente, encontravam-se em trabalho de vigilância as funcionárias da primeira ré OO e BB, bem como a professora DD.

42.º − No dia do sinistro, durante os períodos de intervalo das aulas, os alunos estiveram sempre sob a vigilância de funcionários da primeira ré.

43.º − O prémio do seguro referente à apólice descrita no ponto 38.º − factos provados – não se encontrava liquidado no dia 8 de junho de 2011, pelas 13 horas e 20 minutos.

14. O Tribunal da Relação …….

I. — julgou improcedente a impugnação da decisão de dar como provados os factos n.º 8 e n.º 9:

 II. — julgou improcedente a impugnação da decisão de dar como não provado o facto n.º 41.º;

III. — julgou procedente a impugnação da decisão de dar como não provado o facto n.º 42, explicando que “… ficou provado que pelo menos uma funcionária da 1ª Ré estava com os alunos no recreio”.

 O DIREITO

 15. A primeira questão suscitada consiste em determinar se o Réu, agora Recorrente, Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro cumpriu o seu dever de vigilância.

 16. O art. 491.º do Código Civil é do seguinte teor:

As pessoas que, por lei ou negócio jurídico, forem obrigadas a vigiar outras, por virtude da incapacidade natural destas, são responsáveis pelos danos que elas causem a terceiro, salvo se mostrarem que cumpriram o seu dever de vigilância ou que os danos se teriam produzido ainda que o tivessem cumprido [1].

17. Os factos dados como provados sob os n.ºs 8 a 10 são do seguinte teor:

8.º − No dia 8 de junho 2011, quarta-feira, cerca das 13 horas e 20 minutos, encontrava-se nas mencionadas escadas um aluno matriculado e a frequentar o mesmo estabelecimento escolar, na mesma turma do autor, de nome CC, com 11 ou 12 anos de idade, que pontapeava um dos descritos vidros daquela estrutura.

9.º − O autor encontrava-se no descrito pátio, junto às mencionadas escadas.

10.º − Em resultado do desferimento de um pontapé pelo CC, o vidro partiu-se, sendo o autor atingido no olho direito por fragmentos daquele, perfurando estes o seu globo ocular.

18. O Réu, agora Recorrente, alega em todo o caso que a circunstância de o Tribunal da Relação …….. ter dado como provado que pelo menos uma funcionária [do Recorrente] estava com os alunos no recreio” é suficiente para que se considere que cumpriu o seu dever de vigilância.

19. Entende-se que não tem razão, pelas razões seguintes:

20. O Supremo Tribunal de Justiça tem considerado constantemente que o dever de vigilância deve ser apreciado em face das circunstâncias de cada caso [2].

           

21. O cumprimento do dever de vigilância deverá ser aferido por um padrão adaptável e flexível, impondo-se [uma] indagação casuística”, pelo que importa valorar, designadamente, a idade do menor, a perigosidade das instalações, e existência procedimentos preventivos [e] a previsibilidade do dano” [3]. Em consequência, o dever de vigilância será “tanto maior [tanto mais intenso] quanto maiores forem as fontes potenciadoras do risco de ocorrência de um dano, como as soluções construtivas inadequadas” [4].

21. Os factos provados são suficientes para que se conclua que havia dois factores determinantes de um perigo acrescido — a idade dos alunos que frequentavam o estabelecimento de ensino e a qualidade dos vidros, cuja quebra causou danos ao Autor, agora Recorrido, AA.

22. O perigo acrescido só poderia ser compensado por uma atenção e por um cuidado especiais no cumprimento do dever de vigilância — e a prova de que pelo menos uma funcionária da 1.ª Ré estava com os alunos no recreio” não é só por si suficiente.

           

23. Em primeiro lugar, seria preciso provar que a presença de uma funcionária era suficiente e, em segundo lugar, seria preciso provar que a presença de uma funcionária no recreio, no pátio descoberto, era suficiente para prevenir o perigo de danos causado pela quebra de vidros nas escadas que dão acesso a um pátio descoberto [5] — situado a um nível inferior, em cerca de 1 metro, ao nível do pavimento do primeiro patamar das escadas” [6].

24. Ora o Réu, agora Recorrente, Centro de Caridade do Perpétuo Socorro não provou nem uma coisa nem outra — o acórdão recorrido chamou correctamente a atenção para que [não] existiam funcionários nas proximidades de tais vidros”.

25. A segunda questão suscitada consiste em determinar se o conceito de cegueira do Decreto-Lei n.º 49 331, de 28 de Outubro de 1969, releva para efeitos da indemnização dos danos patrimoniais futuros e dos danos não patrimoniais do Autor, agora Recorrido, AA.

26. O Decreto-Lei n.º 49 331, de 28 de Outubro de 1969, define os casos em que, para efeitos médico-sociais e assistenciais, a cegueira é considerada doença de declaração obrigatória”.

27. Os arts. 1.º e 2.º do Decreto-Lei n.º 49 331 são do seguinte teor:

Artigo 1.º — Para efeitos médico-sociais e assistenciais, considera-se cegueira:

a) A ausência total da visão;

b) As situações irrecuperáveis em que:

— A acuidade visual seja inferior a 0,1 no melhor olho e após a correcção apropriada;

— Ou a acuidade visual, embora superior a 0,1, seja acompanhada de limitação do campo visual igual ou inferior a 20º angulares.

Artigo 2.º — A cegueira é considerada doença de declaração obrigatória, devendo os médicos participar cada um dos casos às delegações de saúde dos respectivos distritos, com vista não só à profilaxia, mas também à educação e reabilitação dos portadores desta deficiência.

28. O sumário do Decreto-Lei n.º 49 331 e o texto dos arts. 1.º e 2.º são elucidativos — a definição de cegueira do art. 1.º releva exclusivamente para efeitos médico-sociais e assistenciais e não releva, nem directa, nem indirectamente, para efeitos de indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais.

29. A terceira questão suscitada consistem em determinar se deve ser reduzida a indemnização dos danos não patrimoniais do Autor, agora Recorrido, AA (fixada pelas instâncias em 60 000 euros).

30. O STJ tem entendido que o controlo, designadamente em sede de recurso de revista, da fixação equitativa da indemnização [7] deve concentrar-se em averiguar se estavam preenchidos os pressupostos normativos do recurso à equidade [8]; se foram considerados as categorias ou os tipos de danos cuja relevância é admitida e reconhecida; se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram considerados os critérios que, de acordo com a lei e a jurisprudência, deveriam ser considerados; e se, na avaliação dos danos correspondentes a cada categoria ou a cada tipo, foram respeitados os limites que, de acordo com a lei e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados.

31. Está em causa fazer com que o juízo equitativo se conforme com os princípios da igualdade e da proporcionalidade — e que, conformando-se com os princípios da igualdade e da proporcionalidade, conduza a uma decisão razoável [9].

 32. O acórdão recorrido considerou os critérios de avaliação dos danos não patrimoniais que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados e respeitou os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados. Em primeiro lugar, considerou, como devia, os critérios dos arts. 494.º e 496.º do Código Civil e, em segundo lugar, dentro dos critérios dos arts. 494.º e 496.º do Código Civil, considerou, como devia, as circunstâncias do caso e, em especial, a extensão dos danos:

“… o dano é gravíssimo, a perda de visão total de um olho na adolescência tem influência no bem-estar físico, psicológico e auto estima da qualquer ser humano, com significativa perda de oportunidades de índole pessoal e profissional. É uma diminuição em termos estéticos e de saúde.

Assim se a equidade não é sinónimo de arbitrariedade, no caso presente a sentença recorrida estabeleceu um critério ajustado para a correcção do direito, tendo em consideração as circunstâncias do caso concreto e a criteriosa ponderação das realidades da vida”.

 33. Esclarecido que o acórdão recorrido considerou os critérios de avaliação dos danos não patrimoniais que, de acordo com a legislação e a jurisprudência, deveriam ser considerados e respeitou os limites que, de acordo com a legislação e com a jurisprudência, deveriam ser respeitados, deverá dizer-se — como se diz, p. ex., no acórdão do STJ de 10 de Novembro de 2016 — processo n.º 175/05.2TBPSR.E2.S1 —, que “[o] ‘juízo de equidade’ das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma ‘questão de direito’, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade — muito em particular, se o critério adoptado se afastar, de modo substancial, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados, e, em última análise, o princípio da igualdade”.

34. O ponto foi reafirmado, p. ex., nos acórdãos do STJ de 30 de Maio de 2019 — processo n.º 3710/12.6TJVNF.G1.S1 — e de 21 de Janeiro de 2021 — processo n.º 6705/14.1T8LRS.L1.S1:

[c]onforme tem sido afirmado pelo STJ, tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o julgador se não tiver contido dentro da margem de discricionariedade consentida pela norma que legitima o recurso à equidade — muito em particular se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos critérios ou padrões que generalizadamente se entende deverem ser adoptados, numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando, em consequência, a segurança na aplicação do direito, decorrente da necessidade de adopção de critérios jurisprudenciais minimamente uniformizados e, em última análise, o princípio da igualdade’” [10]

35. Ora o resultado alcançado pelo acórdão do Tribunal da Relação …….., agora recorrido, é comparável, p. ex., ao do acórdão do STJ de 5 de Julho de 2012 — processo n.º 1451/07.5TBGRD.C1.S1, em que, para uma lesão semelhante (perda total e irreversível da visão de um dos olhos) se ficou uma indemnização por danos patrimoniais de 60 000 euros.

36. O facto de, no caso apreciado e decidido pelo acórdão do STJ de 5 de Julho de 2012 o dano estético ter sido mais grave — 6 contra 2, numa escala de 1 a 7 [11] — e de as dores terem sido mais intensas, ainda que só ligeiramente — 6 contra 5, numa escala de 1 a 7 [12]  — é compensado pela circunstância de, no caso apreciado e decidido pelo acórdão do STJ de 5 de Julho de 2012, o lesado ter 22 anos e, no caso sub judice, o lesado ter, tão-só, 12 anos.

37. Como se diz na fundamentação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância, confirmada pelo Tribunal da Relação …....,

A idade não é irrelevante. O autor perdeu, assim, a possibilidade de disfrutar toda a vida no gozo de uma visão estereoscópica. Desde o gozo de paisagens deslumbrantes, até à visualização de filmes em três dimensões ou à prática de desportos com bola, passando pelos cuidados acrescidos na condução de viaturas, são inúmeras as dimensões da vida afetadas pela perda da noção de profundidade espacial”.

III. — DECISÃO

  Face ao exposto, nega-se provimento ao recurso e confirma-se o acórdão recorrido.

 Custas pelo Recorrente Centro de Caridade Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.

Lisboa, 20 de Maio de 2021



Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

Manuel Pires Capelo


Nos termos do art. 15.º-A do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade dos Exmos. Senhores Conselheiros José Maria Ferreira Lopes e Manuel Pires Capelo.

_________

[1] Sobre a interpretação do art. 491.º do Código Civil, vide por todos Fernando Andrade Pires de Lima / João de Matos Antunes Varela (com a colaboração de Manuel Henrique Mesquita), anotação ao arts. 491.º, in: Código civil anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1987, págs. 492-493; Ana Prata, anotação ao art. 491.º, in: Ana Prata (coord.), Código Civil anotado, vol. I — Artigos 1.º a 1250.º, Livraria Almedina, Coimbra, 2017, págs. 636-638; Henrique Sousa Antunes, anotação ao art. 491.º, in: Luís Carvalho Fernandes / José Carlos Brandão Proença (coord.), Código Civil anotado, vol. II — Direito das obrigações. Das obrigações em geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 311-314; João de Matos Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. I, 10.ª ed., Livraria Almedina. Coimbra, 2000, págs. 590-591; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das obrigações, 10.ª ed., Livraria Almedina, Coimbra, 2006, págs. 585-586; António Menezes Cordeiro, Tratado de direito civil, vol. VIII — Direito das obrigações. — Gestão de negócios. Enriquecimento sem causa,. Responsabilidade civil, Livraria Almedina, Coimbra, 2017, págs. 575-576; Clara Sottomayor, “A responsabilidade civil dos pais pelos factos ilícitos praticados pelos filhos menores”, in: Boletim da Faculdade de Direito [da Universidade de Coimbra], vol. 71 (1995), págs. 403-468; ou Henrique Sousa Antunes, Responsabilidade civil dos obrigados à vigilância de pessoa naturalmente incapaz, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2000.

[2] Cf. acórdãos do STJ de 8 de Fevereiro de 1977 — processo n.º 066383 —, de 2 de Março de 1978 — processo n.º 066994 —, de 13 de Fevereiro de 1979 — processo n.º 067639 —, de 23 de Fevereiro de 1988 — processo n.º 075776 —, de 9 de Fevereiro de 1989 — processo n.º 076718 —, de 18 de Maio de 1999 — processo n.º 99B049 —,de 29 de Outubro de 2009 — processo n.º 523/2002.S1 —, de 11 de Setembro de 2012 — processo n.º 8937/09.5T2SNT.L1.S1 — ou de 16 de Junho de 2015 — processo n.º 218/11.0TCGMR.G1.S1.

[3] Expressão do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do ….., agora recorrido.

[4] Expressão da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca do …...

[5] Cf. facto provado sob o n.º 3.

[6] Cf. facto provado sob o n.º 6.

[7] Sobre o recurso à equidade, vide designadamente António Castanheira Neves, Curso de Introdução ao estudo do direito (policopiado), Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra, 1971-1972, pág. 244;  ou Manuel Carneiro da Frada, “A equidade ou a justiça com coração. A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o direito, Livraria Almedina, Coimbra, 2015, págs. 653-687.

[8] Vide, por último, os acórdãos do STJ  de 25 de Outubro de 2018 — processo n.º 2416/16.1T8BRG.G1.S1 —  e de 6 de Dezembro de 2018 — processo n.º 652/16.0T8GMR.G1.S2.

[9] Vide, por último, os acórdãos do STJ de 8 de Fevereiro de 2018 — processo n.º 245/12.0TAGMT.G1.S1 —, de 17 de Maio de 2018 — processo n.º 952/12.8TVPRT.P1.S1 —, de 18 de Outubro de 2018 — processo n.º 3643/13.9TBSTB.E1.S1 —, de 6 de Dezembro de 2018 — processo n.º 652/16.0T8GMR.G1.S2 — e de 14 de Março de 2019 — processo n.º 9913/15.4T8LSB.L1.S1.

[10] Expressão do acórdão do STJ de 30 de Maio de 2019 — processo n.º 3710/12.6TJVNF.G1.S1.

[11] Cf. facto provado sob o n.º 17-b).

[12] Cf. facto provado sob o n.º 15.