Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3850/09.9TBVLG-D.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: EXONERAÇÃO
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/21/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1. O pedido de exoneração do passivo restante tem como objectivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao indivíduo, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito do processo de falência.
2. Do facto de o devedor se atrasar na apresentação à insolvência não se pode concluir imediatamente que daí advieram prejuízos para os credores.
3. O devedor não tem que fazer prova dos requisitos previstos no nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 09.10.23, no Tribunal Judicial da Comarca de Valongo – 2º Juízo – AA e esposa BB vieram apresentar-se à insolvência.
Nesse requerimento, formularam também o pedido de “exoneração do passivo restante”.

Em 10.02.23, foi proferida decisão a admitir liminarmente este pedido porque se afigurava “inexistir qualquer elemento nos autos que nos possa levar a concluir que os insolventes tenham agido por forma a prejudicar os credores”.

O credor Banco ................. SA apelou, sem êxito, pois a Relação do Porto, por acórdão de 10.06.14, confirmou a decisão recorrida.

Novamente inconformado, o referido credor deduziu a presente revista - que foi recebida por se verificar a hipótese excepcional referida na 2ª arte do nº1 do artigo 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas - apresentando as respectivas alegações e conclusões.
O recorrido contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) - Prejuízos
B) – Ónus dos requerentes.

Os factos

Os factos a ter em conta para a decisão das questões propostas são os seguintes:
1. Em 09.10.23, AA e esposa BB vieram apresentar-se à insolvência.
2. Nesse requerimento, formularam também o pedido de “exoneração do passivo restante”, invocando, além do mais, que “não causaram quaisquer prejuízos aos credores com as suas actuações”.

Os factos, o direito e o recurso

A) - Prejuízos

No acórdão recorrido, aquando da pronúncia sobre o ou os requisitos para o indeferimento liminar do pedido referidos na alínea d) do nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – únicos em causa na apelação – entendeu-se que
- estava ultrapassado o prazo de seis meses a que se aludia na referida alínea, na medida em que “tendo como referência a cessação de pagamentos por parte dos recorridos constata-se que o último evento com apetência para o efeito se reporta a 2.4.2009 (vencimento do mútuo com o M.................., SA / o incumprimento dos demais créditos diz respeito a períodos de tempo anteriores) pelo que, considerando que o pedido de insolvência deu entrada em 23/10/2009, mostra-se ultrapassado o período de seis meses a que alude o supra citado art. do CIRE (que expirou a 3/10/2010).”;
- não havia “qualquer perspectiva séria de melhoria da situação económica dos recorridos, o que era da autora do conhecimento destes”;
- o não respeito pelo prazo de seis meses não causou prejuízo aos credores, porque o único facto que se podia invocar como constituindo prejuízo - consistente em que com o atraso da apresentação à insolvência se terem vencido juros sobre as quantias em dívida e assim avolumar-se esta, com prejuízo para os credores - não se pode considerar prejuízo, uma vez que os juros constituíam apenas uma forma de o credor ser ressarcido
pelo que, sendo os requisitos cumulativos e não se tendo provado a existência desse prejuízo, não era caso de indeferimento liminar da pretensão do requerentes.

A recorrente entende que “da omissão do dever de apresentação atempada à insolvência, como sucedeu “in casu” resulta por demais evidente o prejuízo para os credores na medida em que, não se apresentando tempestivamente à insolvência, os devedores obstaram à estabilização do seu passivo e contribuíram para o agravamento do prejuízo dos credores e um agravamento da sua dívida, pelo menos com o avolumar dos juros.
Cremos, no entanto, que não tem razão.

O Capítulo I do Título XII do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, artigos 235º a 248º, integra um conjunto de normas que estabelece e regula os termos em que um devedor pessoa singular pode obter a exoneração do passivo restante.

Este fresh start previsto apenas para as pessoas singulares dotadas de “boa fé” que se encontrem em situação de insolvência existe e tem tido sucesso em países como os Estados Unidos e a Alemanha, nos quais o legislador português terá ido buscar inspiração.

É crucial, no entanto, entender, que a exoneração do passivo restante não tem como principal fim a satisfação dos credores da insolvência, tal como o previsto no artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – embora, reflexamente, não esqueça por completo esses interesses, na medida em que são impostos apertados limites para a sua admissão.

Esta medida, específica das pessoas singulares, tem como objectivo primordial conceder uma segunda oportunidade ao indivíduo, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito do processo de falência.
Ou, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda “in” Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, em anotação ao artigo 235º, a exoneração do passivo restante “traduz-se na libertação definitiva do devedor quanto ao passivo que não seja integralmente pago no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento nas condições fixadas no incidente.
Daí falar-se do passivo restante”.

No nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem-se os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Os requisitos impostos destinam-se a decidir liminarmente sobre se o devedor não merece aquela segunda oportunidade, praticando actos que revelam, em relação à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência uma conduta ilícita, desonesta, pouco transparente e de má fé.

Tendo em conta o que consta das conclusões do presente recurso e o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 684º do Código de Processo Civil, apenas está aqui em causa o fundamento de indeferimento liminar previsto na alínea d) do refrido nº1 do artigo 238º e neste apenas a parte em que se exige que do incumprimento do devedor haja prejuízo para os credores.


Nos termos do disposto na referida alínea d) do nº1 do artigo 238º “ o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: (…) o devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir quaisquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica”.

São três os requisitos previstos na transcrita alínea d) do nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, cuja verificação cumulativa impede a concessão do pedido de exoneração do devedor:
a) – a não apresentação à insolvência ou apresentação à insolvência para além do prazo de seis meses desde a verificação da situação de insolvência;
b) – a existência de prejuízos decorrentes desse incumprimento;
c) – o conhecimento de que não havia qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica.

Está aqui em causa, como se disse, apenas o requisito enunciado em segundo lugar.
Será que do simples facto de o devedor se atrasar na apresentação à insolvência se pode concluir que daí advieram prejuízos para os credores?
Cremos bem em que não.
Por duas razões fundamentais.

A primeira, resulta do princípio, ínsito nº3 do art. 9º do Código Civil, de que “na fixação do sentido e alcance da lei, o interprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados”.
Ora, se se entende que pelo facto de o devedor se atrasar a apresentar-se à insolvência resultavam automaticamente prejuízos para os credores, então não se compreendia por que razão o legislador autonomizou o requisito de prejuízo.
Só se compreende esta autonomização se este prejuízo não resultar automaticamente do atraso, mas sim de factos de onde se possa concluir que o devedor teve uma conduta ilícita, desonesta, pouco transparente e de má fé e que dessa conduta resultaram prejuízos para os credores.
Assim o exige o pressuposto ético que está imanente na medida em causa.

Mas - e esta é a segunda razão – de qualquer forma, o atraso na apresentação à insolvência não pode causar prejuízo aos credores com a invocação de que os juros se avolumam na medida em que continuam a ser contados até àquela apresentação.

Na verdade, o regime estabelecido na primeira parte do nº2 do artigo 151º no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência, que estabelecia a cessação da contagem dos juros “na data da declaração de falência” deixou de existir com o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, passando os juros a ser considerados créditos subordinados, nos termos da alínea b) do nº1 do artigo 48º deste Código – neste sentido, ver Carvalho Fernandes e João Labareda “in” ob. cit., em anotação ao artigo 91º.

Quer dizer, actualmente e em face do regime estabelecido no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, os créditos continuam a vencer juros após a apresentação à insolvência, pelo que o atraso desta apresentação nunca ocasionaria qualquer prejuízo aos credores.
Dito doutro modo: se no regime anterior, estabelecido no Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência se podia pôr a hipótese de quanto mais tarde o devedor se apresentasse à insolvência, mais tarde cessaria a contagem de juros, com o consequente aumento do volume da dívida, no regime actual, que se aplica ao presente processo, tal hipótese não tem cabimento, uma vez que os credores continuam a ter direito ao juros, com a consequente irrelevância do atraso da apresentação à insolvência para o avolumar da divida.

Concluímos, pois, que bem se andou no acórdão recorrido em considerar que o atraso na aposentação à falência não provocou prejuízos aos credores.

B) – Ónus dos requerentes

Entende o recorrente que “é ao requerente que cumpre alegar e demonstrar os factos concretos que, encandeados entre si, permitam concluir que o incumprimento do dever de apresentação à insolvência não teve qualquer incidência na sua situação económica, nem prejudicou os seus credores, pois que tal prejuízo presume-se no caso em que o requerente há muito não tem bens em número e valor susceptível de satisfazer as suas dívidas”.
Cremos que também não tem razão.

É que e conforme resulta do disposto nonº3 do artigo 236º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o devedor pessoa singular tem apenas, no requerimento de apresentação à insolvência em que formula o pedido de exoneração do passivo restante, de “expressamente declarar” que “preenche os requisitos” para que o pedido não seja indeferido liminarmente.
Ou seja e como refere Assunção Cristas “in” Exoneração do Devedor pelo Passivo Restante” – Themis/Revista de Direito/Setembro de 2005, página 168 “o devedor pessoa singular tem o direito potestativo a que o pedido seja admitido e submetido à assembleia de apreciação do relatório, momento em que os credores e administrador da insolvência se podem pronunciar sobre o requerimento (artigo 236º/1 e 4)”.

Isto significa, em nosso entender, que o devedor não tem que apresentar prova dos requisitos.
Até porque, bem vistas as coisas, as diversas alíneas do nº1 do artigo 238º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas estabelecem os fundamentos que determinam o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Não constituem factos constitutivos do direito do devedor de pedir esta exoneração.
Antes e pelo contrário, constituem factos impeditivos desse direito.
Nesta mediada, compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua prova – cfr. nº2 do artigo 342º do Código Civil.

Um afloramento deste entendimento pode encontrar-se na alínea e) do referido artigo 238º, quando aí se prevê o caso de para a indiciação da existência a culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência e no caso de não constarem já do processo, os elementos serem fornecidos pelos credores ou pelos administrador da falência.

No caso concreto em apreço e em relação à questão anteriormente tratada sobre a existência de prejuízos para os credores, não foram fornecidos quaisquer elementos ou factos que contrariassem o alegado pelos devedores, para além do avolumar do juros que, já vimos, não pode se tido como prejuízo.

Assim, bem de andou no acórdão recorrido em considerar como não verificado o pressuposto em causa.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 21 de Outubro de 2010

Oliveira Vasconcelos (Relator)
Serra Baptista
Álvaro Rodrigues