Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
584/12.0TCFUN-B.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ROSA TCHING
Descritores: HIPOTECA
INDIVISIBILIDADE
FRACÇÃO AUTÓNOMA
FRAÇÃO AUTÓNOMA
CONTRATO-PROMESSA
TRADIÇÃO DA COISA
QUESTÃO NOVA
DIREITO REAL DE GARANTIA
Data do Acordão: 04/12/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / HIPOTECA.
Doutrina:
-Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 3.ª Edição, p. 103 e 104 ; Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4.ª Edição, p. 355;
-Antunes Varela, RLJ, Ano 124, p. 345 e 346;
-Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, 1992, p. 140 e 175;
-Calvão da Silva, BMJ, n,º 349, p. 86;
-Castro Mendes, Recursos, 1980, p. 27;
-Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre O Novo Processo Civil, p. 395;
-Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro, CJ, Ano 1996, Tomo Y, p. 37 a 47.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 691.º, N.º1, ALÍNEA C) E 696.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 21-10-9193, CJ/STJ, ANO I, TOMO 3, P. 84;
- DE 66-02-1982, 16-05-1972, 13-03-1973, 05-02-1974, 29-10-1974, 07-01-1975 E 25-11-1075, IN BMJ N.ºS 364, P. 719; 217.º, P. 103; 225.º, P. 202; 234.º, P. 267; 240.º, P. 223; 243.º, P. 194; 251.º, P.122 E 408.º, P. 521.
- DE 12-01-1995, CJ/STJ, ANO III, TOMO I, P. 19;
- DE 23-05-2006, CJ/STJ, ANO 2006, TOMO II, P. 97 E SS.;
- DE 13-11-2007, PROCESSO N.º 3615/07;
- DE 19-04-2012, PROCESSO N.º 299/05.6TBMGD.P1.S1;
- DE 22-05-2012, PROCESSO N.º 430/07.7TVLSB.L1.S1;
- DE 21-03-2013, N.º 1223/05.1TBCSC-B.L1.S1;
- DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 3566/06.8TBVFX.L1.S1;
- DE 08-09-2015, PROCESSO N.º 579/08.9TBABF.E1.S1;
- DE 14-02-2017, PROCESSO N.º 724/09.7TBAMT.P2.S1;
- DE 30-03-2017, PROCESSO N.º 809/14.8T8SLV-B.E1.
Sumário :
I. Decorre do disposto no art. 691º, nº1, al. c) do C. Civil bem como o princípio da indivisibilidade da hipoteca, consagrado no art. 696º do mesmo código, que a hipoteca constituída sobre a totalidade de um prédio para garantia do crédito exequendo estende-se a todas as fracções autónomas que o compõem, pelo que cada uma destas fracções garante também a totalidade daquele crédito, podendo, de igual forma, o credor hipotecário executar a hipoteca, na sua totalidade, sobre qualquer uma daquelas fracções.

II. Ainda que o promitente comprador, a quem foi entregue a fracção prometida vender, mediante o pagamento da totalidade do respetivo preço, possa ser considerado um possuidor, não pode o mesmo opor a sua posse ao titular de hipoteca voluntária constituída sobre a totalidade do prédio, com registo anterior ao início da sua posse, porquanto a natureza real da hipoteca permite-lhe prevalecer sobre o direito de posse.

III. Não é lícito às partes invocarem nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos visam modificar decisões e não criar decisões sobre matéria nova.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

2ª SECÇÃO CÍVEL


I – Relatório


1. Banco AA, SA intentou contra BB - Empreendimentos Imobiliários, Lda, CC e DD, execução para pagamento de quantia certa.

Nessa execução foi penhorada a fração autónoma, ora designada pela letra "R", do prédio urbano, sito na freguesia e concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.° 1…6, e inscrito na respetiva matriz sob o n.° 5…8.


2. Entretanto, veio EE deduzir oposição, mediante embargos de terceiro, tendo alegado, em síntese, que:

Por contrato-promessa celebrado no dia 13/07/2004, a sociedade executada prometeu vender ao embargante, que prometeu comprar, pelo preço de € 125.000,00, uma moradia do tipo T2, então designada pela letra "S", a ser construída como parte de um conjunto residencial denominado "Villas FF"

Com a assinatura do contrato, o embargante entregou à sociedade executada a quantia de € 95.000,00 euros, a título de sinal e princípio de pagamento, tendo sido acordado que a parte restante (30.000,00 euros) seria paga com a celebração da escritura de compra e venda.

Em finais do ano de 2005, o embargante celebrou contrato de fornecimento de energia elétrica para a moradia e, com o acordo dos ora embargados, tomou posse da mesma, tendo procedido, a expensas próprias, a algumas obras de acabamento, no interior e no exterior da moradia.

Também celebrou contratos para fornecimento de água, telefone e TV Cabo.

E, desde então, vem utilizando a moradia como segunda habitação da sua família, cedendo igualmente o seu uso a familiares e amigos.

Por aditamento ao contrato-promessa, datado 10/04/2008, procedeu ao pagamento do remanescente do preço.

A escritura deveria ter sido outorgada até ao dia 15-01-2009, data em que foi marcada, mas os representantes da sociedade não compareceram a essa marcação.

Assim, a venda judicial da moradia penhorada, ofende gravemente a posse dos embargantes, que se verifica desde finais de 2005 e que é correspondente ao exercício do direito de propriedade.

Requereu, a final, que fosse sustada a realização da venda e que fossem decretados os embargos de terceiro, com as legais consequências.


3. Depois de um convite ao aperfeiçoamento da petição de embargos, que foi correspondido, foi proferido despacho a receber os embargos de terceiro e a determinar a suspensão dos termos do processo de execução quanto à fração em causa.


4. Notificada, a exequente/embargada, apresentou contestação, impugnando os factos alegados pelo embargante e sustentando, em síntese, que:

As diligências executivas foram desenvolvidas com o imóvel devoluto e em 27-01-2014 a fração foi avaliada devoluta.

A fração dos autos encontra-se onerada com hipoteca constituída em favor do exequente/embargado no dia 23-08-2001.

Os outorgantes do suposto contrato-promessa não podiam ignorar que a existência dessa hipoteca e que a fração em causa só podia ser alienada livre desse ónus mediante o pagamento da dívida bancária garantida.

O direito de crédito do Banco exequente e a hipoteca registada em seu favor, não podem ser postos em causa por força do contrato promessa apresentado pelo embargante, sob pena de ser violado o princípio constitucional da confiança.


5. Convidadas as partes a pronunciar-se sobre a perspetiva de ser imediatamente proferida decisão final, as mesmas nada vieram dizer.


6. Foi, então, proferida sentença que julgou totalmente improcedente a oposição à execução, mediante embargos de terceiro.


7. Inconformado com esta decisão, dela apelou o embargante para o Tribunal da Relação de … que, por acórdão proferido em 11.05.2017, julgou improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.


8. Inconformado com este acórdão, o embargante dele interpôs recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões, que se transcrevem:

«1. Vem o RECURSO ora interposto, do Douto Acórdão, dos Ilustres Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de … que, « (…) Termos em que acordam em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pelo apelante. », tudo conforme aquele, que aqui se dá por integralmente reproduzido, para os devidos e legais efeitos;

2. No presente RECURSO de Revista, em face do Douto Acórdão, do Tribunal da Relação de …, salvo o devido respeito e melhor opinião, pensamos que os Srs. Juízes Desembargadores não tiveram em consideração, a aplicação da norma do art. 691.º, n.º 1, al. c), do C.C., se bem que aflorada, a fls. 8 do Douto Acórdão ora recorrido, sem, contudo, tomarem qualquer posição, na análise e na Decisão, sobre o caso concreto dos autos, com aplicação direta, naquilo que é, «(…) o direito de terceiros.»;

3. bem assim, na interpretação e aplicação do Direito, quanto às normas dos arts. 1251.º e segs, 1273.º, 720.º, n.º 2, al. b) e 726.º, todos do mesmo diploma, que se refletem no caso concreto do ora recorrente;

4. Num primeiro momento, dir-se-ia que, aquando da interposição do Recurso de Apelação, o recorrente deu como reproduzido, nessa peça, o seu articulado de Embargos de Terceiro e Douta Decisão que veio a merecer, quando interpôs Recurso para o Tribunal da Relação, atenta a Douta Decisão, da qual, não se conformando, recorreu, por não ter sido acautelado o seu direito;

5. Ou seja, com isso, pretendeu-se apenas e só historiar, documentalmente e factualmente, o até aí chegado e não,     que os Srs. Juízes Desembargadores produzissem um novo julgamento;

6. Aliás, se se verificar a Douta Decisão do Tribunal "a quo", do qual foi objeto de Recurso, para o Tribunal da Relação, o Meritíssimo Juiz do Tribunal "a quo" decidiu, sem qualquer Audiência de Julgamento, porque terá entendido que a impugnação dos factos pela embargada exequente, isto é, a entidade bancária "Banco AA", terá impugnado factos e documentos que não chegaram a ser, pois, "escrutinados", em Audiência de Julgamento;

7. Ora, se esta embargada exequente publicita, por Edital, a sua execução, na respetiva habitação, do ora recorrente, pelo menos aí conheceu que existia uma habitação construída, após a hipoteca, - que não habitada, ou possuída, pelo devedor hipotecário -, que garantia o financiamento do devedor hipotecário, sociedade "BB -Empreendimentos Imobiliários, Lda.", quanto ao lote para construção e como tal, existiam direitos de terceiros, a ter em consideração e, nessa medida, a Audiência de Julgamento esclareceria, todos os factos daí decorrentes;

8. Contudo, uma vez interposto Recurso para o Tribunal da Relação, veio o mesmo Tribunal superior, a não considerar tais situações;

9. Assim, tendo presente o Douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, ora recorrido, do ponto de vista do Direito e enquadrando-se factualmente o que é essencial na apreciação da interpretação e aplicação do mesmo, pensamos que tem a ver com, desde logo, a existência de um Contrato-Promessa de Compra e Venda, entre o devedor hipotecário e o embargante, ora recorrente;

10. na medida em que, com o Contrato-promessa celebrado entre o devedor hipotecário e o ora recorrente, aquele procedeu ao pagamento de 95.000,00 €, que corresponde a cerca de dois terços do valor global, de 125.000,00€, como valor de venda da construção;

11. verificando-se depois, por Aditamento ao Contrato, o pagamento do restante preço, ou seja, de 30.000,00 €, que deveria respeitar à celebração de Escritura Notarial de Compra e Venda;

12. que não veio a acontecer, por incumprimento do devedor hipotecário;

13. Quer isto dizer que, o devedor hipotecário, quanto ao seu lote, hipotecado à exequente embargada, recebeu, na totalidade, antes de celebrar a Escritura Notarial com o ora recorrente, o mesmo é dizer que não necessitou, o devedor hipotecário, de chamar a si o financiamento pedido, que levou à hipoteca do lote;

14. porque só dois terços do pagamento desse lote foi feito em projeto e não, em construção, pelo devedor hipotecário;

15. A ser assim, tal qual como a Douta Decisão do Tribunal "a quo", no item «Factos provados (com relevo para a decisão)», demonstrou, então estamos em presença daquilo que a norma do art. 691º, nº 1,  al. c), do C. C. , preceitua, excepcionando, salvaguardando, « (…) o direito de terceiros. » que, no caso dos autos, o terceiro e o respetivo direito tem a ver com o ora recorrente;

16. Pergunta-se: se a construção da habitação deu-se após o financiamento, por parte da exequente embargada, ao devedor hipotecário, obtendo aquela, como garantia do seu financiamento, a hipoteca, sobre aquele lote e, sendo certo e justo, quer do ponto de vista doutrinário, quer do ponto de vista jurisprudencial, que essa construção consolidou-se com aquele, numa única realidade jurídica;

17. então também é fundamental, porque essencial, perceber-se e concordar-se que, essa mais valia, que representa a habitação, sobre aquele lote, apto para construção, mas que, por razões que dizem exclusivamente respeito ao incumprimento do devedor hipotecário, para com a exequente embargada, resulta numa essencialidade reconhecer-se que essa mais valia não é nem da exequente embargada, nem do devedor hipotecário;

18. mas sim, do ora recorrente, porque não só pagou o valor total dessa construção, a que respeita o Contrato-promessa de Compra e Venda, como também, toda a despesa e todo o investimento que fez, nessa habitação inacabada, conforme articulado de Embargos de Terceiro;

19. resultando daqui, inteira justiça, admitir-se a possibilidade da redução judicial da hipoteca, conforme  preceitua a norma do art. 720.º, n.º 2, al. b), do C.C., em consequência da valoração da coisa, isto é, a benfeitoria, habitação, construída, no lote hipotecado;

20. Doutrinariamente, veja-se a anotação ao art. 691.º, n.º 1, al. c), do C.C., pág. 529, do Código Civil Anotado - Volume I, de Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Coimbra Editora Limitada, 1967, « (…) 3. Refere-se, por último, o artigo 691.º às benfeitorias, salvo o direito de terceiros. Por benfeitoria deve entender-se toda a despesa feita para conservar ou melhorar a coisa (art. 216.º, n.º 1). Não são benfeitorias as coisas novas adquiridas e que se vêm juntar à coisa hipotecada, não se dando, neste caso, a extensão hipotecária. (…) »;

21. Desta forma, conforme preceitua a norma do art, 726.º, do C.C., «O terceiro adquirente é havido como possuidor de boa fé na execução, até ao registo da penhora e, na expurgação da hipoteca, até à venda judicial da coisa ou direito. »;

22. Jurisprudencialmente, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-11-1994 e de 24-03-1992, cujos sumários, respetivamente, concluem que « O direito de retenção do promitente comprador, destinado a garantir o seu crédito à indemnização por incumprimento imputável à outra parte, não obsta à penhora requerida pelo credor hipotecário do promitente vendedor, cuja hipoteca tenha por objecto o imóvel objecto do contrato-promessa de compra e venda.» e «(…) VII - O promitente-comprador goza do direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato-promessa quando tenha havido tradição dessa coisa (n. 3 do artigo 442 do Código Civil, na redacção do Decreto-Lei n. 236/80, e, após o Decreto-Lei n. 389/86, alínea f) do n. 1 do artigo 755, do Código Civil), o qual prevalece sobre a hipoteca (artigo 759 n. 2 do Código Civil). (…) », documentos n.ºs JSTJ00025873 e JSTJ00014353;

23.   Desta forma, os Ilustres Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de …, ao decidir como decidiram, violaram as normas dos arts. 1251.º e segs, 1273.º, 720.º, n.º 2, al. b) e 726.º, do C.C.».


Termos em que requer seja revogado o acórdão recorrido e a sua substituição por outro que julgue e reconheça, de acordo com a norma do art. 691.º, n.º 1, al. c), do C.C., o direito a ser indemnizado pelo investimento feito na sua benfeitoria, deduzido do crédito hipotecário, como possuidor de boa-fé.


7. O embargado não contra alegou. 

      

8. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.



***



II. Delimitação do objecto do recurso


Como é sabido, o objeto do recurso determina-se pelas conclusões da alegação do recorrente, nos termos dos artigos 635.º, n.º 3 a 5, 639.º, n.º 1, do C. P. Civil, só se devendo tomar conhecimento das questões que tenham sido suscitadas nas alegações e levadas às conclusões, a não ser que ocorra questão de apreciação oficiosa[1].


Antes, porém, torna-se necessário considerar a questão da admissibilidade do recurso de revista interposto pelo embargantes, tendo em conta o obstáculo da dupla conforme previsto no art. 671º, nº 3 do CPC.

Assim sendo e não obstante o acórdão do Tribunal da Relação ter confirmado a decisão de 1ª Instância sem qualquer voto de vencido, diremos, na esteira de Abrantes Geraldes[2], que o presente recurso terá por objecto as questões novas apreciadas pela Relação e que não tiveram eco na decisão da 1ª instância, pelo que conclui-se pela admissibilidade do recurso interposto pelo embargante.



*



Deste modo, as questões a decidir consistem em saber se:


1ª- o acórdão recorrido desconsiderou factos que se mostrem necessários para constituir base suficiente para a decisão de direito;


2ª- existe fundamento para fazer operar a redução judicial a hipoteca, nos termos do disposto no art. 720º, nº 2, al. b) do C. Civil;

   

3º- o embargante goza do direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato-promessa



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III. Fundamentação


3.1. Fundamentação de facto


O acórdão recorrido, após eliminar os factos dados como provados pelo Tribunal de 1ª Instância sob as alíneas F) a H), por entender que os mesmos não podiam ser julgados provados apenas com base nos documentos juntos aos autos, considerou provados os seguintes factos:


A. Pela Ap. 3 de 14/09/2001, foi registada a aquisição do prédio, sito na freguesia e concelho de …, na Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.° 1…6 e inscrito na respectiva matriz sob o n.° 5…8, composto pelas fracções A a W, a favor da sociedade executada.

B. Encontra-se registada a favor da sociedade executada a fracção autónoma, designada pela letra R, do prédio referido em A).

C. Pela Ap. 4 de 14/09/2001 foi registada sobre a totalidade do prédio referido em A) uma hipoteca voluntária (capital: 200.000.000.00 escudos; montante máximo assegurado: 280.000.000.00 escudos) a favor do Banco AA, SA, com a indicação de que se destinava à "garantia do pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir até ao capital acima referido (...)".

D. A hipoteca referida em C) nunca foi cancelada relativamente à fracção autónoma denominada pela letra R.

E. Pela Ap. 62 de 23/11/2012, foi registada sobre a fracção autónoma denominada pela letra R uma penhora no âmbito da presente execução, para pagamento da quantia exequenda.



***



3.2. Fundamentação de direito


3.2.1. Quanto à primeira das questões supra enunciadas, sustenta o recorrente ter alegado factualidade concreta que, a provar-se, constituiria fundamento legal bastante para a procedência dos embargos de terceiro por ele deduzidos, pelo que impunha-se o prosseguimento dos autos para produção de prova sobre essa factualidade.



*



Mas, em nosso entender, carece de razão.

Senão vejamos.

Por regra, tal como ensina Antunes Varela[3], o contrato promessa, sendo um negócio meramente obrigacional, não transmite, por si só, a posse ao promitente comprador.

Mesmo nos casos em que ocorre a tradição da coisa, antes da celebração da escritura definitiva de compra e venda, o promitente comprador, adquirindo, embora, o corpus possessório, não adquire o animus possidendi, ficando, por isso, investido na qualidade de mero detentor ou possuidor precário.

Todavia, esta regra não é absoluta.

Com efeito, e como nos dá conta o Acórdão do STJ de 23.05.2006[4], vem sendo entendimento deste Supremo Tribunal, que «a qualificação da natureza da posse do beneficiário da traditio, no contrato promessa de compra e venda, depende essencialmente  de uma apreciação casuística  dos termos e do conteúdo do respectivo negócio»[5].       

Quer isto dizer que, casos existem, em que a posse resultante da tradição da coisa pode assumir todas as características que definem a posse verdadeira e própria, a que alude o art. 1251º do C. Civil, juntando ao corpus também o animus correspondente ao direito real em causa[6].

Nas palavras do Acórdão do STJ, de 19.04.2012 (revista nº 299/05.6TBMGD.P1.S1) «excepcionalmente, a tradição material da coisa a favor do promitente comprador pode conferir a posse, para efeitos de usucapião, como sucede nas hipóteses em que a tradição ocorre, após o pagamento da totalidade do preço, acompanhada da intenção de transmitir, em definitivo, o direito prometido, e passando o promitente comprador, consequentemente, a actuar uti dominus da coisa entregue».  

Ora, não obstante sufragarmos este entendimento e aceitarmos como certo ter o embargante alegado, nos artigos 5º a 122º da sua petição de embargos de terceiro (aperfeiçoada), factualidade concreta que a provar-se, evidenciariam a celebração entre a sociedade executado e o embargante, de um contrato promessa de compra e venda, em 13.07.2004 (a que foi feito um aditamento em 10.04.2008), que já foi pago a totalidade do preço da fracção prometida vender e que esta mesma fracção foi entregue ao promitente comprador (o ora embargante), que dela passou a dispor, como se fosse sua, a partir dos finais do ano de 2005 - o que tudo permitiria caracterizar a sua alegada posse como uma posse real, efectiva e exercida em nome próprio - , a verdade é que, no caso concreto, não se justifica o prosseguimento dos autos para produção da prova sobre essa factualidade.

Isto porque está provado documentalmente que sobre a totalidade do prédio urbano, composto pelas fracções A a W (nestas se incluindo a fracção designada pela letra R, prometida vender e comprar), existe hipoteca voluntária, registada em 14/09/2001 e constituída pela sociedade executada a favor do exequente, Banco AA, SA, para garantia do pontual pagamento de todas e quaisquer responsabilidades assumidas ou a assumir até ao capital de 280.000.000.00 escudos, tendo, na sequência dessa hipoteca, sido efetuada, no âmbito dos autos principais de execução, a penhora da fracção autónoma designada pela letra R, que foi registada em 23/11/2012 [ factos dados como provados sob as alíneas A) a E)]. 

E anda porque, atento o disposto no art. 691º, nº1, al. c) do C. Civil bem como o princípio da indivisibilidade da hipoteca, consagrado no art. 696º do mesmo código, impõe-se concluir que a hipoteca sobre o referido prédio, ou seja a garantia real de que beneficia o banco exequente de ser pago com preferência sobre os demais credores, estende-se a todas as fracções autónomas que compõem o prédio hipotecado o compõem, pelo que cada uma destas fracções garante também a totalidade daquele crédito, podendo, de igual forma, o credor hipotecário executar a hipoteca, na sua totalidade, sobre qualquer uma daquelas fracções.

Com efeito, como observam os Professores Oliveira Ascensão e Menezes Cordeiro[7] «Sendo real, a hipoteca é inerente à coisa, gozando o seu titular da sequela: ele pode atingir, para efeitos de execução, a coisa-objecto, nos precisos termos do seu direito inicial, independentemente das situações de facto ou de direito que, em momentos ulteriores se formem sobre ela».

«Sendo real – e seja qual for a explicação teórica encontrada para o fenómeno – a hipoteca prevalece sobre a garantia geral dos credores quirógrafos, mesmos anteriores, e sobre todos os direitos reais posteriores que, com ela, se mostrem incompatíveis e na medida em que isso suceda»[8].  

Ora, perante o quadro legal traçado e verificando-se que a hipoteca que garante a dívida exequenda está registada desde 14.09.2001, sendo, por isso, anterior ao alegado início da posse do embargante (finais do ano de 2005), fácil se torna concluir que, mesmo provando-se ser o embargante titular do direito de posse, ou seja, de uma posse real, efetiva e exercida em nome próprio sobre a fracção penhorada, jamais essa sua posse poderia «entravar o poder adversus omnes do credor hipotecário».

Dito de outro modo e nas palavras do Acórdão do STJ, de 13.11.2007 (revista nº 3615/07) jamais a alegada posse poderia «fundamentar embargos de terceiro, porquanto a natureza real da hipoteca permite-lhe prevalecer, quando em confronto com outro direito real (como é a posse), no caso de ter registo anterior ao início desse direito».

Daí tornar-se evidente a inutilidade do prosseguimento dos autos.    



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3.2.2. Quanto à segunda e terceira questões supra enunciadas, alega o recorrente existir fundamento para proceder à redução judicial da hipoteca, nos termos do disposto no art. 720º, nº 2, al. b) do C. Civil e gozar o mesmo o direito de retenção sobre a coisa objeto do contrato promessa, requerendo que, de harmonia com o disposto no art. 691º, nº1 do C.C. , lhe seja reconhecido o direito a ser  indemnizado pelo investimento feito na sua benfeitoria, deduzido do crédito hipotecário, como possuidor de boa-fé.


Tratam-se, porém, de questões novas que o embargante não suscitou, direta ou indiretamente, na fundamentação dos embargos nem na motivação/conclusões do recurso de apelação e que, por não serem questões de conhecimento oficioso, não foram nem podiam ser apreciadas pelas instâncias.

Com efeito, vem sendo entendimento unânime, quer na jurisprudência quer na doutrina, que os recursos visam modificar decisões e não criar decisões sobre matéria nova, não sendo, por isso, lícito às partes invocar, nos mesmos, questões que não tenham suscitado perante o tribunal recorrido[9].

Ora, não podendo este Supremo Tribunal, pronunciar-se sobre as referidas questões, fácil se torna concluir que as mesmas, pela sua novidade, irrelevam para a discussão em sede de recurso de revista, não podendo, por isso, constituir fundamento para a revogação/alteração do acórdão recorrido.


Termos em que improcedem todas as conclusões de recurso aduzidas pelo recorrente.  



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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Supremo Tribunal em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo do recorrente.


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Supremo Tribunal de Justiça, 12 de abril de 2018

Maria Rosa Oliveira Tching (Relatora)

Rosa Maria Ribeiro Coelho

João Luís Marques Bernardo

_________

[1] Vide Acórdãos do STJ de 21-10-93 e de 12-1-95, in CJ. STJ, Ano I, tomo 3, pág. 84 e Ano III, tomo 1, pág. 19, respectivamente.

[2] In, “ Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017-4ª ed., pág. 355

[3] In, “ R.L.J., ano 124, págs, 345 e 346.

[4] In, CJ/STJ, ano 2006, tomo II, págs 97 e segs.

[5] No mesmo sentido, cfr. Calvão da Silva, in, BMJ, nº 349, pág. 86.

[6] No dizer do Acórdão do STJ, de 30.03.2017 (revista nº 809/14.8T8SLV-B.E1), as circunstâncias excecionais que despoletam o reconhecimento dessa posse, reconduzem-se, normalmente, ao pagamento da quase totalidade ou mesmo da integralidade do preço da venda e/ou o desinteresse na formalização do contrato prometido, tal como ilustram, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 22.05.2012 (revista nº 430/07.7TVLSB.L1.S1); de 21.03.2013 ( revista nº 1223/05.1TBCSC-B.L1.S1); de 12.03.2015 (revista nº 3566/06.8TBVFX.L1.S1); de 08.09.2015 (revista nº 579/08.9TBABF.E1.S1) e 14.02.2017 (revista nº 724/09.7TBAMT.P2.S1).

[7] Em parecer publicado na CJ, ano 1996, tomo Y, págs. 37 a 47.

[8] Cfr. fls. 45 do dito parecer.