Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3813
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
PENHORA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Nº do Documento: SJ200801240038132
Data do Acordão: 01/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. O vício que a lei pune na alínea b) do n.º 1 do art. 668º do CPC é a ausência completa de fundamentação, a falta absoluta de justificação.

2. Clausulado, no contrato-promessa, que o prédio seria vendido livre de ónus ou encargos, e não tendo os promitentes vendedores removido o encargo (hipoteca) que sobre ele impendia já ao tempo da celebração do contrato-promessa, nem obstado, posteriormente a tal celebração, à penhora do prédio, não tendo dado conhecimento à contraparte da incidência das aludidas hipoteca e penhora, verificou-se o incumprimento, por aqueles, do contrato-promessa.

3. O incumprimento não resulta da impossibilidade da prestação dos promitentes vendedores, mas antes da tácita, mas inequívoca, desvinculação das obrigações decorrentes do contrato-promessa, deixando os promitentes vendedores patente que, da sua parte, o contrato não era para cumprir, de nada passando a interessar a interpelação para o cumprimento.

4. A penhora, implicando a transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integravam o direito dos promitentes vendedores sobre o prédio, e, consequentemente, a transferência da posse, que passa a ser detida pelo tribunal, e por ele exercida através do depositário, sempre impediria a promitente vendedora de realizar, no prédio, quaisquer obras que se tivesse obrigado a efectuar.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1.

F...Construções L.da intentou, em 06.11.2003, no 3º Juízo do Tribunal Judicial da comarca de Felgueiras, contra AA e mulher BB, acção com processo ordinário, pedindo que se declare a resolução do contrato-promessa junto com a petição inicial e se condenem os réus, solidariamente, a restituir-lhe o dobro da quantia por ela prestada no âmbito do aludido contrato-promessa e respectivo aditamento, num total de € 149.639,37, e bem assim a pagar-lhe a quantia de € 26.717,40 relativa às despesas que ela, autora, suportou na vigência do aludido contrato-promessa e por causa dele, sendo tais montantes acrescidos dos respectivos juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento; e que seja ainda declarada e reconhecida a impossibilidade culposa dos réus de cumprirem o contrato de compra e venda das chapas celebrado entre estes e a autora e, em conformidade, sejam eles condenados, solidariamente, a restituir-lhe a quantia de € 3.740,98, prestada por esta no âmbito daquele contrato, também acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Para o efeito, alegou factos tendentes a demonstrar que os réus não cumpriram, culposamente, a obrigação de celebrar o contrato prometido no referido contrato-promessa, de compra e venda e permuta, que com eles celebrou em 29 de Abril de 1999, e a que foi feito um aditamento, em 10 de Agosto do mesmo ano; e também não lhe fizeram entrega das chapas onduladas que lhe venderam, aquando da celebração do contrato-promessa, e que a autora lhes pagou, estando, pois, constituídos na obrigação de a indemnizar, nos termos peticionados.
Os réus contestaram, impugnando em parte os factos articulados pela autora, e, alegando outros, tendentes a demonstrar o culposo incumprimento contratual por parte desta; e, em reconvenção, pediram que a autora seja condenada a ver declarada a resolução do contrato-promessa em causa e a ver perdidas as quantias que dela receberam, a título de sinal, no montante global de 15.000.000$00, e a pagar-lhes a quantia de € 1.646,73.
Pediram ainda a condenação da autora, como litigante de má fé, em multa e indemnização não inferior a € 5.000, 00.
Com a réplica da autora prosseguiu o processo a sua normal tramitação.
Efectuada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual o Ex.mo Juiz julgou a acção parcialmente procedente e improcedente a reconvenção, e em consequência
- decretou a resolução do contrato-promessa em apreço e condenou os réus a restituírem à autora o dobro da quantia por esta prestada no âmbito do dito contrato-promessa e seu aditamento, num total de € 149.639,37, acrescidos de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- declarou a impossibilidade culposa dos réus de cumprirem o contrato de compra e venda das chapas que celebraram com a autora, condenando-os a restituir a esta a quantia de € 3.740,98, acrescida de juros de mora desde a citação até efectivo e integral pagamento;
- absolveu os réus do mais peticionado pela autora, e absolveu esta dos pedidos reconvencionais contra ela formulados.

Apelaram, sem êxito, os réus, pois a Relação de Guimarães, em acórdão oportunamente proferido, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.

Inconformados, trazem agora os réus a este Supremo Tribunal o presente recurso de revista, em cujas alegações formulam as seguintes CONCLUSÕES (1)
1ª - O acórdão recorrido é nulo por absoluta falta de fundamentação;
2ª - Da factualidade dada como provada e não provada, e de acordo com a aplicação do direito a essa matéria factual, não poderiam os réus ser condenados nos termos em que o foram;
3ª - Decorre do contrato promessa que foi previsto, estipulado e contratualizado pelas partes um prazo fixo, concreto e definido para a conclusão das obras e, concomitantemente, para a realização da escritura definitiva;

4ª - Sendo que relativamente a esse prazo, a responsabilidade do seu cumprimento dependia e corria exclusivamente por conta da autora;

5ª - E nem se diga que o facto de pender sobre o prédio ónus e encargos era impeditivo da realização da escritura;

6ª - A aplicação do n.º 2 do artigo 777º do Código Civil é, salvo melhor entendimento, descabida ao caso concreto;

7ª - Na verdade, resulta evidente que foi a autora quem incorreu em mora relativamente aos réus, quer no que respeita ao não cumprimento do prazo para conclusão da obra, quer no que respeita, concomitantemente, ao não cumprimento do prazo para a celebração da escritura;

8ª - E por isso é que, volvidos mais de dois anos do términus do prazo acordado, o réu marido enviou à autora a comunicação de fls. 37, através da qual solicitou que esta procedesse ao levantamento do alvará de construção ou à entrega da caução;

9ª - A exigência do réu marido feito à autora para que esta procedesse ao levantamento do alvará, não é mais nem menos do que uma exigência de cumprimento de uma obrigação assumida pela autora e que, volvidos mais de dois anos, não estava a ser cumprida;

10ª - Não tendo sido assinado o aditamento ao contrato, a interpelação feita pela autora aos réus, por carta datada de 6 de Fevereiro de 2003, faz exigências que manifestamente exorbitam do “programa de prestação”, não constituindo objecto idóneo da conhecida notificação admonitória;

11ª - Já que por força do contrato-promessa assinado, os réus não se vincularam a assinar nenhuma escritura definitiva, não se vincularam a expurgar os ónus e os encargos que incidiam sobre o prédio, sem que antes estivesse concluída a construção do edifício e sem que as fracções que pertenceriam aos réus lhes fossem entregues, o que, da responsabilidade da autora, haveria de ter ocorrido até Janeiro de 2001;

12ª - Acresce que jamais se poderia aceitar aquela interpelação no sentido de consistir numa notificação admonitória válida, na medida em que, em momento algum, de acordo com o contrato, os réus se encontravam em mora, pois que nenhuma obrigação impendia sobre os mesmos, resultante do contrato;

13ª - E, assim sendo, necessariamente haveria de improceder, totalmente, o pedido formulado pela autora, nomeadamente o da restituição do dobro do sinal prestado.

14ª - Já quanto ao pedido reconvencional, haverá o mesmo de proceder totalmente;

15ª - Por ter ficado demonstrado que com a interpelação que os réus fizeram à autora – no sentido desta, em dez dias, proceder ao levantamento do alvará de construção – se converteu a mora da autora (que decorria desde Janeiro de 2001) em incumprimento definitivo e culposo do contrato promessa por parte da autora e a consequente perda, de forma definitiva, do interesse, por parte dos réus, na manutenção dos termos do contrato;
16ª - Sendo que, para além disso, a vontade manifestada na presente acção pela autora em ver resolvido o contrato, alicerçado à falta de fundamento por si invocado, nomeadamente quanto à notificação admonitória e à referência feita ao aditamento, que se reconheceu não ter existido, pressupõe uma declaração de resolução ilícita, mas não inválida, com a consequência de representar e ser entendida como verdadeiro incumprimento do contrato.


Termos em que, por violação do disposto nos artigos 158º, 659º n.º 2, 668º n.º 1, b) e 713º, n.º 2 do CPC e 205º n.º 1 e 208º n.º 1 da CRP, deverá reconhecer-se a nulidade do acórdão recorrido.

Mais se deverá reconhecer ter ocorrido má aplicação do direito à matéria factual, por má aplicação e interpretação dos artigos 227º n.º 1, 762º n.º 2, 442º n.º 2, 777º n.º 2, 801º a 803º, 804º n.º 2, 805º e 808º, todos do Código Civil, que se terá ficado a dever a má interpretação do contrato-promessa e ao facto de tal interpretação não ter levado em conta que o aditamento ao contrato não se realizou.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram corridos os vistos legais, cumprindo agora decidir.

2.

São os seguintes os factos provados:
1. A autora dedica-se à actividade comercial de construção civil e bem assim de compra e venda de imóveis;
2. Autora e réus, no dia 29 de Abril de 1999, celebraram o contrato, que classificaram de contrato-promessa de compra e venda e permuta, junto a fls. 21 e ss. e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;
3. Aquando da outorga do referido contrato, os réus arrogaram-se proprietários e possuidores do prédio urbano, sito no lugar de Cerdeira das Ervas, freguesia de Vila Cova da Lixa, concelho de Felgueiras, composto de uma casa com a área coberta de 684 m2 e logradouro com a área de 3.245 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Felgueiras sob o n.º 00282/110288/Vila Cova, registado no seu nome, e inscrito na matriz rústica sob o n.º 931,
4. Prédio que os réus prometeram vender à autora, e esta prometeu comprar àqueles;
5. Mais acordaram no contrato id. em 2 que o preço total do imóvel prometido vender seria pago parte em dinheiro e parte em espécie;
6. A parte do preço fixada em dinheiro, no montante de Esc. 15.000.000$00, seria totalmente entregue pela autora aos réus antes mesmo da outorga da escritura definitiva de compra e venda do dito prédio;
7. As despesas com o projecto a licenciar, a escritura, sisa e registos em nome dos adquirentes, provisórios ou definitivos, iriam correr por conta exclusiva da autora;
8. O referido prédio seria vendido livre de quaisquer ónus ou encargos;
9. Como sinal e princípio de pagamento e por via do contrato referido em 2, os réus receberam da autora a quantia de 2.500.000$00. Em Agosto de 1999, foi entregue pela autora aos réus a quantia de 5.000.000$00. A restante quantia foi paga em duas mensalidades, a primeira, em Outubro de 1999, no valor de 3.750.000$00, e a segunda, em Dezembro de 1999, no mesmo valor que a primeira;
10. A autora, em nome do réu marido e por via da inscrição do imóvel id. em 3 no nome dos demandados, apresentou e viu ser deferido o projecto imobiliário de construção de um edifício colectivo para implantar no prédio urbano prometido adquirir e acima identificado;
11. A tal projecto de construção foi atribuído o n.º 280/00 pela Câmara Municipal de Felgueiras, tendo o respectivo pedido sido deferido em 02.02.2001;
12. O prédio id. em 3 está onerado com hipoteca judicial registada através de ap. de 15.11.98 e uma penhora ocorrida em 18.11.99 e registada através de ap. 03.02.00 (doc. de fls. 26);
13. O réu marido enviou à autora a carta junta a fls. 37, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
14. Em Janeiro de 2003, a autora recebeu do mandatário dos réus a carta de fls. 38, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
15. Em resposta às cartas id. em 13 e 14, a autora enviou aos réus, a 6 de Fevereiro de 2003, a carta junta a fls. 40, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, interpelando-os para removerem os encargos referidos em 12 e procederem à marcação da escritura pública de compra e venda do prédio id. em 3, tudo até 30 de Abril de 2003;
16. Foi dada publicidade à venda judicial do imóvel id. em 3 através da publicação de anúncios no “Jornal da Lixa”, conforme doc. de f1s. 41, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
17. A autora não fez qualquer construção no prédio id. em 3;
18. O pagamento em espécie referido em 5 consubstanciava-se na cedência da área do edifício a construir no prédio prometido vender e id. em 3, ficando os réus, por via do contrato id. em 2, com direito a 20 % do volume de construção de cada tipo de tipologia do projecto da área habitacional e 1/3 na parte de comércio;
19. Os factos referidos em 12 eram do conhecimento dos réus,
20. Tendo-os omitido à autora;
21. Os réus até à data não responderam à carta id. em 15;
22. No cumprimento do contrato identificado em 2, a autora mandou proceder à execução do projecto imobiliário para o local do prédio prometido vender, tendo despendido a quantia de € 24.780,28 a título de pagamento de honorários ao técnico que executou o projecto;
23. A autora pagou a quantia de € 465,43 a título de contribuição autárquica do ano 2001 e referente ao prédio id. em 3;
24. A autora pagou a quantia de € 964,79 a título de despesas com o consumo de electricidade no dito prédio e reportável aos anos de 1999, 2000 e 2001;
25. A autora pagou despesas relativas ao consumo de água canalizada no dito prédio nos anos de 1999, 2000 e 2001, no valor de € 506,90 euros;
26. Os pagamentos referidos de 22 a 25 foram efectuados pela autora aos réus, em nome de quem as diversas entidades emitiram as respectivas facturas;
27. Aquando da celebração do negócio descrito e paralelamente a este, foi celebrado um contrato através do qual os réus declararam vender e a autora declarou comprar as chapas onduladas do pavilhão da serração existente no prédio id. em 3, pelo preço de Esc. 1.500.000$00;
28. A autora pagou aos réus aquela dita quantia através de dois cheques no valor de Esc. 750.000$00 cada um.
29. A autora, pelo facto do prédio id. em 3 ser objecto de penhora e estar entregue ao fiel depositário, nunca foi autorizada a tomar posse destas mesmas chapas;
30.O projecto referido em 10 e 11 foi apresentado em 2000 na Câmara Municipal de Felgueiras pela autora;
31. O levantamento do alvará de licença de construção aprovado pelo despacho/deliberação de 02.02.2001 não ocorreu até ao momento, não tendo a autora pago as taxas e licenças devidas à Câmara Municipal;
32. A autora obrigou-se para com os réus a entregar-lhes as fracções que iria construir no prédio id. em 3 e como parte do preço id. em 5 (em espécie) no prazo de 18 meses após o mês de Julho de 1999;
33. Os réus, confrontados com os encargos referidos em 12, propuseram à autora que se realizasse a escritura de compra e venda do prédio id. em 3, mediante a prestação de caução a que se alude na carta id. em 13,
34. Caução essa de valor correspondente ao dos bens a que tinha direito por via do contrato id. em 2;
35. Com isto os réus pretendiam suspender o processo executivo no âmbito do qual ocorreu a penhora referida em 12, aí prestando competente caução,
36. E assim concretizar a venda do prédio id. em 3, conforme acordo proposto em 33.

3.

Enunciada a factualidade assente, cabe, de seguida, valorá-la de jure.
São as conclusões da alegação do recorrente que demarcam o âmbito do recurso, o que vale dizer que, exceptuadas as de conhecimento oficioso, o tribunal ad quem só pode conhecer das questões que em tais conclusões são suscitadas.

3.1. De rejeitar liminarmente é a afirmada nulidade do acórdão recorrido, por falta de fundamentação.
Não obstante a profusão de normas invocadas como seu suporte – uma delas mesmo inexistente e/ou totalmente alheia a esta matéria (2) – este fundamento do recurso carece, de todo, de razoabilidade.
A doutrina e a jurisprudência são concordes e unânimes no entendimento de que só a falta absoluta de fundamentação constitui a invocada nulidade.
Como expressivamente escreveu o Prof. ANTUNES VARELA (3) a lei não exige (nem razoavelmente poderia fazê-lo), sob a ameaça do cutelo da nulidade, que a sentença contenha a justificação suficiente, convincente, completa da decisão, mas apenas a menção dos fundamentos (quer de facto, quer de direito) que justificam – que justificam aos olhos do julgador, como é evidente – a decisão por ele proferida.
O vício que a lei pune na alínea b) do n.º 1 do art. 668º é, por conseguinte, a ausência completa de fundamentação, a falta absoluta de justificação.
Ora, no caso em apreço, o acórdão menciona – bem ou mal, isso é outra questão, que não importa, aqui e agora, considerar – os fundamentos que justificam, no entender dos seus subscritores, o não provimento do recurso.
E pouco importa que, relativamente a algumas das conclusões não tenha havido pronúncia expressa, sabido que é também que os acórdãos dos tribunais superiores não necessitam de apreciar, um a um, todos os argumentos expendidos pelo recorrente: nos recursos apreciam-se questões, e não razões.
Como também não é motivo de nulidade que, relativamente a algumas questões, o acórdão se tenha limitado a aderir à fundamentação quanto a elas expressa na sentença recorrida – tal lhe é permitido pela norma do n.º 5 do art. 713º do CPC.

3.2. O recurso dos réus coloca, essencialmente, a questão do incumprimento definitivo do contrato-promessa a que se reporta a acção.
Divergindo das instâncias, que entenderam ter sido o contrato definitivamente incumprido pelos próprios recorrentes, defendem estes que o não cumprimento de tal contrato é, em exclusivo, imputável à autora, ora recorrida.
Vejamos, pois.
Pelo contrato-promessa em apreço, celebrado em 29.04.1999, os réus prometeram vender à autora e esta prometeu comprar-lhes, o prédio urbano identificado no n.º 3 da matéria fáctica apurada, de que os primeiros se afirmaram “donos e legítimos proprietários”.
Foi acordado que o preço do imóvel prometido vender seria pago, uma parte em dinheiro – 15.000.000$00 – e outra parte em espécie – os réus ficariam, na construção a levar a cabo pela autora no prédio, com direito a 20% do volume de construção de cada tipo de tipologia do projecto na área habitacional e 1/3 da área destinada a comércio.
Relativamente ao pagamento do preço, as partes acordaram o seguinte:
- quanto ao pagamento em espécie, “o prazo de entrega é de 18 meses a partir do mês de Julho de 1999”;
- quanto ao pagamento em dinheiro:
- na data da celebração do contrato-promessa, os réus receberiam da autora, como sinal e princípio de pagamento, a quantia de 2.500.000$00;
- a restante quantia seria paga da forma seguinte: 5.000.000$00, em 02.08.1999; os restantes 7.500.000$00, em duas mensalidades, a primeira em 02.10.1999 e a segunda em 02.12.1999, cada uma delas no valor de 3.750.000$00.
O prédio seria vendido livre de quaisquer ónus ou encargos, e as despesas com o projecto de construção a licenciar e com as despesas de escritura, sisa e registos ficariam a cargo da autora.
Acha-se ainda provado que
- a autora fez entrega aos réus das quantias em dinheiro supra aludidas;
- no cumprimento do contrato-promessa, a autora mandou proceder à execução do projecto imobiliário de construção de um edifício colectivo a implantar no prédio objecto da promessa de venda, no que despendeu € 24.780,28; e
- apresentou em 2000, na Câmara Municipal de Felgueiras, que o deferiu em 02.02.2001, o dito projecto imobiliário;
- pagou € 465,43 de contribuição autárquica do ano de 2001, bem como € 964,79 de despesas de electricidade e € 506,90 de despesas de consumo de água, tudo referente ao mesmo prédio;
- o prédio prometido vender acha-se onerado com hipoteca judicial registada em 15.11.98 e sobre ele incide uma penhora efectuada em 18.11.99 e registada em 03.02.2000;
- estes eventos (hipoteca e penhora) eram do conhecimento dos réus, que os omitiram à autora.
As partes celebraram, pois, um contrato-promessa bilateral de compra e venda, cuja validade não vem questionada.
Não foi convencionado o prazo de cumprimento do contrato, isto é, a data ou o prazo para a celebração do contrato prometido, nem tão pouco ficou acordado qual dos contraentes deveria efectuar as diligências tendentes à marcação da escritura pública de compra e venda e interpelar o outro contraente para a realização desta.
E, por ser assim, a qualquer deles era legítimo proceder a essa marcação e interpelar o outro para comparecer no dia, hora e local designados pelo notário para a celebração da escritura – obviamente, depois de criadas as condições necessárias para o efeito, estabelecidas no contrato-promessa.
Ora, tais condições jamais estiveram criadas!
Na verdade, ficou clausulado no contrato-promessa que o prédio seria vendido livre de quaisquer ónus ou encargos.
Porém, ele encontrava-se, já à data da celebração do contrato-promessa, onerado com hipoteca judicial (registada em 15.11.98), vindo, mais tarde, em 18.11.99, a ser alvo de penhora, em execução movida contra os ora recorrentes, no âmbito da qual veio mesmo a ser adjudicado aos exequentes, por decisão judicial de 10.10.2005, como flui da certidão junta aos autos a fls. 195/204 – eventos ambos, a hipoteca e a penhora, que os réus, ora recorrentes, em desrespeito das regras da boa fé (art. 227º/1 do CC) se guardaram de comunicar à autora, e que representavam encargos que a eles, réus, cumpria remover, para possibilitar a celebração do contrato prometido.
Tanto mais que a autora, ao invés, foi cumprindo as suas obrigações emergentes do contrato-promessa, designadamente fazendo entrega aos ora recorrentes, até ao mês de Dezembro de 1999, sensivelmente dentro dos prazos acordados, das quantias em dinheiro, totalizando 15.000.000$00, que acordara pagar-lhes.
Decorre do exposto que foram os réus recorrentes que não criaram as condições para que fosse possível a celebração do contrato prometido, ao não removerem, como lhes impunha o contrato-promessa, o encargo (hipoteca) que impendia, já no momento da celebração de tal contrato, sobre o prédio objecto da promessa de venda, e ao permitirem, igualmente sem reacção, a sua ulterior penhora, acabando o dito prédio – é certo que já depois de intentada a presente acção – por sair do património daqueles, na sequência da sua adjudicação aos exequentes, na execução em que foi penhorado.
Vale, pois concluir – tal como, em caso similar, se concluiu neste Supremo Tribunal, em acórdão citado na sentença da 1ª instância (4) que, nestas circunstâncias, os réus recorrentes não cumpriram, e de modo definitivo, “o dever primordial decorrente do contrato”, que era o de vender à autora o prédio em causa.
Não era necessário esperar por este resultado – a venda do prédio, ou a sua adjudicação ao exequente – para, só então, dar a promessa de venda como definitivamente incumprida. Parafraseando o acórdão citado, em bom rigor nem sequer se poderia dizer que a adjudicação significou o incumprimento da promessa, pois nada impedia os réus recorrentes, ali executados, de, entretanto, reaverem dos adjudicatários exequentes o prédio, a tempo de honrarem o compromisso assumido para com a autora.
O incumprimento resulta, não da impossibilidade da prestação dos promitentes vendedores, “mas sim da tácita, mas inequívoca, desvinculação das obrigações decorrentes do contrato-promessa”.
Nada tendo feito para erradicar a hipoteca, cujo conhecimento sonegaram à promitente vendedora, e deixando penhorar o prédio, sem reacção, e, de novo, sem a esta fazer a devida comunicação, os réus, promitentes vendedores, fizeram, em definitivo, tábua-rasa dos compromissos assumidos com a autora, deixando patente que, da parte deles, o contrato não era para cumprir, de nada passando a interessar a interpelação para o cumprimento.
Como refere o Prof. JOÃO CALVÃO DA SILVA, “(é) exacto (...) configurar (...) o comportamento inequívoco, demonstrativo da vontade de não cumprir (...) como incumprimento (antes do termo), pressuposto suficiente de consequências jurídicas imediatas, como a exigibilidade do cumprimento e a execução específica do contrato-promessa, se o credor nisso ainda tiver interesse, ou a própria resolução do contrato e, em geral, todos os remédios ou sanções previstos contra o incumprimento, sem passar pelo art. 808º” (5)
E, incumbindo ao devedor provar (art. 799º/1 do CC) que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua, certo é que tal prova não foi feita pelos réus recorrentes quanto à sua obrigação de venderem o seu prédio à autora.
Deve, aliás, acrescentar-se que, embora desnecessariamente, face ao que acima se deixou evidenciado, a autora não deixou de, em 06.02.2003, através da carta junta a fls. 40, interpelar os ora recorrentes para, até 30.04.2003, eliminarem os ónus que incidiam sobre o prédio, “nomeadamente a penhora existente”, e procederem à marcação da escritura pública de compra e venda. Mas, como salta à vista, tal interpretação não encontrou neles eco ou ressonância.
De todo o modo, a questionar-se a validade do entendimento que se deixou expresso quanto à valoração, como incumprimento definitivo, do comportamento dos réus recorrentes, e à consequente desnecessidade de interpelação para o cumprimento, sempre tal interpelação de 06.02.2003 teria o efeito previsto no n.º 1 do art. 805º (constituição dos réus em mora), e subsequentemente, logo que esgotado o prazo para o cumprimento – que é, no caso, um prazo razoável – a consequência fixada no n.º 1 do art. 808º (haver-se por incumprida a obrigação), e o direito da autora à resolução do contrato-promessa (art. 801º, do CC, tal como os dois preceitos anteriormente citados).
Obtemperam os recorrentes que o contrato-promessa estabelecia “um prazo fixo, concreto e definido para a conclusão das obras (a efectuar pela autora) e, concomitantemente, para a realização da escritura definitiva”, sendo que a responsabilidade do cumprimento desse prazo “corria exclusivamente por conta da autora”.
Querem eles significar que a escritura pública de celebração do contrato definitivo só deveria ser outorgada depois de concluída a construção do edifício a implantar pela autora; e, não tendo esta efectuado tal construção no prazo de 18 meses a partir do mês de Julho de 1999, isto é, até Janeiro de 2001, “se alguém incumpriu com o contrato prometido, esse alguém foi seguramente a autora que, não só não concluiu a obra no prazo acordado, como não o fez passados mais de dois anos do terminus desse prazo”.
No dizer dos recorrentes, “por força (do contrato-promessa), os réus não se vincularam a assinar nenhuma escritura definitiva, não se vincularam a expurgar os ónus e os encargos que incidiam sobre o prédio. Quando muito só o deveriam fazer depois de concluída a construção do edifício e depois, ou, pelo menos, na altura em que lhe fossem entregues as fracções que lhe pertenceriam de acordo com o contrato ”.

Esta argumentação é, manifestamente, de repudiar.
Em primeiro lugar, porque não decorre dos termos do contrato-promessa que a escritura pública de formalização do contrato definitivo só deveria ser outorgada depois de concluída a construção do edifício a implantar pela autora. Nem é crível que a autora se abalançasse a fazer obras da envergadura das projectadas sem ter antes adquirido a propriedade do prédio onde elas teriam lugar. O estabelecimento do prazo a que aludem os recorrentes inculca, como refere a sentença da 1ª instância, que as partes pretendiam realizar a escritura e as obras antes dos fins de Janeiro de 2001, e tanto assim que a autora apresentou, no ano de 2000, na Câmara Municipal de Felgueiras o projecto da obra a construir. E vale a pena atentar em que o cumprimento do dito prazo, reclamado pelos réus recorrentes, se mostra logo inviável, sem culpa da autora, uma vez que o alvará de licença de construção só foi aprovado em 02.02.2001.
Por outro lado, tal arrazoado não tem em conta os efeitos da penhora, incidente sobre o prédio desde 18.11.99, e que os recorrentes nunca lograram remover, como lhes competia fazer.
A penhora é uma apreensão judicial de bens que constituem objecto de direitos do executado.
Um dos seus efeitos jurídicos é a transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do executado sobre os bens penhorados. Com a penhora ocorre o esvaziamento desses poderes de gozo, que passam a ser detidos pelo tribunal, e por este exercidos, em regra, através de um depositário.
Mantendo embora a titularidade do direito sobre os bens penhorados, e o poder de dispor desse direito (6) , o executado perde os poderes de gozo que o integram: mantém, assim, a titularidade de um direito esvaziado de todo o seu restante conteúdo (7) .
Quando a penhora incide sobre o objecto corpóreo de um direito real, a transferência dos poderes de gozo implica a transferência da posse: cessa a posse do executado e começa uma nova posse, pelo tribunal, que a exerce através de depositário por si nomeado.
Assim sucedeu no caso em apreço, em que, no acto da penhora do prédio objecto da promessa de compra e venda, foi o aludido prédio entregue ao depositário nomeado pelo tribunal, Artur Mendes Adão, pertencendo-lhe, desde então, “a sua guarda e administração” (cfr., na certidão de fls. 196/204, o termo de penhora que constitui fls. 197).
É, assim, evidente, que a autora esteve sempre impedida de realizar quaisquer obras ou construções no prédio – e tal aconteceu porque os réus não removeram a penhora sobre ele incidente, de modo a recuperarem a posse de que foram privados em consequência deste acto executivo.
E, por isso, nem até fins de Janeiro de 2001 nem nos anos subsequentes podia ter a autora efectuado as obras projectadas, porque – não é demais repeti-lo – os réus, desapossados do prédio por via da penhora, não recuperaram a posse perdida, removendo a causa da perda, a penhora.
É, por isso, ineficaz e inane, em nada aproveitando aos recorrentes, o conteúdo das cartas que o réu marido e o mandatário dos recorrentes remeteram à autora, em 12.11.2002 e 24.01.2003, respectivamente (n.os 13 e 14 dos factos assentes), não produzindo quaisquer efeitos a interpelação constante da parte final desta segunda missiva.
Nela se expressa o seguinte:
Tomamos conhecimento de que V. Ex.ª (...) não deu resposta à interpelação formulada pelo meu cliente a coberto da carta (...) que lhe dirigiu em 12.11.2002.
E mais lamentamos já que V. Ex.ª, desde Fevereiro de 2002 que se comprometeu a proceder ao levantamento do competente alvará de construção para, dessa forma, dar início às obras.
E não podemos, finalmente, deixar de lamentar o facto de, contrariando o prometido, não ter V. Ex.ª constituído nem entregue ao m/cliente a prometida caução, possibilitando, assim, a outorga da escritura de compra e venda.
Atento o facto de V. Ex.ª, apesar de já terem decorrido dois meses, não ter satisfeito nenhuma das obrigações assumidas e não ter sequer dado uma explicação para tal inércia, somos forçados a comunicar a V. Ex.ª, se no prazo de 10 dias não for levantado o alvará de construção ou entregue a caução correspondente ao valor dos bens a que o m/cliente tem direito, o m/cliente perderá definitivamente interesse na manutenção dos termos do contrato vigente (...) e, como tal, considerará resolvido o mesmo, por culpa exclusivamente imputável a V. Ex.ª.
Ora, o levantamento do «alvará de construção» seria um acto inútil, posto que, como vimos já, a autora não podia levar a cabo quaisquer obras ou construções no prédio de quo agitur.
A referência à «prometida caução» tem relação com a matéria dos n.os 33 a 36 dos factos assentes.
Em resposta às mencionadas cartas, a autora enviou aos réus, em 06.02.2003, a carta de fls. 40, já acima aludida, e em que, depois de afirmar haver cumprido todas as obrigações a que estava vinculada, e que o mesmo não acontecia com os réus, “que não estão em condições de cumprir com o contrato prometido”, refere, a propósito da caução:
Acresce ainda que V. Ex.as vêm agora com novas exigências relativamente ao dito contrato-promessa, solicitando a emissão de garantia bancária. O que, para além de nunca ter sido referido, nem aquando das negociações nem aquando da outorga do mencionado contrato-promessa e respectivo aditamento entre nós celebrado, constitui uma alteração superveniente das condições contratuais fixadas. O que a sociedade “Fernantel – Construções, Limitada” não aceita.
Colhe-se da matéria de facto vazada naqueles n.os 33 a 36 que, em dado momento – presumivelmente com as duas aludidas cartas – os réus propuseram que a autora prestasse caução de valor correspondente à parte do preço em espécie do prédio prometido vender, propondo-se, como contrapartida, suspender a execução onde ocorreu a penhora do dito prédio, aí prestando caução, de modo a poder concretizar a venda à autora.
A autora recusou tal proposta, e tal recusa tem de haver-se por legítima, pois que, como os próprios recorrentes reconhecem, “no contrato-promessa não estava prevista a prestação de qualquer caução por parte da autora”.
Ademais, a suspensão da execução não envolveria a extinção ou o levantamento da penhora, pelo que mal se entende como poderia aquela arquitectada «engenharia processual» conduzir à concretização da venda, estabelecido que estava, no contrato-promessa, que o prédio seria vendido livre de quaisquer ónus ou encargos.
Resulta, pois, do exposto que, ao contrário do que os recorrentes sustentam, a autora não estava em mora desde Janeiro de 2001; e, inexistindo mora, não pode produzir-se o efeito pretendido pelos recorrentes com a interpelação aludida: a conversão da (inexistente) mora em incumprimento definitivo e culposo do contrato-promessa, por parte da autora.
O contrato-promessa não foi, efectivamente, cumprido; mas o seu incumprimento, definitivo e culposo, é exclusivamente imputável aos réus recorrentes.
O recurso está, por isso, condenado ao malogro.
4.

Nega-se, consequentemente, a revista.
Custas pelos recorrentes.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2008

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva
____________________
(1) Em transcrição literal.:
(2) Vem, na verdade, invocado o art. 208º n.º 1 da CRP, sendo certo que, por um lado, este artigo não tem números, e por outro, diz respeito ao patrocínio forense, nada tendo que ver com a matéria da falta de fundamentação das decisões judiciais.
(3) Na Rev. Leg. Jur., ano 121º, pág. 312.,
(4) Acórdão de 16.05.2000, publicado na Col. Jur.- Acs. do STJ, ano VIII, tomo II, págs. 72/74.
(5) In “Sinal e Contrato-Promessa”, 12ª ed., pág. 142..
(6) Sendo, todavia, certo que os actos de disposição ou oneração são ineficazes em relação à execução (art. 819º do CC).
(7) Cfr. LEBRE DE FREITAS, A Acção Executiva À Luz do Código Revisto, 2ª ed., pág. 214 e ss.