Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
210/1999.E1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
FRAUDE À LEI
NULIDADE DO CONTRATO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO RURAL
DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDATÁRIO
Data do Acordão: 01/15/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTO JURÍDICO / NEGÓCIO JURÍDICO / OBJECTO NEGOCIAL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / CONTRATOS EM ESPECIAL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / DISCUSSÃO E JULGAMENTO DA CAUSA - RECURSOS.
Doutrina: - Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed, p. 407.
- Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 6ª ed, p.594.
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4º ed, p. 259.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 280.º, M.º2, 281.º, 286.º, 410.º, N.º3, 416.º, N.º1, 423.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 646.º, N.º4, 712.º, N.º5, 722.º, N.º2.
DL N.º 385/88, DE 25-10: - ARTIGO 27.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 30-5-78, BOL. 277, P. 233;
-DE 28-6-94, BOL. 438-456;
-DE 3-5-95, BOL. 447, P. 520.
Sumário :
I - Está ferido de nulidade, por fraude à lei, um contrato-promessa de compra e venda realizado com vista a prejudicar o direito do autor, arrendatário do prédio rural prometido vender, na preferência de um novo contrato de arrendamento rural celebrado entre a promitente-vendedora e o promitente-comprador.

II - Provado que o contrato-promessa de compra e venda foi um mero expediente utilizado pela interveniente (promitente-vendedora) e pelo réu (promitente-comprador) para afastarem o direito legal de preferência de que o autor era titular num novo contrato de arrendamento rural entre ambos celebrado, procurando associar tal contrato-promessa ao verdadeiro contrato de arrendamento rural e subordinar este contrato àquele, de modo a tentar dar uma imagem global dos factos que afastasse a possibilidade de validamente ser exercido o invocado direito de preferência no novo arrendamento efectuado, resulta do disposto no art. 281.º do CC a nulidade deste contrato-promessa realizado em fraude à lei.

III - Sendo nulo o contrato-promessa de compra e venda e não tendo a interveniente comunicado previamente ao autor o projecto do novo arrendamento e as cláusulas do respectivo contrato, assiste àquele o direito de preferência nesse novo arrendamento, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 416.º, n.º 1, e 423.º do CC e art. 27.º do DL n.º 385/88, de 25-10, então vigente.
Decisão Texto Integral:

         Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA, residente na Rua …, …., Lisboa, propôs a presente acção de preferência contra o réu BB, residente na Herdade da ..., Mourão, alegando, em síntese:

CC é dona do prédio rústico denominado Herdade …, descrito na Conservatória do Registo Predial da Vidigueira sob o n.º…, a fls. 12,5 do Livro B-5 e inscrita nos artigos 1-K da matriz predial rústica da freguesia de Selmes, 1-B da matriz predial rústica da freguesia do Pedrógão e artigo 538.º da matriz predial urbana da freguesia do Pedrógão.

Em 1989, a referida CC celebrou contrato de arrendamento rural relativo a tal imóvel com DD e AA, pelo prazo de 10 anos, renovável por períodos sucessivos de 3 anos mediante a renda anual de 2 000 000$00;

Em 1996, faleceu DD e, nos termos do acordado entre as partes, os deveres e direitos do contrato transmitiram-se para o outro arrendatário, AA;

A CC, por procurador, denunciou o contrato em apreço para produzir efeitos a partir de 4 de Julho de 1999, não obstante o interesse do arrendatário em manter o contrato;

Na pendência do contrato, o arrendatário fez várias benfeitorias no mesmo no valor de 51 645 000$00, cabendo-lhe o direito de delas ser indemnizado e inclusivamente assistindo-lhe o direito de retenção, o que manifestou através de carta à proprietária;

Em 3 de Novembro de 1999, a propriedade é invadida por gado diverso, que pertencia ao réu BB, data em que o autor AA toma conhecimento que a CC celebrou com aquele réu um contrato de arrendamento rural que tinha por objecto a propriedade identificada, pelo prazo de 10 anos e pela renda de 2 500 000$00, sem, todavia, ter previamente comunicado a celebração de tal contrato ao Autor.

Termina pedindo que se reconheça o direito de preferência do Autor no indicado arrendamento rural, ao abrigo do art. 27 da Lei do Arrendamento Rural, aprovada pelo dec-lei 385/88, de 25 de Outubro.

                                                        *

 O réu BB contestou, onde:

a) impugna alguns factos alegados pelo Autor, nomeadamente os relativos aos danos que aquele alega ter sofrido decorrentes de uma alegada invasão da propriedade;

b) argui excepção inominada impeditiva do direito de preferência do Autor nos seguintes termos:

- é agricultor e criador de gado bovino, sendo dono de propriedade denominado Herdade da ..., em Mourão, que foi expropriada e, nessa sequência teve necessidade de procurar terra para o seu gado, tendo tido conhecimento que a proprietária da Herdade … (a indicada CC)  estava interessada em vendê-la pelo preço de 370 000 000$00, negócio que interessava ao Réu e, por isso, logo diligenciou nesse sentido;

- tendo conseguido baixar o preço para 360 000 000$00, a verdade é que não tinha possibilidade de pagar de imediato o preço integral, mas porque precisava da terra para transferir o seu gado acedeu em celebrar contrato promessa de compra e venda onde ficasse consagrada a possibilidade de ocupar de imediato a terra e, ainda, um contrato de arrendamento rural, como contrato subordinado e instrumental em relação ao contrato promessa referido;

- na data prevista para tomar posse do imóvel, o Réu para aí fez conduzir o seu gado e aí fez permanecer o gado, não tendo, todavia, invadido o dito imóvel;

c) deduz reconvenção, alegando:

O Autor espalhou veneno ou produtos tóxicos pelos solos, causando a morte de 4 animais de raça bovina;

Além disso, tem impedido a utilização das pastagens, obrigando a encargos adicionais com o sustento do gado, causando prejuízos na ordem dos 875 000$00 mensais.

Termina, pugnando pela improcedência da acção e, em consequência:

“1. Reconhecer-se como validamente celebrado o contrato promessa de compra e venda da Herdade …, outorgado pelo Réu e pelo procurador da proprietária CC, em sua representação;

2. Do mesmo passo, reconhecer-se a natureza subordinada, instrumental e sob condição do contrato de arrendamento, absolvendo-se o Réu do pedido

         3- Condenar-se o autor a pagar ao Réu a quantia reconvinda de 7.000.000$00 e o mais que vier a liquidar-se em execução de sentença, à razão de 875 000$00 por cada mês, a contar de 1 de Março de 2000 e até decisão final nos presentes autos.

                                                        *

O autor AA apresentou réplica, onde:

– impugnou os factos alegados pelo Réu em relação à matéria da excepção e da reconvenção, designadamente considerando que não há qualquer relação entre o contrato de arrendamento e o contrato promessa;

– invoca, ainda, a nulidade do contrato promessa de compra e venda da Herdade … por vício de forma, já que lhe faltaria o reconhecimento das assinaturas;

– subsidiariamente, invoca a invalidade de algumas cláusulas constantes no contrato promessa, nomeadamente a 3.º e 4.º referentes à celebração do contrato de arrendamento;

– defende ainda que caso seja condenado no pagamento dos prejuízos ao Réu, terá direito de regresso sobre a CC; e

– sustenta, ainda, que o Réu litiga de má fé por ter alegado factos que sabia serem falsos.

Termina defendendo:

a) - seja admitida a intervenção de CC, viúva, reformada, residente na Av. …, n.º …, …. Lisboa, como interveniente acessória na presente acção;

b) - seja considerado improcedente por não provado o pedido reconvencional formulado pelo Réu, o mesmo devendo acontecer com a excepção por ele deduzida;

c) -  seja o Réu condenado em multa por litigância de má-fé;

d) - seja declarado falso o doc. n.º 3 junto pela contestação [contrato promessa de compra e venda da Herdade …];

e) - ou seja declarado nulo o contrato de promessa de compra e venda junto à P.I. como doc. n.º 3;

f) - ou sejam declaradas parcialmente inválidas as cláusulas 3.ª, 4.ª e 5.ª do contrato de promessa de compra e venda junto aos autos pela contestação com a designação de doc. n.º 3

                                                        *

Foi admitida a intervenção acessória da referida CC, que apresentou articulado a que denominou de contestação onde alega não estar em condições de prestar a colaboração que é suposto na norma processual penal, porquanto é Ré em processo onde o ora Autor é Autor e que diz respeito a eventual direito de retenção do imóvel em disputa nos autos, mais considerando estar o Autor de má ao pretender neste processo uma vantagem processual no aludido processo;

Impugna os factos invocados pelo Autor, antes defendendo a manutenção dos contratos de arrendamento e de contrato-promessa realizados.

Termina pugnando pela:

1. A improcedência do chamamento de intervenção acessória, por incumprimento dos artigos 502.º, n.º 1 e 331.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil;

A não se entender assim,

2. Sejam devidamente ponderados os previsíveis efeitos perversos da decisão de chamamento, atenta a conflitualidade existente, consubstanciada, nomeadamente, na pendência de acção judicial antes referida.

Ainda;

3. Seja o Autor condenado como litigante de má-fé”.

                                                        *

Na sequência de convite nesse sentido, o autor AA requereu a intervenção provocada de CC na qualidade de Ré, o que foi admitido.

                                               *

Após dedução de incidente de intervenção principal espontânea por ela suscitado e onde invoca os factos alegado pelo autor AA, foi admitida a intervir ao lado do autor, EE.

                                               *

Elaborado o despacho saneador:

a) Julgou-se improcedente a invocada nulidade do contrato promessa de compra e venda da Herdade …;

b) Julgou-se improcedente a invocada invalidade parcial dos contratos de arrendamento e contrato-promessa de compra e venda;

c) Procedeu-se à selecção da matéria de facto relevante para a decisão da causa.

                                                        `*

 Por falecimento da ré CC, foram habilitados, em seu lugar, FF, GG, HH, II, JJ, KK e LL.

                                               *

 Por falecimento de HH, foram habilitados em seu lugar MM, NN e OO.

                                               *

 Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida, a seguinte sentença:

“A. Julgar a presente acção proposta por AA contra BB e CC, entretanto falecida, sendo habilitados em seu lugar FF, GG, HH, (também falecido na pendência da presente acção, tendo sido habilitados em seu lugar MM, NN e OO), II, JJ, KK e LL procedente e, em consequência,

a) Declara-se a nulidade do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre CC e o réu BB descrito nas alíneas H) e I) dos factos assentes; e

b) Reconhece-se ao autor AA o direito de preferência relativamente ao contrato de arrendamento celebrado entre CC e o réu BB descrito na alínea J) dos factos assentes.

B. Julgar totalmente improcedente, por não provada, a reconvenção deduzida pelo réu BB contra o autor AA, absolvendo este último de todos os pedidos.

C. Não condenar o autor AA e o réu BB como litigantes de má fé.”

                                               *

Apelou o réu BB , mas sem êxito, pois a Relação de Évora, através do seu Acórdão de 31-5-2012, negou provimento à apelação e confirmou a sentença recorrida.

                                               *

Continuando inconformado, o réu pede revista, onde conclui:

1 – O quesito 3º da base instrutória e meramente conclusivo, violando o disposto no art. 511 do C.P.C.

2 – Devendo, em consequência, julgar-se não escrita a resposta respectiva.

3 _ Sendo de todo o modo incontornável que a resposta a tal quesito não está devidamente fundamentada.

4 – Na realidade, não se alcança da fundamentação em apreço qual foi o processo lógico que conduziu à conclusão do tribunal “a quo”.

5 – Sendo nula respectiva decisão – arts 722 e 668, nº1, al. b) do C.P.C.

6 – O tribunal da 1ª instância já se havia pronunciado, por decisão transitada em julgado, sobre a questão da validade ou invalidade do contrato promessa de compra e venda em questão, tendo-o julgado válido.

7 – O autor não invocou qualquer outro vício, irregularidade ou invalidade do referido contrato promessa ou do negócio que lhe estava subjacente.

8 – No mesmo é contrário à lei e aos bons costumes, pelo que não cai na previsão do art. 280 do C.C.

9 – Atenta a validade formal e substancial do contrato promessa de compra e venda, devia o tribunal ter concluído pela improcedência do pedido.

10 – O réu convencionou com CC um contrato promessa de compra e venda (se bem que com cláusulas atípicas) por ambos pretenderem, essencialmente, a transmissão do domínio sobre um determinado prédio.

11 – É manifesto, no caso, que as partes contraentes não quiseram celebrar um contrato de arrendamento rural, nos termos do qual a proprietária receberia a renda anual de 2.500.000$00.

12 – Inexistindo assim direito de preferência no alegado arrendamento rural. 

13 – Ao decidir como decidiu, o tribunal aplicou erradamente o disposto no art. 280 do C.C. e violou o art. 27 do Regime do Arrendamento Rural .       

                                               *

O autor contra-alegou em defesa do julgado.

                                               *

Corridos os vistos, cumpre decidir.

                                               *

A Relação considerou provados os factos seguintes

I - CC era a dona do prédio rústico denominado “Herdade …”, sito na freguesia de Pedrógão, composto de casa de habitação, terra de semear, pastagem, montado de azinho e oliveiras, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, a fls. 12 verso do Livro B-5 e inscrita sob os artigos 1.º–K da matriz predial rústica da freguesia de Selmes e l.º–B rústica e artigo 528.º da matriz urbana da freguesia de Pedrogão (alínea A) dos factos assentes);

II - Por acordo escrito datado de 4 de Julho de 1989, CC e DD e AA estabeleceram o arrendamento rural do prédio descrito em A) pelo prazo de dez anos, renovando-se por períodos sucessivos de três anos, mediante a contrapartida anual de 2 000 000$00 (alínea B) dos factos assentes);

III - Mais acordaram o seguinte:

         “Cláusula 6.ª – Em caso de impossibilidade física permanente de um dos arrendatários, os direitos e deveres consignados no presente contrato transmitem-se integralmente para o outro;

Cláusula 8.ª – No caso de venda ou dação em cumprimento do prédio arrendado, cada um dos arrendatários goza do direito de preferirem na transmissão” (alínea C) dos factos assentes);

IV - O DD faleceu em … de … de 19…, no estado de casado com EE (alínea D) dos factos assentes);

V - No dia 3 de Dezembro de 1998, FF enviou a AA o escrito constante de fls. 14 e 15 que se dá integralmente por reproduzido, declarando ser sua intenção denunciar o contrato de arrendamento da Herdade … no dia 04 de Julho de 1999 e informando que o preço da venda do prédio seria de 350.000 000$00, escrito que foi recebido pelo Autor (alínea E) dos factos assentes);

VI - E na mesma data enviou a EE o escrito constante de fls. 16 a 18 que se dá integralmente por reproduzido, declarando a mesma intenção referida em E), escrito que foi recebido por EE (alínea F) dos factos assentes);

VII - Em 13 de Novembro de 1998, o Autor enviou a CC o escrito constante de fls. 19 que se dá integralmente por reproduzido, em que refere a existência de uma carta de 24.09.1997 na qual se manifesta a intenção de denunciar o contrato de arrendamento e comunicando a intenção do autor em adquirir o prédio descrito em A) (alínea G) dos factos assentes);

VIII - Em 13 de Abril de 1999, o Autor enviou a CC o escrito constante de fls. 21, que se dá por integralmente reproduzido, comunicando que renunciaria a qualquer indemnização pelas benfeitorias realizadas no prédio descrito em A) caso este fosse vendido por 175 000 000$00 ou fosse dado de arrendamento mediante a renda anual de 6 000 000$00 (alínea K) dos factos assentes);

IX - E em 14 de Maio de 1999, o Autor enviou a CC o escrito constante de fls. 23 que se dá por integralmente reproduzido, comunicando o exercício do direito de retenção sobre o imóvel descrito em A) e que a denúncia apenas poderia produzir efeitos a partir do fim do ano agrícola daquele ano (alínea L) dos factos assentes);

X - Por escrito particular datado de 25 de Junho de 1999, que consta de fls. 85 a 88 e que se dá por integralmente reproduzido, FF, em representação de CC e BB declararam, o primeiro, que a sua representada, na qualidade de dona do prédio misto descrito em A), prometia vender o mesmo ao segundo, mediante a importância de 360 000 000$00, sendo entregue a importância de 60 000 000$00, a título sinal e início de pagamento, e o remanescente no acto da escritura pública, a realizar trinta dias, após o prazo de trinta e seis meses para a obtenção da quantia necessária ao pagamento do preço (alínea H) dos factos assentes);

XI - Mais declararam nesse escrito as seguintes cláusulas:

“Cláusula 3.ª

1 – Será celebrado um contrato de arrendamento rural com entrada imediata vigor, como forma de garantir ao segundo outorgante a recuperação imediata das infra-estruturas da propriedade e um ordenamento dos solos em ordem à adequação dos mesmos ao seu plano de exploração.

2 – O contrato a que se refere o número anterior caducará de imediato, pela realização da escritura pública de compra e venda ou pelo decurso do prazo a que se refere a cláusula 2.ª

3 – O preço a pagar pela fruição integral dos prédios até à realização da escritura pública de compra e venda é de 2 500 000$00 (dois milhões e cinquenta mil escudos) e será paga no mês de Agosto em casa da proprietária.

Cláusula 4.ª

Na vigência do contrato de arrendamento rural, o arrendatário pagará uma quantia adicional de 2 500 000$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos) pela utilização de outras instalações cedidas e não compreendidas no contrato de arrendamento, sendo esta quantia entregue na mesma data e no mesmo local do pagamento da renda à senhoria ou ao seu procurador.

         Cláusula 5.ª

1 – Na data de celebração da escritura pública do contrato de compra e venda, as quantias a que se referem o n.º 3 da cláusula 3.ª e a cláusula 4.ª serão deduzidas do preço total referido na cláusula 1.ª.

2 – A não concretização da compra e venda por motivos exclusivamente imputáveis ao segundo outorgante implica a perda total das quantias por este entregues e referidas nas cláusulas 3.ª e 4.ª e a entrega imediata à proprietária dos prédios objecto do presente contrato, considerando-se resolvido, por acordo, o contrato de rural celebrado.” (alínea I) dos factos assentes);

XII - O acordo descrito em H) e I) foi realizado com vista a prejudicar o direito do Autor e da interveniente EE na preferência do arrendamento (resposta ao artigo 3.º da base instrutória);

XIII - Por escrito particular da mesma data [25 de Junho de 1999], cujo teor consta de fls.89 e 90 e que se dá por integralmente reproduzido, FF, na mesma qualidade referida em H), e BB, declararam o primeiro que a sua representada, na qualidade de dona do prédio referido em A), dava o mesmo de arrendamento ao segundo, o qual declarou aceitar, pelo prazo de dez anos, renováveis por três anos e contado a partir de 5 de Julho de 1999, mediante a contrapartida anual de 2 500 000$00 (dois milhões e quinhentos mil escudos) a pagar no dia 15 de Agosto de 1999 e nos anos seguintes, ao representante e em casa da senhoria (alínea J) dos factos assentes);

XIV- Em 3 de Novembro de 1999, e por via dos acordos referidos em H) a J), o réu BB fez entrar pelo prédio descrito em A) diversos animais de gado bovino da sua pertença (alínea O) dos factos assentes);

XV - CC não deu conhecimento ao Autor e a EE do arrendamento relativo ao prédio descrito em A) e realizado a favor do réu BB em 25 de Junho de 1999 (resposta ao artigo 1.º da base instrutória);

XVI - A CC, através do seu filho e representante FF, apenas enviou os escritos referidos em E) e F) (resposta ao artigo 2.º da base instrutória);

XVII - O Autor apenas teve conhecimento dos acordos referido em H) a J) a 3 de Novembro de 1999 (alínea M) dos factos assentes);

XVIII - O réu BB é agricultor e criador de gado bovino (alínea N) dos factos assentes);

XIX - O réu BB solicitou a avaliação do prédio descrito em A) em Março de 1999 nos termos que constam dos documentos de fls. 76 a 80 que se consideram reproduzidos (resposta ao artigo 6.º da base instrutória);

XX - O Réu BB acordou com o Banco PP, S.A., em 18.05.1999 e por via do escrito constante de fls. 81 a 83 (cujo teor se dá como reproduzido) o denominado “contrato de abertura de crédito” no valor de cem milhões de escudos (resposta ao artigo 7.º da base instrutória);

XXI - Encontra-se pendente neste Tribunal Judicial da Comarca de Cuba, a acção declarativa sob o n.º 22/2000, na qual o Autor e EE pedem a condenação da CC no pagamento da importância de 51 645 000$00, a título de indemnização pelas benfeitorias realizadas no prédio descrito em A) (alínea P) dos factos assentes);

                                                        *

         Vejamos agora o mérito do recurso.

         1.

         O recorrente começa por invocar que o quesito 3º é conclusivo, pelo que a respectiva resposta deve ser considerada “não escrita” .

          O quesito 3º da base instrutória é do seguinte teor:

         “O acordo descrito em H) e I) foi realizado com vista a prejudicar o direito do autor e da interveniente EE” ?

         Tal quesito obteve resposta de “provado”.

         O art. 646, nº4, do C.P.C. considera não escritas as respostas que versem sobre matéria de direito.

         Também deve ter-se por não escrita a resposta a um quesito que contenha matéria conclusiva, por analogia com o disposto no art. 646, nº4, do C.P.C.

         No caso concreto, a resposta positiva ao quesito 3º não pode considerar-se conclusiva.

         Como ensina Antunes Varela (Manual de Processo Civil, 2ª ed, pág. 407), “dentro da vasta categoria dos factos (processualmente relevantes), cabem não apenas ao acontecimentos do mundo exterior (da realidade empírico-sensível, directamente captável pelas percepções do homem, mas também os eventos do foro interno, da vida psíquica, sensorial ou emocional do individuo (v.g. a vontade real do declarante “…).

         É matéria de facto e não de direito determinar-se qual a intenção ou vontade real do declarante ( Ac. S.T.J. de 30-5-78, Bol. 277, pág. 233, Ac. S.T.J. de 28-6-94, Bol. 438-456; Ac. S.TJ. de 3-5-95, Bol. 447, pág. 520).

         Ora, o quesito 3º e a respectiva resposta positiva tiveram precisamente em vista determinar a intenção ou vontade real dos respectivos contratantes, ao celebrarem os pretensos contrato promessa de compra e venda e de arrendamento rural, aludidos nas alíneas H) e I) da peça dos factos assentes.

         O que se traduz em apuramento de matéria de facto, que incumbe às instâncias, pelo que a resposta ao indicado quesito 3º não pode ser considerada “não escrita”, visto não ser conclusiva.

         2.

 

         O recorrente também alega que tal resposta não se encontra devidamente fundamentada, o que, na sua óptica, deve determinar a nulidade da decisão.

         Mas também aqui não lhe assiste razão.

         Com efeito, tal resposta encontra-se exuberante e minuciosamente fundamentada no despacho de motivação das respostas aos quesitos de fls 1154 e segs, onde se explicitaram os vários meios de prova que concorreram para a formação da convicção do Ex.mo Juiz que presidiu ao julgamento em 1ª instância, bem como os critérios racionais que conduziram a que a sua convicção se tivesse formado no sentido expresso na resposta ao indicado quesito 3º.

          Acresce que tal resposta foi impugnada no recurso de apelação, mas foi mantida pela Relação.

         Ora, o erro na apreciação das provas não pode ser objecto de recurso de revista, nos termos do art. 722, nº2, do C.P.C., salvo nos dois casos excepcionais previstos na segunda parte do mesmo preceito, que aqui não ocorrem.

         De qualquer modo, importa referir que quando uma resposta a qualquer quesito não se encontrar devidamente fundamentada, tal situação não produz nulidade da decisão.

O recorrente apenas pode requerer que a Relação mande baixar o processo à 1ª instância, para que esse tribunal a fundamente, nos precisos termos do art. 712, nº5, do C.P.C., requerimento que o recorrente não fez.

3.

         Por outro lado, o recorrente também diz que o tribunal de 1ª instância já se havia pronunciado, no despacho saneador, sobre a questão da nulidade ou invalidade do contrato promessa de compra e venda, tendo-o considerado válido.

         Só que a decisão final que veio a ser proferida nos autos não importa qualquer violação do caso julgado, sobre matéria já anteriormente apreciada.

         Com efeito, no despacho saneador, apenas foram apreciadas:

- a pretensa nulidade do questionado contrato promessa de compra e venda,  a que se refere o art. 410, nº3, do C.C., por falta de reconhecimento presencial das assinaturas dos respectivos intervenientes, tendo sido julgado que tal exigência não tinha aplicação no caso vertente, motivo porque improcedia a invocada nulidade do contrato promessa de compra e venda outorgado entre o réu BB e a interveniente CC;

- a pretensa nulidade do mesmo contrato promessa, por falta de pagamento do então imposto de sisa, que também foi julgada improcedente;

- a pretensa nulidade do contrato de arrendamento, por violação de disposição normativa decorrente do regime do arrendamento rural, então vigente, que consagra a caducidade do arrendamento ao fim de três anos de vigência do contrato, sem efectivação da respectiva compra e venda, nulidade que também foi julgada improcedente, por falta de interesse processual do autor em agir, “uma vez que a questão resultante desta cláusula apenas diz respeito às pessoas que nela figuram, respectivamente, como dona e arrendatária, nada prejudicando a posição de preferente assumida pelo autor” (fls 279v).     

        

         4.  

                 

         Resta apreciar a questão de saber se o autor tem o direito de preferência que se arroga, em virtude do contrato do arrendamento rural em que era arrendatário ter cessado em 4 de Julho de 1999, por causa que não lhe é imputável (denúncia da senhoria CC) e em 25 de Junho de 1999, ainda na vigência daquele anterior contrato de arrendamento, a mesma senhoria ter celebrado um novo contrato de arrendamento rural, relativo ao mesmo prédio, com o réu BB, sem ter respeitado o direito de preferência do autor no novo arrendamento, comunicando-lhe previamente o novo contrato de arrendamento e as respectivas cláusulas.

         É que, nos termos do art. 27º do dec-lei 385/88, de 25 de Outubro (regime do arrendamento rural), ao tempo vigente, quando a cessação do contrato de arrendamento rural ocorrer por causa não imputável ao arrendatário, este goza do direito de preferência nos contratos de arrendamento celebrados nos cinco anos seguintes.

         Por força do preceituado no art. 423 do C.C., “as disposições dos artigos anteriores relativas à compra e venda são extensivas, na parte aplicável, à obrigação de preferência que tiver por objecto outros contratos com ela compatíveis”.

         Este art. 423 mostra que a obrigação de preferência pode ter por objecto outros contratos que não a venda, desde que sejam compatíveis com a preferência.

         Pois bem.

         Na sentença da 1ª instância, foi decidido que o contrato promessa de compra e venda está ferido de nulidade por fraude à lei, nulidade que é de conhecimento oficioso ( art. 286).

         E, sendo nulo o invocado contrato promessa de compra e venda do prédio arrendado, foi julgada procedente a pretensão do autor em ver reconhecido o seu direito de preferência no novo arrendamento rural celebrado.

         A Relação confirmou o reconhecimento do direito de preferência do autor no novo contrato de arrendamento rural, depois de ter chegado à mesma conclusão da nulidade do contrato promessa de compra e venda, mas por contrariedade aos bons costumes (art. 280, nº2, do C.C.).

  

         Que dizer?

        

         A colisão do conteúdo contratual com a lei injuntiva pode ser directa ou indirecta.

         Quando for indirecta designa-se fraude à lei. 

         A fraude à lei pode ser vista de um modo subjectivo ou de um modo objectivo.

         No modo subjectivo, o juízo de fraude não prescinde da imputação ao agente de uma intenção pessoal de iludir o mecanismo criado com a providência legislativa de modo a defraudar a lei.

         No modo objectivo, não é exigida a imputação subjectiva nem a prova da intenção, de tal modo que, para o juízo de fraude, é suficiente que a actuação do agente produza o resultado que a lei quer evitar ou evite o resultado que a lei quer produzir.

         Como escreve Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 6ª ed, , pág. 594), “na fraude à lei, o conteúdo negocial não agride directamente a lei defraudada, mas antes colide com a intencionalidade subjectiva que lhe está subjacente e que justifica a sua imperatividade . Esta intencionalidade normativa subjacente à imperatividade da lei é a Ordem Pública, como portadora dos critérios ordenantes do sistema. O juízo de fraude à lei coloca-se, assim, no domínio da Ordem Pública. O negócio jurídico fraudulento é ilícito”.   

         Se apenas o fim do negócio jurídico for contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes, o negócio só é nulo quando o fim for comum a ambas as partes – art. 281 do C.C.

         Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. I, 4º ed, pág. 259) anotam que “neste artigo prevêem-se casos de licitude do objecto, mas com ilicitude do fim.

         Aluga-se por exemplo, uma arma para matar alguém ou arrenda-se uma casa para instalar nela uma associação ilegal.

         Alugar ou arrendar não são actos, em si, contrários à lei, à ordem pública ou ofensivos dos bons costumes; mas já o são, se se atender ao fim a que se destinam as coisas alugadas ou arrendadas.

         Para a relevância do fim exige-se que ele seja comum a ambas as partes, isto é, que ambas tenham tido em vista o fim ilícito “.

         É neste art. 281 do C.C. que se deve enquadrar a nulidade do invocado contrato promessa de compra e venda, realizado em fraude à lei.

         Com efeito, apurou-se que a celebração do invocado contrato promessa de compra e venda foi realizado tendo em vista prejudicar o direito do autor e da interveniente EE, na preferência do novo contrato de arrendamento rural.

         Por isso, o contrato promessa de compra e venda, com as cláusulas nele insertas, foi um mero expediente utilizado pela interveniente CC (promitente vendedora) e pelo réu BB (promitente comprador) para afastarem o direito legal de preferência de que o autor AA era titular no novo contrato de arrendamento rural, procurando associar tal contrato promessa ao verdadeiro contrato de arrendamento rural e subordinar este contrato àquele, de modo a tentar dar uma imagem global dos factos que afastasse a possibilidade de validamente ser exercido o invocado direito de preferência, no novo  arrendamento efectuado.

         Como se escreve na sentença da 1ª instância, “ o Direito, com toda a sua carga ética e moral, não pode tolerar e cobrir uma combinação negocial com os efeitos jurídicos pretendidos e considerar como válidos ambos os contratos, quando um deles (o contrato promessa de compra e venda) se realizou apenas para afastar a aplicação de uma norma legal imperativa (o art. 27 do Regime do Arrendamento Rural).         

         Dito de outro modo : a CC e o réu BB fizeram uso de mecanismos legais -  a celebração de contratos promessa de compra e venda com o teor do celebrado e cujas cláusulas constam de fls 85 a 88, não é, em si mesmo e em abstracto, contrário à lei -  mas utilizaram tais mecanismos de modo apenas formalmente válido, porquanto tinha em vista um fim que, manifestamente, é contrário à lei: impedir o exercício de um direito de preferência que se mostra consagrado na própria lei” (fls 1180).

         Como consta do despacho de fundamentação da resposta ao quesito 3º, a interveniente CC e o réu BB “sempre quiseram apenas celebrar o contrato de arrendamento referido em J) dos factos considerados assentes, não sendo este contrato instrumental do contrato promessa de compra e venda referido em H) e I) “ (fls 1157).

         Assim, sendo nulo o contrato promessa de compra e venda e não tendo a CC comunicado previamente ao autor o projecto do novo arrendamento e as cláusulas do respectivo contrato, assiste àquele o direito de preferência nesse novo arrendamento, descrito na alínea J) dos factos assentes, nos termos das disposições conjugadas dos arts 416, nº1 e 423 do C.C. e art. 27 do dec-lei 385/88, de 25 de Outubro, então vigente.

                                                        *

         Termos em que, com esta fundamentação, negam a revista.

         Custas pelo recorrente.

         Lisboa, 15 de Janeiro de 2013      

Azevedo Ramos (Relator)

Silva Salazar

Nuno Cameira