Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B332
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: LÁZARO FARIA
Descritores: COMPRA E VENDA
LOCAÇÃO FINANCEIRA
Nº do Documento: SJ2008051503327
Data do Acordão: 05/15/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário : O locatário tem legitimidade para exercer contra o vendedor todos os direitos relativos ao bem locado, incluindo o direito de anulação ou de resolução do contrato de compra e venda, nomeadamente, no caso do bem não satisfizer as características que haviam sido exigidas pelo locatário e garantidas pelo vendedor à data do contrato de compra e venda e que eram essenciais ao fim a que o bem se destinava.

A declaração de nulidade do contrato de compra e venda é oponível ao locador e acarreta, consequencialmente, a nulidade do contrato de locação financeira.

Os efeitos, para este contrato - consequência da declaração de nulidade do contrato de compra e venda - produzem-se, em relação ao locador, afectando as próprias “prestações e rendas recebidas”, devendo, mutuamente, ser restituído tudo o que houver sido prestado; os seus efeitos são, pois, retroactivos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1 –Relatório -

I-AA, intentou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário contra BB - Embalagem, SA, sociedade com sede no Porto e contra BCP Leasing, SA, com sede em Lisboa, pedindo a condenação da primeira ré a receber da 2ª Ré a máquina vendida e a restituir a esta o valor do preço recebido; a condenação da primeira ré no pagamento dos danos sofridos pelo Autor, por ter realizado o contrato em causa, em montante a liquidar em execução de sentença; a condenação da segunda ré a restituir-lhe o valor das rendas e demais prestações pecuniárias recebidas em execução do contrato de locação financeira e a condenação de ambas as rés no pagamento de juros de mora, à taxa legal, desde a data da sentença até à da restituição.

Para tanto alegou, em suma, que a primeira ré procedeu á venda de uma máquina de pesar e embalar lulas, as quais não tinha as características que lhe foram garantidas pelo vendedor.

A 2ª ré adquiriu tal máquina, a seu pedido, tendo com esta celebrado um contrato de locação financeira.

Citadas as rés, apenas o Banco Comercial Português, SA, que incorporou por fusão a BCP Leasing SA, veio contestar, defendendo-se por impugnação e dizendo que não responde pelos vícios da coisa locada.

O processo seguiu os seus legais termos.

Após audiência de julgamento, foi proferida sentença, pela qual, tendo-se entendido que o locatário não podia requerer a anulação, na medida em que não era nisso interessado, julgou a acção improcedente e absolveu as R.R. do pedido.

Inconformada com a decisão, o autor interpôs recurso de apelação, pedindo a revogação da decisão, por entender violados os artºs.913º, 905º, 908º, 287,ºnº1 do C. Civil e artº13º do Dec.-Lei nº149/95, de 24 de Junho.

Não foram apresentadas contra – alegações.

O Tribunal da Relação, apreciando o objecto do recurso, concedeu procedência parcial ao mesmo, e revogou a decisão recorrida, declarando:

– Anulado o contrato de compra e venda celebrado entre a 1ª Ré e a 2ª Ré;

– Extinto o contrato de locação financeira a partir da sua celebração (por força da rectroactividade da anulação).

E condenando:

– A 1ª Ré a receber a máquina objecto do contrato e a restituir o respectivo preço à 2ª Ré;

- A 2ª Ré a restituir ao A. o valor das rendas e demais prestações pecuniárias em execução do contrato, acrescida dos juros de mora desde a sentença até à data da restituição.

E absolveu:

– A 1ª Ré do pedido referente a prejuízos.

Interpôs, agora, recurso deste acórdão a 2ª Ré, o qual foi admitido como REVISTA.

Tendo alegado, apresentou as seguintes C O N C L U S Õ E S:

1ª) -A questão de direito que se discute neste recurso consiste em saber se o locatário de um bem que lhe está dado de locação financeira tem legitimidade para exercer contra o vendedor o direito de anulação ou resolução do contrato de compra e venda ou se este direito lhe está vedado por dispor unicamente da posição de locatário financeiro e não de comprador. E, na perspectiva de a ter, se as consequências desta invalidade operam apenas na direcção do vendedor condenado à anulação ou à resolução ou se operam também na direcção do locador em termos de este ficar constituído na obrigação de restituir as rendas recebidas por efeito do contrato anulado ou resolvido;

2a - O Acórdão recorrido, considerando que o locatário tem direito de acção contra o vendedor para dele obter a anulação ou a resolução do contrato de compra e venda do bem dado de locação financeira, chegou a este lastimável resultado: condenou o Banco a restituir à Autora o montante das prestações que recebeu em cumprimento da locação financeira de um bem que o Banco comprou por escolha da própria autora - o que fez sob o pretexto de que, sendo a compra e venda anulada, extinta se tem de ter, por força da retroactividade da anulação, a locação financeira;

3a - A questão que aqui verdadeiramente se coloca, não é tanto a de conceitualmente e por mera raciocínio de pura lógica formal, chegar à obrigação de restituição das rendas recebidas como mera consequência do efeito retroactivo da anulação ou resolução da compra e venda, senão a de saber, à luz do regime jurídico positivo da locação financeira, tomado na sua dimensão material e não formal, se a solução do caso é ou não a da restituição a cargo do locador - ele que só interveio na compra e venda para efeito de locar à Autora o bem que esta escolheu e que escolheu para ser comprado onde disse - ou seja, no estabelecimento da lª Ré;

4a - Se atentarmos no regime legal da locação financeira, uma de duas: ou o locatário, como se refere na sentença da 1ª Instância e, como o ensina Rui Pinto Duarte, não goza do direito de obter a anulação ou de exercer a resolução do contrato de compra e venda e a questão prática não se coloca, ou tem direito a fazê-lo, mas os efeitos retroactivos da anulação e da resolução são inoponíveis em relação ao locador.

5ª Se, como decorre da própria definição legal do contrato de locação, é o (futuro) locatário quem escolhe o bem e a entidade onde é comprado, não restando ao (futuro) locatário outra coisa que não seja comprar o que aquele quer e onde quer - é de todo em todo inaceitável que o locador seja obrigado a ter de restituir as rendas por ele recebidas, sendo o contrato anulado ou resolvido a pedido do locatário;

6a Se a lei protege expressamente o locador, pondo-o a coberto da obrigação de responder perante o locatário pelos vícios da coisa locada (artº12° do DL 149/95 de 24 de Junho) e se o locatário, exactamente por os não poder exercer contra o locador, pode exercê-los contra o vendedor, está bom de ver que a lei não pode estar a defendê-lo do menos (responder pelos vícios da coisa locada) e estar a expô-lo ao risco do máximo (ter de restituir ao locatário as rendas que deste recebeu em consequência da anulação ou resolução de um contrato cuja escolha do bem e cuja escolha do vendedor, não foi sua, mas do próprio beneficiário da restituição)

7a O acórdão recorrido inspira-se num tipo de pensamento jurídico de matriz exclusivamente formal ou de pura lógica dedutiva: se o contrato de compra e venda é nulo ou é resolvido, não há senão que tirar as consequências lógicas da retroactividade desta declaração e elas são a obrigação de responder pela restituição das rendas a cargo do locador por não se poder manter direito aquilo que se recebeu por causa que foi anulada ou, o que é o mesmo, resolvida;

8ª Este entendimento esquece, como ensina Antunes Varela que "ao conceito naturalístico da nulidade (quod nullum est nullum producit effectum) e à própria concepção de invalidade do negócio como um direito de crítica se sobrepõem os conceitos normativos (ou valorativos) da nulidade, da anulabilidade ou da inoponilidade, perfeitamente amoldáveis, não apenas pelas suas causas mas também pelos seus efeitos, à extrema variedade das situações jurídicas a que se aplicam";

9a Mesmo a haver direito, por parte do locatário, a obter ele próprio a anulação ou a resolução do contrato de compra e venda, nem por isso esta declaração produz automaticamente efeitos em relação ao locador: é que, do ponto de vista das consequências daquela declaração de anulação ou resolução o que releva são as consequências normativas e não as consequências lógicas e, do ponto de vista daquelas está obviamente excluído que seja o locador, que comprou uma coisa escolhida pelo locatário e à pessoa que o locatário indicou, para efeito de regresso, a ter de o reembolsar das rendas pagas com o risco, a correr contra si, de o vendedor estar insolvente

10a A entender-se que não é possível, ao nível dos efeitos da declaração de nulidade ou de resolução, evitar a solução, por arrastamento, da obrigação de restituir as rendas a cargo do locador - porque esta solução é tão contrária ao espírito legislativo que inspira o regime jurídico da locação financeira - que a solução seria então a de negar ao locatário, como o fez a sentença da 1ªinstância, o direito de pedir a declaração de invalidade, tal como é defendido pelo Dr. Rui Pinto Duarte, citado na decisão recorrida.

11 a O acórdão recorrido, decidindo como decidiu, violou o disposto nos art.s 1°, 12° e 23° do DL 149/95 de 24 de Junho e, ainda, o art. 289º do Cód. Civil (efeitos da anulação).

Pede a revogação do acórdão.

Em contra – alegações, pede – se a confirmação do decidido.

2 - Apreciando e decidindo:

Fundamentação –

- De Facto:

O Banco Comercial português incorporou por fusão a sociedade BCP Leasing; SA;

-A 2ª ré adquiriu por indicação do autor os seguintes bens:

a)Pesadora Pesaprom-2000, Mod. WEG 3M, totalmente em aço mox (Código PES 16000);

b) Pantalha de Control Táctil (Código PES 90000);

c) Nivelador de Volume de Produto em lnox (Código 00020);

d) Elevador de Tapete intralox. Chassis em Inox (Código ELE 07000);

e) Suporte, andaime e escada para para weg. 3 em inox (Código PES 0001);

f) Etiquetadora para Conectar Pantalha Táctil, para imprimir os pesos reais ~ da pesadora (Código ETI 000000);

g) Embaladora vertical Fx x 250 x 350. Soldadura por impulso. Fabricada em aço inox (Código VER 01000);

h) Corpo da Célula Fotoeléctrica (Código 000000001)

I) Termo impressora intermitente. Área de impressão 35 x 110 (Código TER 01000);

j)Versão electrónica com microprocessador (Código VER 0000 I);

k) Tapete de saída das bolsas de 300 MM de largura (Código CIN 01000);

l) Formato completo para 500 gr. (Código VEROI001);

m) Formato completo para 1.000 gr. (VER 01001);

n) Placa electrónica de vibrador;

o) Placa electrónica de célula de peso; - documento n. ° 1 (2).

-Uma vez adquiridos, a 2ª ré deu-os em locação ao autor em regime de locação financeira, através do contrato nº 200210463;

-o Autor recebeu o aludido equipamento, tendo a BCP Leasing pago à 1ª Ré a totalidade do preço;

-o Autor vem pagando pontualmente à segunda Ré o montante das rendas que se vão vencendo mensalmente, referentes ao aludido contrato de locação financeira;

-o autor e a 1ª ré, em 31 de Agosto de 2002 acordaram entre si o primeiro comprar e a 2ª vender-lhe o material supra descrito em 13, pelo valor líquido de € 103.196 euros;

-o equipamento assim descrito nas suas partes componentes é uma máquina destinada a pesar e embalar automaticamente lulas recheadas;

-o Autor exerce em nome individual a indústria de fabrico de lulas recheadas;

-A máquina adquirida destinava-se a que o trabalho de pesagem e embalagem dos produtos fabricados passasse a ser feito de forma automática e não manualmente como até aí;

-o Autor comunicou que necessitava de uma máquina que serviria para embalar produtos com sacos que, após embalamento, deveriam pesar, respectivamente, 5.000 gramas, 3.000 gramas e 2.500 gramas;

-o Autor forneceu à primeira Ré toda a informação sobre as características do seu produto, incluindo o tipo de saco usado, o tamanho, peso e temperatura;

-Porque a máquina que foi exibida ao autor não efectuava pesagem e embalamento para as quantidades, e respectivos formatos de embalagem, de 5.000, 3.000 e 2.500 gramas, mas apenas de 500 gramas, o autor reiterou à primeira Ré serem aqueles os pesos e formatos pretendidos;

-Tendo esta assegurado ao Autor que a máquina em causa era hábil à pesagem e embalamento de quantidades de produto pesando 5.000, 3.000 e 2.500 gramas;

-Tendo sido garantido que a máquina estava estudada para ser adaptada a qualquer quantidade, pelo que era facilmente adaptável para os formatos e pesos pretendidos pelo Autor;

-A máquina remetida ao Autor não estava concebida para pesar e embalar aquelas quantidades de produto, pelo que não podia executar esse trabalho;

-Facto este que era do conhecimento da primeira Ré.

- De DIREITO:

A) – Âmbito do Recurso:

O objecto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões – artº.s 684º, nº 3 e 690º nº1 do C. P. Civil – das alegações da recorrente.

Dispõe aquela norma que:” Nas conclusões das alegações, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”

B) - Questões suscitadas:

- O locatário não goza do direito de anulação ou de exercer a resolução do contrato de compra e venda; a tê-lo, os efeitos rectroactivos da anulação e da resolução são inoponíveis em relação ao locador.

- Não respondendo o locador pelos vícios da coisa locada (artº 12º do dec-lei nº 149/95 citada) - defesa do “menos”- não pode expô-lo sob o risco do “máximo”- restituição de prestações que recebeu”.

- Há que atender não só às “ causas “ da nulidade, anulabilidade ou da inoponibilidade…, mas também aos seus efeitos; …Os seus conceitos normativos (ou valorativos) são moldáveis à extrema variedade de situações jurídicas a que se aplicam.

- Destes conceitos deve resultar que o locador, que comprou a “coisa” escolhida pelo locatário, e à pessoa por este indicada, não deve – tendo de reembolsar o locatário das rendas já recebidas – ser colocado sob o risco, a correr contra si, de o vendedor estar insolvente para efeito de regresso.

- Caso se entenda que, por arrastamento, se torna inevitável a restituição das rendas recebidas pelo locador, então – porque esta solução é tão contrária ao espírito legislativo que inspira o regime jurídico da locação financeira – seria de negar ao locatário o direito de pedir a declaração de invalidade, como decidiu o tribunal de 1ª instância.

***

C) –

Resulta dos factos provados e do art lº do DL 149/95 de 24/6 que, entre o autor AA e a 2ª ré, BCP- Leasing, foi celebrado um contrato de locação financeira.

Este é " o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder á outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados".

O seu objecto foi uma máquina destinada a pesagem e embalagem automática de produtos (lulas) da actividade comercial do autor.

Entre a 1ª ré, BB - Embalagens, SA, vendedora, e a 2ª, BCP -Leasing, compradora, foi celebrado um contrato de compra e venda, tendo como objecto a referida maquina, com o fim de, posteriormente, ser locada ao autor, por esta.

O regime da locação financeira foi instituído pelo Dec.Lei 171/79 de 6/6; e, de acordo com o seu preâmbulo, com o objectivo de essencial de "...financiamento rápido que faculta, em função das garantias que oferece aos seus intervenientes".

"O contrato de locação financeira é, em si mesmo, uma forma de concessão de crédito, e, em termos mais prosaicos, diríamos que o negocio das sociedades de locação financeira não é a venda deste ou daquele tipo de produtos, a credito, mas antes o próprio credito."-Alguns Aspectos do Contrato de Compra e Venda a Prestações e Contratos Análogos. Teresa Anselmo Vaz, pág. 90”.

O vendedor é” terceiro” relativamente ao atrás contrato de locação; mas a relação económica de leasing configura-se de forma triangular entre o vendedor, o locador e o locatário.

“Ele não só integra a operação global (de estrutura triangular) tida em vista, como também estabelece relações de facto com o eventual locatário, sendo que nalgumas circunstâncias este último pode mesmo reagir junto de si (v. g., no caso de desconformidade da coisa com o contrato) - vide Man. de Loc. Financeira, pág.64, de Gravato Morais.

A operação global consistiu – como resulta dos factos provados – na compra de uma máquina, pela 2ª ré à 1ª, a pedido do A., que a escolheu, e que se destinava a ser-lhe dada em locação por esta.

E tendo o A. fornecido toda informação à vendedora sobre as características que a máquina deveria ter, e garantidas estas por aquele, veio a confirmar-se, afinal, não possuir a máquina tais características; e estas eram fundamentais ao fim a que o A., locatário, a destinava.

O Tribunal da Relação, concluindo ter havido dolo por parte da vendedora – “ a conduta da 1ª ré integra mesmo os requisitos do dolo”- refere – anulou o contrato de compra e venda celebrado entre ambas as rés, bem como declarou extinto o contrato de locação financeira, a partir da sua celebração (por força da rectroactividade da anulação).

****

E aqui surge

a) - 1ª Questão suscitada no recurso:

Tem o locatário legitimidade para exercer, contra o vendedor, o direito de anulação ou de resolução do contrato de compra e venda, ou este direito está-lhe vedado por dispor unicamente da posição de locatário financeiro?

Sendo o contrato é anulável, afigura-nos que o locatário não pode deixar de poder invocar, perante o vendedor, todos os direitos do comprador, incluindo o direito – como nos autos – de resolução e anulação do contrato de compra e venda.

- Não é pacífica esta “questão” – há até escritos em diferentes sentidos – negativo, (vide Pinto Duarte, in “ Escritos sobre Leasing”, pg. 57) - outros há de sentido contrário, defendendo que o locatário pode usar todos os direitos do normal adquirente, todos os instrumentos de tutela deste, incluindo o direito de resolução e de anulação – vide Calvão da Silva in “Locação Financeira e Garantia Bancária, pg.24 e Gravato de Morais, in Obra atrás citada, pg.136, onde , citando também Leite de Campos, se refere ,em nota, que “o locatário poderá exercer qualquer acção…contra o fornecedor, por incumprimento deste, nomeadamente….para obter a rescisão da venda”.

E ainda – escreve-se na mesma Obra de G. Morais, que:“ A transferência para o locatário do exercício dos direitos do comprador envolve a transmissão dos respectivos poderes processuais ligados à situação jurídica substantiva”- pg.131.

Entende-se da mesma forma.

Aliás, tal resulta do disposto no artª13º do Dec.Lei 149/95, de 26 de Junho, que dispõe: “O locatário pode exercer contra o vendedor ou o empreiteiro, quando disso seja caso, todos os direitos relativos ao bem locado ou resultantes do contrato de compra e venda ou de empreitada”.

A lei refere “todos os direitos”.

Na verdade, vista e apreciada a situação, sob a vertente “operação global”, atrás referida, conclui-se que o contrato de locação financeira foi celebrado em sequência de um contrato de compra e venda que o A. não pôde, ou não quis, celebrar com a 1ª ré, fazendo neste intervir a 2ª, com vista e face àquele contrato de locação.

É que esta faz a compra, porque vai dar o bem em locação; o objectivo daquela não é a aquisição”per se”, mas visa obter o meio sem o qual não poderia celebrar - se o contrato de locação financeira; este sim, o contrato do âmbito, do cerne da sua actividade.

Mas, sendo esta interveniente em dois contratos, estes criam-lhe interesses contrapostos; por um lado, como compradora, fica sendo titular dos correspondentes direitos, entre os quais o de poder pedir a anulação ou a resolução do contrato de compra e venda; por outro, sendo interveniente locadora, tem interesse na manutenção do contrato de locação financeira.

Assim sendo, que meios de defesa, para situações como a “subjudice”, restariam ao locatário, não fora o direito de, “como que substituindo-se ao comprador”, pedir a resolução do contrato de compra e venda?

Se à locadora interessa a manutenção do contrato de locação financeira - o qual pressupõe a existência de um contrato de compra e venda, válido – seria de esperar, da locadora/compradora, qualquer acção para anular a compra e venda?

Temos por certo que não.

Como esperar que fosse a locadora a pedir a resolução do contrato de compra e venda, ainda que sabendo que a máquina de que cedeu o uso, afinal, não serve para o uso pretendido, ainda que sem culpa do locatário, se lhe interessa a manutenção do contrato de locação?

Conclui-se, assim, que entre os dois contratos existe um “forte entrelaçamento” a que se não pode deixar de atender.

E dados os contraditórios interesses atrás referidos na pessoa da locadora, não nos suscita dúvidas que os direitos do locatário só estão suficientemente protegidos, reconhecendo-se-lhe o direito de poder usar “todos” os direitos do comprador e, nomeadamente, o usado na presente acção, como dispõe o artº13º do cit. Dec-Lei.

Aliás,” sendo o locatário financeiro aquele que goza da disponibilidade material da coisa e que corre os riscos inerentes à qualidade de proprietário (entre outros, o risco de perda ou deterioração do bem locado), seria contraditório que o substancial interessado se visse coarctado da possibilidade de se dirigir ao vendedor (já que não pode demandar o locador, por efeito do artº12º do D.L.149/95)” – Obra citª.- Prof. G. Morais - pg.132.

E nem, neste caso, os seus (da 2ª ré) interesses, nomeadamente processuais, foram postergados, porquanto, foi também demandada, tendo, na acção, como fez, podido defender os seus direitos.

***

E a tal não obsta o disposto no artº12º do Dec-Lei nº149/95 de 26 de Junho.

Este dispõe que:” O locador não responde pelos vícios do bem locado ou pela sua inadequação face aos fins do contrato, salvo o disposto no artº 1034º do C. Civil.”

Esta norma apenas nos diz que o locatário não pode opor ao locador os vícios do bem locado ou a sua inadequação aos fins do contrato, admitindo até excepções.

Visando “uma maior certeza dos direitos do locador e locatário, justiça na relação”, entre ambos – vide preâmbulo do Dec-Lei – a referida inoponibilidade justifica-se, porquanto, foi o locatário quem escolheu o bem locado, foi comprado pela locadora a seu pedido e à pessoa por este indicada.

Por isso, na relação (directa) “ locatário – locador “, aquele está impedido legalmente de opor a este os referidos vícios, salvo nos casos aí previstos e que têm a ver com o disposto no artº 1034º do C Civil.

Mas não é este o caso dos autos.

O conteúdo desta norma perde relevância no caso “subjudice”; na verdade, a presente causa não incide sobre questão que se situe naquela “relação directa” atrás referida. Incide antes sobre o “comportamento doloso” do vendedor, na celebração do contrato de compra e venda, pondo em causa a própria validade deste, embora a decisão proferida, pelos seus especiais efeitos, afecte, necessariamente, como se verá, a posição contratual do locador. A assim não ser, tal implicaria – injustificadamente - uma redução dos direitos concedidos ao locatário pelo artº13ºdo mesmo Dec-Lei, já atrás reproduzido, quando aí se refere “...todos os direitos relativos ao bem locado…”, sendo que “todos” implica a inexistência de excepções.

Acresce que esta interpretação encontra suporte no art. 9º do C. Civil, já que é aquela que não só está de acordo com a letra da lei, como ainda se encontra condicente com o pensamento legislativo que esteve subjacente à feitura do respectivo diploma legal.

Por isso, nesta vertente, conclui-se, como atrás se disse, pela legitimidade para o exercício, pelo locatário, do direito nesta acção exercido.

b) – 2ª Questão:

Tendo o locatário exercido o direito de anulação do contrato de compra e venda e obtido, nesta parte, ganho de causa, que implicações tem tal decisão no contrato de locação financeira, e, nomeadamente, nas prestações recebidas?

Já atrás se referiu que este contrato - como no caso - pressupõe um contrato de compra e venda válido e eficaz, sendo o bem dado em locação também o seu objecto.

Aquele é a “pedra basilar” deste último. Se, por anulação ou extinção, passa a inexistir o primeiro dos contratos,”ab origine”, então tudo se passa como se o bem locado nunca tivesse sido comprado, e, por isso, sido propriedade da compradora/locadora.

Se em virtude da declaração de nulidade ou de anulação do contrato de compra e venda tem de ser restituído tudo o que tiver sido prestado, com efeito retroactivo (art. 289º nº 1 do C. Civil), e assim foi também decidido, e sendo este o suporte, como que a dita “pedra-base” do contrato de locação financeira, então, esta consequência afecta necessariamente, e com as mesmas consequências, este.

A anulação do contrato de compra e venda origina, assim, a consequente anulação do consequente contrato de locação – vide, neste sentido, também Calvão da Silva, in Locação financeira e Garantia Bancária, p. 24 e Direito Bancário, Coimbra 2001, pág. 426.

O locador - como se escreve no acórdão recorrido – “por forçada anulação, deixa de ser proprietário jurídico do bem e, por isso, não pode assegurar o seu gozo, como se obrigou, de acordo com o art. 9º, nº 1, al.b) do citado Dec. Lei…”Por isso, fica sem justificação o financiamento. E aplicando o mesmo regime - art.289º, nº1 do C. Civil – “ há que restituir mutuamente tudo o que tiver sido prestado, cessando, retroactivamente, ou seja, desde a celebração do contrato, os seus efeitos”.

Por isso é que, mesmo tendo em conta a especial natureza do contrato aqui em causa - como que tripartido – temos por certo que, apesar do disposto no art.12º do citado Dec. Lei nº 149/95, neste caso, esta reserva não encontra justificação.

Acresce que, como atrás se disse, se, por um lado, a locadora tem interesse – não sendo este de somenos - em que o contrato de compra e venda não sofra de qualquer vício que afecte a sua validade, dado ser aquele ser a “pedra-base” deste, por outro, aquele dito "entrelaçamento" é suficientemente forte para que se não deixe de fora a compradora das vicissitudes ocorridas com o contrato de compra e venda.
Claro que, não se desconhece que foi o locatário quem escolheu o bem; e que foi comprado à pessoa indicada por ele. Mas este não tem culpa da conduta dolosa da pessoa que – note-se - também contratou com a locadora; e, por isso, esta tem todo interesse, embora do mesmo comportamento também não tenha qualquer culpa, em que essa pessoa tivesse, também com ela, agido de boa-fé.
E não agiu.
Ocorre que, de acordo com o disposto no art. 9º do citado Dec. Lei 149/95, nº1, sua al. b), é “obrigação do locador: - Conceder o gozo do bem para os fins a que se destina”.
Ora, tendo-se em conta que, no Dec-Lei 171/79, de 06 de Junho, seu art. 19º, al. b) – anterior legislação - apenas se dispunha que o locador estava obrigado a “ conceder o gozo da coisa ao locatário pelo prazo do contrato”, nada se referindo quanto a esses fins, e sendo certo que, no seu art. 20º, já se dispunha nos mesmos termos do actual art. 12º, tal mostra que, com a actual legislação, o legislador comprometeu o locador “com os fins a que a coisa se destina”, o que – como se vê - não ocorria com a anterior legislação.
E, a ser assim, como se entende ser, não pode o locador, actualmente, colocar-se “tão alheio” aos fins para que dá a coisa em locação, como se tal em nada lhe competisse, sendo certo que, no caso, nem a própria locadora propiciou o gozo do bem para o fim a que o mesmo se destinava.
Claro que, não se desconhece que foi o locatário quem escolheu o bem; e que foi comprado à pessoa indicada por ele, pela locadora. Mas se esta não tem culpa da conduta dolosa da pessoa com quem contratou – note-se - também o mesmo se passa com o locatário; e, por isso, também aquela tem todo interesse em que o vendedor proceda de boa-fé quer com ela quer com locatário, não podendo ser alheia, nomeadamente, aos vícios que possam afectar a validade do contrato de compra e venda.
Eis porque - quanto à devolução das rendas vencidas, mesmo as recebidas, também aqui em causa - a obrigação de o fazer, resulta da própria nulidade do contrato, já atrás referida - art° 289° do C. Civil.
c) - Outras Questões:
E a tal não obsta a eventual colocação da 2ª Ré sob possível risco de insolvência da 1ª R, em eventual direito de regresso. A verificar-se a dita insolvência, refere-se, que quer o autor/locatário quer a 2ª Ré, compradora/locadora, ficarão ambos em igual situação­, resultado da conduta dolosa do vendedor.
É que, se a situação foi danosa para a 2ª Ré, que não pôde propiciar ao locatário o uso do bem locado para os fins a que se destinava, igualmente o foi para o locatário, que, afinal, não usufruiu desse mesmo bem.
Não vemos, por isso, que se justifique, no caso “subjudice”, qualquer especial protecção da locadora, perante tal risco.
Acresce que este risco (de insolvência) não pode deixar de se considerar inerente à vida comercial e industrial; é como que uma faceta normal da vida negocial, a que todos os agentes - embora de acordo com o diferente grau de diligência de cada um no seu desenvolvimento - ficam sujeitos.
*****
Quanto ao invocado "espírito legislativo que inspira o regime jurídico da locação financeira", o mesmo não se nos afigura de protecção ao locador.
A protecção deste, se é que de “protecção” se pode falar, está - parece - na medida adequada. Não pode, ou não deve, reconhecer-se -lhe mais direitos do que a lei prevê.
Na verdade, o disposto no art. 12° não é incompatível, nem redutor, do conteúdo da norma do art.13°, ambos do Dec-Iei n° 149/95.
E tendo em conta também o disposto no seu art. 9º nº 1, al. b), estas normas, interpretadas em conjunto, tendo em conta os referidos interesses, nomeadamente, quando contrapostos, que em dado caso podem mesmo ocorrer, permitem, tendo em conta também as suas circunstâncias, encontrar a “justa solução”.
Face ao exposto, neste caso, esta não consiste em negar ao locatário o direito de pedir a declaração de invalidade do contrato de compra e venda, como pretende a recorrente, mas precisamente o seu contrário; nem deixar de lhe reconhecer o direito de receber, em devolução, o que pagou, por força do contrato de locação financeira, nos termos em que o Tribunal recorrido decidiu.
3 - Conclusão: - a) O locatário tem legitimidade para exercer contra o vendedor todos os direitos relativos ao bem locado, incluindo o direito de anulação ou de resolução do contrato de compra e venda, nomeadamente, no caso do bem não satisfizer as características que haviam sido exigidas pelo locatário e garantidas pelo vendedor à data do contrato de compra e venda e que eram essenciais ao fim a que o bem se destinava.

b) A declaração de nulidade do contrato de compra e venda é oponível ao locador e acarreta, consequencialmente, a nulidade do contrato de locação financeira.

c) Os efeitos, para este contrato - consequência da declaração de nulidade do contrato de compra e venda - produzem-se, em relação ao locador, afectando as próprias “prestações e rendas recebidas”, devendo, mutuamente, ser restituído tudo o que houver sido prestado; os seus efeitos são, pois, retroactivos.

4-Face a todo o exposto:

Improcedem, pois, os fundamentos invocados no recurso. E, em consequência:

- Acorda-se em negar revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 15 de Maio de 2008

Lázaro de Faria (relator)

Salvador da Costa

Ferreira de Sousa