Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6089/05.9TBMAI.P1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: LOPES DO REGO
Descritores: TRANSPORTE INTERNACIONAL DE MERCADORIAS POR ESTRADA
CONTRATO DE TRÂNSITO
PRESCRIÇÃO
CHEQUE INTERNACIONAL
BOA FÉ
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/09/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :

1. O transporte de mercadorias não é a actividade própria e específica das empresas transitárias que, enquanto tais, tratam essencialmente de assegurar a execução das formalidades e trâmites necessários à circulação daquelas, podendo, todavia, com frequência, encarregar-se do transporte pretendido pelo expedidor, que cometem a terceiro.

2. Esgotando-se o núcleo essencial das prestações que vinculam as partes – uma delas sociedade tendo como objecto a actividade transitária - na obrigação de deslocar as mercadorias do estabelecimento do exportador para a sede da empresa importadora - sem comportar, de forma relevante, a prestação dos múltiplos actos ou actividades em que se consubstancia a actividade transitária – não estamos confrontados com um típico contrato de trânsito a que seja aplicável o prazo prescricional curto previsto no art. 16º do DL 255/99.

3. Não descaracteriza o contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada a mera circunstância de as partes terem convencionado que o produto e a factura deviam estar à disposição do importador no estabelecimento do exportador, cabendo a este o pagamento do frete devido pelo transporte.

4.Tendo o exportador tratado com a sociedade encarregada de realizar o transporte de todos os aspectos atinentes à sua execução e dando-lhe indicações no sentido de que a entrega das mercadorias só deveria ter lugar mediante a entrega de cheque internacional – inferindo-se das circunstâncias do caso que se pretendia obter um instrumento de pagamento de garantia reforçada – não cumpre adequadamente esse dever lateral ou acessório a que se vinculou o transportador que se limita a aceitar cheque particular da empresa importadora, desprovido de provisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1.AA-Distribuição de Calçado, Lda intentou contra BB Transitários, Lda acção de condenação, na forma ordinária, peticionando a condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €32.461,50 e respectivos juros, com fundamento no deficiente cumprimento de contrato de transporte internacional de mercadorias com ela celebrado – e decorrente de, no momento da entrega da mercadoria expedida à importadora austríaca, a entidade transportadora não ter cumprido adequadamente as instruções que a A. lhe havia dado com vista a garantir o recebimento efectivo do valor pecuniário correspondente ao preço : entrega da mercadoria exportada apenas contra a entrega de um cheque internacional, pondo-a a coberto dos riscos que decorreriam da entrega de um mero cheque particular, eventualmente desprovido de provisão, como efectivamente ocorreu.
A R. contestou, questionando a natureza jurídica do contrato celebrado – que configura, não como de transporte internacional de mercadorias, mas referente exclusivamente ao âmbito da actividade transitária, por ela exercida, - invocando a excepção de prescrição e impugnando os factos que conduziriam ao alegado incumprimento da obrigação que a vinculava, no momento da entrega da mercadoria exportada.
Após saneamento e condensação, teve lugar a audiência final, sendo proferida sentença a julgar a acção procedente.
Inconformada, apelou a R., tendo a Relação julgado parcialmente procedente o recurso, determinando – na sequência a impugnação da matéria de facto deduzida pela recorrente – a alteração da resposta ao ponto da base instrutória em que se perguntava , em sede de averiguação do respectivo objecto social, se a R. se dedicava ao transporte de mercadorias; e ordenando a repetição do julgamento relativamente a factos relevantes para a configuração normativa do contrato efectivamente celebrado entre as partes.
Repetido o julgamento, com vista a ultrapassar as insuficiências e contradições que inquinavam a decisão primeiramente proferida, voltou a ser proferida sentença condenatória, em que se julgou a acção procedente.

Novamente inconformada, a R. apelou, tendo, porém, a Relação negado provimento ao recurso, qualificando o contrato celebrado como transporte internacional de mercadorias - e julgando, consequentemente, improcedente a excepção de prescrição do direito da A – considerando ainda que ocorria o invocado incumprimento contratual, gerador o dever de indemnizar a A.

2. É deste acórdão que vem interposta a presente revista, que a entidade recorrente encerra com as seguintes conclusões:

Il
A. O douto acórdão, ora posto em crise, tendo em conta o teor dos factos assentes M) e N) e quesitos 3.° e 10.° dados como provados, concluiu que entre a Recorrente e a Recorrida foi celebrado um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, considerando que o facto de ter sido o Cliente da Recorrida, e não esta, a assumir a obrigação de efectuar o pagamento do transporte (quesito 12.°, também dado como provado) não desvirtua a natureza do contrato como de transporte internacional; todavia esta conclusão não encontra suporte na matéria de facto provada.
B. Vem provado para o que aqui interessa que "12. A mercadoria aludida em B) foi
vendida pela Autora em condições "ex-works", tendo o comprador da mercadoria assumido a obrigação de contratar e pagar o transporte da mercadoria: (facto M)",; "13. E tendo a Autora assumido a obrigação de colocar a mercadoria aludida em B) à porta da sua fábrica em condições de ser carregada, avisando o comprador desse facto; (facto N)", e ainda que "27. Não foi emitida pela Ré qualquer factura nem foi liquidada pela autora qualquer quantia a título de frete de transporte: (quesito 12.°)". (sublinhado e negrito nosso)
C. Assim, o facto M) é perfeitamente coerente com o quesito 12.° e destes resulta que foi a compradora quem procedeu a ao pagamento do frete que, como é sabido, constitui contrapartida pecuniária do transporte, suportada por quem procede à sua contratação.
D. Com efeito, o contrato de transporte é a convenção através da qual alguém se obriga perante outrem, mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de pessoas ou coisas de uma localidade para outra. Portanto, o frete de transporte (preço) é um elemento essencial do contrato de transporte oneroso e que permite qualificar a relação estabelecida entre as partes como tal. Ora, faltando esse elemento essencial, o contrato entre a Recorrente e Recorrida, desde logo, se descaracteriza como de transporte.
E. Ora, resultando dos factos M) e N) e quesito 12.° que a Recorrida deveria entregar, à porta da sua fábrica, a mercadoria à compradora, que esta contrataria e pagaria o transporte e ainda que não foi emitida qualquer factura pela Recorrente à Recorrida, outra conclusão não se pode extrair que não seja a de que a Recorrente praticou os factos provados sob os quesitos 3.° e 10.°, em nome e por conta da compradora.
F. Esta interpretação conjugada é reforçada pela própria redacção do quesito 3.°, onde se lê: "19. Na sequência do referido em M) e N) dos Factos assentes, e tendo em vista a concretização do fornecimento aludido em B) a autora contactou a ré..."
(sublinhado e negrito nosso), sendo evidente que apenas existiu contacto e não contrato, pois, como se viu, a obrigação de contratar o transporte cabia à Sociedade Compradora, a Cliente da Recorrida e não a esta.
G. Nada obsta a que a compradora, responsável pela contratação do transporte, solicite à vendedora que seja esta a contactar o transitário, em seu lugar, e para determinar estabelecer pormenores da execução do transporte (redacção do quesito 10.°), uma vez que, por se encontrar na origem, terá mais facilidades em fazê-lo.
H. Face a todo o exposto, o contrato de transporte em discussão nos autos produziu os seus efeitos na esfera jurídica da Sociedade Compradora, nos termos dos artigos 1178.°, n.° 1 e 258.° do Código Civil, o que retira legitimidade substantiva à Recorrida para responsabilizar a Recorrente pelo suposto incumprimento ou cumprimento defeituoso do mesmo. O acórdão recorrido desconsiderou essa factualidade e violou o disposto nos artigos 1178.°, n.° 1 e 258.° do Código Civil.
Qualificação da Actuação da Recorrente como prestação de serviços de transitária
I. Mesmo que se entenda que a Recorrente assumiu, directamente e perante. a. Recorrida, a obrigação de garantir a deslocação dás mercadorias e a sua entrega ao Destinatário, ainda assim, o contrato entre elas não poderá ser considerado de transporte, tal como o qualificou o acórdão em apreço, partindo da ideia, totalmente errada e não pretendida pelo legislador, de que, nessa situação, o transitário deixa de actuar como tal, extravasando as suas obrigações de empresa transitária e assumindo a qualidade de transportador.
J. Resultou provado que a "A ré "BBTransitários, Lda." dedica-se à actividade transitária "(quesito 2.°) e o Decreto-lei n.° 255/99, de 07.07, que regula o seu o exercício e a define, consagra no seu artigo 1.°, n.° 2, de forma expressa. como acto próprio e inerente à actividade transitária a celebração de contratos de transporte.
K. Quando o transitário assume perante o Cliente a obrigação de colocar a mercadoria no destino e, para a cumprir essa obrigação, tem necessariamente de subcontratar o transporte a terceiros, está inequivocamente a agir no âmbito específico da sua actividade transitária e nunca da actividade transportadora, que está, aliás, legalmente impedido de exercer, não só por não dispor de veículos destinados a esse fim (vulgarmente designados de camiões TIR), mas também por não possuir alvará para o efeito.
L. Assim, as empresas transitárias podem agir como intermediários entre os expedidores e os destinatários ou mesmo assumir perante os expedidores a obrigação de assegurar o transporte, contratando o mesmo, uma vez que não o podem executar materialmente, sem que tal lhe faça perder a sua qualidade de empresa transitária e a transforme num transportador e o artigo 13.°, do Decreto-Lei n.° 255/99, confere legitimidade a qualquer um destes tipos de intervenção do transitário no comércio jurídico; "As empresas transitárias podem praticar todos os actos necessários ou convenientes à prestação de serviços..."- n.° 1.
M. Face ao acervo do artigo 1.° e 13.° do Decreto-lei n.° 255/99 a actividade transitária caracteriza-se como sendo uma actividade diversificada e complexa, no âmbito das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias e que não se estreita nos limites da obrigação de assegurar a deslocação das mercadorias.

N. Da matéria provada, factos C), D), P) e quesito 5.°, conclui-se que o conjunto de operações levadas a cabo pela Recorrente, inerentes à expedição da mercadoria da Recorrida, como a organização do transporte na recepção da mercadoria e na entrega ao destinatário; processamento de informação recebida; cumprimento das formalidades exigidas e emissão de documentos (FCR junto aos autos com a petição inicial), consubstancia a prestação de um serviço complexo, que convoca a realização de actos jurídicos que não cabem no esquema estrutural do contrato típico (mercantil) de transporte e que integram e absorvem a eventual obrigação de assegurar esse transporte, fazendo desta um mero elemento do negócio jurídico.
O. O acórdão ora posto em crise ao considerar que a Recorrente actuou como transportador, porque assumiu a obrigação de assegurar o transporte, extravasando as suas obrigações de transitária, desconsiderou, uma vez mais, a factualidade provada e violou o disposto no artigos 1.°, e 13.° do Decreto-lei n.° 255/99,
qualificando, erradamente, a actuação da Recorrente ao não considerá-la como de prestação de serviços no âmbito da actividade transitária.

Prazo prescricional aplicável

P. No acórdão recorrido entende-se que a Recorrente actuou na qualidade de transportadora e não de transitária e, como tal, assumiu as inerentes responsabilidades, sendo-Ihe aplicável o prazo de prescrição previsto no artigo 32.° da Convenção CMR, em prejuízo do prazo prescricional do artigo 16.° do Decreto-Lei n.° 255/99, de 07.07.
Q. O regime jurídico do Decreto-lei n.° 255/99, de 07.07, que regula o exercício da actividade transitária, aplica-se a todos os contratos celebrados pelo transitário, independentemente da extensão das obrigações por este assumidas (i.e., independentemente de se obrigar ou não a colocar a mercadoria no destino).
R. Nos termos do artigo 15.° do Decreto-iei n.° 255/99, quando o transitário, perante o seu Cliente, se obriga a assegurar o transporte e necessariamente tem de o subcontratar um transportador, em caso de incumprimento ou cumprimento deficiente do contrato de transporte, a responsabilidade do transitário perante o Cliente beneficia dos limites estabelecidos, por lei ou convenção, para o transportador a quem seja confiada a execução material desse transporte.
S. Assim, as convenções internacionais que regulam os diferentes modos de transporte só se aplicam aos contratos celebrados ente os transitários e os seus Clientes, na parte relativa à limitação responsabilidade. Se, como defende o Venerando Tribunal da Relação, a Convenção CMR se aplicasse à relação contratual entre transitário e cliente, sempre que aquele assumisse perante este a obrigação de assegurar o transporte, o artigo 15.° do Decreto-lei n.° 255/99 seria totalmente desnecessário, pois o transitário beneficiaria automática e directamente desses limites de responsabilidade.
T. Diversamente do artigo 15.°, que remete a regulação dos limites da responsabilidade do transitário perante o Cliente para as disposições da Convenção CMR, a prescrição aplicável à responsabilidade do transitário é tratada no artigo 16.° do Decreto-lei n.° 255/99 de forma autónoma e distinta da Convenção CMR, sendo aquele preceito de data posterior à Convenção CMR e constituindo uma norma especial, aplicando-se a todo e qualquer direito de indemnização que se pretenda exercer contra o transitário, independentemente do tipo de obrigações assumidas perante o seu cliente
U. Note-se que a prescrição prevista neste artigo 16.°, de 10 meses a contar da data da conclusão da prestação de serviço contratada, tem especial justificação precisamente nos casos em que o transitário assume a obrigação junto do Cliente de assegurar o transporte; é que o transportador efectivo, a quem é confiada a execução material do transporte, beneficia da prescrição de 1 ano prevista na Convenção CMR, e no sentido de salvaguardar o direito de regresso do transitário contra esse transportador efectivo, houve necessidade de estabelecer um prazo prescrícional um pouco inferior, pois mesmo que o cliente exerça o seu direito de indemnização perto do fim do prazo de 10 meses, o transitário dispõe de mais 2 meses para exercer o direito de regresso contra o transportador efectivo.
V. No acórdão recorrido considerou-se provado que a mercadoria foi entregue ao destinatário em 11.02.2004, data da conclusão do serviço (facto L), o que significa que a Recorrida deveria ter exercido o direito de indemnização de que julga ser titular até 11.12.2004; assim quando a Recorrida propôs a acção em 06.05.2005 (quase 5 meses depois daquela data) já o seu pretenso direito se havia extinguido por força da prescrição, tanto mais que, nos termos dos artigos 318.° e seguintes do Código Civil, os factos G) e H) dados como provados não suspendem, nem interrompem a prescrição prevista no artigo 16.° do Decreto-lei n.° 255/99.
W. Ao conhecer da questão da prescrição com base no artigo 32.°, n.° 1, da Convenção CMR e não no artigo 16.° do Decreto-lei n.° 255/99, 07.07, o Venerando Tribunal da Relação, desconsiderou o pensamento legislativo e errou na determinação da norma aplicável, o que condicionou o sentido da sua decisão, razão pela qual esta decisão deve ser revogada e substituída por outra, que aplicando o artigo 16.° do Decreto-lei n.° 255/99, de 07.07, julgue procedente a excepção de prescrição invocada pela Ré.
Inexistência de incumprimento contratual
X. Ainda que a relação entre a Recorrente e a Recorrida se reconduzisse à celebração de um contrato de transporte internacional, o que apenas se admite por mera hipótese académica, a Recorrente não poderia ser responsabilizada .pela„falta de pagamento do preço da mercadoria, pois não desrespeitou quaisquer instruções de entrega.
Y. Dos factos D), E), O), P), Q) e R), dados como provados, extrai-se que a Recorrida nunca deu instruções à Recorrente no sentido de esta condicionar a entrega da mercadoria ao recebimento de um cheque bancário ou visado, ou com garantia de pagamento, encontrando-se, sim, provado que a Recorrida transmitiu à Recorrente, apenas e tão só, que a entrega da mercadoria devia operar-se contra o recebimento de um cheque internacional.
Z. Sendo esta, uma figura sem existência jurídica, como aliás o acórdão recorrido o reconhece e, por outro lado, o seu conceito indefinido (o Banco de Portugal desconhece-o), a questão que se coloca é saber se a Recorrente deveria ter deduzido, dessa expressão, que a Recorrida pretendia receber um cheque bancário.
AA. Para responder a esta questão, e dado que as partes haviam mantido relações comerciais anteriores, importa atender ao modo como as coisas se processaram nesses casos.
BB. Resulta da matéria provada que a Recorrente já tinha tratado anteriormente de outras expedições de mercadorias da Recorrida para a mesma compradora e, em todos esses casos, a entrega da mercadoria estava condicionada ao recebimento de um cheque e, nesses fornecimentos, tal como aqui, as condições de pagamento eram CO.D. (cash on delivery, i.e., pagamento na entrega), tendo sido, sempre, recebido um cheque igual àquele cuja cópia se encontra junta a fls. 46, os quais foram depositados pela Recorrida e cobrados sem problemas (factos P), Q e R)).
CC. É à luz da experiência anterior que se tem de valorar a conduta da Recorrente. No caso concreto, não tendo havido alteração das condições de pagamento, em relação aos fornecimentos anteriores, a Recorrente aceitou um cheque igual àqueles que havia aceite, sem oposição da Recorrida, em todos os outros casos.
DD. Perante a inexistência ou, pelo menos, indefinição do conceito de "cheque internacional", não era exigível à Recorrida, face ao estatuído no artigo 236.°, n.º 1 do Código Civil, que deduzisse das instruções transmitidas pela Recorrida que esta pretendia receber um cheque bancário, tanto mais que esta nunca antes havia exigido tal meio de pagamento, que importasse garantia.
EE. No acórdão recorrido desconsiderou-se os factos D), E), O), P), Q) e R, violando-se o disposto no artigo 236.°, n.° 1, do Código Civil.

Na contra-alegação apresentada, a A. pugna pela manutenção do decidido pelas instâncias.


3. As instâncias fizeram assentar a solução jurídica do pleito na seguinte matéria de facto:

1. A Autora “AA – Distribuição de Calçado, Lda.” dedica-se ao comércio de calçado; (facto A)

2. No exercício da sua actividade, a Autora forneceu 1.486 pares de sapatos à sociedade “G....... Austria,S........ G............ und Vertrieb”, pelo preço global de Eur. 32.461,50; (facto B) 3. No exercício da sua actividade, no dia 5 de Fevereiro de 2004, a Ré recebeu da Autora a mercadoria aludida em B); (facto C)

4. A Autora comunicou à Ré que a entrega da mercadoria aludida em B) à sociedade “G......A....., S....... und Mode G...... Design und Vertrieb” devia ser realizada contra o recebimento de um cheque internacional; (facto D)

5. Para pagamento da mercadoria aludida em B), a sociedade “G..... W....Austria, S...... Mode G...... Design und Vertrieb” entregou o cheque cuja cópia se encontra a fls. 46 dos autos, cujo teor se dá por reproduzido; (facto E)

6. Tendo sido apresentado a pagamento, o cheque aludido em E) veio a ser devolvido por falta de provisão; (facto F)

7. A Autora comunicou tal facto à Ré em 24/5/2004; (facto G)

8. A Autora remeteu à Ré, que a recebeu, o documento junto a fls. 16 dos autos, datado de 31/3/2004, cujo teor se dá por reproduzido; (facto H)

9. A Ré remeteu à Autora, que a recebeu, o documento junto a fls. 15 dos autos, datado de 10/5/2004, cujo teor se dá por reproduzido. (facto I)

10. A Ré remeteu à Autora, que a recebeu, o documento junto a fls. 26 dos autos, datado de 27/5/2004, cujo teor se dá por reproduzido. (facto J)

11. A mercadoria aludida em B) foi entregue à sociedade “G...... W..... Austria, S....... und Mode G...... Design und Vertrieb” em 11 de Fevereiro de 2004; (facto L)

12. A mercadoria aludida em B) foi vendida pela Autora em condições “ex-works”, tendo o comprador da mercadoria assumido a obrigação de contratar e pagar o transporte da mercadoria; (facto M)

13. E tendo a Autora assumido a obrigação de colocar a mercadoria aludida em B) à porta da sua fábrica em condições de ser carregada, avisando o comprador desse facto; (facto N)

14. O cheque aludido em E) foi depositado em Portugal num banco português; (facto O)

15. Em situações anteriores, a Ré já tinha tratado da expedição de mercadoras da Autora destinadas à sociedade “G....... Austria, S......und Mode G...... Design und Vertrieb”; (facto P)

16. Nesses casos a entrega da mercadoria estava condicionada à entrega por parte do comprador do respectivo cheque; (facto Q)

17. Em todos esses casos foi entregue pela sociedade “G......H..... Austria, S......und Mode G...... Design und Vertrieb” um cheque igual ao mencionado em E), os quais foram depositados e cobrados; (facto R)

18. A ré “BB Transitários, Lda.” dedica-se à actividade transitária; (quesito 2º)

19. Na sequência do referido em M) e N) dos Factos assentes, e tendo em vista a concretização do fornecimento aludido em B) a autora contactou a ré no sentido de este efectuar o transporte da referida mercadoria das instalações da respectiva

fabricante, localizadas em Santa Maria da Feira, até à Áustria, por via terrestre, através de camião; (quesito 3º)

20. A Ré procedeu ao aludido transporte, sendo a mercadoria aceite pelo cliente, sem qualquer reserva; (quesito 4º)

21. A Ré efectuou a entrega da mercadoria à sociedade “G.....W...Austria, S..... und Mode G...... Design und Ve.....b” contra o recebimento do cheque aludido em E) que era um cheque particular; (quesito 5º)

22. Ao tomar conhecimento dessa situação, a Autora recusou esse pagamento e reiterou as instruções de que esse cheque devia ser substituído por um cheque internacional; (quesito 6º)

23. Em 18 de Fevereiro de 2004, ao receber o cheque aludido em E), a Autora advertiu a Ré quanto à sua possível devolução; (quesito 7º)

24. Em consequência da devolução do cheque aludido em E), a Autora suportou a quantia de Eur. 35,00 em despesas bancárias; (quesito 8º)

25. A ré assumiu o papel de transportadora perante a autora, sendo ela que directamente determinou e estabeleceu os pormenores para a execução do transporte; (quesito 10º)

26. Tendo a Autora remetido à Ré cópia da factura que ia servir de guia de remessa para o transporte; (quesito 11º)

27. Não foi emitida pela ré qualquer factura nem foi liquidada pela autora qualquer quantia a título de frete de transporte; (quesito 12º)

4.Como é manifesto, o núcleo essencial do litígio que opõe as partes prende-se com a configuração jurídica do contrato celebrado – com influência decisiva, desde logo na definição do prazo prescricional aplicável : estaremos perante contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, enquadrável na Convenção CMR, como se decidiu nas instâncias, ou perante um típico contrato de prestação de serviços transitários, plenamente enquadrado no objecto social da R. e sujeito exclusivamente à disciplina jurídica do DL 255/99, como pretende a recorrente?
Tal questão terá naturalmente de ser decidida perante o concreto clausulado, aprovado pelas partes e reconstituído no decurso do processo e da audiência final, através da matéria fáctica definitivamente fixada pelas instâncias : o núcleo essencial das prestações que vinculavam as partes esgotava-se na obrigação de deslocar as mercadorias exportadas do estabelecimento do exportador para a sede da empresa importadora ou , pelo contrário, comportava também, de forma relevante, a prestação dos múltiplos actos ou actividades em que se consubstancia a actividade transitária?

Note-se que esta questão não é nova na jurisprudência, estando largamente abordada a problemática da distinção entre tais figuras contratuais : veja-se, por exemplo, o recente Ac. deste Supremo de 20/9/07, proferido no P. 07B1796, que nos permitimos transcrever:

. O contrato de transporte, posto que não definido na nossa lei comercial, é a convenção através da qual alguém se obriga perante outrem, mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de pessoas ou coisas de uma para outra localidade.
Se se tratar de deslocação de determinadas mercadorias de um ponto de partida situado num país para um local de destino situado noutro país, estaremos perante um contrato de transporte internacional de mercadorias.
A pessoa ou entidade que assume a obrigação do transporte designa-se por transportadora, o credor dessa obrigação é o expedidor e a entidade a quem as mercadorias devem ser entregues é o destinatário.
Ao contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada aplica-se a já referida Convenção CMR, assinada em Genebra, em 15.05.1956, e introduzida no direito português pelo Dec-lei 46.235, de 18.03.1965 (e modificada pelo Protocolo de Genebra de 05.07.1978, aprovado, para adesão, pelo Decreto 28/88, de 6 de Setembro).
Tal contrato tem como antecedente e está relacionado com um outro contrato, distinto e independente dele – um contrato de compra e venda internacional de mercadorias, em que, normalmente, o vendedor corresponde ao expedidor do contrato de transporte, e o comprador das mercadorias é o destinatário do mesmo contrato de transporte. Na verdade, previamente à celebração do contrato com o transportador, já o expedidor celebrou com o destinatário um contrato de compra e venda das mercadorias a transportar.
O desenvolvimento económico, trazendo consigo o alargamento do relacionamento comercial entre os países, e a irradiação e difusão do fenómeno da compra e venda internacional de mercadorias, criou também a necessidade de assegurar uma mais rigorosa disciplina deste importante instrumento do comércio internacional, e impôs a intervenção, no mercado, de novos agentes económicos, com especialização no âmbito das alargadas e complexas operações relacionadas com a expedição, recepção e circulação de bens e mercadorias. Surgiram, assim, nesta área, os agentes transitários, cujo estatuto jurídico foi, entre nós, definido pelo Dec-lei 43/83, de 25 de Janeiro.
A ré é, no caso em apreço, uma empresa transitária.
Ora, o objecto da empresa transitária, definido no art. 1º do citado Dec-lei 43/83, de 25 de Janeiro, é a prestação de serviços a terceiros, no âmbito da planificação, controle, coordenação e direcção das operações necessárias à execução das formalidades e trâmites exigidos na expedição, recepção e circulação de bens ou mercadorias – ou seja, uma actividade diversificada e complexa, que não se confina, em regra, nos estreitos limites da deslocação das mercadorias do ponto de partida para o ponto de chegada, ou, o que vale o mesmo, não se esgota na mera operação de transporte tout court.
O que é, aliás, confirmado pelo disposto no n.º 1 do art. 6º daquele diploma – que expressamente possibilita a intervenção da empresa transitária no comércio jurídico “em nome próprio ou por conta de outrem”, podendo “sub-rogar-se ou ser sub-rogada na posição jurídica dos bens ou mercadorias e actuar como gestor de negócios ou de interesses de terceiros em conformidade com o título que legitime tal intervenção ou com declaração expressa de responsabilidade nesse sentido” – e pelo n.º 1 do art. 7º, também explícito na atribuição à dita empresa transitária do poder de “praticar todos os actos necessários ou convenientes à normal prestação dos serviços a que se referem os artigos anteriores”, o que – dizemos nós – envolve, além do mais, a possibilidade de, ela própria, efectuar o transporte ou contratar a sua realização com uma empresa transportadora.
A prática mostra, de facto, que muitas empresas são, simultaneamente, transitárias e transportadoras. Mas, o que parece seguro é que, mesmo neste caso, não será, por vezes, tarefa fácil, enquadrar na figura do contrato de transporte internacional de mercadorias o vasto leque de actividades que, juntamente com a efectivação do transporte, a empresa transitária tem de desenvolver para o levar a cabo; o cumprimento das várias formalidades legalmente exigidas, a organização do próprio transporte, à partida e à chegada, a sua execução, que, por vezes, envolve diversos meios de transporte e exige uma rede de operadores que lhes dê sequência ao longo do percurso, em suma, a actividade de congeminar e concretizar o transporte, assumindo a obrigação de realizar os actos jurídicos que viabilizem a deslocação das mercadorias e a sua entrega ao destinatário, representa a prestação de um serviço complexo, que convoca a realização de actos jurídicos que não cabem no esquema estrutural do contrato típico (mercantil) de transporte, e que integra e absorve o transporte propriamente dito, fazendo deste um mero elemento do negócio jurídico, de contornos mais alargados, celebrado com o exportador das mercadorias.
Parafraseando um autor(), dir-se-á que, nestes casos, o empresário se dirige ao transitário para o transporte internacional das suas mercadorias, certo de que ele lhe tratará de tudo ... até do transporte!
São casos em que – tal como naqueles em que a empresa transitária contrata com um terceiro a realização do transporte, de acordo com as condições acordadas com o empresário exportador – o serviço contratado entre este último e aquela configura um contrato que pode designar-se por comissão de transporte.
Tal não significa que, em certas situações, designadamente naquelas em que o transitário efectua, por si, o transporte, não deva qualificar-se o acordo celebrado entre ele e o exportador como um verdadeiro contrato de transporte, antes que de comissão de transporte. O que vale por dizer que é caso a caso, através da análise do acervo de direitos e obrigações concreta e reciprocamente assumido, que deve resolver-se a questão.


Transpondo estas considerações para a situação dos autos - e tendo naturalmente na devida conta o concreto acervo de direitos e vinculações assumido pelas partes – não pode duvidar-se que o núcleo essencial destes envolvia precisamente a deslocação das mercadorias da empresa exportadora para o estabelecimento da empresa importadora, não se vendo, de forma autónoma e relevante, quais as típicas vinculações, próprias e específicas da actividade transitária, que se adicionariam à dita prestação fundamental.


Aliás – num caso com a configuração do dos autos, em que o objecto essencial da prestação assumida pela sociedade transitária é obviamente operar a deslocação das mercadorias exportadas – se alguma dúvida se pudesse suscitar seria a que se traduz na qualificação da convenção celebrada como típico contrato de transporte ou como inominada «comissão de transporte»: no dizer do Ac. atrás citado, o vasto leque de actividades que, juntamente com a efectivação do transporte internacional de mercadorias, a empresa transitária tem, por vezes, de desenvolver para o levar a cabo, assumindo, para com o expedidor, a obrigação de realizar os actos jurídicos que viabilizem a deslocação das mercadorias e a sua entrega ao destinatário, envolve a prática de actos jurídicos que não se reconduzem ao esquema estrutural do contrato típico (mercantil) de transporte, fazendo deste um mero elemento do negócio jurídico, de contornos mais alargados, celebrado com o exportador das mercadorias, que pode designar-se por comissão de transporte.

Ora, como ali se decidiu, em sede de definição do prazo prescricional aplicável aos direitos exercitados pelo A., à comissão de transporte não se aplica o prazo fixado pelo art. 32º, nº1, da CMR, mas antes, em termos manifestamente mais desfavoráveis para o demandado, o prazo prescricional comum, fixado pelo art. 309º do CC…
Em suma: nunca seria, pois, de configurar um contrato em que o núcleo essencial da vinculação assumida por sociedade transitária é a deslocação das mercadorias da entidade exportadora para o estabelecimento da empresa importadora como mera prestação de serviços transitários, de modo a envolver a aplicação do curto prazo prescricional definido pelo art. 16º do DL 255/99 – pelo que nenhuma censura merece, quanto a este ponto, o acórdão recorrido.

6. A segunda questão suscitada pela recorrente e que importa dirimir prende-se com a exacta definição de quem figura realmente como parte no contrato de transporte de mercadorias celebrado – decorrendo fundamentalmente do facto de os interessados terem convencionado que a mercadoria exportada fora vendida em condições «ex Works», tendo o comprador assumido a obrigação de contratar e pagar o transporte da mercadoria ( e não tendo sido, por isso, emitida pela sociedade R. qualquer factura nem liquidada pela A. qualquer quantia a título de frete do transporte realizado).
Na óptica da recorrente, de tal situação fáctica decorreria a «ilegitimidade substantiva» da empresa transitária que figura como R. na presente acção, uma vez que a relação jurídica de transporte das mercadorias exportadas apenas se teria constituído entre a R., ora recorrente, e a empresa estrangeira importadora, obrigada ao pagamento do frete, esgotando-se a actuação da A. na realização de simples actos materiais ou contactos informais, destinados a possibilitar ou facilitar o transporte, praticados em nome, por conta e no interesse da compradora dos bens exportados. Ou seja: os verdadeiros sujeitos da relação jurídica de transporte, controvertida nos autos, seriam a empresa transitária dele encarregada e a empresa estrangeira importadora dos bens transportados, vinculada juridicamente ao pagamento do frete correspondente à actividade de transporte, não existindo, consequentemente qualquer vinculação jurídica relevante entre a A. e a R., cujo incumprimento fosse susceptível de determinar a responsabilidade civil que se pretendia exercitar através desta acção.

Não parece, todavia, que esta via argumentativa se possa considerar procedente no plano jurídico, nem que se articule e compatibilize adequadamente com a concreta matéria de facto fixada pelas instâncias.
Importa, desde logo, realçar que a relação jurídica emergente do contrato de transporte se configura como triangular, pressupondo três entidades ou sujeitos: o expedidor das mercadorias., a entidade que assegura o seu transporte ou deslocação e a pessoa a quem os objectos são destinados. Ora, na situação dos autos e perante a matéria de facto fixada pelas instâncias, verifica-se que todos estes sujeitos tiveram intervenção relevante na relação jurídica de transporte, já que – apesar de, no âmbito da precedente compra e venda das mercadorias, ser a empresa compradora que assumiu a obrigação de contratar e pagar ( como efectivamente pagou ) o respectivo transporte, - apenas estando a A. vinculada a colocar o produto e a respectiva factura à disposição do importador no estabelecimento do exportador - « a R. assumiu o papel de transportadora perante a A. , sendo ela que directamente determinou e estabeleceu os pormenores para a execução do transporte » - e sendo naturalmente no âmbito desta actividade de regulação dos termos concretos a que o transporte deveria obedecer que foi emitida a instrução ou indicação de que a entrega a mercadoria exportada só deveria ter lugar contra o recebimento de um «cheque internacional».
Daqui decorre que, apesar de a A. não estar, em rigor, vinculada perante a empresa estrangeira , compradora dos bens exportados, a organizar e assumir o respectivo transporte, acabou por ser ela a realizar efectivamente tal actividade, tratando directamente da consumação do transporte com a R. e emitindo instruções ou indicações cujo acatamento naturalmente respeitava simultaneamente aos interesses do expedidor e do destinatário das mercadorias.
Por outro lado, a circunstância de o pagamento do preço do transporte recair sobre a empresa destinatária dos bens – tendo, deste modo, cabimento na modalidade de expedição com transporte em débito, e não na modalidade de transporte pago, - não desvirtua o carácter necessariamente oneroso do contrato de transporte comercial de mercadorias : a contrapartida patrimonial pela actividade profissional exercida pelo transportador existe obviamente, estando a cargo de um dos titulares da relação jurídica.

Acresce que – como decorrência da cláusula geral da boa fé no cumprimento das obrigações contratuais – não era aceitável que a R. não tivesse formulado atempadamente qualquer objecção relativamente à indicação , dada pela empresa perante a qual tinha assumido o papel de transportadora , sobre as condições em que deveria ter lugar a entrega da mercadoria – de relevo obviamente essencial para a garantia da efectividade da contraprestação pecuniária devida pela respectiva venda – considerando-se mais tarde , unilateralmente e de surpresa, dispensada de a cumprir, frustrando a expectativa que fundadamente tinha criado no expedidor das mercadorias sobre a consistência prático-económica do seu crédito sobre a empresa estrangeira compradora dos bens. Na verdade, ao ter assumido sem objecções, perante o expedidor, com quem tinha tratado de todos os aspectos atinentes à execução do transporte, o dever lateral ou acessório de assegurar a efectividade do recebimento por este da contraprestação devida pela exportação dos bens transportados ( consubstanciada na recepção de cheque dotado de reforçada fiabilidade, quanto à existência de fundos pecuniários disponíveis), fica naturalmente, por força do referido princípio da boa fé, a sociedade transportadora impedida de invocar ulteriormente, de forma absolutamente surpreendente, a desvinculação de tal dever, que aparentemente tinha aceite, por passar a entender que nenhuma vinculação juridicamente relevante a ligava à sociedade A.
Ou seja: a «ilegitimidade substantiva», ora invocada pela recorrente, deveria tê-lo sido no momento em que recebeu as indicações da recorrida acerca da modo e condições que deveria respeitar no momento da entrega das mercadorias exportadas, advertindo-a de que – por a considerar estranha à relação jurídica de transporte – não se considerava vinculada ao dever lateral que a recorrida lhe pretendia impor. Não o tendo feito, ficou naturalmente vinculada ao cumprimento desse dever acessório, respondendo pelos danos decorrentes de um defeituoso cumprimento do mesmo.

7. A terceira questão controvertida no presente recurso prende-se com a verificação dos pressupostos da responsabilidade civil imputada à R. – e, desde logo, com a existência do alegado incumprimento do referido dever lateral ou acessório, assumido pelo transportador no confronto do expedidor das mercadorias, de a entrega a mercadoria apenas dever ser realizada contra o recebimento de um «cheque internacional».
Sustenta, na verdade, a recorrente, por um lado, a fluidez de contornos desta figura do «cheque internacional», entendendo não poder razoavelmente inferir-se do teor da instrução transmitida a exigência de pagamento das mercadorias através do recebimento de um cheque bancário, desprovido dos normais riscos de inexistência de fundos pecuniários na conta do respectivo subscritor; e, por outro lado, a existência de precedente nas operações comerciais já anteriormente levadas a cabo pelas partes, em que a A. se teria bastado com a entrega as mercadorias mediante recebimento de um vulgar cheque emitido pela própria empresa importadora.
Trata-se, pois, de saber se, em aplicação, nomeadamente, do critério da impressão do destinatário, deveria a sociedade R. inferir, se agisse com a diligência devida, que a A. pretendia – em termos de asseguramento da efectividade prática do seu direito – mais do que a mera recepção de um cheque particular da sociedade importadora, susceptível de apresentação a pagamento em Portugal, mas naturalmente submetido ao risco de falta ou insuficiência de fundos na respectiva conta bancária, recaindo, por isso, naturalmente sobre o exportador o risco de incobrabilidade do crédito pecuniário correspondente ao preço das mercadorias transportadas.

Note-se, desde logo, que a fluidez de contornos a referida figura do «cheque internacional» é bem menor do que o pretendido pela R., sendo corrente a interpretação de tal conceito – na vida comercial e até na jurisprudência - em termos bem mais amplos e rigorosos do que o sustentado pela sociedade recorrente: veja-se, por exemplo, o Ac. deste Supremo de 7/10/03, proferido no P.03A2534, onde se afirma:

Na verdade, mesmo que se considere internacional um cheque emitido por uma entidade particular não bancária sediada num País, sobre uma sua conta particular constituída num Banco desse País, para ser apresentado a pagamento noutro País, o certo é que se torna manifesto não ser tal tipo de cheque internacional o referido nas instruções sobre as condições de entrega da mercadoria dadas pela autora à ré, se se atentar nas condições de entrega por aquela expressamente fixadas.
É que, ao incluir na factura a cláusula C.O.D., de que a ré teve perfeito conhecimento, aceitando-a, ( ), e pela qual se torna evidente não ter a autora confiança suficiente na cliente compradora, pretendendo ficar com o pagamento do preço da mercadoria assegurado, logo fica afastada a possibilidade de entrega da mercadoria contra o recebimento de um mero cheque de conta particular dessa cliente, que não constitui um meio seguro de cobrança.

Também, ao estabelecer como alternativa do cheque internacional a contra prova de pagamento por transferência S......-Tlx, a única interpretação possível é a de que a mercadoria só deveria ser entregue à cliente da autora contra o pagamento efectivo do respectivo preço, eventualmente em dinheiro, ou contra uma sua garantia absoluta, o que não se compadecia com a entrega de um simples cheque particular de conta bancária da cliente da autora sem certificação da reserva do montante indicado na factura para o pagamento desta.
Isto porque a cláusula C.O.D., como se referiu, implica o efectivo pagamento contra a entrega, de forma a que o exportador/fornecedor não corra o risco de falta de pagamento do preço da mercadoria; e a transferência S....(iniciais de Society for Worldwide Interbank Financial Telecomunication), é um sistema electrónico de telecomunicação interbancária pelo qual se procede a pagamentos à distância efectuados por via de transferência interbancária, utilizada em especial nos pagamentos transfronteiras ou internacionais, constituindo por sua vez uma garantia absoluta de o pagamento ser ou ter sido efectuado.
O mesmo é dizer, pois, que o cheque internacional a que a autora se referia ao comunicar à ré as condições de entrega da mercadoria teria de ser o necessário para alcançar aqueles mesmos fins, tendo portanto de ser um cheque bancário internacional, ou seja, um cheque que incluísse garantia ou certificação de pagamento por ser sacado em praça de determinado País para ser apresentado a pagamento em praça de outro País mas em que o próprio sacador fosse um banqueiro, tendo por isso a cobertura garantida pela própria solvabilidade do emitente. Trata-se, assim, o cheque internacional, sob essa designação ampla ou sob a designação mais restrita de cheque bancário ou até de cheque certificado, de uma figura em uso na prática comercial, e não, pelo menos por enquanto, de uma figura jurídica, que como tal tenha de se encontrar definida em qualquer corpo normativo; é uma modalidade de cheque que o desenvolvimento das relações comerciais entre entidades de países diferentes tem vulgarizado face à crescente necessidade de utilização desse meio de pagamento com eliminação dos riscos na medida do possível.
Assim, não pode deixar de se entender que, ao possibilitar a ré a entrega da mercadoria à cliente da autora contra o recebimento do cheque que essa cliente da autora por sua vez entregou, sem que de tal cheque resultasse encontrar-se garantido o pagamento do preço daquela mercadoria, o cumprimento do contrato pela ré tem de se considerar defeituoso.

Se a R. entendia que as instruções que lhe foram fornecidas sobre o modo de cobrança das mercadorias exportadas não eram absolutamente claras, possibilitando alguma margem razoável de dúvida, deveria naturalmente – atenta a essencialidade manifesta que tal matéria revestia para a A., contendendo decisivamente com a consistência prática do seu direito – ter providenciado pela remoção atempada de tais dúvidas ou incertezas, pedindo os esclarecimentos pertinentes.

Aliás, no caso dos autos, não pode olvidar-se a experiência da empresa R. nesta área da circulação internacional de mercadorias, decorrente do seu objecto social; tal como não pode, nas circunstâncias concretas do caso, deixar de se entender que a A., com a referida instrução, pretendia manifestamente pôr-se a coberto dos riscos de eventual falta de pagamento do preço da mercadoria exportada, munindo-se de instrumento de pagamento dotado de reforçada garantia de solvabilidade : é que, como decorre do doc. de fls. 15, a A. terá começado por solicitar , na factura comercial emitida, que a entrega das mercadorias transportadas fosse feita mediante pagamento em dinheiro - «cash on delivery»- resultando a indicação de que a entrega, afinal, seria de realizar mediante o dito «cheque internacional» da objecção de que nenhum motorista recebe, em Portugal ou no estrangeiro, pagamentos em dinheiro, particularmente de quantias tão elevadas como a que decorre do presente litígio. Inferia-se, pois, claramente que a A. tinha fundadas reservas sobre a solvabilidade da empresa importadora, pretendendo subtrair-se aos riscos de impossibilidade de obtenção efectiva da contraprestação das mercadorias transportadas – manifestamente não afastados pela simples recepção de um cheque que, embora apresentável a pagamento no sistema bancário nacional, era desprovido de garantia de existência de fundos pecuniários na respectiva conta, podendo – como veio a ocorrer – ser devolvido por falta de provisão.

Não releva, por outro lado, decisivamente o simples facto de, em anteriores operações comerciais, a A. se ter bastado com o recebimento de meros cheques particulares : é que as dúvidas sobre a solvabilidade da empresa importadora podem naturalmente ser supervenientes ou decorrer da inexistência, no caso concreto, de seguro adequado, podendo surgir em qualquer momento – e devendo, por isso, o profissional que se ocupa da circulação internacional de mercadorias estar atento às indicações que lhe são dadas pelo expedidor em cada operação concreta de transporte que realize.


8. Nestes termos e pelos fundamentos apontados nega-se provimento à revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 09 de Setembro de 2010

Lopes do Rego (Relator)
Barreto Nunes
Orlando Afonso