Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
15165/17.4T9PRT.P2-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 06/21/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. O recurso de fixação de jurisprudência é um recurso extraordinário que tem por finalidade o estabelecimento de interpretação uniforme de normas jurídicas aplicadas de forma divergente e contraditória em acórdãos dos tribunais da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, com a eficácia prevista no artigo 445.º do CPP, contribuindo para a realização de objetivos de segurança jurídica e de igualdade perante a lei, que constituem exigências do princípio de Estado de direito (artigo 2.º da Constituição).

II. Em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça, vem afirmando que a admissibilidade do recurso depende da verificação de um conjunto de pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial. Verificam-se os pressupostos de natureza substancial quando: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, quando entre os dois acórdãos haja “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objeto de decisões expressas, e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas.

III. Defende o recorrente que a questão de direito consiste em aferir se o crime de usurpação de funções p.p. pelo art.º 358.º, al. b), do Código Penal, se traduz num crime instantâneo ou permanente, o que não é o caso.

IV. Aceitando-se, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento, que o crime de usurpação de funções é (em caso de ato isolado), ou pode ser (em caso de atos reiterados), um crime permanente, (a) no acórdão recorrido estava em causa saber em que momento começou a correr o prazo de prescrição do procedimento criminal, e (b) no acórdão fundamento, era saber se os factos provados constituíam crime de usurpação de funções a que seria aplicável o artigo 358.º do Código Penal, com a alteração introduzida em 1998.

V. São substancialmente diferentes as situações que constituem objeto de cada uma das decisões e as questões de direito suscitadas e decididas nos acórdãos proferidos nestes dois processos.

VI. Pelo que, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do CPP, se rejeita o recurso por não haver oposição de julgados.

Decisão Texto Integral:

Acordam em conferência na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I.  Relatório

1. AA, assistente nos autos, vem, nos termos do artigo 437.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 06.07.2022, alegando que nele se apreciou e decidiu uma questão de direito em oposição com o decidido no acórdão de 05.03.2003, do mesmo tribunal, no processo n.º 0212140, que indica como acórdão fundamento, publicado na base de dados de jurisprudência desse tribunal, em www.dgsi.pt.

2. Na tese do recorrente, existe uma “oposição de acórdãos” porque “o acórdão recorrido entende que o crime de usurpação de funções se consome no momento em que é praticado, como de um crime instantâneo se tratasse, iniciando-se aí o prazo de prescrição do procedimento criminal”, mas “o acórdão fundamento sustenta que o crime de usurpação de funções é permanente”, pelo que “a prática delituosa se mantém enquanto a mesma não for removida e que, no caso do arguido, ocorre quando, no âmbito do processo laboral transita em julgado a acção laboral que interveio de forma ilícita”.

Esta “temática”, “resume-se”, assim, no entender do recorrente “em aferir se o crime de usurpação de funções p.p. pelo art.º 358.º, al. b) do Código Penal, se traduz num crime instantâneo ou permanente”.

3. Apresenta requerimento do seguinte teor:

«A admissibilidade do presente recurso de revista excepcional sustenta-se pelo acórdão recorrido, proferido em 06/07/2022 no âmbito do processo com o número 15165/17.4T9PRT.P2, isto é em último lugar, em que se encontra em total contradição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05/03/2003, com o número de processo 0212140, disponível em www.dgsi.pt, cuja cópia adiante se junta, ambos já transitados em julgado.

Com efeito, no acórdão recorrido, no qual se encontra imputada ao Arguido a prática dos crimes de procuradoria ilícita pp pelo artº 7º nº 1 al. a) da Lei 49/2004, de 24/08 e de usurpação de funções, pp pelo art. 358º, al. b) do Código Penal, foi julgada verificada a prescrição do procedimento criminal por estes crimes sustentado nos seguintes fundamentos:

- Que o Arguido apresentou a queixa crime, 10/11/2017, no qual os factos que imputa ao Arguido, do qual teve conhecimento a 07/11/2017, está relacionado com a pena de suspensão pelo período de nove anos e seis meses do exercício das funções aplicada pela Ordem dos Advogados, com início em outubro de 2011.

- Que o Arguido, quando já se encontrava suspenso, na qualidade de advogado, representou o recorrente no processo de natureza laboral que correu termos na Comarca ... – Instância Central sob o nº 15/10...., ... Secção Trabalho – J1, na audiência de julgamento do dia 17/01/2012, tendo a sido revogada a procuração a 27/01/2012.

- Que os crimes em causa com a moldura penal até 2 anos de prisão, o prazo de prescrição é de cinco anos;

- Que a consumação dos crimes ocorreu a 17/01/2012 e que a data da participação crime já tinha decorrido mais de cinco anos, sem que tenha ocorrido qualquer causa de interrupção ou suspensão da prescrição;

- Que os crimes de usurpação de funções e procuradoria ilícita, a sua consumação cessa com a prática do último acto de representação ilícita pelo Arguido, 17/01/2012, excluindo, assim, a tese propugnada pelo Recorrente que se trata de crimes de execução permanente e, nessa medida, a sua consumação ocorreria, pelo menos, na data do trânsito em julgado da acção laboral, em 26/06/2015, momento em que o Recorrente entende que se verificou a consumação final dos referidos crimes.

Ora,

Tal decisão é diametralmente oposta ao acórdão fundamento proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, de 05/03/2003, com o número de processo 0212140, no qual sustenta que o crime de usurpação de funções traduz-se num crime permanente, em que “a execução e consumação do delito se prolongam no tempo, verificando-se uma unificação jurídica de todas as condutas” e, citando Cavaleiro Ferreira, Lições, pg. 168, sustenta que “(…) Na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem aliás nada de característico em relação a qualquer outro crime; outra, e esta propriamente típica, que corresponde à permanência , ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção de outro evento e que, para alguns autores, consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se produz.”

Temos, assim, uma oposição de acórdãos, no qual o acórdão recorrido entende que o crime de usurpação de funções se consome no momento em que é praticado, como de um crime instantâneo se tratasse, iniciando-se aí o prazo de prescrição do procedimento criminal e, por outro lado, temos o acórdão fundamento em que sustenta que o crime de usurpação de funções é permanente em que a prática delituosa se mantém enquanto a mesma não for removida e que, no caso do Arguido ocorre quando, no âmbito do processo laboral transita em julgado a acção laboral que interveio de forma ilícita.

Esta temática, que se resume em aferir se o crime de usurpação de funções p.p. pelo artº 358º, al. b) do Código Penal, se traduz num crime instantâneo ou permanente, como convém clarificar se a sua consumação ocorre com a prática, por acção, do acto ou se, pelo contrário, ocorre enquanto tal conduta não é removida pelo agente, sendo que, se entender, como se entende, nesta última análise, a queixa crime apresentada contra o Arguido é, assim, tempestiva e, consequentemente, não ocorre qualquer prescrição do procedimento criminal, devendo o mesmo prosseguir, com os legais efeitos. (…)”

Junta “alegações” em que conclui nos seguintes termos:

«a) Vem o presente recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, interposto das soluções opostas, no domínio da mesma legislação, entre o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido, em 06/07/2022 no âmbito do processo com o número 15165/17.4T9PRT.P2 (acórdão recorrido), já transitado em julgado e o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05/03/2003, com o número de processo 0212140, disponível em www.dgsi.pt, transitado em julgado em primeiro lugar;

b) A problemática que se encontra aqui em confronto prende-se em aferir se o crime de usurpação de funções p.p. pelo artº 358º, al. b) do Código Penal, se traduz num crime instantâneo ou permanente e se a consumação do mesmo ocorre com a conduta instantânea do agente ou, pelo contrário, os seus efeitos são permanentes enquanto a conduta delituosa não for removida pelo agente, sendo relevante para o inicio da contagem do prazo prescricional do procedimento criminal previsto no art.º 11º do CP;

c) Pelo acórdão recorrido (proc. 15165/17.4T9PRT.P2), a factualidade aí relevante é que ao Arguido BB foi aplicada pela Ordem dos Advogados a pena disciplinar de suspensão pelo período de nove anos e seis meses, com início em outubro de 2011; que o Arguido, quando já se encontrava suspenso, na qualidade de advogado, representou o recorrente no processo de natureza laboral que correu termos na Comarca ... – Instância Central sob o nº 15/10...., ... Secção Trabalho – J1, na audiência de julgamento do dia 17/01/2012, tendo a sido revogada a procuração a 27/01/2012; que o Arguido, pelos factos supra expostos, que implicam a prática dos crimes de procuradoria ilícita pp pelo art.º 7º nº 1 al. a) da Lei 49/2004, de 24/08 e de usurpação de funções , pp pelo art. 358º, al. b) do Código Penal, apresentou a queixa crime, 10/11/2017, no qual os factos que lhe imputa apenas teve conhecimento a 07/11/2007, esta relacionado com a pena de suspensão pelo período de nove anos e seis meses do exercício das funções aplicada pela Ordem dos Advogados, com início em outubro de 2011; Que os crimes em causa com a moldura penal até 2 anos de prisão, nos termos do art.º 118º, nº1, al. c) do Código Penal, o prazo de prescrição é de cinco anos; Que nos autos de Inquérito, o Ministério Publico proferiu despacho de arquivamento por considerar verificada a prescrição, o qual o ofendido, após se constituir assistente, requereu a abertura de instrução, considerando, essencialmente, que não ocorreu o referido prazo prescricional, tendo sido proferida decisão instrutória no qual julgou verificada a prescrição do procedimento daqueles crimes, declarando o processo extinto, o qual foi interposto recurso, tendo sido proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto no sentido de confirmar a referida prescrição do procedimento criminal;

d) No acórdão fundamento proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, acórdão do de 05/03/2003, com o número de processo 0212140, a decisão é diametralmente oposta no sentido de entender, em suma, que o crime de usurpação de funções traduz-se num crime permanente, em que a execução e a consumação de prolongam no tempo e que a conduta delituosa de prolonga enquanto não for removida;

e) Verifica-se, assim, a oposição de acórdãos, no qual o acórdão recorrido sustenta que o crime de usurpação de funções se consome no momento em que é praticado, como de um crime instantâneo se tratasse, iniciando-se aí o prazo de prescrição do procedimento criminal e, por outro lado, temos o acórdão fundamento em que sustenta que o crime de usurpação de funções é de efeitos permanentes em que a prática delituosa se mantém enquanto a mesma não for removida e que, no caso do Arguido ocorre quando, no âmbito do processo laboral transita em julgado a acção laboral que interveio de forma ilícita;

f) Torna-se, assim, necessário, em nome da segurança jurídica, por termo a divergência entre os acórdãos em análise, no sentido de determinar se o crime de usurpação de funções p.p. pelo artº 358º, al. b) do Código Penal, se traduz num crime instantâneo ou permanente, como convém clarificar se a sua consumação ocorre com a prática, por acção, do acto ou se, pelo contrário, ocorre enquanto tal conduta não é removida pelo agente, sendo que, se entender, como se entende, nesta ultima análise, a queixa crime apresentada contra o Arguido é, assim, tempestiva e, consequentemente, não ocorre qualquer prescrição do procedimento criminal;

g) Atenta a factualidade já supra descrita e que igualmente consta no acórdão recorrido, o Arguido praticou de forma voluntária e consciente, pelo menos, o crime de usurpação de funções, previsto e punido pelo art.º 358º, al. b) do Código Penal (como o crime de Procuradoria Ilícita), que se traduz num crime permanente, no qual a sua execução e consumação prolongam-se no tempo, em que inclui a consumação inicial da infração numa primeira fase e, na segunda fase, esta é constituída pela fase da omissão que ocorre no tempo enquanto o agente não cumpre o dever de fazer cessar o estado antijurídico por si causado, o que no caso dos autos teria de ocorrer, pelo menos, até ao trânsito em julgado da ação laboral, em 26/06/2015, pelo que, a participação crime efectuada pelo Recorrente a 10/11/2017, é tempestiva e dentro do prazo legalmente previsto para o procedimento criminal em relação ao crime em causa;

h) Importa, assim, por termo a divergência entre os acórdãos em análise, revelando-se de uma matéria de primordial relevância jurídica e social, sustentada, neste caso, em duas decisões que assentam em soluções opostas, o qual o pleno das secções criminais do Venerando Supremo Tribunal de Justiça naturalmente clarificará e que se propugna no sentido do acórdão fundamento;

i) O acórdão recorrido, ao decidir nos termos em que o fez, não interpretou e aplicou corretamente as normas legais atinentes nomeadamente, os art.ºs 118, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal e 358º al. b) do CP.

Termos em que deve ser julgado procedente o presente recurso e, consequentemente, deve ser proferido acórdão uniformizador de jurisprudência sobre a temática ora suscitada e nos termos consignados no presente recurso.»

4. Vem junta certidão do acórdão recorrido, com indicação da notificação aos sujeitos processuais com a data de 07.07.2022, bem como cópia da publicação do acórdão Tribunal da Relação do Porto, de 05.03.2003, proferido no processo 0212140 na base de dados de acórdãos deste tribunal acessível via internet em www.dgsi.pt.

5. Notificado nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 439.º, n.º 2, do CPP, o Ministério Público, pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto no Tribunal da Relação do Porto, apresentou resposta defendendo a rejeição do recurso, nos seguintes termos:

«1º. O acórdão recorrido julgou improcedente o recurso da decisão instrutória de não pronúncia, que declarou a prescrição do procedimento criminal relativamente aos crimes de usurpação de funções p. e p. no art.358º, al. b) do C. Penal e procuradoria ilícita p. e p. no art 7º, nº 1, al. a), da Lei 49/2004, de 24/08. Já antes, no âmbito do inquérito, o Mº Público tinha arquivado o inquérito com igual fundamento.

2º. A decisão recorrida considerou que nos crimes permanentes, como é o caso do crime de usurpação de funções, o prazo de prescrição começa a correr desde o dia em que cessar a consumação. No caso concreto, a cessação da consumação do crime ocorreu no dia 17/01/2012, data em que o arguido interveio, pela última vez, na qualidade de advogado no processo. Note-se que, a 27/01/2012 o assistente revogou o mandato conferido ao arguido.

3º. A tese do recorrente é outra, ou seja, o prazo de prescrição do procedimento criminal começa a correr não da prática do último ato praticado no processo, mas sim do trânsito em julgado da decisão final proferida no processo, i.é 26/06/2015, por ser a data em que no entendimento do recorrente cessa a consumação do crime.

4º. No seu recurso o arguido invoca que o acórdão recorrido é diametralmente oposto ao acórdão fundamento proferido por este Tribunal da Relação do Porto a 5/03/2003 no Processo 0212140, que decidiu que o crime de usurpação de funções é um crime permanente, em que a execução e consumação do delito se prolongam no tempo, verificando-se uma unificação jurídica das condutas, como se todas elas se tivessem verificado no momento da última conduta.”

5º. Vem o STJ entendendo uniformemente que a oposição de julgados exige que:

- as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;

- que as decisões em oposição sejam expressas;

- que as situações de facto e o respetivo enquadramento jurídico sejam, em ambos os casos, idênticos.

6º. Não se verifica, quanto a nós, a invocada contradição de acórdãos. Muito menos que deles resulte como efeito, consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito.

7º. Nestes termos não existem condições de admissibilidade do recurso exigidas pelo art. 437º, nº 2 do C.P.P., pelo que o mesmo deve ser rejeitado.»

6. Recebido, foi o processo com vista ao Ministério Público, em conformidade com o disposto no artigo 440.º do CPP.

O Senhor Procurador-Geral-Adjunto pronuncia-se igualmente pela rejeição do recurso, por considerar não serem idênticas as situações de facto e os acórdãos não assumirem posições diversas em relação à mesma questão de direito, nos seguintes termos (transcrição nas partes essenciais):

«(…)

1.2. Da questão suscitada

A questão suscitada, tal como o recorrente a apresenta, é a de “aferir se o crime de usurpação de funções p.p. pelo art° 358°, al. b) do Código Penal, se traduz num crime instantâneo ou permanente e se a consumação do mesmo ocorre com a conduta instantânea do agente ou, pelo contrário, os seus efeitos são permanentes enquanto a conduta delituosa não for removida pelo agente, sendo relevante para o inicio da contagem do prazo prescricional do procedimento criminal previsto no art.° 11° do CP.” (...)

2.2. Do mérito do recurso

2.2.1. Pressupostos formais

(…) No caso concreto, mostram-se preenchidos os requisitos formais: o acórdão fundamento e o acórdão recorrido transitaram em julgado e a interposição do recurso verificou-se dentro do prazo legal.

2.2.2 Pressupostos substanciais

Segundo a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a oposição de julgados verifica-se quando:

a) - As asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito fixar ou consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito;

b) - As decisões em oposição sejam expressas;

c) - As situações de facto e o respectivo enquadramento jurídico sejam, em ambas as decisões, idênticos.

Um dos requisitos substanciais é, assim, a oposição expressa de julgamento relativamente à mesma questão de direito.

A este propósito, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça vem consolidando o entendimento de que a existência de decisões antagónicas pressupõe, para além de julgados expressos, a identidade das situações de facto, base das decisões de direito antitéticas ou conflituantes.

Portanto, a oposição de julgados pressupõe decisões contraditórias sobre a mesma questão de direito, proferidas no domínio da mesma legislação.

A decisão da questão de direito não pode ser desligada do substrato factual sobre a qual incide.

Em suma, a viabilidade do recurso de fixação de jurisprudência pressupõe que estejam em causa soluções de direito diversas, dadas a situações de facto idênticas. (...)

(…) no caso concreto, a pretensão do recorrente não pode proceder, pois são diferentes as situações de facto subjacentes a cada uma das decisões.

E foram essas diferentes situações que deram origem a diferentes decisões. (...)

No acórdão recorrido, numa situação em que o arguido patrocinou uma acção laboral, estava em causa saber em que momento começou a correr o prazo de prescrição do procedimento criminal relativamente ao crime de usurpação de funções, em particular, saber se o prazo de prescrição só se iniciou após o trânsito em julgado da sentença proferida naquela acção laboral - como defendia o assistente -, ou se o momento a ter em conta para o efeito seria o momento em que o arguido, em sessão de audiência de julgamento, praticou o último acto de patrocínio.

No acórdão fundamento, não estava em causa saber se, tendo o arguido exercido o patrocínio numa acção, em que momento se começa a contar o prazo de prescrição do procedimento criminal relativamente ao crime de usurpação de funções. Isto é, não se discutia se tal prazo se inicia ou não após o trânsito em julgado da sentença.

O que estava em causa no acórdão fundamento era saber se os factos provados, na sentença, preenchiam o crime de usurpação de funções tendo o Tribunal entendido que «analisada a matéria de facto provada, logo se vê que da mesma não consta que os arguidos tivessem agido convencendo as pessoas que tinham condições legais para praticar a profissão ou os actos.»

Além disso, note-se que a questão colocada pelo recorrente é a de “aferir se o crime de usurpação de funções p.p. pelo art° 358°, al. b) do Código Penal, se traduz num crime instantâneo ou permanente e se a consumação do mesmo ocorre com a conduta instantânea do agente ou, pelo contrário, os seus efeitos são permanentes enquanto a conduta delituosa não for removida pelo agente, sendo relevante para o inicio da contagem do prazo prescricional do procedimento criminal previsto no art.° 11° do CP.”

Ora, no que a esta questão diz respeito, importa dizer que, embora o acórdão recorrido e fundamento, na sua fundamentação, façam considerações e definam o que são crimes permanentes, há que ter em conta que, ainda que se verificasse alguma divergência, a mesma respeitaria aos fundamentos e não à própria decisão.

Com efeito, a expressão “soluções opostas” pressupõe que, para além de serem iguais as situações de facto, haja, em ambos os acórdãos, expressa resolução da questão de direito e que a oposição respeite às decisões e não aos fundamentos.

Não se verifica, portanto, oposição de julgados.

3. Conclusão

Em conformidade com o que ficou exposto, pronunciamo-nos, pois, pela não verificação dos requisitos previstos no artigo 437.º do CPP, motivo pelo qual o recurso extraordinário interposto deve, em conferência, ser rejeitado [artigos 440.º, n.ºs 3 e 4 e 441º, n.º 1, do C.P.P].»

7. Efetuado o exame preliminar, o processo foi à conferência, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º do CPP.


II. Fundamentação

8. Sobre o fundamento do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência dispõe o artigo 437.º nos seguintes termos:

«1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 – O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público».

O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar, devendo o recorrente, no requerimento de interposição do recurso, identificar o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, bem como justificar a oposição que origina o conflito de jurisprudência (n.ºs 1 e 2 do artigo 438.º do CPP).

9. Em jurisprudência uniforme e reiterada, o Supremo Tribunal de Justiça, na presença deste regime, vem afirmando que a admissibilidade do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência depende da verificação de um conjunto de pressupostos, uns de natureza formal e outros de natureza substancial (cfr., entre outros, o acórdão de 28.09.2022, Proc. n.º 503/18.0T9STR.E1-A.S1, e jurisprudência nele citada, bem como o acórdão do pleno das secções criminais de 8.7.2021, Proc. 3/16.PBGMR-A.G1.S1, em www.dgsi.pt).

Verificam-se os pressupostos de natureza formal quando: (a) a interposição do recurso tenha lugar no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar (acórdão recorrido); (b) o recorrente identifique o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição (acórdão fundamento), bem como, no caso de estar publicado, o lugar da publicação; (c) se verifique o trânsito em julgado dos dois acórdãos em conflito, e (d) o recorrente apresente justificação da oposição entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido que motiva o conflito de jurisprudência.

Verificam-se os pressupostos de natureza substancial quando: (a) os acórdãos sejam proferidos no âmbito da mesma legislação, isto é, quando, durante o intervalo de tempo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida; (b) as asserções antagónicas dos acórdãos invocados como opostos tenham tido como efeito consagrar soluções diferentes para a mesma questão fundamental de direito, isto é, quando entre os dois acórdãos haja “soluções opostas” na interpretação e aplicação das mesmas normas; (c) a questão (de direito) decidida em termos contraditórios tenha sido objecto de decisões expressas, e (d) haja identidade das situações de facto subjacentes aos dois acórdãos, pois que só assim é possível estabelecer uma comparação que permita concluir que relativamente à mesma questão de direito existem soluções opostas (assim, por todos, os acórdãos anteriormente citados).

10. Mostram-se reunidos os pressupostos relativos ao prazo de 30 dias de interposição do recurso (em 26.9.2022), a contar da data do trânsito em julgado do acórdão recorrido (ocorrido em 06.09.2022, após férias judiciais, tendo em conta a data presumida da notificação eletrónica e o decurso do prazo de 10 dias para arguição de nulidades após a notificação, por o acórdão não admitir recurso ordinário – artigo 105.º, n.º 1, e 113.º, n.º 12, do CPP), à identificação e publicação do acórdão fundamento e ao trânsito em julgado.

O recorrente, com a qualidade de assistente, tem legitimidade para o recurso e os acórdãos foram proferidos no âmbito da mesma legislação, que vem invocada – artigo 358.º, al. b), do Código Penal.

Importa, pois, determinar se se verifica a oposição de julgados.

11. O recurso de fixação de jurisprudência é um recurso de natureza extraordinária que tem por finalidade o estabelecimento de interpretação uniforme de normas jurídicas aplicadas de forma divergente e contraditória em acórdãos dos tribunais da Relação ou do Supremo Tribunal de Justiça, com a eficácia prevista no artigo 445.º do CPP, contribuindo para a realização de objectivos de segurança jurídica e de igualdade perante a lei, que constituem exigências do princípio de Estado de direito (artigo 2.º da Constituição).

Estando em causa a força do caso julgado, que prossegue idênticos objectivos de segurança jurídica, impõe a lei exigentes requisitos, prevenindo a sua utilização como mais uma forma de recurso ordinário destinado à reapreciação da decisão de um caso concreto em divergência com outras decisões de outros tribunais, os quais se evidenciam, desde logo, na sua específica regulamentação (assim, nomeadamente, os acórdãos de 23.02.2022, cit., de 3.11.2021, proc. 36/21.8GJBJA-A.E1-A.S, citado, e de 11.7.2019, proc.  167/16.6GAVZL.C1-A, sumário publicado em https://www.stj.pt/wpcontent/ uploads /2020/04/criminal_ sumarios_2019.pdf).

12. Examinado o processo, mostra-se o seguinte:

12.1. Quanto aos factos e à questão decidida no acórdão recorrido

12.1.1. No processo em que foi proferido o acórdão recorrido, o Ministério Público determinou o arquivamento do inquérito com fundamento na prescrição do procedimento criminal, relativamente aos denunciados crimes de procuradoria ilícita, p. e p. no artigo 7.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 49/2004, de 24.08, e de usurpação de funções, p. e p. pelo artigo 358.º, al. b), do Código Penal, que, segundo a denúncia, o arguido teria cometido no âmbito de um processo de natureza laboral em que interviera como advogado.

Discordando, o assistente requereu a abertura de instrução, finda a qual foi proferida decisão instrutória que igualmente julgou verificada a prescrição, declarou extinto o procedimento criminal e determinou o arquivamento dos autos.

O assistente recorreu dessa decisão para o Tribunal da Relação do Porto, sustentando não ter lugar a prescrição.

O recurso foi decidido por decisão sumária do relator, nos termos do artigo 417.º, n.º 6, al. c), do CPP, por ser manifesta a prescrição do procedimento pelos apontados crimes. Considerou-se que “os crimes se teriam preenchido com o ilegítimo exercício, pelo arguido e em representação forense do recorrente/reclamante, do patrocínio judiciário em determinada acção laboral, patrocínio cujo último acto teve lugar em sessão de audiência de julgamento havida a 17.01.2012, e em todo o caso cessando quando em 21.01.2012 o assistente revogou o mandato que lhe conferira”.

Tendo-se entendido tratar-se de um crime de execução permanente, considerou-se que foi naquela primeira data (17.01.2012) ou, mais tarde, na segunda (21.01.2012), que ocorreu a cessação da consumação, para efeitos de prescrição, nos termos do art.º 119.º, n.º 2, al. a), do Código Penal, segundo o qual, nos crimes permanentes, o prazo de prescrição só corre desde o dia da prática do último acto.

O recorrente reclamou dessa decisão sumária para a conferência, nos termos do artigo 417.º, n.º 8, do CPP, na sequência do que foi proferido o acórdão agora recorrido.

Punha-se, pois, a questão de saber em que momento começava a correr o prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de usurpação de funções.

12.1.2. Apreciando do mérito do recurso, o Tribunal da Relação decidiu nos seguintes termos:

« (…) o que importa, para concluir sobre a prescrição ou não do procedimento é, e é apenas, delimitar o fim da actuação criminal do arguido, mostrando-se irrelevantes não apenas os actos anteriores e os seus contornos mas também as consequências dela (…) que possam vir a produzir-se depois de esse fim – notando-se, muito enfaticamente, que o resultado favorável ou desfavorável da actuação na esfera daquele a quem o agente ilicitamente representou em juízo, usurpando funções e exercendo procuradoria ilícita, não é resultado compreendido em qualquer dos respectivos tipos (dos artigos 358º, alª b) do CP e artº 7º nº 1 alnª a) da Lei 49/2004, de 24.08).

(…) Ora, é por se dar de barato (…) que ambos os crimes em causa são duradouros, isto é, de execução permanente (as condutas típicas não são necessariamente limitadas a acto singular e instantâneo, antes podendo, sem quebra da unidade típica da acção, ser prolongadas no tempo, com elas mantendo o agente em acto a consumação), é que tem de para determinar a cessação da consumação apelar-se, na cadeia de actos de execução com que foram sendo preenchidos, ao último deles, ocorrido 17/01/2012.

(…) os crimes aqui em causa, de usurpação de funções e procuradoria ilícita (em que aliás o bem jurídico protegido não são os interesses de quem com a prática deles possa em concreto ser lesado). Se alguém estiver a representar judicialmente outrem, exercendo ilicitamente procuradoria, com usurpação das funções de advogado, com um só acto de ilícita representação já consuma típica ou formalmente os crimes; e se os continua ou os reitera, é dizer, se persiste na prática de actos de execução, então materialmente mantém aquela consumação em acto. Mas quando deixa de praticá-los cessa uma tal consumação, e quer isso se deva a decisão sua (independentemente do ânimo que a tanto o movesse), quer decorra de ser impedido de continuar.

(…) o último acto de execução dos crimes cuja prática ao arguido se imputava teve lugar em 17/01/2012, mediante participação ilícita e como advogado do recorrente/reclamante na audiência de julgamento nessa data havida no âmbito do processo em que indevidamente o representava; com isso o arguido cessou a consumação do crime que até aí e em execução duradoura mantivera em acto; mas acresce que se depois tivesse querido prossegui-la, já isso lhe teria sido a partir de 27/01/2012 impossível, por revogação do mandato forense nessa data e naquele processo havida, de sorte que na pior das hipóteses (e apenas por reforço argumentativo esta última se ponderando), ali teria então cessado a consumação; contado a partir de 17/01/2012 ou, nessa segunda linha, de 27/01/2012, o prazo prescricional de cinco anos tinha já decorrido quando a própria queixa foi apresentada, a 10/11/2017, não havendo factos suspensivos ou interruptivos da prescrição a considerar; e assim e enfim a decisão recorrida nenhum reparo merece com o ter verificado essa prescrição do procedimento e em consequência determinado o arquivamento do processo. (...)

Em face do que antecede, julga-se improcedente a reclamação apresentada.»

12.2. Quanto aos factos e à questão decidida no acórdão fundamento

12.2.1. No processo em que foi proferido o acórdão fundamento, os arguidos foram julgados e absolvidos da prática de crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art.º 358º., al. b), do Código Penal, com referência aos artigos 53.º, n.º 1 do DL 84/84, de 16/03, 63.º, n.º 1, do DL 483/76, de16/06, e 58.º, n.º 1, do DL 8/99, de 08/01.

Foi interposto recurso pelo Ministério Público e pelo assistente para o Tribunal da Relação.

A questão a decidir em recurso era a de saber se as condutas dos arguidos constituíam um crime de usurpação de funções, p. e p. pela alínea b) do artigo 358.º do Código Penal, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 58/98, de 2 de setembro.

12.2.2. No acórdão fundamento decidiu-se o seguinte:

«No presente recurso há que apurar se as condutas dos arguidos [...] integram um crime de usurpação de funções p. e p. pela alínea b) do art.º 358º do C. Penal; na afirmativa, deve daí retirar-se todas as consequências legais. (…)

E assim, não temos dúvidas em também afirmar que, relativamente aos arguidos [...], porque a execução dos actos por que vinham acusados se prolongou para além da entrada em vigor das alterações introduzidas no art.º 358.º do Código Penal pela Lei n.º 65/98, o seu comportamento é punível por este preceito, na nova redacção, ainda que menos favorável. (…)

Trata-se de um crime permanente, em que a execução e consumação do delito se prolongam no tempo – Cavaleiro de Ferreira, “Lições”, pg. 168.

“Tipos de crimes permanentes são aqueles em que o evento se prolonga por mais ou menos tempo.... Na estrutura dos crimes permanentes distinguem-se duas fases: uma, que se analisa na produção de um estado antijurídico, que não tem aliás nada de característico em relação a qualquer outro crime; outra, e esta propriamente típica, que corresponde à permanência, ou, vistas as coisas de outro lado, à manutenção desse evento, e que, para alguns autores, consiste no não cumprimento do comando que impõe a remoção, pelo agente, dessa compressão de bens ou interesses jurídicos em que a lesão produzida pela primeira conduta se traduz.

A existência deste dever, naturalmente ligada à natureza dos bens jurídicos protegidos, distingue o crime permanente dos chamados crimes de efeitos permanentes - v. g. o furto.

Nos crimes permanentes, realmente, o primeiro momento do processo executivo compreende todos os actos praticados pelo agente até ao aparecimento do evento (v. g. no crime de cativeiro do art. 328º a privação da liberdade do violentado), isto é, até à consumação inicial da infracção; a segunda fase é constituída por aquilo a que certos autores fazem corresponder uma omissão, que ininterruptamente se escoa no tempo, de cumprir o dever, que o preceito impõe ao agente, de fazer cessar o estado antijurídico causado, donde resulta, ou a corresponde, o protrair-se da consumação do delito. Desta forma, no crime permanente haveria, pelo menos, uma acção e uma omissão, que o integrariam numa só figura criminosa.” – Eduardo Correia in “Direito Criminal”, I, pgs. 309 e 310.

Ou ainda, como refere Jescheck in “Tratado de Derecho Penal”, I, pg. 357: “En los delitos permanentes el mantenimento del estado antijurídico cerrado por la ac-ción punible depende de la voluntad del autor, de manera que, en cierto modo, el hecho se renova continuamente”.

Nos crimes permanentes verifica-se uma unificação jurídica de todas as condutas como se todas elas se tivessem verificado no momento da última conduta.

No caso da usurpação de funções, esta verifica-se enquanto houver reiteração do exercício da profissão ou a prática de actos próprios de uma profissão para a qual a lei exige título ou o preenchimento de certas condições.

Ora, são doutrina e jurisprudência uniformes que, no caso dos crimes permanentes, “Aplica-se sempre a lei nova, ainda que mais severa, desde que a execução ou o último acto tenham cessado no domínio da mesma lei. Não há, verdadeiramente, aqui qualquer problema, visto que no domínio da lei nova foram praticados actos integradores do crime” – Maia Gonçalves in “Código Penal Português”, VIII ed., pg. 183. (…)

Analisada a matéria de facto provada, logo se vê que da mesma não consta que os arguidos tivessem agido convencendo as pessoas que tinham condições legais para praticar a profissão ou os actos.

Dando de barato, como se referiu, que praticassem a profissão, o certo é que não está provado que, mesmo de forma implícita, se fizessem passar por advogado ou solicitador, ou que tivessem habilitações para tal.

A assistente, citando um sumário de um acórdão do STJ, diz que o legislador se contenta com um arrogo implícito por parte do agente, sendo, assim, suficiente que este, ainda que não invocando a qualidade que pretende impor, apareça a exercer actos próprios dela, como se possuísse título ou reunisse as condições legais que a lei reclama.

Crê-se ser correcta a doutrina. (…)

Ora, como se referiu, não está provado que os arguidos sequer tentassem convencer as pessoas que tinham condições legais para praticar a profissão ou os actos próprios da advocacia ou da solicitadoria.

Como não resultou provado que as pessoas que recorreram aos serviços dos arguidos, estivessem convencidas que os arguidos tinham um qualquer título ou condições, legais para o exercício da profissão.

Tal conclusão não pode extrair-se, pura e simplesmente, da prática dos actos materiais praticados, sob pena de, assim fazendo, se estar a condenar por presunção, o que certamente nem o MO nem o Assistente pretendem, pondo-se a cargo do arguido o ónus de elidir uma presunção de culpa, o que violaria, inclusive, preceitos constitucionais, maxime o n.º 1 do art.º 31.º da CRP. (…)

E das circunstâncias referidas na factualidade assente, não pode concluir-se por aquele arrogo, mesmo implícito, salvo recorrendo às ditas presunções ou “dando um salto no escuro”, a todos os títulos proibido em Processo Penal.

Faltando, como falta, um dos elementos do tipo, o arrogo de título ou condições que se não possui nem reúne, logicamente a acusação sempre deverá improceder. (…)

Nestes termos, ao abrigo das disposições legais supra citadas, acordam os Juízes da 1ª Secção Criminal desta Relação em negar provimento aos recursos, confirmando a sentença recorrida, embora com fundamentos diversos do dela constantes.»

13. Em síntese, são substancialmente diferentes as situações que constituem objeto de cada uma das decisões e as questões de direito suscitadas e decididas nos acórdãos proferidos nestes dois processos.

Aceitando-se, em cada um deles, nos termos anteriormente expostos, que o crime de usurpação de funções é (em caso de ato isolado), ou pode ser (em caso de atos reiterados), um crime permanente,

(a) no acórdão recorrido, numa situação em que o arguido patrocinou uma acção laboral, estava em causa saber em que momento começou a correr o prazo de prescrição do procedimento criminal, em particular, se o prazo só se iniciou após o trânsito em julgado da sentença proferida naquela acção laboral, como defendia o assistente, ou se o momento a ter em conta para o efeito seria aquele em que o arguido, em sessão de audiência de julgamento, praticou o último acto de patrocínio;

(b) no acórdão fundamento, não se tratava de saber em que momento se iniciava o prazo de prescrição do procedimento; o que estava em causa era saber se os factos provados constituíam crime de usurpação de funções a que seria aplicável o artigo 358.º do Código Penal, com a alteração introduzida em 1998, tendo o tribunal concluído que não se mostrava preenchido o tipo de crime.

Embora ambos os acórdãos, na argumentação que fundamenta a decisão, façam referência e teçam considerações sobre a classificação do crime de usurpação de funções como crime permanente, na medida e em função do que neles foi considerado relevante para a decisão, não é essa a questão a decidir.

A questão de direito que o recorrente invoca, como sendo a que justifica a sua pretensão, não é a que, infundadamente, extrai dos acórdãos em confronto, sem correspondência ao que resulta dos autos. Acrescendo que, mesmo que uma divergência de fundamentação pudesse ser identificada como ratio da oposição – o que definitivamente não é, pois que a oposição relevante, que justifica a uniformização da jurisprudência, é a que, sobre a mesma questão, se exprime na decisão quanto à interpretação da norma jurídica em causa –, tal divergência nem ocorreria no caso sub judice, dada a coincidência da linha argumentativa sobre a classificação do crime como crime permanente, embora para finalidades diversas.

14. Como se tem sublinhado, o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência visa a apreciação de decisões em matéria de direito, requerendo, como seu pressuposto e fundamento (artigo 437.º do CPP), que os mesmos preceitos legais, aplicados a factos idênticos, tenham sido interpretados diversamente e, com base em soluções opostas ou inconciliáveis, obtidas em resultado de interpretações diferentes nas respostas à mesma questão de direito, no acórdão recorrido e no acórdão fundamento (assim, acórdãos deste Tribunal de 18.9.1991, BMJ 409-664, apud Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, Católica, 4.ª ed., 2011, p. 1192, e de 23.4.1986, BMJ 356-272, bem como acórdãos posteriores exprimindo jurisprudência uniforme e consolidada cit. em Simas Santos / Leal Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, p. 195, e, mais recentemente, entre outros, os acórdãos de 28.9.2022, cit., e de 18.4.2018, Proc. 364/14.9PTPRT.P1-A.S1, 13.2.2014, Proc. 1006/09.PAESP.P1-B.S1, de 30.4.2014, Proc. 14/09.5TARGR.L1-A.S1, de 26.6.2014, Proc. 8815/12.0TAVNG.P1-A.S1, em anotação ao artigo 437.º, Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, 2016).

Citando Alberto dos Reis, “dá-se oposição sobre o mesmo ponto de direito quando a mesma questão foi resolvida em sentidos diferentes, isto é, quando à mesma disposição legal foram dadas interpretações ou aplicações opostas” (ibidem, 195). O que interessa saber “é se, para a resolução do caso concreto, os tribunais, em dois acórdãos diferentes, chegaram a soluções antagónicas” (ibidem, 196) quanto ao sentido da mesma norma aplicada nesses dois acórdãos.

A questão de direito a resolver por via do recurso há-de corresponder a uma idêntica “situação de facto” colocada perante uma idêntica “hipótese normativa”, na consideração dos seus diversos elementos relevantes, requerendo uma “decisão por um critério de interpretação” de entre “hipóteses interpretativas” divergentes (assim, acórdão de 28.9.2022, mencionado, citando ainda Ulrich  Schroth, Hermenêutica filosófica e jurídica, em Introdução à Filosofia do Direito e à Teoria do Direito Contemporâneas, A. Kaufmann e W. Hassemer, Fundação Calouste Gulbenkian, 3.ª ed., Lisboa, 2015, p. 398).

15. Assim sendo, impõe-se concluir que não se mostra presente uma situação em que, no processo de “concretização normativa” de idênticas normas aplicáveis a semelhantes situações de facto, os tribunais que proferiram as decisões invocadas, na ponderação de diversas “hipóteses interpretativas” inerentes a esse processo, tenham optado por critérios diversos, conducentes a soluções opostas.

Pelo que deverá o recurso ser rejeitado por se concluir pela não oposição de julgados, nos termos do artigo 441.º, n.º 1, do CPP.

Quanto a custas

16. Nos termos do disposto no artigo 515.º, n,º 1, al. b), do CPP, é devida taxa de justiça pelo assistente se decair, total ou parcialmente, em recurso que houver interposto ou em que tenha feito oposição, sendo a taxa fixada pelo juiz, nos termos previstos no Regulamento das Custas Processuais, entre 1 e 5 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com o n.º 9 do artigo 8.º e a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

Nestes termos, considera-se adequada a condenação do recorrente em 3 UC.


III. Decisão

17. Pelo exposto, acorda-se na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso extraordinário para fixação de jurisprudência interposto pelo assistente AA, por não haver oposição de julgados.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.


Supremo Tribunal de Justiça, 21 de junho de 2023.


José Luís Lopes da Mota (relator)

Maria Teresa Féria de Almeida

Sénio Manuel dos Reis Alves