Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5368/23.8T8LSB.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: AÇÃO POPULAR
INDEFERIMENTO LIMINAR
AUTORIDADE DO CASO JULGADO
CONCORRÊNCIA DESLEAL
DIREITOS DO CONSUMIDOR
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
IDENTIDADE SUBJETIVA
DECISÃO JUDICIAL
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
TRÂNSITO EM JULGADO
INTERESSES DIFUSOS
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Não merece censura o indeferimento liminar de uma acção popular instaurada com o objectivo confesso de reagir contra o alegado incumprimento pela ré de uma decisão judicial proferida numa acção anterior, que considerou ilegal a cobrança por serviços de telecomunicações móveis não solicitados e a condenou na restituição “aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da activação automática de serviços adicionais não solicitados”, e assim obter uma nova condenação da Ré a abster-se daquelas práticas.

II - O caso julgado formado pela decisão proferida na acção popular anterior goza de eficácia subjectiva geral, salvo em relação aos titulares que se autoexcluíram (art. 19º da Lei 89/95 de 31.08.);

II – Nos termos do disposto no art. 22º, nº 4, da Lei nº 89/95, os autores populares dispõem do prazo de três anos, subsequente ao trânsito em julgado da decisão que reconheceu o direito à indemnização, para reclamar o reembolso dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados ilegalmente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


Citizens`Voice – Consumer Advocacy Association, instaurou a presente ação popular contra Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, S.A., em que formula os seguintes pedidos:

A. deve ser reconhecido a todos os autores populares o direito a não pagarem os serviços cobrados pela depois de 10.11.2022 e considerados ilegais pela sentença proferida e já transitada em julgado no processo 22640/18.1T8LSB.L1.S1;

B. Ser a ser condenada a abster-se de continuar a ativar e cobrar os serviços adicionais não solicitados pelos autores populares;

C. deve ser fixada uma sanção pecuniária compulsória, prevista no artigo 829-A (1), do CC, com vista a assegurar o cumprimento do judicialmente ordenado, em montante nunca inferior a 100 vezes o valor que a cobra ilicitamente aos autores populares por esses serviços em cada ativação e nunca inferior, por cada ativação, a 300 euros., que atento às particularidades da situação sub judice e à dimensão da ré, se afigura ajustada;

D. deve a ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados pelos pagamentos de serviços cobrados pela depois de 10.11.2022 e considerados ilegais pela sentença proferida e transitada em julgado no processo 22640/18.1T8LSB.L1.S1, em montante global:

a. a determinar nos termos do artigo 609 (2) do CPC;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a for condenada a indemnizar os autores populares pelos pagamentos adicionais;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal,

E. Subsidiariamente ao ponto anterior deve a ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados pelos pagamentos de serviços cobrados pela depois de 10.11.2022 e considerados ilegais pela sentença proferida e transitada em julgado no processo 22640/18.1T8LSB.L1.S1:

a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 3.000.000 (três milhões de euros) a ser dividido pelo número de clientes de voz móvel ou outro que o tribunal considere mais adequado em resultado da pericial colegial requerida.

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

F. Deve a ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:

a. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, mas nunca em valor inferior a 100 euros por autor popular, independente da data de contração dos serviços e do valor dos pagamentos adicionais

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais; c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

G. Deve a ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:

a. nos termos do artigo 9 (2) da lei 23/2018 ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada;

b. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;

c. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal.

H. ser a condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente teve ou venha ainda a ter com o processo, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3) do CPC como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexo e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para a autora e seu mandatário, de modo a que possam assim (e assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que eventualmente venha obter por via de celebração de um contrato para esse efeito, o qual se encontra de momento a negociar e, assim que se justificar, juntará ao processo para prova de tal custo.

I. porque o artigo 22 (2) da Lei 83/95 estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2) do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.

J. requer-se ainda que Vossa Excelência decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 13 infra, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.

K. requer-se também que Vossa Excelência decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 14, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido.”.

Alega, para tanto, e em síntese, que:

- A ré foi condenada pelo Supremo Tribunal de Justiça, em sentença (sic) proferida por acórdão no processo 22640/18.1T8LSB.L1.S1, à restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados;

- no entendimento de que nos casos em que a obrigação de pagamento adicional resultar de opções estabelecidas por defeito que tivessem de ser recusadas para evitar o pagamento adicional (ou que nem admitem a possibilidade de recusa), o consumidor tem direito à restituição do referido pagamento;

- concluindo, portanto, que a ativação e exigência do pagamento de serviços adicionais não solicitados é ilegal;

- apesar dessa decisão ter já transitado em julgado, a ré continua a adotar esse comportamento ilegal com todos os autores populares;

- a presente ação popular para defesa de interesses difusos e individuais homogéneos visa paralisar o comportamento ilegal da ré e que os autores populares sejam indemnizados pelos danos causados com o não cumprimento da sentença.


*


Ouvido, o Ministério Público foi do parecer de que a ação não deve prosseguir.

A petição foi indeferida in limine, nos seguintes termos:

“A Lei nº 83/95, de 31/08 (LAP), que veio regular o direito de participação procedimental e de ação popular, define os casos e termos em que é conferido e pode ser exercido, nomeadamente “o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no nº 3 do artigo 52º, da Constituição.”.

Dispõe o artigo 52º, nº 3, da Constituição, que “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:

a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural.

(…)”.

O direito de ação popular só existe, pois, nos casos e termos tipificados na lei.

Vale isto por dizer que sem consagração legal não se pode afirmar a existência de um direito geral a fazer valer posições jurídicas supra individuais através da ação popular, e que o direito de ação popular só pode ser exercido nos termos legalmente previstos.

É fora de dúvidas que é interesse do referido diploma legal “a proteção do consumo de bens e serviços” – cfr. nº 2 do art. 1º da Lei nº 83/95.

Por sua vez, são titulares do direito de ação popular, além do mais, as associações defensoras de tais interesses. Os interesses individuais homogéneos correspondem aos interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso stricto sensu ou de um interesse coletivo, sendo o reflexo na esfera individual de um interesse (difuso ou coletivo) que assume natureza supra individual.

A Autora invoca estar a prosseguir na presente ação direitos individuais homogéneos - já reconhecidos, de resto, por decisão transitada em julgado - mas peticiona, além do mais, uma “indemnização global” a ser gerida por si, peticiona uma indemnização por “danos morais” (cuja “razão” assentará, necessariamente, em fundamentos particulares de cada um, atenta a natureza do dano), pede a condenação na abstenção de uma prática que, conforme expressamente reconhece, foi já declarada ilegal, pretendendo ainda que se diga, ao mesmo tempo, ter legitimidade para requerer a “liquidação judicial” (pretensão já indeferida no âmbito do invocado processo e de cuja decisão foi interposto recurso) e a “execução” (de sentença já proferida). Enfim, mistura pedidos de simples apreciação negativa com interesses não homogéneos e, no limite, pretende a condenação no cumprimento de condenação anterior!

Ora, os termos da decisão proferida nos autos de ação popular com o nº 22640/18.1T8LSB - ao condenar a Vodafone na restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados - determinam, por si só, qual a conduta que deve ser observada pela Ré.

Por sua vez, a medida concreta dos “danos” causados com o não cumprimento daquela sentença está também perfeitamente enunciada e será em quantitativo variável, relativamente a cada um dos autores populares.

O efeito útil daquela decisão mostra-se garantido, cabendo a cada um dos autores populares reclamar o reembolso das quantias indevidamente cobradas, como, de resto, alguns já o fizeram (através da competente ação executiva).

Por outras palavras, através desta ação pretende-se a confirmação de uma decisão já proferida e transitada em julgado.

Refira-se ainda que a alusão à pretensão de salvaguarda da “equidade das condições de concorrência” não configura um interesse coletivo mas um interesse público.

Os interesses públicos são interesses gerais da coletividade, meta-individuais, correspondendo ao interesse indivisível duma pluralidade de pessoas relativamente a bens suscetíveis de satisfazerem, não necessidades individuais, mas sim a necessidade comum de todas essas pessoas; diferentemente, os interesses coletivos são interesses que respeitam a bens privados de uma pluralidade de sujeitos (cfr. Teixeira de Sousa, “A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos”, Lisboa, Lex, 2003, p. 32 e 49, e Rogério Soares, “Interesse Público, Legalidade e Mérito”, Coimbra, 1955, p. 106).

O interesse na concorrência leal no mercado é um típico interesse geral, meta-individual, que corresponde a necessidades gerais de toda a comunidade política organizada no Estado.

E quando o interesse em causa é um interesse público geral, é unicamente ao Estado, através do Ministério Público, que compete a prevenção ou repressão da violação desse mesmo interesse (cfr. Teixeira de Sousa, ob. cit., p. 32 e 33).

Nesta conformidade, considerando o disposto no art. 13º da LAP, nos termos do qual, “a petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido”, indefiro liminarmente a petição inicial.

Custas pela Autora, fixando-se em metade do valor das normalmente devidas (cfr. art. 20º, nº 3, da LAP).”


*


Inconformada, a Autora interpôs recurso per saltum, visando a revogação da sentença, para que a acção popular siga os seus regulares termos, tendo apresentado as seguintes conclusões:

1ª. Os recorrentes, notificados da douta sentença do tribunal a quo e não se conformando com a mesma, vêm mui respeitosamente interpor RECURSO DE REVISTA PER SALTUM, nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1) aplicável ex vi artigo 644 (1, a) e 678 (3) todos do CPC, diretamente para o VENERANDO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, o qual subirá de imediato e com efeito meramente devolutivo, por para isso terem legitimidade e estarem em tempo.

2. Vem o presente recurso interposto da douta sentença recorrida que decidiu indeferir liminarmente a petição inicial no arco do disposto no artigo 13, da lei 83/95, por entender que:

a. o interesse na concorrência leal no mercado é um típico interesse geral, meta-individual, que corresponde a necessidades gerais de toda a comunidade política organizada no Estado. E quandoo interesse em causa é um interesse público geral, é unicamente ao Estado, através do Ministério Público, que compete a prevenção ourepressão da violação desse mesmo interesse;

b. os termos da decisão proferida nos autos de ação popular com o n.º 2640/18.1T8LSB (…) determinam, por si só, qual a conduta que deve ser observada pela , entendendo que os “danos” causados com o não cumprimento daquela sentença está também perfeitamente enunciada e será em quantitativo variável, relativamente a cada um dos autores populares. Portanto, de acordo com o tribunal a quo, o efeito útil daquela decisão mostra-se garantido, cabendo a cada um dos autores populares reclamar o reembolso das quantias indevidamente cobradas.

3. Ou seja, entende o tribunal a quo julgar verificada a manifesta improbabilidade da procedência do pedido, porquanto entende que o interesse na concorrência leal no mercado não pode ser defendido nas ações populares, por não configurar um interesse coletivo, mas sim e apenas um interesse público que só o Estado, por intermédio do Ministério Público, pode defender e, segundo melhor se percebeu, parece invocar a força de caso julgado da ação popular 2640/18.1T8LSB, relativamente à presente ação. Ou, senão é isso, parece defender que este não é o meio próprio para os autores fazerem valer os direitos que reclamam nesta ação.

4. A causa de pedir assenta no comportamento da ré, descritos nos §§2 e 3 da petição inicial e que por questões de proficiência se dão aqui como reproduzidos, e que foram a causa dos danos provocados na esfera dos autores populares.

5. Sem prejuízo de tal remissão, a causa de pedir pode ser sumariada do seguinte modo: a ré foi condenada pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, em sentença proferida por acórdão P. 22640/18.1T8LSB.L1.S1, à restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados. Isto porque, entendeu esse digníssimo coletivo, que a ativação e exigência do pagamento de serviços adicionais não solicitados é ilegal.

6. Apesar dessa decisão ter já transitado em julgado, a ré continua a adotar esse comportamento ilegal com todos os autores populares, designadamente continua a ativar tais serviços adicionais ilegais (não solicitados e repudiados pelos autores) e a cobrar por eles.

7. Em face dessa realidade, a presente ação popular procura que os autores populares sejam indemnizados pelos danos causados com a desobediência da ré, designadamente com os danos decorrentes da ativação de um serviço que foi já considerado ilegal pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, para além da violação das regras da concorrência leal.

8. Os danos causados com o comportamento da ré, depois do trânsito em julgado da decisão supra referida, são os :

a. danos patrimoniais, pelos serviços adicionais não solicitados que a ré continua a ativar e a exigir o pagamento depois da sentença proferida por acórdão já transitada em julgado;

b. danos morais in re ipsa pela desobediência à sentença proferida pelo aludido douto acórdão por parte da ré ao atuar contra o direito estabelecido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça;

c. danos pela distorção da equidade das condições de concorrência e, concomitantemente danos para os consumidores em geral, onde se incluem os autores populares.

9. O pedido, tal como formulado na petição inicial, visa a condenação da ré a reconhecer a todos os autores populares o direito a não pagarem os serviços cobrados pela ré depois de 10.11.2022 e considerados ilegais pela sentença proferida e já transitada em julgado no processo 22640/18.1T8LSB.L1.S1, assim como seja condenada a abster-se de continuar a ativar e cobrar os serviços adicionais não solicitados pelos autores populares, sendo fixada uma sanção pecuniária compulsória, com vista a assegurar o cumprimento do judicialmente ordenado, para além de ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados pelos pagamentos de serviços cobrados pela ré depois de 10.11.2022 e considerados ilegais pela sentença proferida e já transitada em julgado no processo 22640/18.1T8LSB.L1.S1 e, por fim, ser condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência.

10. Não foram provados ou não provados nenhuns factos, porquanto a petição inicial foi indeferida preliminarmente, sem que a ré tivesse contestado ou feito qualquer outra prova. Isso significa, que a apreciação do tribunal para efeitos do disposto no artigo 13, da lei 83/95, foi com base nos factos carreados pelos autores ao processo e que se encontram vertidos no §3, da petição inicial, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.

11. Sem prejuízo, tais factos estão já perfeitamente depurados no 3.2 supra, a titulo de sumário, para onde se remente e aqui se dão por inteiramente reproduzidos, por uma questão de proficiência e evitando a sua mera reprodução mecânica e fastidiosa a título de conclusões.

12. As questões a resolver são as seguintes:

a. saber se a proteção da concorrência ou da concorrência leal;

i. é ou não um interesse difuso ou coletivo;

ii. é um interesse que só pode ser defendido pelo Estado, por intermédio do Ministério Público, ou se também pode ser defendido pelos autores populares, numa ação popular;

b. saber se o facto da sentença proferida por acórdão do Colendo Supremo Tribunal de Justiça, ao determinar a restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, paralisao direito destes, numa nova ação (a presenteação), com diferente objeto e até com partes diferentes.

13. Relativamente ao direito, Vossas Excelências, melhor o interpretarão e o aplicarão, mas cabendo aos autores sustentar as suas pretensões no presente recurso, cabe dizer que o artigo 1.º da Lei 83/95, de 31 de agosto, abrange não os «interesses difusos» (interesses de toda a comunidade) como ainda os «interesses individuais homogéneos» (os que se polarizam em aglomerados identificados de titulares paralelamente justapostos).

14. Destarte, as ações populares têm, em primeira linha, a defesa dos interesses meta-individuais, e, só em segunda linha, a defesa de interesses individuais homogéneos.

15. no tocante àqueles direitos individuais homogéneos, (…) os direitos tutelados deverão ter objetivamente um carácter comunitário, isto é, um valor pluri-subjetivo e os interesses subjacentes a tais ações deverão assumir um cunho meta-individual, pois é necessário que o interesse comum seja suficientemente difuso e geral para não se identificar com os interesses pessoais e diretos em que assenta em regra a legitimidade e a titularidade do direito da ação judicial.

16. A possibilidade de ação popular para reagir contra violação do direito da concorrência está expressamente consagrada no artigo 19, da lei 83/95, e tem sido reconhecida, unanimemente, por vários tribunais (nunca foi recusada por nenhum tribunal – até agora, na presente ação), como é o exemplodasváriasações e jurisprudênciachamada àcolação em 5.1. supra.

17. A este respeito, termina-se dizendo apenas que para a proteção da concorrência, como para proteção contra práticas comerciais desleais, tem de proteger-se, em primeira linha, os grandes princípios e valores prosseguidos por essas leis (proteção da concorrência e proteção dos consumidores). Pelo que, nem precisam de proteger interesses individuais homogéneos.

18. Destarte, só este ângulo dita a procedência da ação e nunca poderia levar ao seu indeferimento liminar.

19. Relativamente ao efeito do caso julgado ou forma de processo, julgamos não se poder projetar sobre a presente ação o valor e a força de caso julgado da ação popular 2640/18.1T8LSB, desde logo porque nem as partes são idênticas e o objeto é diferente.

20. As partes não são idênticas, pois os autores populares, embora se possam sobrepor alguns, não se sobrepõe na totalidade. Isto, na medida em que na ação popular 2640/18.1T8LSB, apenas estavam abrangidos os clientes da ali ré e, aqui, são autores populares todos os consumidores em geral, desde logo devido à distorção da equidade da concorrência que afeta não só os clientes da ré, mas também todos os consumidores em geral.

21. Por sua vez, a causa de pedir e o pedido, são absolutamente diferentes, tal como se demonstrou supra.

22. Poderia alegar-se, que a forma de reagir ao comportamento da ré poderia ser outra – o que a ser verdade, de forma alguma paralisa a forma ora escolhida pelos autores populares.

23.O principio elementar de um julgamento justo, mediante um processo equitativo, enquanto expressão de uma posição jurídica subjetiva com dignidade constitucional, como é o direito de ação popular e, concomitantemente, o direito de indemnização dos lesados é, efetivamente, o da exigência de conformação do processo de forma materialmente adequada a uma tutela judicial efetiva.

24. Cabe facilmente concluir que a decisão do tribunal a quo conduz à inviabilização prática do direito de ação popular para a obtenção das indeminizações pelos lesados a que a ré, recorrida. Pelo que, tal interpretação não passava pelo crivo constitucional.

25. Destarte, é na preocupação de realização efetiva e adequada do direito material e no entendimento de que será mais útil, à paz social e ao prestígio e dignidade que a administração da justiça, desde logo de uma sentença proferida pelo mais alto tribunal, o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, que presente ação deve prosseguir.

26.A decisão do tribunal a quo, salvo sempre o mui devido respeito, não vai de encontro ao fim último que se pretende da ação dos tribunais, que é obtenção dessa dita justiça material.

27.O direito ao processo conjugado com o direito à tutela jurisdicional efetiva impõe, por conseguinte, a prevalência da justiça material sobre a justiça formal, isto é, sobre uma pretensa justiça que, sob a capa de requisitos processuais, se manifeste numa decisão que, afinal não consubstancia mais do que uma simples denegação de justiça e que permite, como se demonstrou, a desobediência da ré ao decidido pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça.

28. Assim, desde já se suscita a inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída pelo tribunal a quo, por violação do princípio do Estado de Direito, na sua vertente de princípio da segurança jurídica [cf. artigo 2, da CPR], perante o princípio da proporcionalidade [cf. artigo 18 (2), da CRP], do acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efetiva [cf. artigo 20 (1) e (4), da CRP] e do direito da ação popular [cf. artigo 52 (3), da CRP].

29. Mas, ainda assim, o que se pede na presente ação não é que o tribunal condene a ré, ora recorrida, a restituir ou a pagar os serviços automaticamente cobrados, tal como foi condenada na ação popular supra referida e já transitada em julgado. O que aqui é pedido é que a ré se abstenha de continuar a adotar um comportamento considerado ilegal pelo Colendo Supremo Tribunal de Justiça, inclusivamente para além do prazo de prescrição de 3 anos imposto pelo artigo 22 (4), da lei 83/95, e indemnize os autores por manter esse comportamento, designadamente pelos danos morais e da distorção da equidade da concorrência. Portanto, com um efeito prático totalmente diferente.

30. Assim, parece-nos, que falta razão para o indeferimento, liminar, da presente ação tal como decidiu o tribunal a quo.

Contra alegou o Ministério Público, concluindo como segue:

A – O Ministério Público reitera a posição já assumida no parecer de 14.03.2023.

B – A Autora pretende obter com a presente ação a condenação da Vodafone a cumprir uma condenação anterior, designadamente no processo nº 22640/18.1T8LSB, a correr termos no Juízo Central Cível de ..., J ....

C – Não existindo fundamento para a Vodafone continuar a cobrar tais serviços, caberá a cada um dos autores populares reclamar o reembolso dos valores indevidamente pagos e, se for o caso, de forma coerciva.

D – Os alegados danos após o Acórdão condenatório do Supremo Tribunal de Justiça estão, pois, delimitados e definidos.

E - Nesta conformidade, a decisão proferida fez correta interpretação dos factos, aplicando corretamente o direito, não se vislumbrando a invocada inconstitucionalidade da interpretação normativa extraída pelo tribunal a quo, pelo que deve ser mantida.

A Vodafone também contra alegou, começando por questionar a admissibilidade da revista per saltum, por estar em causa o indeferimento liminar da petição; assim não se entendendo, deve o recurso ser julgado improcedente, nos termos que desenvolve ao longo de 87 conclusões que aqui se dão por reproduzidas.


///


O direito.

A Recorrida Vodafone suscita a questão da inadmissibilidade do recurso de revista por estar em causa um despacho de indeferimento liminar, recorrível para a Relação nos termos do art. 629º, nº3, c), do CPC, insusceptível de recurso per saltum.

O recurso per saltum permite recorrer directamente para o Supremo Tribunal de Justiça, sem passar pela apelação, e a sua admissibilidade depende da verificação cumulativa dos requisitos previstos no nº1 do art. 678º do CPC, a saber: valor da causa superior à alçada da Relação, valor da sucumbência superior a metade da alçada da Relação, circunscrição do objecto do recurso a questões de direito e não impugnação de quaisquer decisões interlocutórias.

No caso, verificam-se todos estes requisitos.

A disposição do art. 629º, nº3, alínea c), do CPC, - “independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação das decisões de indeferimento liminar da petição ou do requerimento inicial do procedimento cautelar” – pretende vincar que o recurso para a Relação do despacho de indeferimento liminar é assegurado, independentemente do valor da causa, mas daqui não se segue estar vedado o recurso directo para o Supremo, desde que verificados os requisitos do nº1 do art. 678º.

Razões por que se admite o recurso per saltum.


///


Entrando na apreciação das questões suscitadas no recurso.

Estando em causa o indeferimento liminar de uma acção popular, justifica-se uma breve referência a esta tipo de acção.

A acção popular, com consagração constitucional (art. 52º da CRP) e regulada na Lei nº 89/95 de 31 de Agosto é definida por Paulo Otero como “…uma forma de tutela jurisdicional de posições materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis em termos individuais” (A acção popular, configuração e valor no actual Direito português, ROA, III, 1999, pag. 872).

E pacífico o entendimento segundo o qual a acção popular tanto pode ter como objecto interesses difusos, insusceptíveis de apropriação (defesa do ambiente, ou do património cultural, por exemplo), interesses colectivos (que dizem respeito a um conjunto de pessoas ligadas entre si por uma relação jurídica), ou interesses individuais homogéneos, expressão individualizada de interesses difusos colectivos – no caso relacionados com a defesa dos consumidores (cfr. nº2 do art. 1º da citada Lei nº 83/95) – (cfr. os acórdãos do STJ de 07.10.2003, de 20.10.2005 e 12.11.2020).

Invocando-se interesses dos consumidores de comunicações móveis clientes da Ré, estamos perante interesses individuais homogéneos, como bem decidiu a decisão recorrida.

Dito isto.

A Recorrente propôs a presente acção popular com dois fundamentos essenciais: i) incumprimento pela Ré da decisão proferida no Acórdão do STJ de 2 Fevereiro de 2022, (P. nº 22640/18.1T8LSB.L1.S.1); ii) infração ao direito da concorrência, que confere aos autores populares o direito à indemnização prevista no art. 9º, nº2.

A acção foi liminarmente indeferida, por se ter entendido que os pedidos enunciados sob as alíneas A, B, C, D e E ( primeiro fundamento) não passam de repetição dos formulados na acção popular anterior, intentada pela ora Recorrente contra a Recorrida Vodafone Portugal – Comunicações Pessoais, SA, (P. nº 22640/18.1T8LSB.L1.S1).

A Recorrente insurge-se contra esta decisão e justifica a necessidade de interpor a presente acção argumentando que a Ré mesmo depois do acórdão proferido naquele processo - que considerou ilegal a activação e exigência do pagamento de serviços adicionais não solicitados, - continuar a adotar esse comportamento com todos os autores populares, designadamente continua a ativar tais serviços adicionais não solicitados e a cobrar por eles.

Mas sem razão, com o devido respeito.

Na acção popular nº 22640/18, que a ora Recorrente Citizen`s Voice instaurou contra a Vodafone SA, formulou no essencial, os pedidos de condenação da Ré a reconhecer que:

- os clientes da Ré, consumidores de serviços de telecomunicações móveis, têm o direito de não pagarem por serviços que não tenham encomendado ou solicitado, ou que não constituam cumprimento de contrato válido;

- e que a estes seja reconhecido o direito ao reembolso do pagamento adicional por serviços dos quais não consentiu expressamente.

A acção foi julgada procedente pelo acórdão do STJ de 02.02.2022, transitado em julgado, que considerou ilegal aquela prática da Ré e, revogando a decisão recorrida, “condenou a Ré Vodafone na restituição aos autores populares, dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados, em virtude da activação automática de serviços adicionais não solicitados.”

Na presente acção, a Recorrente formula sob as alíneas a), b) e c) os pedidos:

- que a Ré seja condenada a reconhecer a todos os autores o direito a não pagarem os serviços cobrados pela ré depois de 10.11.2022 e considerados ilegais pela decisão do P. 22640/18.1T8LSB;

- de condenação da Ré a abster-se de continuar a ativar e cobrar os serviços adicionais não solicitados pelos autores populares;

- a indemnizar os autores populares pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados pelos pagamentos dos serviços cobrados pela ré depois de 10.11.2022 e considerados ilegais pela sentença.L1.S1.

Tendo já sido decidido por decisão transitada em julgado que é ilegal a prática da Ré de cobrar por serviços não solicitados, não pode voltar a discutir-se tal questão por força da autoridade de caso julgado formado pela decisão anterior.

Como é sabido, o caso julgado material (arts. 619º e 621º do CPC), implica dois efeitos – um negativo e outro positivo – sendo em face deles que se distingue a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, p. 320, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, p. 576, e José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, 2º, p. 599).

Os Professores José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, obra e local citados, referem:

“A excepção de caso julgado não se confunde com a autoridade do caso julgado; pela excepção, visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito; a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito.”

Este duplo efeito do caso julgado tem sido reconhecido na jurisprudência, como sucedeu com o recente acórdão do STJ de 12.12.2023, P. 2369/21 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza):

“Uma vez decidida uma questão com força de caso julgado, não pode a mesma voltar a ser apreciada em acção posterior, quer seja a título principal, caso em que funcionará a excepção de caso julgado, quer a título prejudicial ou seja, suscitada pelo réu, casos em que a força e autoridade de caso julgado obrigará a ter essa mesma questão como assente.”

O caso julgado formado pela decisão proferida na acção popular nº 22640/18 goza de eficácia subjectiva geral, salvo em relação aos titulares que se auto excluíram (art. 19º da Lei 89/95) – cfr. Paulo Otero, A acção Popular: configuração e valor no actual Direito Português.

A forma de reagir contra a alegada prática da Ré de continuar a cobrar por serviços “não solicitados”, não é a propositura de uma nova acção, que se traduz, como bem refere a decisão recorrida, em pretender “a confirmação de uma decisão já proferida e transitada em julgado”.

Com base na decisão condenatória da Ré na acção nº 22640/18, os AA populares podem reclamar da Ré o que indevidamente lhes foi cobrado, no limite por via coerciva, como bem decidiu a sentença recorrida:

Os termos da decisão proferida nos autos de ação popular com o nº 22640/18.1T8LSB - ao condenar a Vodafone na restituição, aos autores populares, dos pagamentos adicionais cobrados, em virtude da ativação automática de serviços adicionais não solicitados - determinam, por si só, qual a conduta que deve ser observada pela Ré.

Por sua vez, a medida concreta dos “danos” causados com o não cumprimento daquela sentença está também perfeitamente enunciada e será em quantitativo variável, relativamente a cada um dos autores populares.

O efeito útil daquela decisão mostra-se garantido, cabendo a cada um dos autores populares reclamar o reembolso das quantias indevidamente cobradas, como, de resto, alguns já o fizeram (através da competente ação executiva.”

Na conclusão 29ª, a Recorrente diz que com a presente acção o que pretende é que “a Ré se abstenha de continuar a adotar um comportamento considerado ilegal (…) inclusivamente para além do prazo de prescrição de 3 anos imposto pelo artigo 22 (4), da lei 83/95, e indemnize os autores por manter esse comportamento, designadamente pelos danos morais e da distorção da equidade da concorrência. Portanto, com um efeito prático totalmente diferente.”

Vejamos.

O art. 22º da Lei nº 83/95 estatui que “a responsabilidade por violação dolosa ou culposa dos interesses previstos no art. 1º, constitui o agente causador no dever de indemnizar o lesado ou lesados pelos danos causados.”

E o nº4 diz que “o direito à indemnização prescreve o prazo de 3 anos a contar do trânsito em julgado da sentença que o tiver reconhecido.”

Significa isto que sendo de 02.02.2022 o acórdão do STJ proferido na acção nº 22640/18.1T8LSB, os autores populares dispõem de um prazo de três a contar do trânsito em julgado daquele acórdão, o que ocorreu em data que desconhecemos, para reclamar da Ré o reembolso dos pagamentos adicionais que lhes tenham sido cobrados e que aquela decisão considerou ilegais.

O que venha a suceder depois, na hipótese de a Ré continuar a cobrar por serviços não solicitados, integra a categoria de danos futuros cuja ressarcibilidade depende de serem previsíveis (art.564º do Cód. Civil), o que não sucede manifestamente no caso em análise em que os danos são meramente hipotéticos.

Insurge-se ainda a Recorrente contra a sentença recorrida na parte em que considerou que “o interesse na concorrência leal no mercado é um típico interesse geral, meta-individual, que corresponde a necessidades gerais de toda a comunidade política organizada no Estado”, que cabe ao Ministério Público compete prevenir e reprimir.

Não nos parece que neste particular a sentença recorrida tenha decidido bem. Vejamos porquê.

A Lei nº 23/2018 de 05 de Junho – que transpôs a Directiva 2014/104/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 26 de Novembro de 2014, estabelece as regras relativas a pedidos de indemnização por infracção ao direito de concorrência.

Sob a epígrafe, responsabilidade civil, estatui o art. 3º:

1. A empresa ou associação de empresas que cometer uma infração ao direito da concorrência fica obrigada a indemnizar integralmente os lesados pelos danos resultantes de tal infração, nos termos previstos no art. 483º do Código Civil.

2. É igualmente responsável pela obrigação de indemnização prevista no número anterior a pessoa ou pessoas que tenham exercido influência dominante, nos termos do art. 3º da Lei nº 19/2012 de 8 de Maio, durante a infração sobre a infratora.

3. (…).

Sobre o cálculo da indemnização, diz o art. 4º:

1. O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, calculados desde o momento da ocorrência do dano.

2. Ao montante da indemnização previsto no número anterior acresce o montante devido a juros moratórios, contados desde o momento da decisão e até efectivo pagamento.

Finalmente, estatui o art. 19º, proteção dos consumidores:

Ação popular:

Podem ser intentadas acções de indemnização ao direito da concorrência, ao abrigo da Lei nº 83/95 de 31 de agosto, sendo-lhe ainda aplicável o disposto nos números seguintes:

2. Têm legitimidade para intentar ações de indemnização por infração ao direito da concorrência ao abrigo da Lei nº 83/95, de 31.08, para além das entidades nelas referidas:

a) As associações e fundações que tenham por fim a defesa dos consumidores; e

b) As associações de empresas de associados que sejam lesados pela infração ao direito da concorrência em causa, ainda que os respectivos objectivos estatutários não incluam a defesa da concorrência.

3. A sentença condenatória determina os critérios de identificação dos lesados pela infração ao direito da concorrência e de quantificação dos danos sofridos por cada lesado que seja individualmente identificado.

4. Caso não estejam identificados todos os lesados, o juiz fixa um montante global de indemnização, nos termos do nº2 do art. 9º.

5. Quando se conclua que o montante global da indemnização fixado nos termos do nº3 não é suficiente para compensar os danos sofridos pelos lesados que foram entretanto individualmente identificados, o mesmo é distribuído pelos mesmos, proporcionalmente aos respectivos danos;

(…).

Resulta daqui que as associações cuja finalidade seja a protecção dos consumidores dispõem de legitimidade para formular um pedido indemnizatório por infracção ao direito de concorrência.

Ponto é que sejam alegados factos concretos que a provarem-se permitam concluir pela existência de um comportamento ilícito, bem como a alegação dos concretos factos demonstrativos do dano como consequência do facto ilícito, nos termos exigidos pelo art. 483º do CCivil para que remete o art. 3º, nº1 da Lei nº 23/2018.

Sucede que a petição inicial é absolutamente omissa a este respeito, falando apenas em “danos por distorção da equidade das condições de concorrência”, sem qualquer concretização seja quanto à alegada “distorção da equidade das condições de concorrência”, seja quanto aos danos que terá causado aos consumidores.

O que se traduz na falta de causa de pedir, sendo nesta parte a petição inepta (art. 186º, nº2, alínea a), gerando uma excepção dilatória e a consequente absolvição do réu da instância (art. 186º, nº1, 577º, b) e 278º, nº1, b), do CPCivil).

Resta dizer que a alegação de que o indeferimento da petição constitui uma negação de justiça e a violação dos princípios constitucionais de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, não tem qualquer fundamento.

Como se procurou demonstrar, os autores populares podem exercer o seu direito ao reembolso por força da decisão proferida no P. 22640/18.1T8LSB, e quanto aos alegados danos por “distorção da equidade das condições de concorrência” a absolvição da Ré da instância da Ré não inviabiliza a propositura de uma futura acção indemnizatória.

Nestes termos, improcede o recurso.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se a decisão na parte relativa ao indeferimento da acção quanto aos pedidos formulados nas alíneas A), B), C), D) e E);

Quanto ao pedido formulado em G) – condenação da Ré a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, em montante global e nos termos do artigo 9 (2) da lei 23/2018 ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada – absolve-se a Ré da instância.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 25.01.2024

José Ferreira Lopes (relator)

Lino Ribeiro

Nuno Pinto Oliveira