Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1320/17.0T8CBR.C1-A.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
ALÇADA
ACESSO AO DIREITO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / PROCEDIMENTOS CAUTELARES / PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM / RECURSOS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / DISPOSIÇÕES GERAIS / RECURSOS.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 14 ; Uniformização de Jurisprudência cível, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, p. 621;
- Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Reforma 2007, Coimbra Editora, 2009, p. 143;
- Lopes do Rego, O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 764;
- Miguel Teixeira de Sousa, anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2 de junho de 2015, Blog do IPPC (Instituto Português de Processo Civil), in https://blogippc.blogspot.com/2015/06/jurisprudencia-157.html;
- Ribeiro Mendes, Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126;
- Vital Moreira e António Vitorino, no Acórdão nº 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, p. 653, e no Acórdão nº 202/90, id., vol. 16, p. 505.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 370.º, N.º 2, 629.º, N.º 2, ALÍNEA D) E 672.º, N.º 1, ALÍNEA C).
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGO 14.º, N.º 1.
CÓDIGO DAS EXPROPRIAÇÕES (CEXP): - ARTIGO 66.º N.º 5.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 17-11-2015, PROCESSO N.º 3709/12.2YYPRT.P1.S1;
- DE 04-07-2017, RECLAMAÇÃO N.º 224/08.2TBESP.1.P2-B.S1;
- DE 14-05-2019, PROCESSO N.º 12/12.1TBGMR-F.G1.S2.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 458, IN APÊNDICE DR, DE 23-08-1983, P. 120;
- ACÓRDÃO Nº 31/87, IN ATC, VOL. 9, P. 463;
- ACÓRDÃO N.º 202/90;
- ACÓRDÃO N.º 330/90;
- ACÓRDÃO N.º 340/90, IN ATC, VOL. 17, P. 349;
- ACÓRDÃO N.º 275/94;
- ACÓRDÃO N.º 239/97;
- ACÓRDÃO N.º 100/99;
- ACÓRDÃO N.º 238/2002;
- ACÓRDÃO N.º 39/2005;
- ACÓRDÃO N.º 701/2005;
- ACÓRDÃO N.º 83/2009;
- ACÓRDÃO N.º 383/2009;
Sumário :

I - Só é admissível recurso de revista excecional, caso se verifiquem os pressupostos gerais atinentes ao valor da causa e à sucumbência.


II - O recurso prescrito na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC tem como  justificação o objetivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, por motivos de ordem legal que não dizem respeito à alçada do tribunal, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça – como por exemplo, em sede de insolvência (artigo 14.º, n.º 1, do CIRE), expropriações (artigo 66.º, n.º 5, do Código das Expropriações) ou providências cautelares (artigo 370.º, n.º 2, do CPC).

III - Se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista "ordinária" nos termos do artigo 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excecional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no artigo 672.º, n.º 1, al. c), CPC. Sempre que se verificasse uma contradição entre acórdãos das Relações seria admissível uma revista "ordinária", não havendo nenhuma necessidade de prever para a mesma situação uma revista excecional.

IV - A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem assumindo que a Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de atos jurisdicionais, manifestamente inexistente nas normas do Código de Processo Civil relativas aos requisitos de admissibilidade do recurso de revista. 

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

            I - Relatório

1. AA, Lda, ré e recorrente, identificada nos autos à margem referenciados, interpôs recurso de revista do acórdão da Relação de Coimbra, que julgou improcedente o recurso de apelação e manteve a decisão recorrida, ainda que com um fundamento distinto. Mais afirmou que o recurso de revista seria de admitir como revista excecional, ao abrigo do artigo 672.º, n.º1, al. c), do CPC, por o acórdão de que pretende recorrer estar em oposição com outro, no domínio da mesma legislação e que decidiu, de forma divergente, a mesma questão de direito, tendo para o efeito juntado acórdãos fundamento, proferidos pelos tribunais superiores.

O Tribunal da Relação de Coimbra, classificando o caso como de dupla conformidade absoluta, não admitiu o recurso de revista excecional, por entender que se encontrava não verificado o requisito do valor da ação.

2. AA, Lda, tendo sido notificada do despacho de não admissão do recurso de Revista Excecional para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), veio dele reclamar, nos termos e para os efeitos do artigo 643.º do Código de Processo Civil (CPC), na medida em que se lhe afigura errónea a interpretação havida no que concerne à verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade, designadamente à verificação do valor de ação para o efeito de apreciação de admissão de revista excecional.

Por decisão singular, datada de 2 de outubro de 2019, a Relatora indeferiu a reclamação e confirmou a decisão reclamada, com a seguinte fundamentação:

«A presente ação foi instaurada em 2017 e o acórdão recorrido data de 20 de fevereiro de 2019, já após a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho.

Assim, o regime recursório aplicável aos presentes autos, no que respeita à interposição e alegação do recurso de revista, atenta a data em que foi proferido o acórdão recorrido, é já o do novo Código de Processo Civil, por força do princípio da aplicação imediata da lei processual.

A reclamante interpôs recurso de revista, ao abrigo do artigo 671.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, entendendo que não estão verificados os requisitos de dupla conformidade, por ter sido essencialmente diferente a fundamentação da sentença de 1.ª instância e do acórdão do Tribunal da Relação.

Subsidiariamente, interpõe revista excecional, por o acórdão de que pretende recorrer estar em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do CPC, jurisprudência com ele conforme.

O Tribunal da Relação entendeu que se verificava uma situação de dupla conformidade absoluta, pelo que não haveria fundamento para recurso do acórdão recorrido.

Porém, uma vez que a recorrente invoca também o recurso de revista excecional, o Tribunal da Relação, ao verificar os pressupostos gerais de recorribilidade, entendeu que, tendo presente que o valor da ação, de montante equivalente ao valor do pedido – 16.510, 37 euros, acrescidos de juros de mora – é inferior à alçada do tribunal da Relação (30.000 euros), o recurso não é admissível.

A reclamante discorda da decisão, invocando a norma do artigo 629.º, n.º 2, do CPC, segundo a qual «Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso», indicando, designadamente, as alíneas c) e d) da citada norma do CPC.

Contudo, não tem razão.

Na verdade, existe já uma jurisprudência sedimentada, neste Supremo Tribunal de Justiça, que interpreta as normas do CPC relativas ao recurso de revista excecional, como condicionando sempre a admissibilidade desta espécie de recurso aos requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista, inclusive ao requisito do valor e da sucumbência, mesmo nos casos de oposição de julgados.

Nestes termos, vide o Acórdão de 04-07-2017, Reclamação n.º 224/08.2TBESP.1.P2-B.S1 - 1.ª Secção, em cujo sumário se afirma que:

 «Só é admissível recurso de revista excepcional, caso se verifiquem os pressupostos gerais atinentes ao valor da causa e à sucumbência. II - Sendo o valor da causa (€ 28 481, 80) inferior à alçada do tribunal da Relação (€ 30 000), não é admissível recurso de revista, excepcional ou normal (art. 629.º, n.º 1, do CPC e o actual art. 44.º da LOSJ). III - A jurisprudência, designadamente a do TC, vem assumindo que, no nosso ordenamento jurídico, o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, não integra forçosamente um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário o estabelecimento do conteúdo do genérico direito ao recurso de actos jurisdicionais com uma redução intolerável ou arbitrária, arbitrariedade que não afecta, manifestamente, o disposto na norma do art. 629.º, n.º 1, do CPC».

No mesmo sentido o acórdão deste Supremo Tribunal, de 20-12-2017 (2841/16.8T8LSB.L1.S1), conclui o seguinte:

«III- A lei processual civil consagra, quanto à admissibilidade de recurso, um regime que o faz depender, cumulativamente, do valor da causa (alçada) e do valor da sucumbência (da perda, do decaimento relativamente ao(s) pedido(s) formulado(s)), relevando, no entanto, apenas aquele, em caso de fundada dúvida sobre este.

IV – No presente caso a Reclamante/Recorrente invoca a contradição do Acórdão recorrido com outros Acórdãos proferidos pelos Tribunais da Relação do Porto, Coimbra e Guimarães (art. 629º, nº 2, alínea d), do CPC). Sucede que, para além da existência da contradição de Acórdãos no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, o art. 629º, n.º 2, al. d), exige também que do Acórdão recorrido “… não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal…”. Nessa medida, a previsão do art. 629º, n.º 2, al. d), do CPC, não é aplicável ao caso sub judice, uma vez que o Acórdão recorrido não é passível de recurso ordinário justamente por causa da alçada do Tribunal e não por qualquer outro motivo legal estranho àquele requisito.

V – O recurso de revista excepcional não constitui uma modalidade extraordinária de recurso, mas antes um recurso ordinário de revista, criado pelo legislador, na reforma operada ao Código de Processo Civil, com vista a permitir o recurso nos casos em que o mesmo não seja admissível em face da dupla conformidade de julgados, nos termos do art. 671º, nº 3, do CPC, e desde que se verifique um dos requisitos consagrados no art. 672º, nº 1, do mesmo Código. Por conseguinte, a sua admissibilidade está igualmente dependente da verificação das condições gerais de admissão do recurso de revista, como sejam o valor da causa e o da sucumbência, exigidas nos termos enunciados pelo nº 1, do art. 629º, do CPC.»

 

 No mesmo sentido, veja-se, também, entre outros, o acórdão de 17-11-2015 (proc. n.º 3709/12.2YYPRT.P1.S1), onde se entendeu estar a admissibilidade do recurso de revista excecional baseado em oposição de acórdãos relativamente à mesma questão de direito ou em violação de jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal dependente do critério do valor da ação.

Esta interpretação normativa está em conformidade com a Constituição, pois o artigo 20.º da CRP não impõe um segundo grau de recurso e admite, por razões de racionalidade, a estipulação pelo legislador ordinário de critérios de admissibilidade do recurso que tenham em conta o valor da ação.

 Também não é violado o princípio da igualdade, ínsito no artigo 13.º da CRP. As alçadas, bem como todos os mecanismos de 'filtragem' de recursos, originam desigualdades (partes há que podem recorrer e outras não), mas estas não se configuram como discriminatórias, já que todas as ações contidas no espaço de determinada alçada são, em matéria de recurso, tratadas da mesma forma. 

O legislador dispõe de margem de determinação para fazer prevalecer, em matéria de recurso para o Supremo, a racionalização do sistema judiciário, de forma a evitar que toda e qualquer questão possa ser submetida a um terceiro grau de jurisdição.

  A existência de limitações de recorribilidade, designadamente através do estabelecimento de alçadas (de limites de valor até ao qual um determinado tribunal decide sem recurso), funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das ações aos diversos 'patamares' de recurso.

A interpretação adotada pelo Tribunal da Relação não fere assim qualquer preceito nem princípio constitucional».

3. Inconformada a reclamante, AA, Lda, veio, nos termos do artigo 652.º, n.º 3, do CPC, apresentar reclamação para a conferência, formulando alegações, que aqui se consideram integralmente reproduzidas, nas quais conclui que:

 «Não se compreende assim a não admissão do recurso interposto com sustento em não verificação do requisito do valor, que se afigura manifestamente ilegal, violando os princípios da legalidade, da igualdade, da realização da justiça, do acesso ao direito, e da certeza e segurança jurídica, plasmados na Constituição da República Portuguesa (CRP).

Assim, e porque a lei directa e expressamente determina e prevê a derrogação do dito critério do valor, deve o recurso ser deferido/recebido e devidamente tramitado».

             Cumpre apreciar e decidir.

            II - Fundamentação

 

1. A reclamante defende que a orientação adotada na decisão singular, para além de não ser unânime, é contra legem, entendendo que o recurso de revista excecional é sempre admissível, independentemente do valor e da sucumbência nos casos das alíneas c) e d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil. Afirma a reclamante que, não obstante existir uma corrente jurisprudencial no Supremo Tribunal de Justiça que procede a uma interpretação conjunta dos artigos 671.º, n.º1, 672.º, n.º 1, al. c), e 629.º, n.º 2, do CPC, no sentido de a admissibilidade da revista excecional estar sempre dependente da verificação dos requisitos da revista geral, designadamente do requisito da alçada, mesmo nos casos de contradição de acórdãos, esta interpretação viola a letra da lei e o seu espírito, bem como normas e princípios constitucionais designadamente os princípios da legalidade, da igualdade, da realização da justiça, do acesso ao direito, e da certeza e segurança jurídica, plasmados na Constituição da República Portuguesa (artigos 3.º, 13.º, 20.º e 266.º da CRP), bem como o princípio da separação dos poderes.

Contudo, não tem razão.

Na verdade, a orientação jurisprudencial agora impugnada reporta-se à redação atual das normas do Código de Processo Civil.

As normas aplicáveis dispõem o seguinte:


     Artigo 629.º

Decisões que admitem recurso


1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.

2 - Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

a) (…)

b) (…)

c) (…)

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme. (realce nosso)

3 - (…)

a) (…)

b) (…)

c) (…)


Artigo 671.º

Decisões que comportam revista


1 - Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

2 - (…)

3 - Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

4 - (…)


Artigo 672.º - Revista excecional

       1 - Excecionalmente, cabe recurso de revista do acórdão da Relação referido no n.º 3 do artigo anterior quando:

            a) ….

            b) ….

             c) O acórdão da Relação esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

A jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido que só é admissível recurso de revista excecional, baseado em oposição de acórdãos relativamente à mesma questão de direito ou em violação de jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal caso se verifiquem os pressupostos gerais atinentes ao valor da causa e à sucumbência (cfr., entre outros, Acórdãos de 04-07-2017, Reclamação n.º 224/08.2TBESP.1.P2-B.S1  e o acórdão de 17-11-2015, proc. n.º 3709/12.2YYPRT.P1.S1).

A interpretação das normas relativas à  admissibilidade do recurso de revista deve ser feita de forma conjugada e atendendo a todos os elementos de interpretação da teoria do direito. O reclamante baseia essencialmente a sua tese na letra do artigo 629.º, n.º 2, do CPC, na parte em que o legislador afirma “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso”, sem a conjugar com a expressão constante da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º, que se refere ao «motivo estranho à alçada», nem com a ratio das normas que definem os pressupostos do recurso de revista geral e do recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça, designadamente os artigos 671.º e 672.º do CPC.
A letra da lei consiste apenas num ponto de partida, que deve ser ponderado juntamente com o elemento histórico, racional e sistemático de interpretação, para, assim, reconstituir o pensamento legislativo.
Vejamos:
O recurso previsto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do atual CPC, reintroduzido pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, encontra o seu precedente histórico no artigo 678.º, n.º 4, do CPC anterior à Reforma de 2007. Este último preceito foi, por sua vez, introduzido no regime de recursos civis pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, dispondo que «É sempre admissível recurso, a processar nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B, do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça». Tal redação foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 38/2003, de 8 de março, que suprimiu a referência ao processamento do recurso nos termos dos artigos 732.º-A e 732.º-B do CPC.
O Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, que operou a reforma do CPC anterior à vigente, centrada essencialmente em matéria de recursos e movida por objetivos de simplificação, celeridade processual e racionalização no acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuou, deste modo, a sua função de orientação e uniformização de jurisprudência, revogando o artigo 678.º, n.º 4, do CPC.  
     O recurso prescrito na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC tem como justificação o objetivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, por motivos de ordem legal que não dizem respeito à alçada do tribunal, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça – como por exemplo, em sede de insolvência (artigo 14.º, n.º 1, do CIRE), expropriações (artigo 66.º, n.º 5, do Código das Expropriações) ou providências cautelares (artigo 370.º, n.º 2, do CPC).
No mesmo sentido, a doutrina (Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 2 de junho de 2015, Blog do IPPC (Instituto Português de Processo Civil), disponível em https://blogippc.blogspot.com/2015/06/jurisprudencia-157.html), entende que «o art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC só é aplicável se houver uma exclusão legal da revista por um motivo que nada tenha a ver com a relação entre o valor da causa e a alçada do tribunal ou, mais em concreto, se a lei excluir a admissibilidade de uma revista que, de outro modo, seria admissível». Afirma o autor que «há uma (boa) razão de ordem sistemática para se entender que o disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC não pode dispensar a admissibilidade da revista nos termos gerais (sendo nomeadamente necessário, para a admissibilidade da revista, que o valor da causa exceda a alçada da Relação)», desde logo, porque «se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista "ordinária" nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excecional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC». Assim, defende que «a única forma de atribuir algum sentido útil à contradição de julgados das Relações que consta, em sede de revista excecional, do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC é pressupor que a revista "ordinária" não é admissível sempre que se verifique essa mesma contradição», na medida em que só «nesta base é possível compatibilizar a vigência do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC com a do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC».  
Resumindo o que entende ser a fórmula que traduz a teleologia do «art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC», o mesmo autor conclui que «este preceito estabelece uma recorribilidade para acórdãos que são recorríveis nos termos gerais e irrecorríveis por exclusão legal», justificando que dada a «exclusão da revista por um critério legal independente da relação do valor da causa com a alçada do tribunal, há que instituir um regime que permita que o STJ possa pronunciar-se (e, nomeadamente, uniformizar jurisprudência) sobre matérias relativas aos procedimentos cautelares e aos processos de jurisdição voluntária», sendo que é «precisamente essa a função do disposto no art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC».

 
O artigo 671.º, n.º 1, do CPC vigente, cuja epígrafe se cifra em «Decisões que comportam revista», integrando-se no Capítulo III, atinente ao recurso de revista, consiste numa norma de enquadramento que delimita, em termos gerais, o recurso de revista, cuja amplitude se justifica, como refere Armindo Ribeiro Mendes (Recursos em Processo Civil, Reforma 2007, Coimbra Editora, 2009, p. 143) por uma «política assumida de restringir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça». De facto, a limitação do acesso ao órgão de cúpula da ordem jurisdicional tem sido uma preocupação do legislador manifestamente presente nas últimas reformas do sistema de recursos em processo civil, com maior expressão na reforma de 2007 (operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto), que incidiu fortemente na disciplina dos recursos, na qual se assumiu expressamente o desiderato de «dar resposta à notória tendência de crescimento de recursos cíveis entrados neste [Supremo Tribunal de Justiça], (…) assim criando condições para um melhor exercício da sua função de orientação e uniformização da jurisprudência».
No CPC aprovado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de agosto, no n.º 1 do artigo 721.º, antecessor do atual n.º 1 do artigo 671.º do CPC, dispunha-se que «cabe recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação proferido ao abrigo do n.º 1 e da alínea h) do n.º 2 do artigo 691.º», isto é, do acórdão que se pronuncie sobre decisão do tribunal de 1.ª instância que ponha termo ao processo ou que, sem pôr termo ao processo, decida, por despacho saneador, do mérito da causa». Já no sistema de recursos anterior à reforma de 2007, o artigo 721.º, n.º 1, do CPC, preceituava que «cabe recurso de revista do acórdão da Relação que decida do mérito da causa», tomando, assim, por referência, para a admissibilidade do recurso de revista, o conteúdo do acórdão proferido pela Relação, independentemente do sentido da decisão proferida em 1.ª instância.
Na reforma de 2013, o setor dos recursos não sofreu alterações substanciais, tendo o legislador sido sensível ao facto de a reforma de 2007 estar ainda numa fase muito inicial, que «desaconselhava uma remodelação do quadro legal instituído» (vide Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 113/XII). Logo, o CPC de 2013 manteve presente os objetivos da reforma de 2007, designadamente, o de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, que se concretizou com o «aumento do valor das alçadas e as restrições específicas ao recurso de revista», deste modo, permitindo «requalificar a função» de tal instância superior (vide Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 14).
Assim, tem sido apanágio das reformas legislativas operadas em matéria de recursos cíveis a compatibilização entre o direito ao recurso, que visa potenciar a segurança jurídica, e a necessidade de racionalizar, de modo equilibrado, a gestão dos meios humanos e materiais, atribuindo-se, sucessivamente, um caráter excecional à intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, que se pretende reservado para as questões de maior merecimento jurídico.
A limitação da admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, contra a qual o reclamante se insurge, entendendo que a mesma padece de ilegalidade e de inconstitucionalidade, resulta da ratio do recurso previsto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC – que visa garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações em processos que, pela especialidade da matéria, não têm possibilidade de alcançar o Supremo Tribunal de Justiça, por nunca ser admissível o recurso de revista por motivo estranho à alçada (realce nosso) – conjugada com o objetivo de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, que se pretende reservado à sua qualificada função de estabilização da interpretação e aplicação da lei, em ordem a garantir a unidade do direito.

Ora, tal limitação assenta na ponderação dos requisitos de admissibilidade que estreita o acesso ao triplo grau de jurisdição da revista excecional, dirigida à uniformização de jurisprudência dos tribunais da Relação, com base no critério do valor da ação. Na verdade, o alcance amplo que a reclamante pretende dar ao artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, determinaria uma incoerência teleológica no sistema de recursos, na medida que o recurso de revista ordinário, baseado na contradição entre acórdãos dos tribunais da Relação, não dependeria do critério do valor nem da sucumbência, enquanto o recurso de revista excecional para dirimir conflitos de jurisprudência, previsto no artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, estaria sujeito ao requisito do valor e da sucumbência como resulta das regras gerais do recurso. Contudo, o artigo 629.º, n.º 2, al. d), reporta-se, como vimos, apenas às matérias (e só a estas) que não admitem recurso por motivo estranho à alçada (por exemplo, como vimos, questões de insolvência e de expropriações), e que passam a admiti-lo quando haja conflito de jurisprudência entre acórdãos dos tribunais da Relação, não prescindindo a lei processual, interpretada no seu conjunto, do critério de recorribilidade do valor da ação e da sucumbência, nos termos do artigo 629.º, n.º 1, do CPC (cfr. O Acórdão de 14/05/2019, proc. n.º 12/12.1TBGMR-F.G1.S2, a propósito do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, e a jurisprudência nele citada, segundo a qual, em matéria de insolvência, o recurso por contradição de acórdãos não dispensa a verificação dos pressupostos gerais do valor da causa e da sucumbência em confronto com a alçada legal).
 Estas limitações ao recurso de revista foram pretendidas pelo legislador, de acordo com os objetivos das sucessivas reformas do CPC, que visaram alcançar um descongestionamento do Supremo Tribunal de Justiça, afastando do terceiro grau de jurisdição os casos de diminuto valor económico, mesmo que as decisões impugnadas estejam em contradição com outras dos tribunais da Relação. A justificação desta solução, tal como as restantes limitações ao direito ao recurso, decorre, como refere Lopes do Rego (O direito fundamental do acesso aos tribunais e a reforma do processo civil, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 764), «(…) da própria natureza das coisas, da necessidade imposta por razões de serviço e pela própria estrutura da organização judiciária de não sobrecarregar os Tribunais Superiores com a eventual reapreciação de todas as decisões proferidas pelos restantes tribunais».

 
2. Relativamente à pretensa questão de constitucionalidade suscitada ao tribunal recorrido, também não tem razão a reclamante.
Em primeiro lugar, é duvidoso que se possa entender que a forma como a questão está formulada, no artigo 17.º das alegações, observa o requisito de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, que consiste na suscitação prévia e processualmente adequada de uma questão de constitucionalidade normativa, nos termos exigidos pela jurisprudência do Tribunal Constitucional. É que a alegada violação de normas e princípios constitucionais parece ser imputada à decisão recorrida e não a uma interpretação normativa, definida em termos gerais e abstratos, destacados da especificidade do caso concreto.
Ainda assim, interpretando o artigo 17.º das alegações, contextualizado na totalidade do corpo das mesmas, conhece-se a pretensa questão de constitucionalidade da interpretação que sujeita a admissibilidade do recurso de revista excecional, baseado em contradição de acórdãos, nos termos do artigo 672.º, n.º 1, alínea c), do CPC, ao critério do valor da ação, com base na interpretação conjugada do arco normativo composto pelos artigos 629.º, n.º 2, alínea d), 671.º, n.º 1, e 672.º, n.º 1, al. c), todos do CPC.
O Tribunal Constitucional tem entendido que «o direito ao recurso em processo civil, e sobretudo o acesso ao recurso junto do Supremo Tribunal de Justiça, não encontra previsão expressa no artigo 20.º da Constituição, não resultando como uma imposição constitucional dirigida ao legislador, que, neste âmbito, dispõe de uma ampla margem de liberdade» (cfr. entre outros, Acórdão n.º 361/2018). O referido aresto sustentou tal conclusão na jurisprudência consolidada do Tribunal Constitucional quanto à densificação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, da qual destacou o Acórdão n.º 638/98, que, no que ora importa, dispõe do seguinte modo:

«O artigo 20º, nº 1, da Constituição assegura a todos «o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos».

Tal direito consiste no direito a ver solucionados os conflitos, segundo a lei aplicável, por um órgão que ofereça garantias de imparcialidade e independência, e face ao qual as partes se encontrem em condições de plena igualdade no que diz respeito à defesa dos respetivos pontos de vista (designadamente sem que a insuficiência de meios económicos possa prejudicar tal possibilidade). Ao fim e ao cabo, este direito é ele próprio uma garantia geral de todos os restantes direitos e interesses legalmente protegidos.

Mas terá de ser assegurado em mais de um grau de jurisdição, incluindo-se nele também a garantia de recurso? Ou bastará um grau de jurisdição?

A Constituição não contém preceito expresso que consagre o direito ao recurso para um outro tribunal, nem em processo administrativo, nem em processo civil; e, em processo penal, só após a última revisão constitucional (constante da Lei Constitucional nº 1/97, de 20 de setembro), passou a incluir, no artigo 32º, a menção expressa ao recurso, incluído nas garantias de defesa, assim consagrando, aliás, a jurisprudência constitucional anterior a esta revisão, e segundo a qual a Constituição consagra o duplo grau de jurisdição em matéria penal, na medida (mas só na medida) em que o direito ao recurso integra esse núcleo essencial das garantias de defesa previstas naquele artigo 32º.

Para além disso, algumas vozes têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afetem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal (ver, a este respeito, as declarações de voto dos Conselheiros Vital Moreira e António Vitorino, respetivamente no Acórdão nº 65/88, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 11, pág. 653, e no Acórdão nº 202/90, id., vol. 16, pág. 505).

Em relação aos restantes casos, todavia, o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer.

Na verdade, este Tribunal tem entendido, e continua a entender, com A. Ribeiro Mendes (Direito Processual Civil, III - Recursos, AAFDL, Lisboa, 1982, p. 126), que, impondo a Constituição uma hierarquia dos tribunais judiciais (com o Supremo Tribunal de Justiça no topo, sem prejuízo da competência própria do Tribunal Constitucional - artigo 210º), terá de admitir-se que «o legislador ordinário não poderá suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos» (cfr., a este propósito, Acórdãos nº 31/87, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 9, pág. 463, e nº 340/90, id., vol. 17, pág. 349).

Como a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso, pode concluir-se que o legislador está impedido de eliminar pura e simplesmente a faculdade de recorrer em todo e qualquer caso, ou de a inviabilizar na prática. Já não está, porém, impedido de regular, com larga margem de liberdade, a existência dos recursos e a recorribilidade das decisões (…).

O legislador ordinário terá, pois, de assegurar o recurso das decisões penais condenatórias e ainda, segundo certo entendimento, de quaisquer decisões que tenham como efeito afetar direitos, liberdades e garantias constitucionalmente reconhecidos. Quanto aos restantes casos, goza de ampla margem de manobra na conformação concreta do direito ao recurso, desde que não suprima em globo a faculdade de recorrer.».


Concretamente no que concerne ao recurso de uniformização de jurisprudência, o Tribunal Constitucional, já no Acórdão n.º 574/98, afirmou que «não existe na Lei Fundamental um preceito ou princípio que imponha, dentro do processo civil, a existência de um recurso para uniformização de jurisprudência», sendo que a «Constituição não se refere “qua tale” sequer à garantia do duplo grau de jurisdição ou à previsão da existência de recursos em processo civil». Também no Acórdão n.º 359/86 o Tribunal Constitucional sustentou que «a Constituição não garantia um triplo grau de jurisdição, ou seja, o direito geral de recurso ao STJ», jurisprudência que foi, aliás, seguida nos Acórdãos n.os 202/90, 330/90, 83/2009 e 383/2009.
Esta posição foi retomada nos arestos que se pronunciaram sobre a conformidade com a Lei Fundamental de interpretação normativa reconduzida ao n.º 4 do artigo 678.º do CPC, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12 de dezembro, de onde procede o recurso consagrado  no atual artigo 629.º, n.º 2, alínea d), e ao artigo 764.º do CPC anterior à reforma de 1995/1996, antecessor daquele n.º 4 do artigo 678.º, respetivamente, nos Acórdãos n.os  100/99, 238/2002, 39/2005, 701/2005 e nos Acórdãos n.os 275/94 e 239/97. Neste âmbito, realça-se o Acórdão n.º 701/2005, que sustentou que «se o Tribunal Constitucional tem perfilhado a orientação de que a Constituição não impõe» um «ilimitado direito ao recurso, nomeadamente daquele que se destina à uniformização de jurisprudência», «não faria qualquer sentido que considerasse constitucionalmente imposto o recurso, para o Supremo, de um acórdão do qual, nos termos gerais, nunca seria possível recorrer». Concluindo, referiu o mesmo aresto que este tipo de recurso para uniformização de jurisprudência se inscreve, pois, «na liberdade de conformação do legislador, porque a Constituição não assegura tal direito relativamente a todo e qualquer acórdão da Relação».
  Não existe nenhuma norma ou princípio constitucional que imponha a obrigatoriedade de recurso para o Supremo de todos os acórdãos proferidos pelas Relações, que estejam em contradição com outros, designadamente, de acórdão da Relação do qual não seja possível recorrer por motivo respeitante à alçada da Relação.
 
Resulta, assim, da jurisprudência do Tribunal Constitucional, que o artigo 20.º da Lei Fundamental não impõe ao legislador a previsão de um mecanismo processual votado à uniformização de jurisprudência no âmbito civil, designadamente para dirimir contradições de julgados dos Tribunais da Relação.  
Prevalece, portanto, como critério orientador da interpretação das normas do CPC relativas aos recursos, a intenção legislativa de descongestionar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e de requalificar as suas funções, articulada com a ratio do específico recurso para uniformização de jurisprudência de acórdãos das Relações, que o legislador pretendeu limitar aos casos em que se encontrem preenchidos os requisitos gerais do recurso de revista, nomeadamente o requisito do valor.   
Na verdade, este tipo de recurso para uniformização de jurisprudência das Relações não se prende com a justiça do caso concreto, isto é, não se destina a salvaguardar qualquer direito subjetivo do recorrente, o que decorre do facto de nos casos em que se não verifica contradição de julgados, a decisão da Relação ser irrecorrível. A ratio última deste recurso reside em evitar a propagação do erro judiciário e eliminar a insegurança jurídica gerada por jurisprudência contraditória; o interesse do recorrente na reapreciação da questão de direito é, bem vistas as coisas, apenas o pretexto para desencadear um mecanismo de superação de contradições jurisprudenciais cuja função é tutelar aqueles interesses objetivos (vide Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 253/2018).
Há, pois, que ter presente que, não obstante se atribuir, prioritariamente, ao Supremo Tribunal de Justiça a função de uniformizar jurisprudência, assim acautelando valores como a segurança e certeza jurídica e a igualdade de tratamento, que justificam «a consagração de mecanismos que visem contrariar ou atenuar os efeitos da instabilidade ou da incerteza interpretativa, evitando que questões idênticas possam ser dirimidas por diferentes juízes de modo diametralmente oposto» (vide, Abrantes Geraldes, «Uniformização de Jurisprudência cível», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I, Coimbra Editora, 2013, p. 621), tal não pode contribuir para congestionar e massificar a atividade de tal instância. Nesta conciliação de valores a acautelar é mister atender ao facto de que a Lei Fundamental não impõe que todas as questões sejam reapreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, porquanto dela não decorre um direito ao triplo grau de jurisdição nem tão pouco um direito ao recurso para uniformização de jurisprudência.
 
Sendo assim, a imposição da verificação dos pressupostos do recurso de revista consagrados no artigo 671.º, n.º 1, do CPC para a admissibilidade do recurso de revista excecional baseado na contradição de julgados dos tribunais da Relação, nos termos da  alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do mesmo diploma legal, não se afigura arbitrária ou aleatória, antes encontrando uma justificação objetiva na teleologia deste tipo de recurso – que visa, como referimos, a proteção do interesse geral na boa aplicação do direito e a segurança jurídica no âmbito de causas que legalmente se encontram impedidas, por motivo estranho à alçada, de ser submetidas à apreciação do Supremo Tribunal de Justiça – conjugada com uma política de racionalização do acesso ao órgão de cúpula da ordem jurisdicional.

Conclui-se, portanto, que não se verifica qualquer violação do artigo 20.º, n.os 1 e 4, da Constituição da República Português.


3. Invoca ainda o recorrente que a decisão reclamada viola o princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP).

Contudo, também, neste ponto, não tem razão.

Relativamente ao princípio da igualdade, é necessário ter em conta que a jurisprudência do Tribunal Constitucional o tem concebido como um princípio que postula que se dê tratamento igual a situações de facto essencialmente iguais e tratamento desigual para as situações de facto desiguais (proibindo, inversamente, o trata­mento desigual de situações iguais e o tratamento igual das situações desiguais).
Mas, o princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio impede a diferenciação injustificada de situações semelhantes, mas não impede que, tendo em conta a liberdade de conformação do legislador, se possam (se devam) estabelecer diferenciações de tratamento, “razoável, racional e objetivamente fundadas”. Ponto é que haja fundamento material suficiente que neutralize o arbítrio e afaste a discriminação infundada. Perfila-se, deste modo, o princípio da igualdade como “princípio negativo de controlo” ao limite externo de con­formação da iniciativa do legislador (cfr. os acórdãos nºs. 157/88, 330/93 e 335/94).
Sublinhe-se ainda que, como se afirmou no Acórdão n.º     370/2007, «aos tribunais, na apreciação daquele princípio, não compete verdadeiramente «substituírem-se» ao legislador, ponderando a situação como se estivessem no lugar dele e impondo a sua própria ideia do que seria, no caso, a solução “razoável”, “justa” e “oportuna” (do que seria a solução ideal do caso); compete-lhes, sim “afastar aquelas soluções legais de todo o ponto insuscetíveis de se credenciarem racionalmente” (acórdão da Comissão Constitucional, n.º 458, Apêndice ao Diário da República, de 23 de agosto de 1983, pág. 120)».

Em conclusão, pode dizer-se que a caracterização de uma medida legislativa como inconstitucional, por ofensiva do princípio da igualdade, dependerá, em última análise, da ausência de fundamento material suficiente, isto é, de falta de razoabilidade e consonância com o sistema jurídico.
Ora à luz desta conceção do princípio da igualdade, torna-se claro que a solução normativa em análise não contende com tal princípio. A finalidade última do recurso para uniformização de jurisprudência consagrado no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, é a de afastar um específico obstáculo legal que o legislador implementou com o intuito de restringir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, e já não, para ultrapassar situações de irrecorribilidade por não estarem preenchidos os pressupostos gerais de acesso a esse Supremo Tribunal de Justiça, nomeadamente, o critério do valor da ação.
 
4. A reclamante alega, também, a violação dos princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança (artigo 2.º da CRP), sem, contudo, definir em que termos e porque motivos opera esta violação.

Deve dizer-se a este propósito que, na verdade, as alterações legislativas ao Código de Processo Civil, bem como a interpretação que delas tem feito a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de restringir o acesso a este tribunal de revista, não frustraram as legítimas expetativas da reclamante.    

O princípio da proteção da confiança, ínsito no princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no artigo 2.º da Lei Fundamental, postula uma ideia de proteção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na atuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que a elas são juridicamente criadas. Nos termos da jurisprudência do Tribunal Constitucional, só «a normação que, por sua natureza, obvie de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva, àqueles mínimos de certeza e segurança que as pessoas, a comunidade e o direito têm de respeitar, como dimensões essenciais do Estado de direito democrático, terá de ser entendida como não consentida pela Lei Básica» (cfr. Acórdão n.º 303/90).

Refere-se, com pertinência, no Acórdão n.º 313/95, que «o princípio da confiança (…) inculca que deva o cidadão prever as intervenções que o Estado possa "levar a cabo sobre ele ou perante ele e preparar-se para se adequar a elas", devendo, assim, confiar "que a sua atuação de acordo com o direito seja reconhecida pela ordem jurídica e assim permaneça em todas as suas consequências juridicamente relevantes" (usaram-se as palavras do Acórdão nº 17/84), o que conduz a que aquele princípio imponha ao Estado, sem que com isso se signifique que não possa levar a cabo modificações da ordem jurídica existente, a não edição de normação que, repercutindo-se acentuada, onerosa e intoleravelmente nas situações já existentes e criadas à sombra da anterior legislação, as vá alterar no seu conteúdo e consequências, com os quais os cidadãos, razoavelmente, não contariam».

Ora, a decisão em análise, ao limitar a admissibilidade do recurso para uniformização de jurisprudência das Relações, tomando como critério de restrição o valor da ação, assim cumprindo o desiderato de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, articulado com o objetivo de garantir que a revista excecional  se abra apenas para os casos em que se verificam os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista, não afeta de forma inadmissível as expetativas jurídicas da reclamante, sendo certo que, como se referiu, não decorre da Constituição a existência, em processo civil, de um recurso de uniformização de jurisprudência, nem sequer o direito a um triplo grau de jurisdição. Com efeito, o legislador ordinário goza de uma ampla margem de liberdade na concreta conformação e delimitação do regime dos recursos cíveis, no qual se integram os respetivos pressupostos de admissibilidade.

Sendo assim, a solução jurídica adotada na decisão reclamada, fazendo prevalecer sobre os interesses acautelados pela uniformização de jurisprudência o objetivo de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, reservando a sua intervenção, no âmbito da revista excecional, para as causas cuja valor exceda o da alçada, e visando garantir as condições para que este órgão possa exercer as funções que lhe estão cometidas, mostra-se suficientemente justificada por um fundamento objetivo e materialmente fundado, que não põe em causa as expetativas dos cidadãos nem a segurança jurídica.

Conclui-se, deste modo, que a interpretação das normas jurídicas do Código de Processo Civil adotada na decisão reclamada não merece censura à luz dos parâmetros constitucionais invocados (artigos 2.º, 13.º, e 20.º, n.os 1 e 4 da Constituição), não se vislumbrando a violação de quaisquer outros princípios ou normas constitucionais, nomeadamente, do princípio da legalidade (artigo 3.º da CRP), do princípio da separação de poderes, ou dos princípios consagrados no artigo 266.º da CRP.
  
5. Recentemente, o Tribunal Constitucional reiterou esta posição no Acórdão n.º 206/2019, em que julgou conforme à Constituição a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 629.º, n.º 2, alínea d), 721.º, n.º 1, e 854.º, todos do Código de Processo Civil, no sentido de que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, não é admissível quando o mesmo não preencha os requisitos do artigo 671.º, n.º 1, do CPC, ou seja, quando o mesmo não conheça do mérito da causa ou ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.



III - Decisão


Pelo exposto, indefere-se a reclamação e confirma-se a decisão reclamada.

Custas pela reclamante.


Lisboa, 26 de novembro de 2019

Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Alexandre Reis

Pedro de Lima Gonçalves