Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1634/11.3TMPRT-B.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
DOAÇÃO
BENS PRÓPRIOS
CHEQUE
DEPÓSITO
CONTA CONJUNTA
Data do Acordão: 07/14/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - No regime da comunhão de adquiridos e nos termos do art. 1722.º, n.º 1, al. b), do CC, por regra, são bens próprios do donatário aqueles que lhe tenham sido destinados pelo doador.

II - Vale como indicação desse destino um cheque emitido pelos pais unicamente à ordem da filha, casada no regime da comunhão de adquiridos, e sem que haja qualquer outra declaração expressa ou relevável dos doadores de que o valor inscrito era para o casal.

III - A circunstância de aquele valor ter sido posteriormente depositado numa conta conjunta do casal e ter sido utilizada na compra de um imóvel por ambos os cônjuges não é suficiente para demonstrar que o valor do cheque foi doado ao casal uma vez que nos termos do art. 1729.º do CC é na vontade do doador que se deve certificar se ele doou à filha ou ao casal.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

AA, cabeça de casal/recorrente na acção de inventário subsequente ao divórcio e em que é interessada/Recorrida, BB, apresentou a relação de bens e a interessada reclamou da mesma indicando, nomeadamente, como crédito da reclamante a ser compensado pelo património comum, “o valor de 100.000,00 euros, dinheiro próprio da Reclamante, doado à Reclamante pelos seus Pais, titulado pelo cheque do Millennium BCP nº .......623, passado à ordem da Reclamante, que foi depositado em 17 de Agosto de 2006, na conta do Banco BPI de que são titulares o cabeça de casal e a Reclamante, dinheiro esse utilizado na compra e obras realizadas no imóvel descrito na relação de bens sob a verba nº 97 – Documento nº 7 que se junta e dá como reproduzido.”

 Na resposta o cabeça de casal opôs que “Relativamente ao alegado no artigo 16º da Reclamação apresentada, o cabeça de casal, impugna por falso que os € 100.000,00 seja dinheiro próprio da reclamante, mas sim, tratar-se de bem comum, por ter sido dado ao casal, na constância do matrimónio, e depositado na conta conjunta do casal para a aquisição e obras realizadas no imóvel descrito na relação de bens sob a verba nº 97.”

Em 28/8/2014 a primeira instância após instrução do incidente, decidiu que “Veio a interessada, no art.º 16º do ponto 3 da reclamação, alegar ter um crédito no valor de 100 000,00 euros, dinheiro próprio da reclamante, doado à mesma pelos seus pais, titulado pelo cheque do Millennium BCP nº .......623, emitido à ordem da reclamante, depositado em 17 de Agosto de 2006, na conta do casal, dinheiro esse utilizado na compra e obras no imóvel descrito sob a verba nº 97 da relação de bens.

O cabeça de casal, na sua resposta, não reconhece que tal montante seja dinheiro próprio da mesma, mas sim, bem comum, por ter sido dado ao casal, na constância do matrimónio, para aquisição e obras realizadas no imóvel descrito sob a verba 97.

Da inquirição das testemunhas Irmãs e irmão da reclamante, progenitor e ex-cunhado da mesma, da análise da cópia do cheque junto aos autos a fls. 93, da análise da escritura de compra e venda do imóvel relacionado sob a verba 97, junta aos autos a fls. 186 a 205, não logrou a reclamante provar que tal quantia é dinheiro próprio da mesma.

Efetivamente, as testemunhas referiram que o dinheiro tal como já havia sucedido anteriormente foi dado pelo progenitor, em igual montante a cada um dos três filhos, para os ajudar. Em nenhum momento foi referido, que este dinheiro, em caso de separação do casal, era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante. De resto não existe qualquer documento quer público, quer particular que ateste tal facto. Da escritura de compra e venda não existe qualquer referência à utilização de dinheiros próprios da reclamante na aquisição do imóvel.

O facto de o cheque ser emitido a favor da reclamante em nada afasta este raciocínio, pois é lógico, que dado ter sido o progenitor da mesma a dar tal quantia, seja através do cheque emitido em nome da mesma.

Assim, indefiro nesta parte a reclamação da interessada.”

Desta decisão recorreu a interessada para a Relação que veio a decidir nos seguintes termos:

“Discute-se se os 100.000 euros dados pelos pais da ora apelante constituem um bem próprio ou um bem comum.

No despacho recorrido consignou-se que "as testemunhas referiram que o dinheiro tal como já havia sucedido anteriormente foi dado pelo progenitor, em igual montante a cada um dos três filhos, para os ajudar. "

Alega a apelante que a prova produzida (documentos e testemunhas) não deixa margem para quaisquer dúvidas e a quantia em causa tem que ser considerada como bem próprio da apelante (conclusão 9a). Na conclusão 8a alude ao testemunho da irmã e do irmão, do pai e do ex cunhado, como tendo declarado que o dinheiro foi dado pelo progenitor a cada um dos filhos para os ajudar.

No recurso não foi impugnada a decisão sobre a matéria de facto, nem foram indicados os elementos exigidos pelas alíneas a) a c) do n° 1 nem pela al. a) do n° 2 do artigo 640° do CPC, pelo que não temos que proceder à reapreciação dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas à matéria da reclamação contra a relação de bens. A própria apelante alega que a questão em discussão "é uma questão de direito, tão líquida que é a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido e os documentos juntos, nomeadamente o cheque a fls. 93".

O apelado alude ao depoimento de três testemunhas, transcrevendo algumas passagens, concluindo que os mesmos permitem comprovar que a liberalidade - doação dos 100.000 euros - foi feita a ambos os cônjuges. Mas a invocação destes depoimentos destina-se a rebater a argumentação do apelante e a apoiar o decidido quanto à reclamação da relação de bens. Não se destina a impugnar o facto em que o despacho se baseou - o dinheiro tal como já havia sucedido anteriormente foi dado pelo progenitor, em igual montante a cada um dos três filhos, para os ajudar - pelo que este facto se mantém.

O apelado não interpôs recurso e não impugnou a matéria de facto - para tal não bastava transcrever segmentos de depoimentos de testemunhas; antes teria que cumprir o imposto pelo n° 1 e 2 do artigo 640° do CPC. O que não fez - desde logo não indicou algum ponto de facto que considere incorretamente julgado (al. a) do n°\l do art. 640°) -pelo que não temos que proceder à audição dos depoimentos.

Uma vez que o regime de bens era o de comunhão de adquiridos, sendo o dinheiro doado à ora apelante (tal como aos dois restantes filhos), por princípio o dinheiro deve ser considerado próprio da donatária (art. 1722°, n° 1,al. b), do C. Civil).

No despacho entendeu-se que não existe qualquer documento, quer público quer particular, que ateste que o dinheiro era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante. Para o dinheiro ser considerado bem próprio da donatária não tinha que ser elaborado qualquer documento. Apenas seria necessário tal documento para que o dinheiro integrasse a massa dos bens comuns (art. 1729°, n° 1, do C. Civil).

O cheque foi emitido a favor da reclamante, o que se mostra em consonância com o consignado quanto à intenção dos doadores: dar a cada um dos filhos uma verba para os ajudar.

A inexistência na escritura de compra e venda de alguma referência à utilização de dinheiros próprios da reclamante na aquisição do imóvel é irrelevante para apurar se o dinheiro deve ser considerado bem comum da reclamante ou se entrou na comunhão. Provando-se que o dinheiro foi dado pelo progenitor, em igual montante a cada um dos três filhos, na ausência de algum facto indiciador de a vontade do doador ser de o dinheiro entrar na comunhão, deveria ter sido considerado que é um bem próprio da donatária/apelante.

Aquele dinheiro foi utilizado na compra e obras realizadas no imóvel descrito na relação de bens inicial (fls. 17 a 28) sob a verba n° 97 - facto alegado no artigo 16° da reclamação e também alegado no artigo 11° da resposta à reclamação, pelo que se considera aceite - devendo por isso constar da relação de bens como crédito da interessada BB. E na partilha esta deve ser compensada pelo património comum (art. 1726°, n° 2, do C. Civil). Para lograr esse objectivo terá que aquele crédito que constar da relação de bens, o que implica a anulação da sentença e dos termos do inventário que dependam absolutamente da inclusão de tal crédito na relação de bens.

Decisão

Pelos fundamentos expostos, na procedência da apelação:

1. Declara-se que a quantia de 100.000 euros, doados à apelante pelo seu pai através do cheque reproduzido a fls. 93, constitui um bem próprio da apelante;

2. Determina-se que tal quantia seja incluída na relação de bens como crédito da apelante, conforme reclamação por esta apresentada (ponto 16°, fls. 84);

3. Anula-se a sentença homologatória da partilha bem como 0S termos do inventário que dependam absolutamente da inclusão daquele crédito na relação de bens.”


O cabeça de casal interpôs revista dessa decisão e o tribunal da Relação não admitiu o recurso, razão pela qual o recorrente reclamou nos termos do art. 643 nº1 do CPC tendo o recurso de revista sido admitido.

… …

Nas suas alegações de recurso o cabeça de casal conclui que:

1 - Encontra-se em crise nos presentes autos de inventário um segmento da reclamação apresentada pela interessada, e aqui recorrida, BB, identificada no ponto 16º da sua Reclamação (articulado com a Refª 11969356 – datado de 19.12.2012) que indicou como “CRÉDITOS DA RECLAMANTE A SEREM COMPENSADOS PELO PATRIMÓNIO COMUM”,

“16º Valor de 100.000,00 euros, dinheiro próprio da Reclamante, doado à Reclamante pelos seus Pais, titulado pelo cheque do Millennium Bcp nº .......623, passado à ordem da Reclamante, que foi depositado em 17 de Agosto de 2006, na conta do Banco BPI de que são titulares o cabeça de casal e a Reclamante, dinheiro esse utilizado na compra e obras realizadas no imóvel descrito na relação de bens sob a verba nº 97 – Documento nº 7 que se junta e dá como reproduzido.…”

2 - A esta Reclamação o Cabeça de Casal, aqui recorrente, respondeu (requerimento de resposta à reclamação com a refª ………64 – datado de 14.01.2013): “… 11º Relativamente ao alegado no artigo 16º da Reclamação apresentada, o cabeça de casal, impugna por falso que os € 100.000,00 seja dinheiro próprio da reclamante, mas sim, tratar-se de bem comum, por ter sido dado ao casal, na constância do matrimónio, e depositado na conta conjunta do casal para a aquisição e obras realizadas no imóvel descrito na relação de bens sob a verba nº 97. …”

3 - Foi realizada a conferência de partes destinada à resolução do Incidente de reclamação de Bens, produzindo-se toda a prova testemunhal indicada pelas partes, tendo-se ainda em consideração a prova documental apresentada pelas mesmas nos seus articulados.

4 - Tendo o Tribunal de 1ª Instância, em 18.11.2014, proferido decisão sobre as reclamações (fls. … dos autos) e, especificamente sobre a reclamação que incide o presente recurso, decidido:

“…  10 – Veio a interessada, no art.º 16º do ponto 3 da reclamação, alegar ter um crédito no valor de 100 000,00 euros, dinheiro próprio da reclamante, doado à mesma pelos seus pais, titulado pelo cheque do Millennium BCP nº ....623, emitido à ordem da reclamante, depositado em 17 de Agosto de 2006, na conta do casal, dinheiro esse utilizado na compra e obras no imóvel descrito sob a verba nº 97 da relação de bens.

O cabeça de casal, na sua resposta, não reconhece que tal montante seja dinheiro próprio da mesma, mas sim, bem comum, por ter sido dado ao casal, na constância do matrimónio, para aquisição e obras realizadas no imóvel descrito sob a verba 97.

Da inquirição das testemunhas Irmãs e irmão da reclamante, progenitor e ex-cunhado da mesma, da análise da cópia do cheque junto aos autos a fls. 93, da análise da escritura de compra e venda do imóvel relacionado sob a verba 97, junta aos autos a fls 186 a 205, não logrou a reclamante provar que tal quantia é dinheiro próprio da mesma. Bold nosso. Efetivamente, as testemunhas referiram que o dinheiro tal como já havia sucedido anteriormente foi dado pelo progenitor, em igual montante a cada um dos três filhos, para os ajudar. Em nenhum momento foi referido, que este dinheiro, em caso de separação do casal, era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante.

De resto não existe qualquer documento público, quer particular que ateste tal facto. Da escritura de compra e venda não existe qualquer referência à utilização de dinheiros próprios da reclamante na aquisição do imóvel.

O facto de o cheque ser emitido a favor da reclamante em nada afasta este raciocínio, pois é lógico, que dado ter sido o progenitor da mesma a dar tal quantia, seja através do cheque emitido em nome da mesma.

Assim, indefiro nesta parte a reclamação da interessada. …”

5 - O Tribunal de 1ª Instância, analisada e conjugada toda a prova (testemunhal e documental) concluiu e decidiu que a quantia de € 100.000,00 não foi dada à interessada, BB, mas ao casal, e em consequência considerou a quantia referida como bem comum.

6 - Inconformada a interessada, e aqui recorrida, BB, interpôs recurso restrito à matéria de direito.

7 - O recurso interposto pela interessada, não impugnou a decisão sobre a matéria de facto constante do despacho de indeferimento da Reclamação proferido pelo Digníssimo Tribunal da de 1ª Instância.

8 - Como confirma o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do …..,

9 - Todavia, o Tribunal da Relação do ….., partindo de uma premissa que não tem acolhimento na matéria de facto dada por provada pelo Tribunal de 1ª instância, proferiu Acórdão a revogar a decisão proferida pela 1ª instância.

10 - Refere o Acórdão recorrido;

“… Uma vez que o regime de bens era o de comunhão de adquiridos, sendo o dinheiro doado à ora apelante (tal como aos dois filhos), por princípio o dinheiro deve ser considerado próprio da donatária (art. 1722º, n.º 1, al. b), do C. Civil). …”

11 - O despacho proferido pelo Tribunal de 1ª Instância nunca considerou que a quantia em crise tinha sido doada à interessada e aqui recorrida, BB.

12 - Pelo contrário os factos provados levaram o Tribunal a considerar que a quantia é um bem comum. Razão pela qual foi indeferida a Reclamação.

13 - Porquanto expressamente refere que “Da inquirição das testemunhas Irmãs e irmão da reclamante, progenitor e ex-cunhado da mesma, da análise da cópia do cheque junto aos autos a fls. 93, da análise da escritura de compra e venda do imóvel relacionado sob a verba 97, junta aos autos a fls. 186 a 205, não logrou a reclamante provar que tal quantia é dinheiro próprio da mesma.”, e ainda “Em nenhum momento foi referido, que este dinheiro, em caso de separação do casal, era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante.”, assim como expressamente refere “De resto não existe qualquer documento público, quer particular que ateste tal facto.”, e ainda que “ Da escritura de compra e venda não existe qualquer referência à utilização de dinheiros próprios da reclamante na aquisição do imóvel.” e ainda nesse sentido, o Tribunal de 1ª instância referiu que “O facto de o cheque ser emitido a favor da reclamante em nada afasta este raciocínio, pois é lógico, que dado ter sido o progenitor da mesma a dar tal quantia, seja através do cheque emitido em nome da mesma.”.

14 - Contrariamente ao referido no Acórdão recorrido não se encontra provado que o dinheiro foi dado pelo progenitor à interessada, aqui recorrida, BB.

15 - É o que se encontra factualmente referido na decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância quando que, “Em nenhum momento foi referido, que este dinheiro, em caso de separação do casal, era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante”.

16 - Este facto afasta qualquer “animus donandi” relativamente à interessada, BB, aqui recorrida.

17 - Salvo o devido respeito, mas o Acórdão recorrido ao referir que, “No despacho entendeu-se que não existe qualquer documento, quer público quer particular, que ateste que o dinheiro era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante. Para o dinheiro ser considerado bem próprio da donatária não tinha que ser elaborado qualquer documento”, está a desvirtuar o sentido e alcance da decisão proferida em 1ª Instância.

18 - Com efeito, analisada na sua globalidade a decisão, os factos e a convicção formada pelo Tribunal de 1ª Instância, o que se conclui é que após a audição das testemunhas, que não confirmaram que o dinheiro fosse próprio da interessada (pelo contrário foram dizer que foi atribuído ao casal) e também inexistindo qualquer documento que o demonstre (porque o cheque por si só não é documento idóneo a provar que existiu uma doação à interessada, BB, e por isso, não é donataria) o dinheiro nunca poderia, e bem, ser considerado próprio.

19 - Os factos apurados e a convicção formada e plasmada na decisão pelo Tribunal de 1ª Instância, é de que o dinheiro (€ 100.000,00) foi doado ao casal.

20 - E, ainda, a corroborar tal convicção, se refere na decisão de 1ª instância, “Da escritura de compra e venda não existe qualquer referência à utilização de dinheiros próprios da reclamante na aquisição do imóvel.”

21 - Porquanto e conforme referido pelo Acórdão recorrido, “Aquele dinheiro foi utilizado na compra e obras realizadas no imóvel descrito na relação de bens inicial (fls. 17 a 28) sob a verba nº 97 – facto alegado no artigo 16º da reclamação e também alegado no artigo 11º da resposta à reclamação, pelo que se considera aceite…”

22 - Poder-se-á dizer, sem que se conjugue a demais prova produzida, e em apreciação isolada, como refere o Acórdão recorrido que” A inexistência na escritura de compra e venda de alguma referência à utilização de dinheiros próprios da reclamante na aquisição do imóvel é irrelevante para apurar se o dinheiro deve ser considerado bem comum da reclamante ou se entrou na comunhão”? Entendemos que não!

23 - Não é irrelevante, poderá até ser muito relevante, porque conjugada com a demais prova produzida permitirá ao julgador aferir quais foram as reais intenções das partes no momento da prática do acto.

24 - Porquanto o que as regras da experiência comum nos dizem é que nessas circunstâncias as partes declaram que o bem (neste caso o imóvel identificado como verba n.º 97 da Relação de bens) é adquirido por virtude da titularidade de bens próprio. Que no caso as partes nunca declararam (na escritura de aquisição), nem a interessada na sua reclamação à relação de bens, em nenhum momento colocou em crise que a verba n.º 97 não é um bem comum.

25 - Os factos apurados e a convicção formada e plasmada na decisão pelo Tribunal de 1ª Instância, é de que o dinheiro (€ 100.000,00) foi entregue ao casal.

26 - Considerando-se, como o Tribunal da Relação do ….. considerou que não foi posta em causa (tanto pela interessada como pelo cabeça de casal) a matéria de facto dada por provada na decisão de 1ª instância, então, analisada essa matéria de facto, o que se pode dar por provado, nunca poderia ser o facto que o Tribunal da Relação deu por provado (que o dinheiro foi dado só à interessada, BB), mas sim que foi dado ao casal, e em consequência, a conclusão jurídica a extrair é que a quantia em crise é um bem comum do casal.

27 - O Tribunal da Relação ….. considerou como provado (que o dinheiro foi dado só à interessada, BB), um facto inverso e contrário ao dado por provado na 1ª Instância, que considerou que o dinheiro foi dado ao casal.

28 - O Tribunal da Relação ….. para classificar o bem (€ 100.000,00) como bem próprio considerou um facto errado, ponderando como assente um facto que nunca foi dado por provado na decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.

29 - Nessa medida, e salvo o devido respeito, o Acórdão proferido pela Relação, incorre em erro de interpretação e de apreciação e consequentemente em erro na determinação norma aplicável, porquanto, origina uma contradição ou incongruência no quadro factual subjacente ao litígio que naturalmente inviabiliza a adequada solução jurídica do pleito, e “sendo inadmissíveis as ilações ou conclusões que não correspondam ao desenvolvimento lógico da matéria de facto dada como provada, compete ao Supremo censurar a decisão das instâncias que, no que respeita a conclusões ou ilações de factos, infrinja o apontado limite;” – Ac. de 23.09.2003, CJ, t. III, p. 43.

30 - Com efeito, “… Ac. do STJ, de 2-2-16 (CJ, t.I, p. 118): o Supremo pode verificar se as ilações extraídas pela Relação exorbitam do âmbito dos factos provados ou deturpam o sentido normal daqueles; …” In António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª edição Atualizada, Julho 2020, Almedina, pág. 466

Posto isto, e sem prescindir,

31 - Uma doação pressupõe como requisitos essenciais, uma proposta de doação, por parte do doador, e a consequente aceitação por parte do donatário.

32 - Sendo que, no caso de bens móveis tais declarações deverão ser acompanhadas da tradição da coisa.

33 - Para que se conclua o processo constitutivo da doação, é necessária a aceitação do donatário. Antes dela, haverá uma proposta de doação, mas não uma doação, porquanto o acordo de vontades é sempre um elemento essencial, da formação de qualquer contrato – artigo 232.º do Código Civil.

34 - No caso concreto, encontra-se dado por provado, que a quantia de € 100.000,00 foi entregue em cheque e depositado na conta conjunta do casal (facto alegado no artigo 16º da reclamação e também alegado no artigo 11º da resposta à reclamação) pelo que tal facto deverá ser considerado aceite pelas partes.

35 - O dinheiro foi depositado na conta bancária conjunta do casal, e não na conta de individual/pessoal de que a interessada, BB, aqui recorrida, era titular.

36 - Conforme dispõe, ainda, o n.º 2 do artigo 945.º do Código Civil, sob epígrafe “Aceitação da doação”, “A tradição para o donatário, em qualquer momento, da coisa móvel doada, ou do seu título representativo, é havida como aceitação.”

37 - Assim sendo, só se pode concluir que, o dinheiro titulado pelo cheque referido nos autos foi doado ao casal, porquanto a tradição da quantia se efectivou para a conta titulada por ambos (cabeça de casal e interessada), casal que tacitamente declarou pelo recebimento a vontade de aceitação.

38 - Tal facto caracteriza, por si só, aquela entrega “simbólica”, já que os donatários (cabeça de casal e interessada) passaram a poder dispor dos fundos ali provisionados, como, pelo menos, contitulares do mesmo, e a dispor dele de acordo com a vontade de ambos, que os levaram a adquirir e a realizar as obras no imóvel descrito sob a verba 97.

39 - Se a doação tivesse sido feita, apenas, à interessada BB, a tradição teria de ter ocorrido para a conta individual e por si, apenas, titulada. Ora, tal facto não ocorreu.

40 - É nesse sentido a decisão de 1ª instância quando refere:

“…Da inquirição das testemunhas Irmãs e irmão da reclamante, progenitor e ex-cunhado da mesma, da análise da cópia do cheque junto aos autos a fls. 93, da análise da escritura de compra e venda do imóvel relacionado sob a verba 97, junta aos autos a fls 186 a 205, não logrou a reclamante provar que tal quantia é dinheiro próprio da mesma. (…) Em nenhum momento foi referido, que este dinheiro, em caso de separação do casal, era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante.

De resto não existe qualquer documento público, quer particular que ateste tal facto. Da escritura de compra e venda não existe qualquer referência à utilização de dinheiros próprios da reclamante na aquisição do imóvel.

O facto de o cheque ser emitido a favor da reclamante em nada afasta este raciocínio, pois é lógico, que dado ter sido o progenitor da mesma a dar tal quantia, seja através do cheque emitido em nome da mesma.

Assim, indefiro nesta parte a reclamação da interessada. …”

41 - O que se verifica é que a tradição do dinheiro se efetuou para a conta do casal, e que assim declararam aceitar tal quantia (de € 100.000,00), porquanto o recebimento na conta do casal revela a vontade de aceitação do casal da quantia em crise nos autos, pelo que inelutavelmente a haver doação, esta foi feita ao casal e consequentemente tal bem deverá ser considerado bem comum do casal.

Ainda sem prescindir,

42 - O montante de € 100.000,00 foi dado ao Casal na constância do matrimónio e com esse dinheiro adquiriram o imóvel descrito sob a verba 97.

43 - Tal quantia foi gasta, utilizada para a aquisição e obras no imóvel descrito sob a verba n.º 97 da Relação de Bens.

44 - E, pese embora não esteja, no momento, em apreciação pelo Venerando Supremo Tribunal de Justiça, os depoimentos prestados pelas testemunhas, CC (que aos costumes disse conhecer o casal e ser padrinho de casamento do cabeça de casal), DD (que aos costumes disse conhecer o casal e ser padrinho de um dos filhos do casal) e EE (que aos costumes disse ser cunhado do cabeça de casal e da interessada).

45 - Importa referir que, todas estas testemunhas afirmaram peremptoriamente que o dinheiro (€100.00,00) foi dado ao casal e que estes com esse montante adquiriram o imóvel identificado na verba n.º 97 da Relação de Bens (facto também confirmado pelas partes) assim também conforme referido na decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.

46 - Donde se conclui que a liberalidade foi feita a ambos os cônjuges. E, quando assim é os bens entram na comunhão como bens comuns do casal.

47 - Dispõem os artigos 1724º e 1725º do Código Civil que fazem parte da comunhão os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio e quando haja dúvida sobre a comunicabilidade dos bens móveis, estes consideram-se comuns.

48 - É inequívoco que a atribuição do dinheiro foi feita em favor dos dois cônjuges – a prova testemunhal e documental assim como a conduta assumida pela interessada – que poderia ter depositado o cheque em apreço numa conta bancária apenas titulada por si e não o fez – confirma inelutavelmente esse facto, conforme Douta Decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância

49 - E tal facto é tão inequívoco, que a atribuição feita, o dinheiro foi depositado numa conta conjunta do casal (e não na conta singular da interessada) e que quando o casal adquiriu a fracção (identificada como verba n.º 97 da relação de bens), na sua escritura de compra e venda nunca referiram que tal bem era adquirido em parte com dinheiro ou bem próprio.

50 - Nenhuma prova foi produzida que confirme que a atribuição foi feita a favor da interessada, é o que a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância expressamente refere: “Da inquirição das testemunhas Irmãs e irmão da reclamante, progenitor e ex-cunhado da mesma, da análise da cópia do cheque junto aos autos a fls. 93, da análise da escritura de compra e venda do imóvel relacionado sob a verba 97, junta aos autos a fls 186 a 205, não logrou a reclamante provar que tal quantia é dinheiro próprio da mesma.“

51 - A prova produzida confirma que a atribuição de € 100.000,00 foi feita em favor dos dois cônjuges.

52 - A interessada/recorrida nas escrituras de compra e venda dos imóveis, junta aos autos a fls. 186 a 205 (onde consta como outorgante) nunca referiu que a fracção era adquirida em parte com dinheiro ou bem próprio. Nunca o fez por saber que tal não correspondia à verdade.

53 - A interessada/recorrida nunca colocou em crise (nem na relação de bens, nem em qualquer reclamação ou articulado) que tal fracção/imóvel (verba n.º 97 da Relação de bens) não era um bem comum do casal.

54 - E, nunca o fez porque sabia que tal fracção foi adquirida com dinheiro comum do casal, dinheiro que foi entregue em favor dos dois cônjuges conjuntamente.

55 - Dúvidas não subsistem que o dinheiro entregue, a atribuição foi feita em favor dos dois cônjuges conjuntamente, pelo que deverá a quantia em crise ser declarada como bem comum do casal

56 - O acórdão do Excelentíssimo Tribunal da Relação, na opinião do Recorrente, não opera à correcta aplicação do disposto no artigo 674.º n.º 1 alínea a) e 2, do Código de Processo Civil, artigos 217.º, 232.º, 940.º, 945.º, n.º 2, 947.º, n.º 2, 1724.º e 1725.º, todos do Código Civil.

57 - Razão pela qual se entende que a Douta Decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, na situação em crise, não merece qualquer reparo, pelo que deverá ser revogado o Acórdão recorrido e proferido pelo Tribunal da Relação ….. e repristinada a Decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância.”


A recorrida contra-alegou defendendo a confirmação da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

… …

Fundamentação

Os factos que servem a decisão são os constantes do relatório e, no respeito e atenção aos que foram alegados pelas partes e considerados provados em primeira instância, os seguintes:

-  Os pais da requerida emitiram, na constância do casamento do recorrente e recorrida, um cheque no valor de 100.000,00 euros do Millennium BCP nº .......623, passado à ordem da Reclamante sua filha;

- Este cheque foi depositado em 17 de Agosto de 2006, na conta do Banco BPI de que eram titulares o cabeça de casal e a Reclamante;

 - Esse dinheiro foi utilizado na compra e obras realizadas no imóvel descrito na relação de bens sob a verba nº 97;

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das Recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas alegações, importa em apreciar e decidir se em face dos factos provados a quantia aí referida é bem próprio da recorrida ou bem comum do casal.

Analisando, para poder decidir, um primeiro elemento importante a ter presente é o de o regime de bens de casamento que vigorava entre o recorrente e a recorrida ser o da comunhão de adquiridos - art. 1721 do CC -, por força do qual são bens próprios dos cônjuges, entre outros, os que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação - al. b) do nº 1 do art. 1722 do CC.

Os preceitos mencionados consagram a propriedade exclusiva de cada um dos cônjuges sobre os bens levados para o casal e a comunhão circunscrita aos bens adquiridos a título oneroso, na vigência do casamento, incluindo os frutos dos bens próprios, que se consideram ainda como produto de cooperação dos dois cônjuges – cfr. Pires de Lima, Antunes Varela, CC Anotado vol. IV, p. 38.

A inclusão na mesma alínea dos bens herdados e dos doados permite sublinhar o critério delimitador daquilo que neste regime de bens deve ser entendido como património próprio e comum, no sentido de, por regra, os bens integrados na comunhão serem apenas aqueles que resultem do trabalho dos cônjuges e os adquiridos por estes na constância do casamento - art. 1724 do CC. A existência de bens pertencentes a cada um dos cônjuges, em simultâneo com outros que fazem parte da comunhão, reafirma uma alteridade construída sobre a ideia base de, após a celebração do casamento, os cônjuges manterem autonomia patrimonial, em tudo o que não seja o produto do trabalho que realizem ou dos bens que adquiram na vigência do casamento. No entanto, sempre com a salvaguarda contida nos arts. 1726 a 1728 do CC, onde se mantém o mesmo critério e preocupação de rigor relativamente à distinção dos patrimónios próprios, no confronto com o que possa e deva entendido como património comum, nos casos em que se adquiram bens em parte com dinheiros ou bens próprios e noutra parte com dinheiro ou bens comuns; a aquisição de bens indivisos já pertencentes em parte a um dos cônjuges ou bens adquiridos por virtude da titularidade dos próprios bens. Em todas estas situações se percebe a preocupação legal de distinção através de regras específicas dos patrimónios, explicando que para lá do produto do trabalho dos cônjuges, mesmo quanto à aquisição de bens na constância do casamento se mantém a advertência de atentamente indagar a fonte de financiamento de cada aquisição distinguindo nela a origem do que seja próprio ou comum.

Com esta mesma preocupação o art. 1729 do CC estabelece que os bens que cada cônjuge obtenha através de doação que lhe tenha sido feita, só entram na comunhão se o doador assim o tiver determinado, não existindo dúvidas, quanto a nós, que saber se essa foi ou não a vontade do doador só pode asseverar-se quando seja claro, inequívoco e seguro afirmar que a liberalidade foi feita em favor dos dois cônjuges. Rem igual sentido Pires de Lima e Antunes Varela em anotação ao art 1722 nº 1 al. b) e conjugado com o art. 1729 do CC fazem constar que “quanto aos bens adquiridos por doação ou deixa testamentaria, há ainda que ressalvar o caso de o terceiro doador pretender que eles entrem na comunhão”, confirmando a necessidade de se reconhecer na vontade do doador a de expressamente realizar a doação a favor do casal.

Nesta visão de sistema percebe-se que mesmo no regime da comunhão geral de bens, em que a lei declara que o património comum é constituído por todos os bens pertencentes e futuros dos cônjuges - art. 1732 do CC -, os bens doados desde que com cláusula de incomunicabilidade, são exceptuados da comunhão – art. 1733 nº 1 al. a) do CC. Assim sendo, concluímos que, se no regime da comunhão geral de bens as doações podem ser bens próprios de um dos cônjuges, exigindo-se que exista cláusula através da qual se certifique que ela foi feita apenas a um deles, então, no regime da comunhão de adquiridos por coerência sistemática, não exigindo a lei expressa cláusula de comunicabilidade para se poder aceitar que a doação foi feita ao casal, deve ter-se no entanto especial cuidado e exigência quanto às circunstâncias que se pretendam reveladoras dessa comunicabilidade, uma vez que, como acentuámos, é preocupação da lei que se evidencie com segurança que a doação foi feita ao casal, que a vontade do doador foi a de beneficiar ambos os cônjuges. Isto é, esta vontade tem de ser provada pois se o não for o bem doado terá de se considerar como próprio.

Na apreciação dos factos provados e que são aqueles que deixámos expressos, não se suscitam dúvidas relativamente a terem sido os pais da ora recorrida que fizeram a entrega da quantia, e que a fizeram através de emissão de cheque à ordem da filha. Em análise necessária a estes elementos, para lá da adstrição de parentesco evidente, temos também que o instrumento que titula a entrega/doação, o cheque, podendo ter sido emitido sem indicação alguma ou com a indicação de ambos os cônjuges, consta nele apenas a indicação do nome da recorrida, a filha dos doadores. Isto é, no título, sem que fosse necessário indicar à ordem de quem era emitido, os doadores quiseram fazer e fizeram constar apenas o nome da filha. Esta circunstância é de todo relevante por ser objectiva mas, também, quando percebida no quadro normativo traçado pelo legislador para o regime da comunhão de adquiridos, e quando nenhum elemento probatório concreto existe que revele a intenção dos doadores realizarem a doação a favor do casal.

Efectivamente, pretender que o ter sido a quantia utilizada na compra do imóvel ou ter sido o cheque depositado numa conta do casal é decisivo para decidir pela comunicabilidade, não reveste razoabilidade lógica nem segurança para fazer concluir que a doação foi feita ao casal. Nem a finalidade que foi dada à quantia, nem o ter sido esta incorporada numa conta comum do casal, determina que uma (a finalidade) ou outro (o depósito) destitua, à falta de outros elementos, a natureza da quantia como bem próprio da recorrida, à ordem de quem o cheque era emitido especificadamente pelos pais.

Em verdade, mesmo que o cheque não tenha sido entregue pelo doador à filha e não tivesse sido esta a depositá-lo na conta conjunta, mas antes tivesse sido o doador a depositar o cheque na aludida conta (o que não foi alegado e obviamente não se encontra provado), não se poderia extrair daí que a quantia havia sido doada ao casal. O elemento mais consistente que dispomos é o de o cheque estar passado à ordem da recorrida e, dessa forma, mesmo que entrasse na conta conjunta ou viesse a ter a finalidade que teve não perderia, segundo as regras do regime da comunhão de adquiridos que enunciámos, a natureza de bem próprio.

O recorrente argumenta que o decisivo é que a doação se consumou apenas quando o dinheiro foi depositado na conta conjunta e que a natureza da conta determina que se conclua que entrando aí o dinheiro o montante é do casal. Porém a entender-se desta maneira, estaríamos a desconsiderar em absoluto que a doação foi feita pelos pais da recorrida através de cheque que emitiram à ordem exclusivamente desta, sem menção do recorrente, para além de o art. 945 nº 2 do CC referir expressamente que é havida como aceitação da doação “a tradição para o donatário, em qualquer momento da coisa móvel doada ou do seu título representativo”. A importância do título (representativo) e do seu significado em termos de aceitação reforça ainda mais a ideia de que, tal título, estar emitido unicamente à ordem da requerida é revelador e representa que a quantia era destinada àquela a quem o cheque estava emitido.

Por último, essa mesma circunstância de a quantia doada ter sido colocada numa conta própria ou conjunta dos cônjuges não é critério algum para atribuir natureza própria ou comum a esse valor, e muito menos o fixado para o regime da comunhão de adquiridos que antes enunciámos, não se podendo aceitar no regime da comunhão de adquiridos a existência de uma presunção segundo a qual, por regra, qualquer doação feita a um dos cônjuges, desde que utilizada numa finalidade de que ambos aproveitassem, se considerasse bem comum do casal. 

Num outro segmento argumentativo, as instâncias discutiram a relevância de constar ou não, na escritura de compra e venda do imóvel, que em parte a aquisição tinha sido realizada com dinheiro próprio da recorrida, concluindo o recorrente, em sintonia com a decisão de primeira instância que, se tal não figurou nesse documento dever-se-ia considerar como evidência que a quantia discutida era bem comum.

Julgamos não ser assim. A possibilidade de se fazer constar essa menção na escritura não é uma obrigatoriedade e menos ainda uma indicação que, a existir, constitua uma verdadeira presunção de comunicabilidade sobre os bens dos cônjuges. É uma possibilidade que, no caso, se tivesse ocorrido, isto é, se constasse que a aquisição do imóvel era realizada com 100.000,00 € da recorrida, seria indeclinável ter essa quantia como bem próprio dela. Porém a não existir tal declaração não resulta que essa omissão imponha a conclusão de a quantia discutida ser comum e não própria da requerida. Esta exposição, neste domínio, interessa apenas para ter presente que é no quadro normativo fixado pelo legislador para o regime da comunhão de adquiridos que deve realizar-se a apreciação da matéria de facto a valorar de forma que possa resultar lógica, segura, certa e razoável, segundo as regras de experiência comum, a subsunção dos factos ao direito.

Num outro momento de conclusão, o recorrente defende como decisivo que, igualmente em conformidade com a decisão proferida em primeira instância, embora “Da inquirição das testemunhas Irmãs e irmão da reclamante, progenitor e ex-cunhado da mesma (…) as testemunhas referiram que o dinheiro tal como já havia sucedido anteriormente foi dado pelo progenitor, em igual montante a cada um dos três filhos, para os ajudar. Em nenhum momento foi referido, que este dinheiro, em caso de separação do casal, era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante. De resto não existe qualquer documento quer público, quer particular que ateste tal facto. Da escritura de compra e venda não existe qualquer referência à utilização de dinheiros próprios da reclamante na aquisição do imóvel.”

 Em primeiro lugar temos de advertir para que, nem recorrente nem recorrida alegaram que os pais desta tinham doado em igual montante a cada um dos restantes filhos, razão pela qual essa matéria trazida ao conhecimento do tribunal apenas pelas declarações das testemunhas não pode ser aceite como alegação de factos realizada pelas partes, como o não foi, porque em parte alguma essa matéria foi fixada como provada ou não provada em primeira instância, que se limitou a aludir a essa matéria na motivação da prova. Aliás, diga-se que nem mesmo como facto instrumental ou complementar tal matéria foi utilizada na sentença nos termos do art. 5º do CPC uma vez que a sentença a desconsiderou, não a deu como provada e não a relevou na sua decisão, aludindo a tais declarações em termos meramente lucubrativos

Em síntese, perante os factos que em primeira instância se fixaram como provados, que não foram objecto de impugnação e que se deixaram expostos, numa abordagem estritamente jurídica dos mesmos, não sofre censura a decisão recorrida ao entender que  sendo  o regime de bens o de comunhão de adquiridos e sendo o dinheiro titulado por cheque à ordem exclusivamente a recorrida, por princípio, se deve ter essa quantia como  própria daquela. E ainda que, a inexistência de documento público ou particular que ateste que o dinheiro era para ser considerado dinheiro próprio da reclamante, não retira valor à natureza do bem como próprio uma vez que a necessidade de tal documento só existiria, para que se pudesse considerar o dinheiro como integrante dos bens comuns.

Por último, o recorrente protesta que a decisão recorrida desvirtuou o sentido e alcance da decisão proferida em 1ª Instância e esta imputação nada teria de incomum ou irregular uma vez que os recursos visam precisamente alterar (uma outra forma tecnicamente mais própria de dizer desvirtuar ou desvitalizar) as decisões recorridas de que se recorra. No entanto, com a explicação que o recorrente acrescenta, observamos que ele pretende referir que a decisão recorrida, sem que tivesse sido impugnada a matéria de facto fixada, teria alterado essa valoração a que estava obrigada, nomeadamente tomando como provado que o dinheiro foi dado à recorrida, quando a sentença teria dado como provado que foi dado ao casal.

A este propósito julgamos que o recorrente labora num equívoco, qual seja o de afirmar que o tribunal de primeira instância deu como provado que a doação foi feita ao casal e que o tribunal da Relação tomou como provado que a doação foi feita só à recorrida, equívoco que decorre, decerto, quando nas suas conclusões se exprime nos seguintes termos: “Os factos apurados e a convicção formada e plasmada na decisão pelo Tribunal de 1ª Instância, é de que o dinheiro (€ 100.000,00) foi entregue ao casal”.

A primeira instância, num registo de alguma falta de organização, não separou os factos que considerou provados da subsequente motivação da sua convicção (o que não quer dizer, nem tal se protesta nas alegações, que não tenha fixado a matéria provada a atender), mas o que pode apreciar-se com clareza e segurança é que não fixou como provado que “a doação da quantia titulada pelo cheque dos pais da recorrida tinha sido feita ao casal”. Não deu como provado este facto e, aliás, nem o poderia fazer porque o mesmo não é naturalisticamente nem normativamente um facto, mas sim de uma conclusão (que importaria por si só a decisão de mérito), conclusão que apenas de outros factos provados se poderia retirar.  E foi o que a sentença fez, concluir normativamente que em seu aviso, perante um cheque emitido pelos pais à ordem da filha que era casada com o recorrente, tendo o cheque entrado numa conta conjunta do casal e sido utilizado na compra de um imóvel, tal se lhe afigurava, como conclusão normativa, que a doação fora destinada ao casal. Num mesmo discurso, a sentença colocou os factos provados, a motivação e a sua conclusão subsuntiva e daí que, quando o recorrente alude aos “factos apurados e a convicção formada e plasmada na decisão pelo Tribunal de 1ª Instância”, está a misturar o que deve separar-se, porquanto, uma coisa são os factos provados e outra o que o julgador faça constar na motivação, sendo que só sobre os factos se pode construir a decisão.

Concluímos, pois, que a sentença não pegou num facto em que tivesse considerado provado que “a doação foi feita ao casal”, mas conclui desta forma a partir dos factos, verdadeiramente factos, que estavam provados. E foi desta mesma forma e sobre os mesmos factos (e não nas conclusões ou motivações) que a decisão recorrida actuou, advertindo primeiro que a matéria de facto provada estava fixada na sentença para depois concluir, diferentemente, que com essa mesma matéria em que a sentença fundara a decisão de direito de julgar os era um bem comum, se deveria julgar que tal quantia era um bem próprio da ora recorrida.

Não tem assim o recorrente razão quando conclui que a decisão recorrida considerou como provado (que o dinheiro foi dado só à interessada, BB), um facto inverso e contrário ao dado por provado na 1ª Instância, que considerou que o dinheiro foi dado ao casal. Não existe por consequência qualquer contradição ou incongruência no quadro factual subjacente ao litígio, como lhe chama a recorrente, sendo que são absolutamente admissíveis as conclusões que ambas as instâncias retiraram perante a matéria de facto provada. É evidente que, como se sinaliza no ac. do STJ de 2-2-16 - citado In António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª edição Atualizada, Julho 2020, Almedina, pág. 466 - o Supremo pode verificar se as ilações extraídas pela Relação exorbitam do âmbito dos factos provados ou deturpam o sentido normal daqueles, mas a questão suscitada pelo recorrente não é colocada no âmbito das ilações extraídas pela Relação dos factos provados, antes lhe imputava ter tomado como provado um facto (e não uma ilação) que a sentença julgara não provado e isso como vimos não ocorreu.

Como deixámos comentado, é sobre os mesmos factos provados, que tivemos o cuidado de destacar, que a sentença e a apelação construíram as suas diferentes decisões a partir de uma interpretação diversa do sentido valorativo desses factos à luz do direito aplicável, e tais ilações normativas são legalmente admissíveis, sendo que as que realizamos vão, nos termos deixados expostos, no mesmo sentido das da decisão recorrida.

Como deixámos enunciado, perante a matéria provada nos autos e de acordo com a análise que realizámos aos preceitos aplicáveis, não merece censura a decisão recorrida.

… …

Síntese conclusiva

No regime da comunhão de adquiridos e nos termos do art.  1722 nº 1 al. b) o CC., por regra, são bens próprios do donatário aqueles que lhe tenham sido destinados pelo doador.

- Vale como indicação desse destino um cheque emitido pelos pais unicamente à ordem da filha, casada no regime da comunhão de adquiridos, e sem que haja qualquer outra declaração expressa ou relevável dos doadores de que o valor inscrito era para o casal;

- A circunstância de aquele valor ter sido posteriormente depositado numa conta conjunta do casal e ter sido utilizada na compra de um imóvel por ambos os cônjuges não é suficiente para demonstrar que o valor do cheque foi doado ao casal uma vez que nos termos do art. 1729 do CC é na vontade do doador que se deve certificar se ele doou à filha ou ao casal;

     … …

Decisão

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a revista e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


Lisboa, 14 de Julho de 2021


 Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade do Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva e da Srª. Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza.


Manuel Capelo (Relator)