Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1892/19.5T8AVR-L.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
REMUNERAÇÃO
RETRIBUIÇÃO VARIÁVEL
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
LEGITIMIDADE PARA RECORRER
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
INTERPRETAÇÃO DA LEI
PRINCÍPIO DA INTERPRETAÇÃO CONFORME O DIREITO EUROPEU
DIRETIVA COMUNITÁRIA
Data do Acordão: 10/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I- O Ministério Público, ao abrigo do art. 4º, n.º 1, alínea m) do Estatuto do Ministério Público, quer na qualidade de representante do credor Estado com créditos graduados no processo de insolvência, quer enquanto defensor do interesse público, nos termos do art.325º, n.º 3 do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) tem legitimidade para recorrer contra a decisão que fixa a remuneração do administrador da insolvência.


II- No cálculo da majoração da remuneração do administrador de insolvência, o valor de 5% referido no n.º 7 do art.23º do EAJ, com a redação dada pela Lei n.9/2022, não tem como objeto o montante total apurado para satisfação dos créditos (ou seja, o apurado depois de extraída a parcela correspondente à percentagem da remuneração variável prevista nos números 4 e 6 do art.23º). Essa percentagem de 5% incide sobre o resultado de uma operação aritmética prévia destinada a apurar o “grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”.

Decisão Texto Integral:

Processo n.1892/19.5T8AVR-L.P1.S1


Recorrente: Ministério Público


Recorrido: AA


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO


1. Em 22.11.2021 (por decisão já transitada em julgado), foi decretada a Insolvência de “S....... ........ . ....... .. ........ .........., Ldª”, a qual havia sido requerida pelo credor “O....... ............., Ldª”.


2. No apenso J do processo de insolvência veio a ser proferida, em 02.11.2022, sentença que julgou válidas as contas apresentadas pelo Administrador de Insolvência, com o seguinte dispositivo:


(…) julgo válidas as contas apresentadas pelo Administrador de Insolvência, sendo:


a) As receitas no montante de € 611.269,17; e


b) As despesas no montante global de € 102.989,61, do qual:


a. o montante de € 101.989,61 foi suportado pela massa insolvente; e


b. o montante de € 653,05 foi suportado pelo AJ, sendo que, deste, o montante de € 204,00 se tem por suportado pela provisão para o efeito atribuída.


Custas a cargo da massa insolvente.”


3. Em 07.11.2022, foi proferida decisão sobre a remuneração variável do Administrador da Insolvência, da qual se extrata o seguinte segmento: “(…) a REMUNERAÇÃO VARIÁVEL a auferir pelo Administrador de Insolvência cifrar-se-á no montante global de €32.275,62 [€ 30.617,68 + € 1.657,93], com IVA incluído.”


4. Inconformado com aquela decisão, o Administrador da Insolvência interpôs recurso de apelação, tendo o TRP decidido: “(…) julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo Apelante/Administrador da Insolvência, revogando-se a decisão recorrida, alterando-se a remuneração variável do Apelante para a importância global de € 59.352,37 com IVA já incluído.”


5. Discordando de tal decisão, o Ministério Público interpôs recurso de revista, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:


«1.º O Acórdão recorrido foi proferido nos autos de insolvência supra identificados, versa sobre matéria insolvencial, e fez uma interpretação do n.º 7 do art.º 23º do EAJ, na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, diferente da interpretação da mesma norma seguida pelo Acórdão fundamento – o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido em 24/01/2023 (relator Rodrigues Pires) no Proc. n.º 1910/17.1T8STS-F.P1, transitado em julgado – publicado em www.dgsi.pt - e cuja certidão também se junta a esta peça recursória.


2.º Ambas as decisões foram proferidas depois de a Lei n.º 9/2022, de 11/01, ter dado ao citado art.º 23º, n.º 7 do EAJ a sua atual versão, e ainda não existe jurisprudência uniformizada sobre a matéria, constatando-se a divergência do Tribunal da Relação quanto ao modo de decidir a mesma questão fundamental de direito, estando, assim, preenchidos os requisitos de admissibilidade da revista exigidos pelo art.º 14º do CIRE.


A única questão a decidir é a de saber qual o critério de cálculo da majoração da remuneração do administrador de insolvência que ficou consagrado no n.º 7 do art.º 23º do Estatuto do Administrador Judicial, na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01.


4.º Contrariamente à tese seguida pelo Acórdão recorrido – e salvo o devido respeito - entendemos mais correta e conforme à letra e ao espírito daquele preceito legal, e aos seus antecedentes históricos, a interpretação seguida pelo referido Acórdão fundamento – concluindo que no cálculo da majoração prevista no citado n.º 7 do art.º 23.º do AEJ deve atender-se à percentagem (“grau”) de satisfação dos créditos reclamados que foram admitidos.


5.º É isto que resulta da própria letra da lei, e foi querido pelo legislador - pois se o não quisesse, bastar-lhe-ia retirar a expressão “em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos”, que consta daquele n.º 7.


6.º A já abundante jurisprudência maioritária dos Tribunais da Relação sobre a questão tem vindo a seguir esta interpretação do preceito – a qual também foi sufragada pelo recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 18/04/2023, no Proc. n.º 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1 – 6.ª Secção – in www.dgsi.pt.


7.º Não vemos razões válidas para discordar deste entendimento, totalmente conforme à letra e ao espírito da lei, e também justificado pelos argumentos e antecedentes históricos do preceito, elencados no douto Acórdão fundamento.


8.º O Acórdão recorrido fez errada interpretação do aludido n.º 7 do art.º 23.º do EAJ, em prejuízo da própria massa insolvente e dos credores.


9.º Por isso, deverá o mesmo ser revogado e substituído por outro que acolha a interpretação seguida pelo Acórdão fundamento e consequentemente, mantenha a sentença que foi proferida pela 1.ª instância


Pelo exposto, deverá a Revista ser julgada procedente e revogado o Acórdão recorrido, com as legais consequências – mantendo-se a decisão da 1.ª instância sobre a remuneração variável do Administrador da Insolvência.»


6. O recorrido respondeu, formulando as seguintes conclusões:


«A. Vem o presente recurso interposto por parte do Ministério Público do douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, o qual julgou o recurso de Apelação interposto pelo ora Recorrido procedente e, em consequência, procedeu à alteração do valor da remuneração variável, com majoração, fixado ao Exmo. Sr. Administrador da insolvência, da quantia de € 1.657,93 (mil seiscentos e cinquenta e sete euros e noventa e três cêntimos) para €23.361,54 (vinte e três mil e trezentos sessenta e um euros e cinquenta e quatro cêntimos), acrescido de IVA, o que totaliza a quantia global de € 28.734,69 (vinte e oito mil setecentos e trinta e quatro euros e sessenta e nove cêntimos);


B. Porém, entende o Recorrido que o douto Acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto não se afigura merecedor de qualquer reparo;


C. Antes disso, e previamente, verifica-se que o Ministério Público, à luz do preceito que o mesmo invoca, não dispõe de legitimidade para interpor o recurso a que ora se responde (artigo 4.º, n.º 1, alínea m), do Estatuto do Ministério Público);


D. Tal dispositivo legal confere ao Ministério Público a possibilidade de intervenção em processos de Insolvência não só como representante de interesses da Administração Pública do Estado, no caso da Fazenda Pública, como também a intervenção em prol de interesses coletivos de outra natureza, que nesse caso implicam a intervenção do mesmo a título principal e por direito próprio;


E. Ora, a intervenção do Ministério Público nos autos não se dá por referência a nenhum de tais casos;


F. Assim sendo, não tem o Ministério Público legitimidade para recorrer quando o que está em causa é a divergência interpretativa acerca do artigo 23.º do Estatuto do Administrador Judicial,


G. Pressuposto processual necessário para que o Ministério Público pudesse interpor o recurso de revista a que se responde e, assim, ser conhecido o seu objeto;


H. A legitimidade é umpressuposto processualsubjetivo, objeto de apreciação liminar, e que condiciona a admissão do recurso,


I. Faltando tal pressuposto o recurso interposto deve ser objeto de indeferimento liminar:


Caso assim não se entenda:


J. No que diz respeito à interpretação a conferir ao artigo 23.º, n.º 7, do Estatuto do Administrador Judicial, o Acórdão recorrido não é merecedor de qualquer reparo, dando-se aqui por integralmente reproduzidos todos os argumentos no mesmo expendidos.


K. Assim, o valor da liquidação ascende a € 497.848,56, deduzido das despesas e dívidas da Massa insolvente [€ 611.269,17 - € 100.929,61- € 12.491,00], pelo que a primeira componente da remuneração variável corresponde a 5% de tal valor, isto é, € 24.892,43, a que acresce IVA à taxa legal [23%], o que perfaz o montante de € 30.617,68;


L. Assim, para cálculo da majoração apenas haverá que subtrair ao resultado da liquidação a remuneração fixa e a remuneração variável, apurada nos termos do n.º 4 do artigo 23.º, acrescida de IVA, aplicando-se a esse valor a percentagem de 5%;


M. No caso, o valor da majoração terá de ser calculado por aplicação da percentagem de 5% à quantia de € 467.230,87 [€ 497.848,56 (€ 2.460,00 + € 30.617,68)] - valor disponível para pagamento aos credores,


N. Resultando num total de € 23.361,54, acrescido de IVA, à taxa legal de 23%, o que perfaz o montante global de € 28.734,69,


O. Sendo este o montante a fixar a título de remuneração variável, aplicando-se-lhe o fator de majoração, ao ora Recorrido;


P. Face ao exposto, o douto Venerando Tribunal da Relação do Porto ao decidir da forma como o fez, interpretou e aplicou corretamente a norma do artigo 23.º da Lei n.º 22/2013, de 26 de fevereiro, não merecendo o douto Acórdão Recorrido qualquer censura.


Q. Motivo pelo qual deverá o douto recurso interposto improceder, o que se requer.


Nestes termos e nos melhores em direito que v. exa. doutamente suprirá:


A) deverá o recurso de revista interposto ser liminarmente indeferido por falta de legitimidade ativa, para a sua interposição, por parte do recorrente – Ministério Público;


Caso assim não se entenda,


B) deverá o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se, dessa forma, na íntegra, o douto acórdão proferido pelo venerando tribunal da relação do porto, fazendo-se deste modo a acostumada justiça.»


7. Face à suscitada questão da ilegitimidade do MP para interpor o recurso de revista, o tribunal recorrido notificou o recorrente para se pronunciar. Em resposta, este veio justificar a sua legitimidade nos seguintes termos:


«O Ministério Público, notificado para se pronunciar sobre a questão nova da ilegitimidade do recorrente suscitada nas Contra-Alegações pelo recorrido, vem dizer o seguinte:


1- Muito se estranha que o Senhor Administrador da Insolvência só nesta fase processual – contra-alegações ao recurso de revista – venha questionar a legitimidade do Ministério Público para intervir no processo de insolvência, designadamente no que tange à interposição do recurso de revista, nos termos dos art.ºs 14.º, n.º 1, do CIRE, e 4.º, n.º 1, al. m), do Estatuto do Ministério Público (Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto, alterada pela Lei n.º 2/2020, de 31/03).


2- De facto, e salvo o devido respeito pela tese do recorrido, o Ministério Público interpôs a revista para o STJ no âmbito das suas atribuições expressas na citada alínea m) do n.º 1 do art.º 4.º do Estatuto – “Compete, especialmente, ao Ministério Público: (…) Intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público” – negrito nosso. Em decorrência, aliás, do comando do art.º 219.º, n.º 1, da Constituição da República, quando prescreve que o Ministério Público representa o Estado e os interesses que a lei determinar, bem como a legalidade democrática.


3- No âmbito do processo de insolvência, e para além do exercício da ação penal que possa justificar-se, o Ministério Público desenvolve várias outras competências, como a defesa de certos interesses, em representação de certas entidades cujos interesses lhe estão confiados (art.ºs 13.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, do CIRE) e a defesa da legalidade no curso do processo, em conformidade com o citado art.º 219.º, n.º 1, da CRP, e art.ºs 2.º e 4.º, n.º1, do Estatuto do MP.


4- De facto, o CIRE contém normas que atribuem funções variadas ao Ministério Público, desde o seu poder de ação (legitimidade ativa) enquanto representante de entidades cujos interesses lhe estão confiados (art.º 20.º, n.º 1, do CIRE), à faculdade de participar na assembleia de credores (art.º 72.º, n.º 6, do CIRE) e ao ónus de reclamação de créditos de entidades a que deve representação (art.º 128.º, n.º 1 CIRE), defendendo os interesses patrimoniais destas. Mas, noutros casos, o Ministério Público intervém no processo noutra qualidade que não a de representante de credores públicos, e para defesa de outros interesses, que não os de natureza patrimonial.


5- Como garante da legalidade democrática (art.º 219.º,n .º1, CRP, e 2.º e 4.º, n.º1, al. a) do Estatuto), o Ministério Público também é chamado a pronunciar-se e emitir parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art.º 64.º, n.ºs 1 e 2 CIRE), participa no incidente de qualificação da insolvência (art.º 188.º, n.º3 do CIRE), é autorizado a estar presente na assembleia de credores (art.º 72.º, n.º 2, do CIRE) e é notificado da sentença declaratória da insolvência (art.º 37.º, n.º 2, do CIRE). Portanto, o Ministério Público não é uma entidade estranha ao processo de insolvência, mesmo quando atua em nome próprio, como defensor da legalidade democrática e na sua veste de representação do chamado “Estado-Coletividade”.


6- Ora, seria até incompreensível que o Ministério Público seja chamado a pronunciar-se e emitir parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art.º 64.º, n.ºs 1 e 2 CIRE, e depois não poder reagir – designadamente pela via do recurso – se o seu parecer não for acatado, ou for tomada decisão ilegal sobre contas apresentadas.


7- Na mesma linha, e como escreve Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, 201, pág 119, “além do poder de ação que lhe é atribuído para defesa dos interesses de caráter patrimonial do Estado, e de outros credores públicos e deve ser exercido em representação destes últimos, o Ministério Público é titular de um poder de ação, orientado para a defesa de interesses públicos de tipo diverso, associados, designadamente, aos valores do crédito e da economia” – considerando até que a alusão ao Ministério Público no art.º 20.º, n.º1, do CIRE terá essa dimensão ampla, devendo a mesma ser “interpretada como uma possibilidade de ação para a defesa exclusiva daqueles interesses de tipo diverso” a que se refere o art.º 13.º, n.º1, do CIRE.


8- Não se desconhece a posição sustentada no Acórdão da Relação de Guimarães, de 27/04/2023 – Proc. n.º304/17.3T8PTL.G1, longamente citado pelo recorrido. Mas, salvo o muito e devido respeito, achamos mais avisado e conforme à lei em vigor o que, a propósito da legitimidade do Ministério Público para recorrer, ficou escrito no Acórdão da mesma Relação, de 16/03/2023 – Proc. n.º 6265/22.0T8VNF-A.G1 – relatora Maria João Matos – publicado em www.dgsi.pt – e que com a devida vénia, passamos a citar:


«(…)Mas o Ministério Público actua também de outra forma (e relevantíssima) no processo de insolvência. Com efeito, lê-se no art. 4.º, n.º 1, al. m), do Estatuto do Ministério Público, que o mesmo tem o direito de «intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público de intervir». Logo, se tem esse direito de intervenção, não fica o mesmo dependente da iniciativa de quem a solicite, sendo exercida em nome próprio, na defesa do que se reconhece ser um interesse público.


Surge, assim, consagrada, em processo de insolvência, a sua actuação em nome próprio, consubstanciando o cumprimento de um dever de tutela de interesses públicos, nomeadamente os relativos: à legalidade e regularidade das contas apresentadas pelo administrador da insolvência, conforme art. 64.º, do CIRE; à condenação do afectado pela qualificação da insolvência como culposa (de onde vai resultar a sua obrigação de ressarcir pessoalmente os credores que não sejam satisfeitos no rateio, além das sanções civis dali derivadas, com reflexos obrigatórios em termos registais), conforme art. 188.º, do CIRE; e, ainda, à fiscalização das decisões tomadas em assembleia de credores que com aqueles interesses possam contender, por isso sendo facultada a sua participação na mesma, conforme art. 72.º, n.º 6, do CIRE.


Ora, é precisamente esta actuação do Ministério Público em nome próprio, na defesa do interesse público radicado na legalidade do praticado em sede de processo de insolvência, que aqui está em causa.


Com efeito, ao recorrer, não actuou como representante do IGFEJ, mas sim, única e exclusivamente, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, com uma legitimidade outorgada para esse fim por disposição expressa da mesma. (…).


Concluindo, e salvo sempre o devido respeito por opinião contrária, o Ministério Público recorreu nos autos em nome próprio, na defesa dos direitos e interesses que lhe são confiados por lei, enquanto defensor da legalidade, e com uma legitimidade outorgada para o efeito por disposição expressa da lei (…)”.


Importa esclarecer que o voto de vencido do 1.º Adjunto, Desembargador José Alberto Martins Moreira Dias, se circunscreve à questão da sucumbência, também ali suscitada, “Sem colocar em causa que o Ministério Público dispõe de legitimidade para recorrer da decisão sob sindicância”.»


9- Ora, volvendo ao caso presente, a revista foi interposta pelo Ministério Público em nome próprio, nos termos do art.º 14.º, n.º 1, do CIRE – baseada em oposição de acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito, e sem que ainda haja jurisprudência fixada pelo STJ sobre tal questão – forma de cálculo da majoração da remuneração do administrador da insolvência, prevista no art.º 23.º, n.º 7, do EAJ.


10- Com ele visou o recorrente defender a legalidade e os interesses coletivos que lhe compete defender no âmbito do processo de insolvência – cf. art.ºs 219.º, n.º1, da Constituição da República, e 2.º e 4.º, n.º1, als. a) e m), do Estatuto do Ministério Público – incluindo os interesses gerais do giro comercial e os próprios interesses da massa insolvente e dos credores em geral – contribuindo também para que o STJ se possa pronunciar para melhor esclarecer a controversa questão sobre a forma de calcular a majoração da remuneração do administrador da insolvência, prevista no art.º 23.º, n.º 7, do EAJ – que continua a engordar pendências nos Tribunais.


11- Por último, importa referir que, neste caso, não estão em causa “umas centenas de euros”, mas a quantia de cerca de €27.000,00 que, em vez de ser entregue ao administrador da insolvência, poderá reverter para os credores da insolvência – e até pode ser necessária para pagar custas processuais – caso a revista seja admitida e julgada procedente pelo STJ.


12- Pelo exposto, reafirmamos a legitimidade do Ministério Público para recorrer, devendo a revista ser admitida.»


Cabe apreciar.


*


II. FUNDAMENTOS


1. Admissibilidade e objeto do recurso


1.1. Ao presente recurso, porque interposto em processo de insolvência, tem aplicação o regime previsto no art.14º do CIRE, o qual assenta na demonstração da existência de oposição de acórdãos sobre a mesma questão de direito.


Dispõe esta norma:


«No processo de insolvência, e nos embargos opostos à sentença de declaração de insolvência, não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, salvo se o recorrente demonstrar que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do Código de Processo Civil, jurisprudência com ele conforme


O recorrente alega que o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24.01.2023 (relator Rodrigues Pires), proferido no Proc. n.º 1910/17.1T8STS-F.P1, transitado em julgado (cuja certidão junta), que indica como acórdão fundamento.


Confrontando essas decisões, facilmente se constata que o acórdão recorrido e o acórdão fundamento adotaram diferentes critérios quanto à interpretação do n.º 7 do art.º 23º do EAJ (na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11.01), no que respeita ao modo de cálculo da remuneração variável do administrador de insolvência. E sobre esta questão jurídica não existe acórdão de uniformização de jurisprudência.


Encontram-se, assim, preenchidos os pressupostos de admissibilidade do recurso de revista exigidos pelo artigo 14º do CIRE.


1.2. Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (art.635º, n.4 do CPC), no caso concreto concluiu-se que a questão normativa em revista é a de saber se o acórdão recorrido fez a correta interpretação e aplicação do regime previsto no n.º 7 do art.º 23º do EAJ.


Porém, o recorrido, nas suas contra-alegações, suscitou a questão de saber se o MP tinha legitimidade para interpor o presente recurso de revista. Tal problema assume, assim, a natureza de questão prévia, por ser suscetível de condicionar a análise da supra enunciada questão do mérito na aplicação do direito substantivo.


*


2. Factualidade relevante


A factualidade relevante para apreciação das questões jurídicas que integram o objeto da revista é a que consta do relatório supra exposto.


3. O direito aplicável:


3.1. Entende o Ministério Público, enquanto recorrente, que o acórdão recorrido fez errada aplicação do n.7 do art.23º do EAJ, em prejuízo da massa insolvente e dos credores, pelo que deve ser revogado.


O recorrido, por sua vez, entende que o Ministério Público não teria legitimidade para interpor o presente recurso de revista. E ainda que assim não se entendesse, o acórdão recorrido deveria manter-se, pois teria feito a correta aplicação da lei ao revogar a decisão da primeira instância que havia fixado a majoração da sua remuneração.


3.2. A questão da legitimidade do MP:


3.2.1. O Ministério Público interpôs o recurso de revista ao abrigo do art.4º, n.1, alínea m) do Estatuto do Ministério Público e do art. 14º, n.1 do CIRE.


Estabelece o art.4º, n.1, alínea m) do EMP (Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto, alterada pela Lei n.º 2/2020, de 31 de março) que cabe, especialmente, ao MP:


«Intervir nos processos de insolvência e afins, bem como em todos os que envolvam interesse público».


Entende o recorrido que esta norma não confere ao MP legitimidade para recorrer quando o que está em causa é a divergência interpretativa acerca do n.7 do art.23.º do Estatuto do Administrador Judicial.


Em resposta a essa objeção o recorrente veio densificar os fundamentos da sua legitimidade, afirmando que:


«No âmbito do processo de insolvência, e para além do exercício da ação penal que possa justificar-se, o Ministério Público desenvolve várias outras competências, como a defesa de certos interesses, em representação de certas entidades cujos interesses lhe estão confiados (art.ºs 13.º, n.º 1 e 20.º, n.º 1, do CIRE) e a defesa da legalidade no curso do processo, em conformidade com o citado art.º 219.º, n.º 1, da CRP, e art.ºs 2.º e 4.º, n.º1, do Estatuto do MP.


De facto, o CIRE contém normas que atribuem funções variadas ao Ministério Público, desde o seu poder de ação (legitimidade ativa) enquanto representante de entidades cujos interesses lhe estão confiados (art.º 20.º, n.º 1, do CIRE), à faculdade de participar na assembleia de credores (art.º 72.º, n.º 6, do CIRE) e ao ónus de reclamação de créditos de entidades a que deve representação (art.º 128.º, n.º 1 CIRE), defendendo os interesses patrimoniais destas. Mas, noutros casos, o Ministério Público intervém no processo noutra qualidade que não a de representante de credores públicos, e para defesa de outros interesses, que não os de natureza patrimonial.


Como garante da legalidade democrática (art.º 219.º, n.1, CRP, e 2.º e 4.º, n.1, al. a) do Estatuto), o Ministério Público também é chamado a pronunciar-se e emitir parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art.º 64.º, n.ºs 1 e 2 CIRE), participa no incidente de qualificação da insolvência (art.º 188.º, n.º 3 do CIRE), é autorizado a estar presente na assembleia de credores (art.º 72.º, n.º 2, do CIRE) e é notificado da sentença declaratória da insolvência (art.º 37.º, n.º 2, do CIRE). Portanto, o Ministério Público não é uma entidade estranha ao processo de insolvência, mesmo quando atua em nome próprio, como defensor da legalidade democrática e na sua veste de representação do chamado “Estado-Coletividade”.


Ora, seria até incompreensível que o Ministério Público seja chamado a pronunciar-se e emitir parecer sobre as contas apresentadas pelo administrador da insolvência (art.º 64.º, n.ºs 1 e 2 CIRE, e depois não poder reagir – designadamente pela via do recurso – se o seu parecer não for acatado, ou for tomada decisão ilegal sobre contas apresentadas


3.2.2. No que respeita ao pressuposto da legitimidade para recorrer das decisões proferidas em processos de natureza insolvencial, o disposto no art.631º do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) deve ser interpretado tendo em conta as especificidades deste tipo de processos, que são processos de natureza e estrutura complexa, nos quais se polarizam interesses de vários sujeitos para além do insolvente e dos credores reclamantes de créditos, como são os interesses de terceiros que celebraram negócios com o insolvente ou os interesses do próprio administrador da insolvência.


Os processos de insolvência apresentam uma sui generis variabilidade de potenciais configurações processuais, dependendo do número de apensos ao processo principal e ainda das diferentes pretensões que podem ser formuladas (com relativa autonomia) no próprio processo principal (como o incidente de exoneração do passivo restante), que os afastam, em vários aspetos, da generalidade dos processos de natureza civil, exigindo ao interprete uma adequada compreensão das regras processuais e do património doutrinal que têm por referente quadros processuais tradicionalmente padronizados (e não as especificidades dos processos de insolvência)1.


Nos presentes autos, nos quais está em causa uma pretensão remuneratória do administrador da insolvência, a pagar pela Massa Insolvente, não se pode afirmar que, em rigor, exista uma “contra-parte” principal, nos termos em que o art.631º, n.1 do CPC concebe a parte principal, enquanto sinónimo de sujeito demandado e, consequentemente, vencido.


O interesse remuneratório do administrador da insolvência não tem como imediato “contra-polo” o interesse direto de um outro sujeito processual que possa assumir a posição de vencido ou de vencedor, ou seja, enquanto parte principal (com inerente poder para dispor da relação processual). Aliás, usando apenas esse critério de natureza formal, concluir-se-ia que dificilmente alguém poderia recorrer de uma decisão como aquela que é objeto do presente recurso.


Todavia, sendo a remuneração do administrador judicial paga pela Massa Insolvente, os credores cujos créditos foram reconhecidos e graduados poderão ser prejudicados pela consequente redução do montante disponível para satisfação dos seus créditos (nomeadamente quando, como frequentemente acontece, a massa não é suficiente para o pagamento de todos os créditos).


Nesta medida, o MP, ao assumir a tutela dos créditos do Estado, constitui-se como representante de um credor que poderá ser diretamente prejudicado pela insuficiência da Massa Insolvente. Acresce que, sendo a Massa responsável pelo pagamento de custas do processo (art.304º do CIRE), cabe ainda ao MP a tutela do interesse no respetivo pagamento.


Por outro lado, para além de representante dos créditos do Estado, cabe ao MP nos processos de insolvência uma multiplicidade de funções que lhe conferem uma posição processual sui generis, assumindo intervenções que se identificam com as de uma parte acessória (art.631º, n.2 do CPC) e, essencialmente, com a defesa do interesse público, no sentido em que o 325º, n.3 do CPC prevê essa intervenção.


Dispõe o art.325º, n.3 do CPC (aplicável ex vi do art.17º do CIRE) que:


«O Ministério Público é notificado para todos os atos e diligências, bem como de todas as decisões proferidas no processo, nos mesmos termos em que o devam ser as partes na causa, tendo legitimidade para recorrer quando o considere necessário à defesa do interesse público ou dos interesses da parte assistida


A legitimidade do MP para interpor recursos em nome da defesa do interesse público assume particular expressão no art.691º do CPC, que lhe confere legitimidade para interpor recurso de uniformização de jurisprudência, mesmo não sendo parte na causa, tendo em vista, precisamente, a tutela dos interesses de certeza e segurança na administração da justiça.


Estes interesses podem ver-se espelhados também, em certa medida, no regime previsto no art.14º do CIRE. Este regime especial pressupõe a existência de oposição de acórdãos como pressuposto da intervenção do STJ no processo de insolvência, tendo em vista a orientação da jurisprudência, dando expressão aos valores de certeza e segurança na administração da justiça. Em certa medida, no caso concreto, ao interpor o recurso previsto no art.14º do CIRE, o MP atua também na defesa desses valores e na inerente promoção do interesse público respeitante à previsibilidade das decisões judiciais.


Conclui-se, assim, que nos termos dos diversos fundamentos legais referidos, o Ministério Público tem legitimidade para interpor o presente recurso de revista.


*


3.3. A questão da aplicação do direito substantivo:


3.3.1. Está em causa a questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta interpretação e aplicação do disposto no n.7 do artigo 23º do Estatuto do Administrador Judicial quando revogou a decisão da primeira instância sobre o montante da majoração da remuneração devida ao administrador da insolvência.


A primeira instância tinha fixado o valor da majoração nos seguintes termos:


«(…) considerando as contas já prestadas e aprovadas [apenso J]:


a) o montante das receitas obtidas = € 611.269,17;


b) o montante das despesas da liquidação, deduzido do montante relativo à remuneração fixa = € 100.929,61 [€ 102.989,61 de despesas aprovadas - € 2.460,00 relativos à remuneração fixa) + € 200,00 de despesas com o encerramento do processo + € 200,00 comissões bancárias relativas aos pagamentos].


c) o montante inscrito na conta de custas do processo = € 12.491,00.


O montante global dos créditos reconhecidos, considerando igualmente os créditos reconhecidos na ação de verificação ulterior de créditos, ascende ao montante de € 8.097.893,54.


Assim, o resultado da liquidação cifra-se em 497.848,56 [€ 611.269,17 - € 100.929,61- €12.491,00], pelo que a PRIMEIRA COMPONENTE DA REMUNERACÃO VARIÁVEL corresponde a 5% de tal valor, isto é, € 24.892,43, a que acresce IVA à taxa legal [23%], o que perfaz o montante de € 30.617,68.


Sobre o valor alcançado incide MAJORAÇÃO em função do grau de satisfação dos créditos reconhecidos.


No caso presente os créditos reconhecidos ascendem ao montante global de € 8.097.893,54.


Por outro lado, a quantia disponível para satisfação dos créditos corresponde ao montante de € 497.848,56, que deduzida a remuneração fixa e variável [esta sem a parte respeitante à majoração], ascende ao valor total de € 467.230 87 [€ 497.848,56 - 2.460 + 30.617,68].


Sendo assim, teremos de concluir que o grau de satisfação dos créditos equivalente à percentagem dos créditos admitidos que foram satisfeitos é de apenas 0,06 % [€ 467.230,87 x 100% : € 8.097.893,54] e nessa medida a MAJORAÇÃO DA REMUNERAÇÃO VARIÁVEL corresponde ao valor de € 1.347,91, a que acresce IVA à taxa legal [23%], o que perfaz o montante de € 1.657,93 [€ 467.230,87 x 5% x + 23%].


Donde, a REMUNERAÇÃO VARIÁVEL a auferir pelo Administrador de Insolvência cifrar-se-á no montante global de € 32.275,62 [€ 30.617,68 + € 1.657,93], com IVA incluído.»


O acórdão recorrido, procedendo a uma diferente interpretação do regime da majoração da remuneração do administrador, revogou a decisão da primeira instância, e fixou essa remuneração nos termos que se extratam:


«(…) tendo o valor disponível para satisfação dos créditos sido apurado nos autos na importância de €467.230,87 (já deduzida a remuneração fixa e variável) valor esse que não se mostra questionado neste recurso pelo Recorrente, a majoração ascenderá a € 23.361,54 a que acrescerá o IVA à taxa legal de 23%, no valor de €28.734,69.


Em virtude da alteração imposta pela presente decisão, a Remuneração Variável a atribuir ao Recorrente cifrar-se-á na importância global de €59.352,37, com IVA já incluído


E sumariou-se o critério seguido para proferir essa decisão nos seguintes termos:


«A majoração da remuneração variável do Administrador de Insolvência de 5% prevista no art. 23º nº 7 do EAJ deve ser calculada sobre o montante dos créditos satisfeitos (montante disponível para a satisfação dos créditos) e não sobre a percentagem dos créditos verificados que venha a ser satisfeita com o mesmo montante, consubstanciando aquele valor o grau ou medida de satisfação dos créditos reclamados e admitidos a que o preceito faz alusão, sem necessidade de se apurar previamente qualquer outra percentagem


3.3.2. O acórdão recorrido apresenta uma fundamentação dialogicamente compreensível, que este tribunal, naturalmente, respeita. Mas da qual diverge.


Apesar de serem legítimas as diferentes correntes interpretativas que se têm registado sobre o tipo de problema em análise nos presentes autos, decorre do art.14º do CIRE que a intervenção do STJ em matérias insolvenciais visa a orientação da jurisprudência, em nome da certeza e segurança na aplicação do direito.


Assim, na 6ª Secção do STJ, à qual cabe a competência especializada em matéria de insolvência, formou-se jurisprudência, decorrente de um entendimento unânime, no sentido de que o n.7 do artigo 23º do EAJ deve ser interpretado em sentido diverso daquele que se encontra sustentado no acórdão recorrido.


Deste modo, devem ser reiterados no presente caso os argumentos que determinaram o STJ a seguir, no acórdão proferido em 18.04.2023 (no processo n. 3947/08.2TJCBR-AY.C1.S1)2, interpretação divergente daquela que é sustentada no acórdão recorrido quanto à questão normativa em causa.


Extrata-se a fundamentação desse acórdão nos seguintes termos:


A formulação literal do n.7 do art.23º do EAJ não é isenta de dificuldades interpretativas.


Tais dificuldades identificam-se também quanto à determinação do sentido e alcance de outras disposições que regem a remuneração do administrador judicial (tanto enquanto administrador de insolvência, como enquanto administrador judicial provisório), das quais aqui se não cuidará porque o objeto do presente recurso se restringe ao n.7 do art.23º3.


A remuneração do administrador judicial em processo de insolvência, havendo liquidação, é integrada por uma parte fixa (art.23º, n.1) quantificada em €2.0004 e por uma parte variável, subdividida em dois vetores: um previsto nos números 4 e 6 do art.23º e outro previsto no n.7 (majoração). É apenas este segundo vetor da remuneração variável que está em causa no presente recurso.


Dispõe o n.7 do art.23º do Estatuto do Administrador Judicial5:


«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos, sendo o respetivo valor pago previamente à satisfação daqueles


A interpretação seguida no acórdão recorrido implica desconsiderar um segmento literal do n.7 do art.23º; precisamente aquele onde se lê: «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».


Amputando a norma deste segmento literal, ela apresentaria a seguinte configuração:


«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 5 e 6 é majorado (…) em 5 /prct. do montante dos créditos satisfeitos (…)».


Com tal literalidade, o n.7 do art.23º expressaria claramente a tese sufragada pelo acórdão recorrido.


Porém, desconsiderar um segmento de uma norma (como se dele tivesse sido amputada) equivale a fazer uma interpretação ab-rogante dessa norma, ou seja, significa concluir que o legislador expressou aquilo que não queria dizer, e que, portanto, tal disposição não pode ter qualquer sentido normativo útil.


O intérprete concluiria, como afirma Oliveira Ascensão «(…) que esse texto proclamado como lei não contém, apesar das aparências, nenhuma regra6


Porém, tendo presentes o “princípio do aproveitamento das leis” e a “presunção de racionalidade da legislação7, no percurso interpretativo do conjunto das regras que disciplinam a remuneração do administrador de insolvência, chega-se à conclusão que não existe oposição com qualquer outra norma que permita sustentar uma interpretação ab-rogante (lógica ou valorativa) do segmento literal «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» do n.7 do art.23º.


Efetivamente, numa análise intra-sistemática, conclui-se que esse segmento do n.7 não conflitua com qualquer outro dos números do art.23º (que preveem hipóteses distintas da hipótese de majoração da remuneração do administrador). Ampliando o campo de análise às demais normas que, direta ou indiretamente, respeitam à matéria da remuneração do administrador, também não é identificável qualquer disposição de natureza especial ou de prioridade sistemática que pudesse esvaziar de sentido lógico ou normativo o segmento do n.7 do art.23º que aqui está em equação.


Conclui-se, portanto, não existir fundamento para fazer uma interpretação ab-rogante do referido segmento dessa norma.


Considerando que o legislador se pode expressar de modo imperfeito, mas que não cria disposições inócuas, deverá o intérprete encontrar um sentido normativamente útil para o referido segmento do n.7 do art.23º, tendo presentes os parâmetros previstos no art.9º do Código Civil.


Nestes termos, e num percurso dialógico com a interpretação do acórdão recorrido, cabe apurar se as alterações introduzidas pela Lei n.9/2022 permitirão uma interpretação restritiva do n.7 do art.23º, teleologicamente orientada pelo propósito legislativo de aumentar a majoração da remuneração do administrador.


Para se responder a tal questão, e perceber se a Lei n.9/2022 teve como propósito alterar o critério normativo destinado a encontrar a fórmula da majoração, há que ter presente a


evolução legislativa das disposições reguladoras da majoração da remuneração do administrador de insolvência.


Que a Lei n.9/2023 alterou a percentagem a aplicar ao montante a ser considerado para efeitos de majoração não existem dúvidas, pois a nova redação dada ao n.7 do art.23º é clara ao consagrar uma percentagem de 5%, em vez da percentagem que se encontrava estabelecida, entre 1% a 1.6%, pela Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro (que, nessa matéria, ficou esvaziada de sentido normativo).


Questão diferente, e é essa que ocupa o objeto do presente recurso, é a de saber a que montante se aplica aquela percentagem de 5%.


Como já referido, a atual redação do n.7 do art.23º do EAJ foi introduzida pela Lei n.9/2022. Porém, a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» não surgiu ex novo com a reforma introduzida por essa lei; ela já constava das normas que antecederam o n.7 do art.23º.


Tal expressão tem um lastro legislativo que remonta à Lei n.32/2004 (antigo Estatuto do Administrador da Insolvência)8, cujo artigo 20º, n.4 dispunha:


«O valor alcançado por aplicação da tabela referida no n.º 2 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos factores constantes da portaria referida no n.º 1


A portaria para a qual esta norma remetia era a Portaria n.51/2005, de 20 de janeiro, do Ministério das Finanças e da Administração Pública e do Ministério da Justiça, cujo Anexo II continha uma tabela onde se encontravam previstos os fatores de majoração da remuneração do administrador, estabelecendo uma lista de correspondência entre a percentagem dos créditos reclamados que foram satisfeitos e o respetivo fator de majoração (entre 1% e 1,6%).


Quando a Lei n.32/2004 foi revogada pela Lei n.22/2013 (que estabeleceu o Estatuto do Administrador Judicial) aquela norma passou a corresponder ao n.5 do artigo 23º do EAJ, com o seguinte teor:


«O valor alcançado por aplicação das tabelas referidas nos n.os 2 e 3 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1. »


Continuou a fazer-se a remissão para a referida Portaria n.51/2005, a qual continuou em vigor, apesar de ter ficado desatualizada, pois literalmente continuava a referir-se ao artigo 20º da Lei 32/2004 (revogada pela Lei 22/2013).


Com a alteração introduzida no art.23º pelo DL n.52/2019 (de 17 de abril), o alcance normativo do n.5 deste artigo não se alterou, tendo a alteração consistido apenas num ajustamento à numeração que antecedia esta norma. O seu teor passou a ser o seguinte:


«O valor alcançado por aplicação das regras referidas nos n.os 3 e 4 é majorado, em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos, pela aplicação dos fatores constantes da portaria referida no n.º 1


Com a Lei n.9/2022, a previsão que até então se encontrava no n.5 do art.23º passou para o n.7 deste artigo, tendo desaparecido a remissão para a Portaria n.51/2005. Ao mesmo tempo, o legislador operou uma alteração relativamente às percentagens que antes constavam dessa portaria. Assim, em vez da percentagem que variava entre 1% e 1.6%, aplicáveis ao montante resultante do fator de satisfação, a lei 9/2022 estabeleceu uma percentagem fixa de 5%, que passou a constar do n.7 do art.23º.


Constata-se, assim, que com a Lei n.9/2022 o legislador não abandonou o critério normativo correspondente à expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos», que já vinha da Lei n.32/2004.


Todavia, na nova redação do n.7, ao procurar explicitar o objeto de referência daquela percentagem, o legislador referiu-se ao «montante dos créditos satisfeitos», o que sustenta a tese no sentido de os 5% respeitarem à totalidade dos créditos satisfeitos, rectius, ao montante total destinado à satisfação dos créditos.


Apesar de literalmente imperfeita, essa expressão [montante dos créditos satisfeitos] não é necessariamente contraditória com o segmento literal que a antecede.


Na realidade, o montante a que se chega depois de aplicado o fator correspondente ao grau de satisfação dos créditos não deixa de ser um montante de créditos satisfeitos, ou seja, um montante destinado à satisfação de créditos.


Feito este percurso histórico, pode concluir-se que se o legislador da Lei n.9/2022 tivesse pretendido alterar o critério normativo (que já vinha da Lei n.32/2004) dificilmente se compreenderia que não o tivesse feito de forma clara, abandonando a expressão «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos».


Porém, não se identifica qualquer argumento sólido para sustentar essa eventual mudança de orientação legislativa. É inequívoco que a Lei n.9/2022 pretendeu favorecer o administrador, alterando a percentagem da majoração para 5%, em vez dos valores mais reduzidos que constavam da Portaria n.51/2005. Mas não é possível concluir que o legislador o tivesse pretendido favorecer em mais do que isso.


Ao manter o valor da remuneração fixa (em 2.000 €), no n.1 do art.23º, não parece que o legislador tenha dado um sinal de pretender melhorar significativamente a remuneração do administrador independentemente dos resultados alcançados pelo seu labor em cada caso concreto. Neste sentido, é possível concluir que o legislador terá pretendido fazer depender uma maior remuneração de um maior grau de empenho do administrador na satisfação do interesse dos credores.


Por outro lado, tendo presente que a Lei n.9/2022 transpôs a Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, importa indagar se (nos considerandos ou no articulado) tal Diretiva contém alguma referência à remuneração do administrador.


Entre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos de insolvência, encontra-se o artigo 27º daquela Diretiva, o qual se refere à supervisão e à remuneração do administrador.


No n.4 deste artigo dispõe-se que:


«Os Estados-Membros asseguram que a remuneração dos profissionais se reja por regras que sejam compatíveis com o objetivo de uma resolução eficiente dos processos


Embora desta disposição não resulte um comando legislativo destinado a modelar diretamente as normas reguladoras da remuneração do administrado, o apelo a um propósito de eficiência compatibiliza-se melhor com uma majoração calculada «em função do grau de satisfação dos créditos reclamados e admitidos» (como consta do n.7 do art.23º do EAJ) do que com uma interpretação que não depende de qualquer grau de satisfação.


Pode ainda acrescentar-se que, caso subsistissem dúvidas interpretativas quanto à definição do critério de calculo da majoração que o legislador terá pretendido consagrar no n.7 do art.23º, constatando-se que determinado critério favorece mais os interesses do administrador, enquanto que o critério alternativo favorece mais os interesses dos credores, sempre os princípios estruturantes do regime da insolvência haveriam de ser ponderados para dissipar tais dúvidas. E a resposta encontrar-se-ia no artigo 1º do CIRE, nos termos do qual o processo de insolvência tem como finalidade a satisfação dos credores, nomeadamente através da repartição do produto da liquidação do património do devedor.


Em síntese, tendo-se formado jurisprudência unânime no STJ em sentido diverso daquele que é defendido no acórdão em revista, esta decisão terá de ser revogada.


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DECISÃO: Pelo exposto, concede-se a revista, e revoga-se o acórdão recorrido, ficando a prevalecer a decisão da primeira instância.


Custas pelo recorrido.


Lisboa, 17.10.2023


Maria Olinda Garcia (Relatora)


António Barateiro Martins


Maria Amélia Ribeiro


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1. Na generalidade da doutrina processualista não se encontra tratada a questão da legitimidade do MP para recorrer em matérias de direito da insolvência.↩︎

2. Publicado no site:

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f34907e46eeccf1680258996002ab8f1?OpenDocument↩︎

3. Para uma análise detalhada dos múltiplos problemas interpretativos emergentes da atual disciplina da matéria sobre a remuneração do administrador judicial, veja-se: Nuno Araújo, “A remuneração do Administrador Judicial depois de abril de 2022”, in Data Venia – Revista Jurídica Digital, n.13, 2022.↩︎

4. Este montante já constava da Portaria n.51/2005 (de 20 de janeiro), passando a ser referido diretamente pelo n.1 do art.23º após a alteração introduzida pela Lei n.9/2022, a qual manteve tal montante inalterado.↩︎

5. Aprovado pela Lei n.22/2013 (entretanto, objeto de múltiplas alterações).↩︎

6. O Direito – Introdução e Teoria Geral (13ª ed.), página 428.↩︎

7. Vd. Oliveira Ascensão, op. cit., página 429.↩︎

8. Revogada pela Lei n.22/2013.↩︎